ensaio lit inf 2009 ana da palma

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Universidade Aberta Mestrado em Arte e Educação Literatura Infantil e Mediação Leitor «Diz-me que jornal lês e dir-te-ei quem tu és!». As possibilidades da intertextualidade na literatura infantil através de uma abordagem a Le loup est revenu de Geoffroy de Pennart. Ana da Palma Julho 2009

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Sobre as possibilidades da intertextualidade na literatura infantil.

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Page 1: Ensaio Lit Inf 2009 Ana Da Palma

Universidade Aberta

Mestrado em Arte e Educação

Literatura Infantil e Mediação Leitor

«Diz-me que jornal lês e dir-te-ei quem tu és!». As possibilidades da intertextualidade na literatura infantil através de uma abordagem a Le loup est revenu de Geoffroy de Pennart.

Ana da Palma

Julho 2009

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Texte veut dire Tissu; mais alors que jusqu’ici on a toujours pris ce

tissu pour un produit, un voile tout fait, derrière lequel se tient, plus ou

moins caché, le sens (la vérité), nous accentuons maintenant, dans le

tissu, l’idée générative que le texte se fait, se travaille à travers un

entrelacs perpétuel; perdu dans ce tissu – cette texture – le sujet s’y

défait, telle une araignée qui se dissoudrait elle-même dans les

sécrétions constructives de sa toile.1

A palavra texto, tal como nos indica Roland Barthes, remete etimologicamente para o

vocábulo «tecido». A tecedura do texto fabrica-se como uma malha intrincada, tanto naquilo que

concerne a sua concepção, como no aspecto que diz respeito à sua leitura. É na complexidade e

nas fabulosas possibilidades desta tecedura que pretendemos entramos para explicitar aquilo que

pensamos poder ser uma das chaves para um ensino que possa contemplar uma revolução do

pensamento em termos de ensino tal vem argumentado em Edgar Morin2.

No final dos anos noventa, num seminário sobre o livro e a biblioteca, Carlos Reis disse

que o livro estava demasiado democratizado e, um pouco mais tarde, citou um excerto de As

cidades e as Serras, relatou mais precisamente, o sonho de uma personagem a ler Voltaire com a

presença de Deus por cima do seu ombro. Estas palavras levaram-nos a concordar com o facto de

que a chamada democratização do livro tem efeitos perversos e que a leitura, ou aquilo que

poderíamos qualificar como sendo a «leitura útil», terá de ser uma leitura orientada, ponderando

o olhar metafórico de um Deus. A chamada democratização do livro, mesmo se intuímos que é 1 Roland Barthes, Le plaisir du texte, Paris : Seuil, 1973, p.85 2 Edgar Morin, Os sete saberes para a educação do futuro, Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

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um assunto a desenvolver por ser demasiado complexo, permitiu o acesso a mais livros, mas

também a exploração de outras áreas no campo da literatura e, mais precisamente, na literatura

infanto - juvenil.

Posto isso, escolhemos reflectir sobre a forma e as possibilidades da intertextualidade3

num pequeno livro intitulado: «Le loup est revenu4» com o objectivo de realçar as

potencialidades em termos de estímulo da imaginação e fantasia, assim como em termos de

detonador, ou despertador, para a leitura feliz que associamos a um conhecimento absolutamente

necessário na contemporaneidade.

Trata-se de um livro curioso, porque apesar de ser de literatura infantil delicia tanto os

mais novos ou o leitor como player5, como os mais velhos. A história é simples. O Senhor

Coelho aprende que o lobo regressou ao ler o jornal e, a partir desse momento, a casa dele torna-

se o refúgio para vários animais, até chegar, finalmente, o próprio lobo e acabarem todos por

jantar juntos. Este pequeno conto fornece-nos as ferramentas para pensar a literatura infantil sob

vários pontos de vista. Num primeiro momento, iremos abordar os aspectos relevantes do conto.

Num segundo momento, debruçar-nos-emos sobre as histórias evocadas dentro da história

principal e quais os procedimentos técnicos utilizados para esta mise en abîme. Finalmente,

dedicar-nos-emos às questões da intertextualidade e das suas potencialidades. Entramos num

texto como entramos numa biblioteca, pois é sempre um momento em que tudo é possível!

Ce soir, monsieur Lapin a peur d’aller se coucher. Il vient de

lire dans son journal une nouvelle terrifiante ! LE LOUP EST

REVENU!6

Quando iniciamos o nosso percurso numa biblioteca, ou numa livraria, o nosso olhar cai

sobre as lombadas dos livros e, sem sabermos, já se encontra orientado para aqueles que, além do

tema, nos atraem pela forma. As nossas mãos aventuram-se nas prateleiras e imiscuam-se nas

páginas viradas como asas sobrevoando os textos e as imagens. O livro que serviu de ponto de 3 Optámos, por enquanto, pelo termo intertextualidade desenvolvido por Júlia Kristeva, mas iremos nos debruçar de forma resumida e sucinta sobre as questões terminológicas que remetem para este campo da teoria literária. 4 Geoffroy de Pennart, Le loup est revenu, Paris: Kaléidoscope – L’école des loisirs, 1999. 5 Gloria Bastos, Literatura infantil e juvenil, Lisboa: Universidade Aberta, 1999, p.34. 6 Idem, p.5

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partida para esta análise é de pequeno formato. É de capa mole e é de pequena extensão, pois tem

apenas trinta e cinco páginas. A capa de rosto apresenta o título do livro como se fosse a

manchete de um jornal lido por um animal que, pelas orelhas compridas, parece poder ser um

coelho. Ao observar um pouco mais o desenho da capa, podemos ver cenouras no papel de

parede e sem ver a personagem que está a ler o jornal, intuímos, pelo indício, que se trata de um

coelho, pois cenouras e coelhos encontram-se associados. Além do título ser apelativo, quase

sensacionalista, a imagem que aparece no jornal mostra-nos um lobo com um grafo e uma faca na

mão, assim como com um guardanapo branco à volta do pescoço. Assim, cria-se logo um

ambiente que nos leva ao mundo das narrativas sobre e com lobos e fica-se logo curioso de saber

o que é que se vai passar. Se virarmos o livro e olharmos para o desenho da contracapa, desta

vez, vemos mesmo um Coelho, com um ar sorridente, aqui os títulos do jornal podem servir de

conclusão à história, aliviando o primeiro efeito dramático, envolvendo o regresso do Lobo.

Vemos que o nome do jornal está associado ao Coelho e ficamos a saber que o lobo gosta de

galette7! Portanto toda a tensão dramática encontra-se aliviada, mas ainda falta saber como é que

a história se desenrolou!

Após esta breve apresentação formal do livro enquanto objecto, vamos agora dedicar-nos

às ilustrações, para depois analisar os aspectos que remetem para o texto. O autor é o ilustrador, o

que, provavelmente, facilita a criação de uma perfeita harmonia entre as imagens e texto, assim

como favorece a forma como os laços se fazem entre umas e outro. Os desenhos são realistas

apesar de projectarem os animais num mundo de seres humanos, isto é, vivem em casas

semelhantes, lêem jornais, sentam-se em sofás, sentem medo, cuidam, convivem e comem. A

nível da ilustração, por um lado, há um espaço que é a casa do coelho que pouco a pouco vai

juntar cada vez mais personagens e, por outro lado, cada animal aparece caracterizado por um

elemento principal, que serve de indício em toda a narrativa: o jornal. No entanto, esta

característica é curiosa, porque remete para uma ilustração que contem outro texto ecoando o

texto da narrativa. Vejamos: o coelho lê um jornal que se chama: «La feuille de chou8». Portanto

além de ser caracterizado por cenouras, também tem um jornal que lhe é exclusivamente

dedicado. A mesma situação repete-se para todos os animais, mas apesar das personagens 7 Trata-se de um termo genérico para um bolo achatado que também remete para um bolo consumido principalmente na passagem de ano em França. 8 A folha de couve. Ver anexo 1

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humanas também aparecerem com o jornal na mão, a sua caracterização não remete para um

título específico. O jornal dos Três Porquinhos é « Le tire-bouchon9»; o jornal da Cabra é «Le

crottin de chavignol10» e o jornal do Cordeiro é «Le mouton enragé11».

Quanto ao texto, podemos verificar que está escrito de forma muito simples, sucinta e

curta. Trata-se de um texto que se enquadra numa leitura que corresponde ao estádio pré-

operacional, porque é o momento em que o jovem ouvinte e leitor começa a reconhecer,

memorizar e reconstruir os dados das histórias:

«O estádio pré-operacional (dos 2 aos 7 anos) caracteriza-se pela aparição da

função simbólica, que se organiza paralelamente à aquisição da linguagem. Este

facto permite actuar sobre as coisas, não só materialmente, mas também

interiorizando os esquemas de acção em representações e realizando imitações

diferidas. Assim, a criança consegue reconstruir aquisições anteriores, elaborar

os dados que lhe chegam através dos sentidos e categorizar a realidade.»12

No que concerne a grafia é importante salientar o uso de maiúsculas inseridas no corpo do

texto, remetendo para a possível dramatização da leitura. As palavras em maiúsculas são, por um

lado, palavras que devem ser enfatizadas no momento de leitura, mas, por outro lado, são como

uma lengalenga, pois repetem-se ao longo da narrativa. Podemos verificar que re-encontramos:

«LE LOUP EST REVENU», «TOC TOC TOC» «LE LOUP» e um «BOUM BOUM BOUM» que ecoa a

outra forma de bater à porta. Estes aspectos gráficos têm várias funções no momento de leitura,

pois permitem a interacção do jovem leitor, a dramatização com tons e altura de voz, mas

também uma fácil memorização da história por parte do leitor-ouvinte, assim como uma iniciação

à escrita e à leitura por parte do jovem leitor. O tempo da narrativa começa ao fim do dia, naquele

crepúsculo que corresponde ao momento mais angustiante do início da noite, permitindo

contextualizar a presença do lobo e a história como aquela história que se conta na cama antes de

dormir. Portanto, começa ao final do dia e termina com um jantar convivial que faz esquecer a

todas as personagens a razão primeira que os juntou. O fim repete a cena do jantar convivial com

a última personagem: o Lobo, que já ninguém esperava, e que, de súbito, é também um

9 O saca rolhas. Ver anexo 1 10 Nome de um queijo de cabra francês. Ver anexo 1. 11 Literalmente significa o carneiro enfurecido, mas remete para a brucelose. Ver anexo 1 12 Gloria Bastos, Literatura infantil e juvenil, Lisboa: Universidade Aberta, 1999, p.35.

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convidado. O traço acompanha a simplicidade das palavras, mas a simplicidade acaba por

remeter para outro plano mais alargado, mais complexo que faz e constrói toda a dimensão da

história, isto é, as histórias que acompanham esta história.

A nível das implicações em torno da semântica e ideologia do texto, podemos referir a

questão da solidariedade, como força unificadora de todas as agressões e medos, o perdão, a

confiança e a desmistificação do lobo mau. Contudo, as palavras finais dirigidas ao lobo: « LOUP,

NOUS N’AVONS PLUS PEUR DE TOI! Mets-toi bien ça dans la tête. (...) Mais si tu promets d’être

gentil et de nous raconter des histoires de loup qui font peur, alors nous t’invitons à dîner avec

nous.13» consolidam o imaginário envolvido nas histórias de lobos. O medo justifica a história

sabendo que é apenas uma história.

«Le plaisir du texte, c’est ce moment où mon corps va

suivre ses propres idées – car mon corps n’a pas les

mêmes idées que moi.14»

«Chamamos actividade criadora a toda a realização

humana responsável pela criação de qualquer coisa de

novo, quer corresponda aos reflexos deste ou daquele

objecto do mundo exterior, quer a determinadas

construções do cérebro ou do sentimento que vivem e se

manifestam somente no próprio ser humano.15»

Este conto remete para várias histórias que pertencem a uma memória colectiva do

universo da leitura infantil onde aparece um lobo, tendo contudo sofrido alterações e influências

mais recentes na abordagem da caracterização do Lobo:

« (A literatura tradicional de transmissão oral) Fazendo parte de uma

memória colectiva, sendo recriação simbólica do quotidiano, a literatura

tradicional é um mecanismo que veicula modelos culturais, funcionando

em paralelo com os do universo culto, simultaneamente seguindo as suas

13 Lobo, já não temos medo de ti! Acredita nisto! Mas se prometes ser simpático e de nos contar histórias de lobo que metem medo, então convidamos-te a jantar. (Tradução minha) 14 Roland Barthes, Le plaisir du texte, Paris : Seuil, 1973, p.27 15 Lev Vygotsky, A imaginação e a Arte na Infância, Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2009.

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vias particulares, requeridas por um contexto sócio-económico diferente, e

sofrendo influências de outras áreas»16

Pois surgem sucessivamente cinco famosas histórias que conciliam e reformulam o medo

tradicional, com implicações morais, numa nova aproximação a este animal, que vem

referenciado no bestiário dos bestiários17 como tendo duas naturezas remetendo, principalmente,

para a maldade e o engano.

No primeiro momento, aparecem os Três Porquinhos18 absolutamente assustados

brandindo o seu jornal ao Senhor Coelho. A chegada destas personagens remete para outra

narrativa muito conhecida no mundo infantil tanto pelas várias publicações, como pelas

produções cinematográficas. Os três Porquinhos é um conto cuja origem data do século XVIII e

tornou-se muito famoso e amplamente explorado e divulgado nas suas várias versões com o

trabalho da Disney em 193319. Como sabemos a história é simples. Os três porquinhos decidiram

construir a sua vida e pretendem erigir uma casa que seja deles. As construções vão da menos

elaborada, em palha, passando pela madeira, até ao tijolo, mas a dado momento, quando aparece

o lobo, uma das versões originais indica que os porquinhos são comidos, outra mais ligeira, refere

que se refugiam na casa mais sólida. Na versão original, o lobo come dois porquinhos e como não

consegue entrar em casa do último, acaba por tentar fazê-lo sair de casa, propondo-lhe vários

desafios, mas todas as tentativas acabam por fracassar e o lobo ao passar pela chaminé cai numa

panela de água quente e ora morre, ora foge. Os laços que se tecem com a nossa pequena

narrativa sobre o regresso do Lobo residem essencialmente no paralelismo entre os dois

16 Gloria Bastos, Literatura infantil e juvenil, Lisboa: Universidade Aberta, 1999, p.57. 17 Arnaud Zucker (tradutor e comentador) Physiologos. Le bestiaire des bestiaires, Grenoble : Éditions Jérôme Million, 2004, p. 294 : « Première nature du loup. A propos de l’avertissement de notre Seigneur Jésus Christ dans les évangiles : Méfiez-vous des faux prophètes, car ils viennent à vous en habits de brebis, mais à l’intérieur ce sont des loups rapaces. Le Physiologue a dit du loup qu’il s’agit d’un animal fourbe et mauvais : il vient pour s’emparer d’une bête dans un troupeau de moutons, avec la bouche grande ouverte, mais dès qu’il a fait son rapt il s’enfuit, à cause du berger. Basile le Grand a dit : Tels sont les hérétiques : ils passent en habits de brebis, mais leur cœur est comme un loup rapace qui s’empare des gens simples et détruit leur âme. Tels sont aussi les avides, ces hommes, qui veulent avoir plus que le pauvre, et le riche prend avec rapacité le champ du pauvre, sa vigne, ou un autre de ses biens, sans être retenu par la peur de Dieu. Deuxième nature du loup : lorsqu’il rencontre un homme, il fait mine de boiter, alors qu’il n’a pas la moindre blessure à la patte, son cœur est fourbe et ne pense qu’à la rapine. Saint Basile a dit : Tels sont les hommes rusés et trompeurs. Lorsqu’ils rencontrent des gens vertueux ils se montrent intéressés, comme s’il n’y avait pas de mal en eux et qu’ils n’avaient aucune malveillance – alors que leur cœur est rempli d’acidité et de ruse.» 18 Geoffroy de Pennart, Le loup est revenu, Paris: Kaléidoscope – L’école des loisirs, 1999, p 8. 19 Ver referência: http://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Trois_Petits_Cochons

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porquinhos a procurarem refúgio em casa do irmão e a baterem à porta do Senhor Coelho. O

indício que nos projecta para outra narrativa encontra-se no Jornal.

As personagens seguintes que chegam a casa do Senhor Coelho saem de um conto de

Jacob e Wilhelm Grimm, são a Senhora Cabra e os seus Sete Cabritos20. Tal como no conto

original, os cabritos são de vários tamanhos, havendo um mais pequeno, o número sete, e a mãe

está representada como se estivesse pronta para ir às compras. Novamente, o fio condutor que

evoca as possibilidades da narrativa reside no Jornal.

A seguir chega o Cordeiro21, introduzindo uma fábula que nos terá sido legada22 por

Esopo e a seguir por Fedro e traduzida para francês para as escolas de Port-Royal por Sacy e que

mais tarde inspirou La Fontaine23.

Depois, aparece o jovem Pedro24 evocando o conto musical e didáctico escrito em 1936

por Serguei Prokofiev25. Pedro bate à porta do Senhor Coelho, acompanhado pelo Pato e o

Pássaro, brandindo um jornal.

A seguir, chega o Capuchinho Vermelho26, um conto recolhido numa versão literária

omitindo certos aspectos por Charles Perrault em 1697, cuja variante na vertente mais crua da sua

tradição oral foi identificada por Achille Millien, nos anos 1870, e retomado pelos irmãos

Grimm. Este conto tem sido amplamente analisado27 por psicanalistas, sociólogos e filólogos,

tais como Paul Delarue, Erich Fromm, Marc Soriano, Bruno Bettelheim, Yvonne Verdier,

Bernadette Bricout, Robert Darnton e François Flahault. Devido às várias análises e ao universo

20 Geoffroy de Pennart, Le loup est revenu, Paris: Kaléidoscope – L’école des loisirs, 1999, p 11. 21 Idem, p. 14. Ver: http://fr.wikisource.org/wiki/Le_Loup_et_l%E2%80%99Agneau_(Collinet) 22 No pequeno texto, Maria Alberta Meneres, In 100 histórias de todos os tempos. Pequenos recontos de grandes fábulas e histórias tradicionais, Porto: Asa, 2002, pp.205-207, relembra os trabalhos de Teófilo Braga sobre os contos tradicionais onde a identidade de Esopo e Fedro é posta em causa: «Teófilo Braga, um dos pioneiros da recolha e estudos relativos aos Contos Tradicionais do Povo Português, e grande estudioso da essência das fábulas, diz-nos que a Fábula é o desenvolvimento de uma comparação espontânea, a qual nos aparece entre os povos mais antigos como um produto impessoal, anónimo, circulando com a responsabilidade de autor e, por isso mesmo, com maior poder moral.». A representação da condição humana por meio de animais tem as suas raízes no primeiro bestiário: Physiologos, ver artigo: http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/artigos/bestiario.pdf 23 Ver: http://www.philagora.net/auteurs/fontain1.htm 24 Geoffroy de Pennart, Le loup est revenu, Paris: Kaléidoscope – L’école des loisirs, 1999, p 18. 25 Ver: http://fr.wikipedia.org/wiki/Pierre_et_le_Loup_(Prokofiev) 26 Op.Cit. p. 22. Ver: http://expositions.bnf.fr/contes/gros/chaperon/indcles.htm 27 Ver: http://expositions.bnf.fr/contes/pedago/chaperon/indrep.htm

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para o qual remete, este conto tem sido re-escrito28 ao longo dos tempos de variadíssimas formas

indo ao encontro, ora das tendências educativas e morais, ora da linguagem «politicamente

correcta», até à paródia e à desmistificação de uma série de preconceitos evocados através do

«apetite» do Lobo.

Contudo, no pequeno texto em análise, esta comunidade constituída por animais e

pessoas, forma um mundo que se conhece muito bem e que, ao longo dos tempos e das histórias,

sofreram as agressões do Lobo. Os elementos unificadores passam por dois principais indícios,

primeiro pela presença e existência do Lobo e depois pela presença dos vários Jornais.

Retomando questões relativas à construção do conto, verificamos que os cinco momentos

essenciais29: o momento inicial aqui sendo o regresso do Lobo; a perturbação remetendo para o

medo e o pavor desta notícia; a transformação apontando para a decisão de todas as personagens

se juntar à mesa; a resolução correspondendo à actuação conjunta de todas as personagens contra

o Lobo; e, finalmente, o estado final sendo o convite feito ao Lobo para jantar. Deste modo a

distância entre ser humano e animais encontra-se reduzida por um efeito de solidariedade, mas

também de perdão e convivialidade. A diferença entre o espaço aberto da floresta e o espaço

fechado seguro e acolhedor da casa do Senhor Coelho desaparece, porque todas as personagens

encontram-se à volta de uma mesa no doce calor do lar remetendo para uma promessa de união.

Estes novos aspectos introduzidos neste conto moderno participam no crescimento e na aquisição

de valores fundamentais na nossa sociedade, mas também abrem portas para a criatividade por

meio da intertextualidade.

"[…] tout texte se construit comme mosaïque de citations, tout texte est absorption et transformation d'un autre texte. À la place de la notion d'intersubjectivité s'installe celle d'intertextualité, et le langage poétique se lit, au moins, comme

28 Citando apenas alguns exemplos : O Capuchinho Vermelho de Henri Pourrat (1948-1962) ; Le Petit Chaperon Bleu Marine de Dumas e Moissard (1977) ; O Capuchinho Vermelho de Tony Ross (1978) ; de Christian Poslaniec (1981), Le petit chaperon vert de Grégoire Solotareff (1989) ; de Maria Isabel Mendonça Soares; O Chapéuzinho Vermelho de Elza Nascimento; de Belmira Ferreira e Rosa Fonseca; Histórias em Verso para Meninos Perversos, de Roald Dahl; Um Lobo Culto de Becky Bloom; A Menina do Capuchinho Vermelho no Século XXI de Luísa Ducla Soares (2007)

29 Gloria Bastos, Literatura infantil e juvenil, Lisboa: Universidade Aberta, 1999, p.69.

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double." Julia Kristeva, "Bakhtine, le mot, le dialogue et le roman", Critique, avril 1967.

"Tout texte est un intertexte ; d'autres textes sont présents en lui, à des niveaux variables, sous des formes plus ou moins reconnaissables : les textes de la culture antérieure et ceux de la culture environnante ; tout texte est un tissu nouveau de citations révolues. […] L'intertexte est un champ général de formules anonymes, dont l'origine est rarement repérable, de citations inconscientes ou automatiques, données sans guillemets." Roland Barthes, artigo "Texte (théorie du)", Encyclopaedia universalis, 1973.

"L'intertextualité est la perception par le lecteur de rapports entre une œuvre et d'autres, qui l'ont précédée ou suivie. Ces autres œuvres constituent l'intertexte de la première." Michaël Riffaterre, "La trace de l'intertexte", La Pensée, n°215, octobre 1980.

"Je définis [l'intertextualité], pour ma part, de manière sans doute restrictive, par une relation de coprésence entre deux ou plusieurs textes, c'est-à-dire […] par la présence effective d'un texte dans un autre." Gérard Genette, Palimpsestes, Paris: Seuil, 1992, p.8.

Sabemos que nada surge do nada no campo das artes. Uma criação decorre das criações

anteriores. O artista, neste caso o autor, vive num mundo de conhecimentos adquiridos ao longo

dos tempos e de descobertas que vai fazendo, o mais difícil será sempre libertar-se de uma certa

forma daquilo que Bloom refere como sendo uma angústia. Porque é na verdade uma verdadeira

angústia que, frequentemente, pode remeter para questões de honestidade intelectual. Se alguns

poetas afirmaram, que tudo já tinha sido escrito e melhor do que por eles, na verdade, sim muita

coisa já foi escrita de variadíssimas formas, contudo isto não impede ao autor contemporâneo de

viver e criar com essa herança.

No que concerne um dos aspectos principais da construção da narrativa em torno da

intertextualidade, vamos abordar, num primeiro momento, as questões técnicas relativas à teoria

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para depois nos debruçar sobre aspectos que nos parecem ser uma proposta narrativa para leituras

futuras. As origens da intertextualidade remontam aos trabalhos iniciados pelos formalistas

russos, principalmente à proposta teórica de M. Bakhtine em torno do dialogismo. Segundo ele o

processo discursivo é interactivo e o dialogismo mergulha nos diálogos socráticos e na sátira,

prolonga-se em Rabelais com o riso carnavalesco e a transgressão subversiva e encontra-se na

polifonia dos romances de Dostoievsky. Júlia Kristeva retomou os trabalhos de M. Bakhtine e

define a intertextualidade como sendo o resultado de uma construção envolvendo absorção e

transformação. Rolland Barthes alargou o sentido e libertou-o. Pois para ele, o intertexto é a

impossibilidade de viver fora do texto infinito, o texto é uma tecedura, assim sendo todo o texto é

intertexto que se revela de maneiras ou graus diferentes. M. Rifaterre considera que a

intertextualidade requer acção do leitor, i.e., um esforço de identificação do texto base. Gérard

Genette, seguindo a linha de pensamento de Júlia Kristeva, propõe a noção de transtextualidade

como abrangendo as várias relações entre textos. Genette estabelece que existem cinco tipos de

relações: a arquitextualidade como sendo as relações entre o texto e o género a que pertence, a

paratextualidade como sendo as relações entre o texto e os seus paratextos, i.e., prefácios,

posfácios, ilustrações, título, subtítulo, a metatextualidade como sendo as relações críticas do

texto, a intertextualidade como sendo uma relação de co-presença que envolve vários graus: a

citação, a referência, a alusão e o plágio, a hipertextualidade como sendo as relações de

derivação que, por um lado, incluem a paródia e o travestimento burlesco e, por outro lado, o

pastiche. Neste campo da co-presença, a citação é uma forma explícita de intertextualidade, é

uma relação in praesentia. Segundo Antoine Compagnon é o grau zero da intertextualidade.

Trata-se de uma palavra autoritária facilmente reconhecível e identificável, que enriquece o texto

e que requer o maior cuidado na sua interpretação no seio do texto em que se encontra. A

referência é uma forma explícita de intertextualidade mas, como ela não expõe o texto a que se

refere, é uma relação in absentia que multiplica as relações dialógicas tornando-as mais

complexas. O plágio é uma forma implícita de intertextualidade. É mais ou menos condenável,

mais ou menos literal, contudo constitui uma fraude. A alusão é uma forma nem literal, nem

explícita de intertextualidade, no entanto é frequentemente equiparada à citação. A alusão faz um

apelo ao leitor sem romper a continuidade do texto, implicando maior memória, uma espécie de

cumplicidade e um conhecimento do leitor. Quanto às relações de derivação, a paródia é a

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transformação do texto de partida noutro texto, o estilo mantém-se, mas o assunto muda.

Constitui uma espécie de montagem. O travestimento burlesco também é a transformação de um

texto noutro texto, mas desta vez mudando o estilo e mantendo o assunto. A sua eficácia reside

essencialmente no conhecimento e reconhecimento do texto base pelo leitor. Este tipo de relação

fundamenta-se na ligação hierárquica entre géneros e estilos, mas também remete para registos de

linguagem. É uma espécie de paródia que se apoia fundamentalmente na sátira, na ironia, na

deturpação ou desvio da caracterização das personagens principais. Finalmente, na segunda

variante de derivação indicada por Genette, o pastiche que consiste numa imitação de estilo. Não

se trata da transformação de um texto noutro, mas no uso do estilo de determinado autor. O

pastiche é um precioso instrumento para a análise crítica, mas também para a criação literária. É,

portanto, uma ferramenta com duas funções principais, uma estética e outra diegética. Por sua

vez, Linda Hutcheon, debruça-se sobre a paródia, redefinindo-a devido à ambivalência da sua

raiz etimológica e localizando-a como um fenómeno principalmente do pós-modernismo. A

paródia é uma espécie de metáfora que requer distanciamento irónico e crítico. Todas estas

definições da intertextualidade não são estanques e podem co-habitar no mesmo texto.

Vejamos que tipos de relações podem ser identificadas, no texto Le loup est revenu,

retomando a tipologia de Genette. Primeiro, o título remete para um género evocado através da

personagem do Lobo. Trata-se, portanto, de um conto, logo estabelece-se aqui uma relação de

arquitextualidade. Esta relação permite um trabalho de re-escrita ou de escrita criativa partindo

de uma personagem principal. Dentro da narrativa, as ilustrações constituem uma relação de

paratextualidade, mas, por meio de um indício que identificámos como sendo o jornal, os laços

entre a ilustração e o texto são mais profundos. Podemos dizer que o jornal constitui uma mise en

abîme desta paratextualidade porque ecoa o texto por meio de outro texto inserido nas

ilustrações. Por outro lado, as ilustrações acabam por constituir relações de intertextualidade do

tipo da citação devido às representações e à presença das várias personagens remetendo para

outros contos e fábula. Neste caso, há todo um trabalho de criatividade e de imaginação possível

em que personagens podem «espreitar» na «janela do desenho». Quanto ao texto, evocando e

convocando outros textos, podemos dizer que se trata de uma derivação da ordem do pastiche

sem ser propriamente uma imitação de estilo.

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A educação deverá ilustrar este princípio de

unidade/diversidade em todos os domínios (...)

O planeta não é um sistema global, mas um turbilhão em

movimento, desprovido de centro organizador. Pede um

pensamento policêntrico capaz de visar um universalismo, não

abstracto, mas consciente da unidade/diversidade da humana

condição; um pensamento policêntrico alimentado das culturas

do mundo. Educar por este pensamento, é a finalidade da

educação do futuro que deve trabalhar, na era planetária, para

a identidade e a consciência terrestre.(...)30

Entre a angustia da influência e ser impossível viver fora do intertexto intuímos as

potencialidades deste tipo de narrativa. Podemos evidenciar vários níveis: socializante, didáctico

e criativo. No que concerne o aspecto socializante, a junção de várias personagens de meios

diferentes e de diversas origens realça o poder da solidariedade e da inclusão. No que diz respeito

ao aspecto didáctico, podemos salientar dois pontos que nos parecem essenciais: o conhecimento

e a leitura. Relativamente ao conhecimento, a literatura ensina-nos mundos possíveis e estabelece

as ligações entre as coisas. Quanto à leitura a presença de outras narrativas encaixadas incentiva à

leitura. Finalmente, no que respeita a criatividade podemos evidenciar dois aspectos, ambos

levando-nos pela senda da fantasia e imaginação, por meio da história re-criada com palavras e

por meio da história ilustrada com personagens transportadas de um conto para o outro. A

intertextualidade permite estabelecer laços entre as coisas, criando uma memória, construindo o

conhecimento, suscitando a curiosidade, incentivando à leitura dos textos convocados e criando

outras narrativas porque, afinal, o Senhor Lobo até gosta de bolo!

30 Edgar Morin, Os sete saberes para a educação do futuro, Lisboa: Instituto Piaget, 2002, respectivamente, p. 60 e p. 68.

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ANEXO 1 Pormenor do jornal do coelho

Pormenor do jornal dos três porquinhos

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Pormenor do jornal do borrego

Pormenor do jornal da cabra

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pormenor do jornal de Pedro

Pormenor: a Avó do capuchinho vermelho ler o jornal em casa

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