o dissenso_jacques rancière

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    MINJsrEruO DA CULTURAMinistro: Francisco WeffortFUNDA

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    Copyr ight 1996 by Os Auto resProjeto gcifico cia capa:Moema Cava/canli

    Capa e di ag ramacao docaderno de ilustracoes:

    .Ettore BottiniiNDICE

    Preparacao:Carlos Alberto Inada

    Revtsao,Lucio la M. S. de MoraisAna Paula Castellani

    Isabel Cury

    %-4Z79 Cl>Jl1ZI3

    A logica atormentada - Adauto Nooaes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Contingencia e necess idade - Marilena Chaui . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19o imaginario da crise - Claude Lef011. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27Crise da ideia de crise - Gerd Bornbeim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 47Nascimento da razao, origem da crise - Francis Wolff . . . . . . . . . . . .. 67A invencao da crise - Carlos Alberto Ribeiro deMoura. . . . . . . . . . . .. 83Sobre 0estatuto da ramo - Gerd Bornheim 97Erro, i lusao, loucura - Bento Prado ]r: 111Razao de Estado - joao Adolfo Hansen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135Razoes do mister io - Alcir Pecora 157Uma fe , urn rei, uma lei - A crise da ramo politica na Franca das

    Guerras de Religiao - Sergio Cardoso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 173Descartes: 0eu e 0outro de si - Olgiiria Chain Peres Matos. . . . . . .. 195Cont ra os miste rios da realeza , a curiosidade - Renato [anine Ribeiro 215Giordano Bruno: os infinitos do mundo - Newton Bignotto . . . . . . . . . 233Na noite das luzes - Alain Grosricbard . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 255A deusa Ramo - Sergio Paulo Rouanet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 285o sono da razao produz monstros - jorge Coli . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301A care ta de Garrick - 0 comediante segundo Diderot - Luiz F.

    Franklin de Matos 313Um sorri so rnedonho - Marcelo Coelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329Etica e ramo - Franklin Leopolda e Silva 351

    Dartos Interuactonais de Ca~108: .l~ na Pub li cacan (a$')(Cim., ra 'Bra.o;.ileii: f:ldo Livre, w. Bras i l }

    A crise da r az ao / o rg an lz ad or Adaut o NOV01CS. - S:: \oPau le ; Companh ia cbs Letras j B l " : . 1 . S iH a . DF :M~o j ,s . [ i: r io da Cuhurn ; R io de Janei ro : F uno o ~ oN: : td ona l de Arte, J996.vdrios autcrcs.ISLN B5-7164-607-41. Racicnalismo 2. Raz50 J. Novacs, Adauto.

    ind~ce para CLtilogo stseemanco.1. Ra l .1 . 0 - :Ep i . .. . .emologta : Pilosolia 12] .3

    Todos os direitos desta edicao reservados aEDITORA SCHWARCZ LTDA.

    Rua Bandeira Pauli sta, 702, c j. 3204532'()()2 - Sao Paulo - spTelefone: (11) 3707-3500Fax; (11) 3707-3501

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    o dissenso - jacques Ranciere .L6gica cia emanclpacao - jose Arthur Giannotti .Messianisrno e revolucao - Michael L6wy .o Terror e seu inirnigo - jacob Rogozinski .A harmonia essencial- Luiz Henrique Lopes dos Santos '" .Entre Kant e Wittgens tein - Claude Imbert .Sobre a tecnofobia - Gerard Lebrun .Critica cia razao c6smica - Mario Novello e Luciane R. de Freitas .Caos, acaso, tempo - Luiz Alberto Oliveira .Ciclades desrnedidas - Nelson Brissac Peixoto .Simbolos e bandeiras - Lutz Roberto Monzani .Credito das Ilustracoes '.Sobre os auto res . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    3 6 73 8 33 9 54 0 94 3 74 5 74 7 14 9 5 :~5 0 75 1 9 ",i",5 3 7 ".;5 5 9 :;:~,j5 6 1 i~-r'J

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    A C R IS E D A R A iA O

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    I III

    ODISSENSOJacques Ranciere

    Sem duvida nenhuma, 0terna que escolhi implica a cri tica do discursoatualmente dominante que identif ica a racionalidade polit ica ao consenso eo consenso ao principio mesmo da democracia. Essa cri tica par te da consta-tacao de tres paradoxes que marcam a a tual idade poli tica e teorica,

    Prirneiro paradoxo: a queda do imperio sovietico foi saudada nasnacoes ocidentais como a vit6r ia def init iva da democracia sobre seu adver-sario, 0tota lit arismo. Mas, ao mesmo tempo, essas nacoes re tomaram porsua vez a pr6prio principia do adversario vencido, a saber, a ideia de umanecessidade objet iva, a do desenvolvimento das forcas produtivas, que im-poe a coesao do corpo social e esvazia de sentido a concepcao da politicacomo escolha entre solucoes alternativas, Sob 0termo consensoa democra-cia e concebida como 0regime puro da necessidade econ6mica. Urn cerromarxisrno tornou-se assirn a legitimacao ultima da "dernocracia liberal".

    Segundo paradoxo: no momenta mesmo em que essa filosofia danecessidade se impoe quase que por toda parte como a ultima palavra emsabedoria pol iti ca, vemos por outro lado triunfar na filosofia polit ica e nasciencias sociais urn discurso que glorifica 0re torno do ator, do individuoque discute, que contrata, que age. No memento em que nos dizem que osdados sao inequivocos e que as escolhas se impoem por si mesrnas, cele-bra-se ruidosamente 0retorno do atar raeional a cena social . Quanto menoscoisas hi a discuti r, mais se eelebra a eti ca da discussao, da razao comuni -cativa, como fundamento da politica, Ha um quarto de seculo, viamos indi-viduos part indo parac riar rnicleos de guerri lha, l evando nos bolsos livrcsque prodamavam a supremac ia da lei das est ruturas sobre a autonomia dossujeitos, Hoj e, ao contrario, em todos os comi tes oficiais, vemos pessoascarregando nos bolsos obras sobre 0retorno do ator, da escolha e da auto-nomia, constatando que nao hioutra coisa a fazer alem do que fazem nos-sos governos.

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    Terceiro paradoxo: no momenta em que se celebra 0consenso naeio-nal dos partidos politicos e 0advento dos grandes espacos supranaeionais,reaparecem as forrnas rnaisbrutais, mais arcaicas, da guerra etnica, da exclu-sao, do racismo e da xenofobia. 0 discurso ofieial celebra a vit6ria da razaoconsensual sobre as forrnas arcaicas e irraeionais do conflito politico. Mas0que corresponde a essa suposta vitoria da razao modernista e 0retorno deum arcaismo bern mais radical: 0retorno da velha irraeionalidade da lei dosangue. Habitualmente tais fen6menos sao tratados em termos de atraso, detransicao, de defasagem. Sao considerados como fen6menos de adaptacaodificil e de resistencia temporaria as exigencias da nova racionalidade. Minhahip6tese e que existe, ao contra rio, uma estrita solidariedade entre uma cer-ta ldeia da razao politics e urn certo retorno do irracional. Gostaria de mos-trar que essas novas irracionalidades e a definicao consensual da razao poli-tica sao inseparaveis, precisamente porque 0que chamam consenso e naverda de 0esqueeimento do modo de racionalidade proprio a politica.

    Sob 0nome de dissenso, e portanto esse modo de racionalidade quetentarei pensar, A escolha desse termo nao busca simplesmente valorizar adiferenca e 0conflito sob suas diversas formas: antagonismo social, conflitode oplnioes ou multiplieidade das culturas. 0 dissenso nao e a diferenca dossentimentos ou das maneiras de sentir que a politics deveria respeitar, E adivisao no rnicleo mesmo do mundo sensivel que institui a politica e suaracionalidade pr6pria. Minha hip6tese e portanto a seguinte: a racionalidadeda politica e a de um mundo comum instituido, tornado comum, pela pr6-pria divisao,

    Sabe-se que os dois grandes modelos classicos da razao politica repou-sam sobre uma ficcao de origem na qual a politica e uma reuniao de indivi-duos ligados entre si, seja por sociabilidade natural, seja por necessidade desuperar sua insociabilidade natural a fim de assegurar sua conservacao.Reconhece-se, no primeiro caso, a figura aristotelica do animal politico, nosegundo, 0modelo hobbesiano da luta de todos contra todos e do contratoque poe fim a ela. Ora, creio que a racionalidade propria da politica naopode ser pensada a partir desses modelos, que estes devem ser vistos comourn segundo momento, como reinterpretacoes da racionalidade propria dapolitica. A politica nao e em primeiro lugar a rnaneira como individuos e gru-pos em geral combinam seus interesses e seus sentimentos. E antes um mo-do de ser da comunidade que se opoe a outro modo de ser, urn recorte domundo sensivel que se opoe a outro recorte do mundo sensivel.

    Tentarei portanto partir dos enunciados da filosofia politica para tentarcompreender 0modo pr6prio da racionalidade politica que eles recaIcam oureinterpretam. Comecarei por urn dos enunciados mais veneraveis, e aparen-temente dos rnais anodinos, da filosofia politica. Tomo-o da definicao docidadao formulada por Arist6teles no livre III da Politica: "Urn cidadao em

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    geral e aquele que participa do ate de governar e do de ser governado". Essadefinicao pode nos parecer an6dina porque a entendemos atraves dos temasbanalizados da reciprocidade dos direitos e dos deveres de cada urn e de to-dos. Mas cumpre ver que, em sua enunciacao primeira, ela afirrna algo pro-priarnente inusitado: uma capacidade dos contraries, urna igual capaeidadede ser 0agente de uma acao e a materia na qual ela se exerce. A logica daac;:ao?~ governar sup6e normalmente 0que a 16gica de toda acao supoe: 0exercicio de uma potencia pr6pria do agente sobre uma materia apta a rece-ber seu efeito e somente a isso, Ela supoe portanto uma potencia especificado comando que se exerce sobre uma materia, a qual apresenta proprieda-des que a disp6em especificarnente a receber 0 efeito de tal comando.Supoe, em suma, 0poder de uma superioridade deterrninada sobre a infe-rioridade que the corresponde.

    E assim que 0mestee de Arist6teles, Platao, estabeIece no livro III das~is uma lista dos titulos requeridos para governar a qual corresponde sime-tncamente uma Iista dos titulos requeridos para ser governado. Sua enume-racao compreende, em resumo, tees grandes categorias. Ha primeiro os titu-los tra~icionais de autoridade que se referem a uma diferenca de natureza,uma diferenca no nascimento: autoridade dos pais sobre os filhos, dos maisvelhos sobre os jovens, dos nobres sobre a plebe, dos senhores sobre osescravos. Ha a seguir 0par de opostos que, para Platao, e 0unico pertinen-te para determinar as posicoes de governante e de governado, 0da cienciae~da.igno~ncia: Ha enfim, em ultimo lugar, um titulo que vem romper a coe-rencia da hsta. E0que Platao chama ironicamente a escolha do deus: 0sor-teio_para de.cidir os Iugares de governante e de governado, isto e, paraP:atao, 0regime do acaso, a democracia. A democracia representa, em rela-cao ao conjunto da !ista, uma aberracao. 0estado no qual nao funcionanenhum par de opostos, nenhum principio de reparticao dos papeis, ParaPlatao, tal estado s6 pode significar acaso OU loucura.

    A definicao aristotelica do cidadao, portanto, e tudo menos anodina.Para que seja enunciavel, e precise primeiro que as logicas naturais da aC;:aode governar tenham se deparado com uma negacao radical. A definicaomuito simples d,,:reciprocidade civica pressupoe, por tras dela mesma, umaruptura de toda.logica do comando, de todo principio da dlstribuicao natu-ral dos papeis em funcao das qualidades de cada parte. Essa ruptura 16gicamarcada por Platao corresponde a um escandalo pratico sentido por todosos que se valem de um titulo positivo para governar: antiguidade, nobreza,competencla, consideracao ou riqueza. Esse esdl.ndalo tern um nome:chama-se democracia.

    Democracia e uma daquelas palavras cuja carga simb6lica originariaesquecemos, Esquecemos que nao e prirnelrarnente 0nome de urn regimepolitico numa classificacao objetiva dos diferentes regimes, mas 0nome de

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    urn desvio s ingular no curso normal dos assuntos humanos . Cumpre Iembrarque 0 nome democracia foi inicialmente urn insulto , urn nome inventado naopelos democratas mas par seus adversaries para des ignar uma coisa para elesgrotesca e Impensavel. A democracia e 0 poder do povo, do demos. Mas 0que se entende exatamente sob esse nome? 0 demos, em Arenas, e constitui-do primeiramente pelos pobres. Mas pobres nao e s implesmente uma cate-goria econorn ica , relacionada a urn nivel de recursos; e bern mais uma cate-goria simb6lica, uma posicao no mundo daquilo que se ve e se considera:pobres sao as pessoas reles, as que nao possuem nada, nenhum titulo paragovernar, nenhum ti tulo de valor a nao ser 0fato de terem nascido ali e naoalhures . Esse nome para n6s banal s ignifica portanto original mente uma rup-tura inedi ta, a insti tuicao de urn mundo as avessas para todos os que preten-dem fazer valer urn titulo para governar. Significa que governam especif ica-mente os que nao tern nenhum titulo para governar.

    Assim, a reciprocidade civica das pos icoes de governante e de governa-do s6 e pensavel como consequencia dessa ruptura radica l de toda 16gica dadominacao legltima. Ai se situa para mim 0 pr6prio da pol iti ca , 0micleo pri-meiro de sua racionalidade especil lca. A polit lca se ap6ia nes te fundamentoparadoxal que e a ausencia de todo fundamento da dominacao. Num certosentido, a razao ultima da politica poderia se resurnir num unico axioma:ninguem possui titulo para governar. Nao ha titulo para governar. 0 podernao pertence ao nascimento ou a sabedoria, a r iqueza ou a antiguidade. Naopertence a nlnguem, Nenhuma propriedade especi ll ca di sringue os que te rnvocacao para govemar dos que te rn vocacao para ser govemados. A autori-dade pol it ica nao possui , em ult ima instanc ia, out ro fundamento senao a pu-ra contingencia.

    Haveria a tentacao de a partir di sso fazer uma deducao simples, re !ativaa ausenc ia de razao para a dorn inacao nas formas da igualdade civica, Mas 0pr6prio da racionalidade politica e que as deducoes jamais se dao em linhareta, elas sao sempre tor tuosas. A polft lca, em ult ima ins tancia, repousa sobreurn unico princ iplo, a igualdade . 56 que esse principle s6 te rn efe ito por urndesvio ou uma torcao especff ica: 0dissenso, ou se ja , a ruptura nas formassensiveis da comunidade. Ele tern efeito ao interromper uma 16gica da dorni-nacao suposta natural , vivida como natural . Esse efeito e a ins ti tuicao de umadiv isao ou de uma distorcao inic ia l. Essa di storcao e que e testemunhadapelas palavras aparentemente muito simples: demos e democracia.o demos e, de faro, urn ser muito singular , urn ser duplo. Demosdesig-na uma parte da comunidade, os pobres, isto e , as pessoas sem importancia,. mas tarnbern, ao mesmo tempo, a comunidade em seu conjunto, a cidadepol iti ca em sua to tal idade. Sob essa pa lavra, portanto, uma parte da comu-n idade se iden tifi ca ao todo ci a comunidade. Define-se ass im um computeda cornunidade enquanto desigua l a si mesrna , enquanto dife ren te da soma

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    das partes que a consti tuem. Acomunidade poli ti ca nao ex iste em vi rtude dareuniao dos indivlduos e dos grupos. Existe a par tir da identif icacao primei-ra de seu todo a urn nada. 0 todo da comunidade poli ti ca enquanto ta l e 0computo enquanto todo dos que nao sao nada.

    Eis a i 0 que poderiamos chamar a formula logica da comunidade, a f6r-mula de uma aritmetica irnpossivel que nao cessou porem de se traduzir,l evando em conta a poli ti ca ao longo dos tempos, em palavras muito expres-s ivas : par exemplo, quando 0Terceiro Estado, durante a Revolucao Fran-cesa, constata que e ao mesmo tempo tudo e nada, au quando a Interna-cional prodama: "Somos nada, sejarnos tudo!".

    Essas formulas combatentes nos mostram que a ident idade do todo e donada define uma estrutura de injus tica especif ica. 0 demos nao e apenas apar te que se identif ica ao todo. E a par te que se identif ica ao todo exatamen-te em nome da injustica que the e feita pela "outra" parte: por aqueles quesao alguma coisa, que tern propriedades, t itulos para governar. Essa estrutu-ra confli tua l nao deve ser pensada de mane ira redutora, como 0dado da lu-(a social que se imporia como subes trutura da polit ica. A luta de classes naoesta "sob" a poli tica, nao e a realidade da divi sao e da lu ta que desment iri aa fa lsa pureza da pol it ica . A luta de classes, 0compute polemico enquantourn todo dos que sao nada , e a propria polit ica. A divisao do sensivel per ten-ce a definicao mesma da pol it ica como modo espec ifi co da acao humana , 0computo enquanto u rn todo dos que nao sao nada define uma comunidadeque s6 pode ser uma comunidade do litigio,

    Pode-se d ize -lo de out ro modo: a po lit ica nao advem naturalmen te nassoc iedades humanas. Advern como urn desvio ext raordinarlo, urn acaso ouuma violencia em relacao ao curso ordinario das coisas, ao jogo normal dadominacao, Esse jogo normal e a t ransicao de urn principio de dominacao aurn ou tro. Ha 0 velho principia de dominacao, 0que remete a sociedade aomito de suas origens: 0poder do nascimento , isto e , da diferenca no nasci-mento. E 0 poder dos nasc idos antes, nasc idos de out ro modo, mais bern nas-cidos, sobre os que nasceram mal. E ha 0novo principio, 0que resulta das ati-vidades da sociedade, 0poder da riqueza que ordena a sociedade segundo arepar ticao de suas forcas vivas, segundo os modos de producao c ia riqueza, asfuncoes e aspartes que eta def ine. A polit ica advem nas sociedades como umaruptura no processo de passagem de uma logica da dominacao a outra, dopoder da diferenca no nascimento ao poder indiferente da r iqueza.

    Eo que poderia ilustrar uma das grandes reformas que inauguraram ademocracia na Grecia antiga: a supressao par S610n da escravidao por divi -das. Essa reforma constitui 0nucleo primei ro da ide ia do povo como reuniaode homens "livres", ou seja, no sentido mais elementar, dos homens que alei da riqueza nao pode excluir da vida publica, jogar na escravidao,Constitui a liberdade do povo como limite ao que pode a riqueza. Mas tam-

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    bern assinala 0fato de que 0poder dos nobres, 0poder do nascimento, edoravante 0poder da r iqueza, a forca econ6mica dos proprietaries de terras.Ela introduz assim urn desvio na transicao de urn poder a outro.

    Desse modo, a ruptura dernocratica nao ident ifica 0 povo politico auma categoria scciologica, a parte laboriosa e sofredora da populacao.Identifica -o a uma funcao quase abstrata. 0 que 0demos encarna e a partedos que nao tern parte. Nao se deve dar a essa expressao urn sentido roman-tico ou populis ta. Curnpre dar- lhe urn sentido estrutural, 0 povo identifica-se ao todo da comunidade polit ics porque 0todo da politica como formaespedfica da atividade humana e a inclusao dos que nao sao contados, ouse ja, a destituicao de toda logica da dominacao legit ima, de toda logica queconta as partes que cabem a cada urn em funcao de suas propriedades e deseus titulos,

    Minha hip6tese supoe portanto urna reformulacao do conceito de poli-t ica em relacao as nocoes habitualmente aceitas , Es tas des ignam com a pala-vra politicao conjunto dos processos pelos quais se operam a agregacao eo consentimento das colet ividades, a organizacao dos poderes e a gestae daspopulacoes, a dist ribuicao dos lugares e das funcoes e os sistemas de legiti-rnacao dessa distribuicao, Proponho dar a esse conj unto de processos urnoutro nome. Proponho chama-lo pol icia, ampliando portanto 0sentidohabitual dessa nocao, dando-lhe tarnbem urn sentido neutro, nao pejorat ive,ao considerar as funcoes de vigilancia e de repressao habitualmente associa-das a essa palavra como formas parti culares de uma ordem muito mais geralque e a da distribuicao sens ivel dos corpos em comunidade.

    Nem por isso 0que chama policia e simplesmente um conj unto de for-mas de gestae e de comando, E , rnais fundamentalmente, 0recorte do mun-do sensivel que define, no mais das vezes implici tamente, as formas do espa-

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    dentemente de igual di~nidade. Eis a i uma perfe it a fabula pol ic ial no senti -do em que a entendo: uma fibula da boa distribuicao de cada urn em seu lu-gar e em sua funcao,A originalidade de Ballanche e mudar 0argumento da narra tiva e seusen tido . Ele a transforma numa querela em que a questao e [ustamente saberse os plebeus falam ou nao, Os plebeus, em seu relato, exigern urn acordocom os patricios . Os patricios intrans igentes respondem que isso e impossi-vel , po r uma razao mui to simples. Urn aco rdo l iga duas par tes que cornpro-metem sua palavra. Mas , para comprometer sua palavra, e preciso te-la. Ora,os plebeus nao fa lam. 1 3 verdade que houve urn ernissario que foi ao local eassegura te -los ouvido fala r, Mas seus colegas the p rovam que e uma ilusaode seus sentidos, ja que eles nao podem falar. Sua pretensa fala nao e rnaisque urn som fugaz, uma especie de mugido que e 0signo da necessidade enao a manifestacao da inteligencia.Todo 0conflito e a insi stenc ia dos plebeus resurnem-seentao em pro-var que e les fala rn, e primeiramente devem prova-lo a si mesmos, para obri -gar os outros a integrar em sua percepcao do mundo sensivel urn dado queestes nao te rn razao alguma para perceber, A part ir da i, 0sentido mesmo doapologo das fabulas e do seu nucleo sofre uma torcao. De fato, a fabulaexplica aos plebeus sua necessaria subordinacao. Mas , para que eles aceitemessa fiibula da desigualdade, e preciso primeiro que a compreendam. E,paraque a compreendam, e precise que sejarn seres falantes iguais a todos osseres falantes. Os patricios nao podem provar- lhes a des igualdade necessa-ri a a nao ser acei tando essa igualdade primei ra, A desigualdade s6 pode j us-nflcar-se ao preco de pressupor a igualdade.1 3 uma deducao "elementar". Mas, para que tenha efei to, e preciso quese instaure uma cena de conflito. E essa cena nao e apenas a oposicao dedois grupos, e a reuniao confl ituosa de do is mundos sensive is: 0mundoem que os plebeus nao falarn e 0mundo em que fa lam. 1 3 isso 0que charnodissenso: nao urn conflito de pontos de vista nem mesmo urn conflito pe-10 reconhec imento, mas urn confl ito sobre a consti tuicao mesma do mun-do comum, sobre 0que nele se ve e se ouve, sobre os titulos dos que nelefalam para ser ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que nele saodesignados. 0dissenso nao e a guerra de todos contra todos. Ele da ense-jo a situacoes de conflito ordenadas, a situacoes de discussao e de argu-mentacao, Mas essas di scussoes e argumentacoes sao de urn t ipo parti cu-lar. Nao podem ser a confrontacao de parceiros ja constituidos sobre aapllcacao de uma regra gera l a urn caso particula r. Com e~eito, devem pri -meiro constituir 0mundo no qual e1assao argumentacoes. E precise primei-ro provar que ha algo a argumentar, urn objeto, parceiros, urn mundo queos contern. E e preciso prova-lo na pratica, ou seja, fazendo como se essemundo ja existisse.

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    Assim, na fabula do Aven tine , a posicao pat ric ia define urn recorte domundo sensive l ent re os homens da fala e os homens da voz . Asecessao ple -beia revel a urn outro recorte do sensivel, em que os plebeus sao tambemhomens da fala que te rn algo a d iscut ir com os pat ric ios. A argumentacao16gica e entao, ao mesmo tempo, uma mani festacao esteti ca , no sen tido ori -ginal do termo, a rnani festacao do mundo sensive l no qual ela e considera-da como urn argumento que expoe uma questao visivel. Em relacao aomundo existente, esse mundo nao existe. Cumpre portanto fazer com quesej a vlsto , e que seja vi sto como cor rela to do out ro. A prat ica do dissenso easslrn uma invencao que fazcom que se vejam dois mundos num s6: 0mun-do em que os plebeus falam e aquele em que nao falam, 0mundo em queaquilo que fa lam nao e nenhum objeto vis ivel e 0mundo em que 0e . Assimpode se expl ici ta r, no meu en tender, a racionalidade da acao po lit ica, Ela ea acao que const r6i esses mundos lit igiosos, esses mundos paradoxa i s emque se reve lam jun tos dois recortes do mundo sensive l.

    Para tomar um exemplo simples, podemos exarninar 0que esteve emjogo, par exemplo, na const itu icao do que se chamou movimen to operario.E nao quero falar aqui de luta revolucionaria, mas do que esta em jogo nasimples constituicao de uma discussao publica sobre a questao salarial.Tarnbem ai esquecemos a violencia s imb6lica que 0simples fato de colocaro salario como objeto de uma discussao publ ica pode representa r. Esque-cemos que essa conjuncao banal de palavras foi 0confronto violento naoapenas de interesses mas de mundos contradit6r ios. Com efeito, tradicional-mente 0 espaco do t raba lho era urn espaco domestico, No livro Ida Politica,Arist6te1es opoe a forma especi fica do comando pol iti co a todos os outroscomandos que funcionam na cidade. Assim ele opoe duas ordens: a ordempolitica, que e a do comando do igual sobre 0igual, e a ordem domest ica -ou desp6t ica -, em que um individuo se encont ra na tura lmente em posicaode poder sobre os demais: como pa i, marido , mestre etc. Essas duas ordenshete rogeneas concernem a re lacoes difer entes e dependem de le is d iferen-tes . A partir dal , ocorre com essa dis tincao 0mesmo que com a oposicao dafala e da voz. Para recusar a uma categoria de seres, por exemplo os traba-lhadores ou as mulheres, 0esta tuto de seres pol iti cos, basta consta tar queeles pertencem a essa ordem domestica que e 0contrario da politica. E, paraque as coisas mudem, nao e suficiente que se passe da casa a fabrica e doescravo ao trabalhador jur idicamente l ivre. Na 16gica policial da repar ticaodos espacos e das funcoes, 0 t rabalhador l ivre perrnanece membra apenasdo espaco domestico. 0espaco do trabalho e um espaco privado em queurn individuo nomeado empregador propoe condicoes a urn mimero n deIndividuos. que - cada urn por sua conta - as aceitam ou as recusarn.Consequenternente, se esses individuos interrompem juntos 0 trabalho, sepedem para negocia r com 0empregador e, rnais ainda, com 0conjunto dos

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    empregadores suas condic, :6es de trabalho, se levam essa questao ao Estadoe a opiniao publ ica , eles pedem alga impossive l, que nao te rn sen tido . Seumovimento portanto so e audivel como urn ruido de corpos sofredores irr i-tados, ruido que a intervenc,:ao da autor idade publica deve fazer cessar.

    Tal e a loglca de uma ordem policiaL De seu ponto de vista, os opera-rios que pedem que a remunera

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    tico, uma classe em luta como sujeito politico, e sempre urn operador dedesclassi ficacao, uma potencia de desfazer a estrutura policial que poe oscorpos em seu lugar, em sua funcao, com a parte que corresponde a essac lasse e a essa funcao. E nesse sentido que se deve, no meu entender, radi-calizar a ideia cia classe que e uma nao-classe,E 0que exprime a sua maneira urn conternporaneo de Marx, 0revolu-c ionario f rances Louis Auguste Blanqui , ao ser levado 300 tribunal por insur-reicao, Por ocasiao do processo, 0procurador the pergunta, como de costu-me, sua profissao . Blanqui responde apenas. UProletar iO". , 0 procuradorentao exdama: "Isso nao e uma prof issao", Blanqui rep lica : "Ea profissao de30 milhoes de franceses que vivern de seu trabalho e que sao privados dedireitos politicos". Para mim esse dialogo i lustra exatamente a oposicao en-tre policia e politica, Do ponto de vis ta da policia, que e 0do procurador, asociedade se compoe de partes e de funcoes. Uma profissao e urn oficio,Ora, "proletario" nao e urn of ic io , e , a lern do rnais, 0acusado Blanqui nao enero urn trabalhador manual nem urn miseravel, Mas Blanqui lhe respondecom uma definicao est ri ta rnente po li tica : "proletar io" nao quer d izer t raba-lhador manual au pobre, Proletario nao designa urna parte real do corposocial. Proletario designa 0suj ei to de urn combate que identifica a questaooperaria aquele compute dos nac-contados em geral que e 0principio dapoli tica . Os proletar ios nao sao os trabalhadores manuals ou as c lasses labo-riosas, Sao a classe aberta dos nao-contados que s6 existe a traves das formasde manifestacao pelas quais e la se faz contar .

    Os sujei tos pol it icos nao existern como ent idades estaveis , Existem co-mo sujeitos em ato, como capacidades pontuais e locais de construir, em suauniversal idade virtual, aqueles mundos polemicos que desfazem a ordempol ic ia l. Portan to sao sempre precarios, sempre suscetive is de se confundirde novo com s imples parcelas do corpo social que pedem apenas a otimiza-

  • 5/7/2018 o dissenso_jacques rancire

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    cena politi ca de exerc ieio do dissenso. 0 ult imo traco de sua "m?desti a" eInterioriza r de anternao nossa irnpotencia em face de uma necessidade queos ult rapassa e que obviamente c leve nos ultrapassar ainda mais, ~prese~-tam-se a n6s como submissos a urna necessidade que doravante se situa aCl-rna dos Estados, representantes locals de urn governo mundi.al ~ue ~e~~e ~sregras do jogo que se irnpoe a cada urn. Esse governo mundta l. lmagman? e,em ultima analise, 0governo mundial da riqueza, govern~ menc~nt:~velque determina as margens infimas de redi stribuicao local cup gestao onmarequer 0consenso. 0 que uns chamam modestia do Estado, outros, fim .dapolitica e entao a reabsorcao tota l do poli tico pelo estatal . 0 Estado gest io-nario funciona como representante loca l do governo sem centro da riqueza,urn governo ausente ao qual ninguern pode pedir contas.o pensamento consensual estabelece que as infelicidades diver:~s damodernidade ocorreram par causa do reinado nefasto da vontade politics ede suas flccoes, Estabe1ece como equivalente da razao uma especie de nii-lismo. Para ele, a sabedorla e nao mais querer, e conformar-se ao saberinconsciente e ao quere r obscuro da riqueza que se valoriza ..Nessa sabedo-r ia nii lista, a razao polit ica deve ser .defini tfvamente protegida c

  • 5/7/2018 o dissenso_jacques rancire

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    ""Quando uma razao desaparece, nao se cai ipso facto no irracional. Cai-se numa outra ratio. 0 problema e enrao saber se essa razao subs ti tutiva ecapaz de fazer 0 traba lho da primei ra. Diz-se com frequencia que e precisorenunciar as ilus6es romanticas em favor de urn realismo mais modesto ernais seguro, Mas a palavra realismo pode ser a rnais ilusoria de todas, se naodisser de qual real ela pretende ser a medida, 0 retorno atual de fenornenosmassivos de desligarnento e de exc lusao soc ials, de racismo e de guerra etni-ca nos assinala i sto: as forrnas do conflito poli tico e da luta de classes foramformas civilizadoras e integradoras. Elas fizeram.recuar as alteridades irredu-t iveis, misturaram populacoes heterogeneas , integraram em comunidadesnaciona is individuos e grupos vindos de diversos lados, Em surna, fizeram atrabalho hoje solicitado a especial is tas do "trabalho social". Argumentar emfavor do dissenso nao e portanto argumentar em favor das formas her6icasdo combate politi co e socia l de ontem. 0 problema se coloca diferentemen-teo Hi coisas que urn modo de razao pode fazer e que urn outro nao podefazer em seu lugar . ABformas polit icas do dissenso foram formas de luta con-tra essas perturbacoes que agitam individuos e grupos a partir do sentimen-to da identidade arneacada e cia alteridade arneacadora. A sua maneira elaspacificaram urn certo mimero de pulsoes de angustia, de 6dio e de morte.Hoje as formas policiais do consenso prometem uma paz que nao podemmanter , pois jamais avaliaram a dimensao de seus problemas profundos .Nao se pode renunciar a uma razao senao em favor de uma outra capazde fazer melhor 0que a anterior fazia. Esse nao e 0caso cia proposicao con-sensual. Eis por que, fora de toda.nostalgia, penso que nao devernos nos deci-dir pelo desaparecirnento dessa rat io polit ica que resumi na palavra dissenso.

    Traducdo de Paulo Neves

    T'

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    l.Goya, A Verdade reuelada pelo Tempo e testemunbada pela Historia (1797-1800);oleo sabre tela, 42 x 32,5 em. Museum of Fine Arts, Boston, EU,\.