o conto do graal - chrétien de troyes
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Chrtien de Troyes
O Conto do Graal
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NOTA PRELIMINAR
Escassos so os dados que possumos sobre a personalidade de
Chrtien de Troyes, cuja obra literria se conservam cinco extensas novelas de
atribuio segura: Erec, Cligs, Le chevaliers au lion (intitulada tambm
Yvain), Le chevaliers de la charrete (a qual, s vezes, se d o ttulo de seu
protagonista, Lncelot) e Le Cont du Graal. Com certa verossimilhana lhe
atribui tambm outra novela de carter cavalheiresco e piedoso, Guillaume
d'Angleterre (da qual existe uma traduo em prosa castelhana do sculo XIV),
uma adaptao de uma fbula ovidiana sobre o mito de Filomela. Das seis
poesias lricas que os cancioneiros atribuem Chrtien de Troyes, duas so
com segurana obra de nosso escritor. Este, por outra parte, confessa, nos
versos iniciais de Cligs, ter traduzido os Remedia Amoris e o Ars
Amatoria de Ovdio; composto uma narrao sobre o mito de Tntalo e Plope
(sem dvida baseado nas Metamorfoses ovidianas); e um relato sobre "o rei
Marc e Iseut la rubia", ou seja, a lenda de Tristo, todo o qual se perdeu. Tendo
em conta as pessoas s quais dedica suas obras, chegamos concluso de
que a produo de Chrtien de Troyes desenvolveu-se entre os anos 1159 e
1190.
Trata-se, pois, de um escritor da segunda metade do sculo XII que,
como os homens de cultura de seu tempo, possui uma slida preparao
clssica, posta de manifesto no to somente em suas verses dos tratados
erticos do Ovdio e em suas adaptaes de fbulas mitolgicas, mas tambm
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dvida, cidade em que nasceu nosso escritor. Tanto Mara de Champagne
como sua me Leonor de Aquitania desempenharam um papel muito
importante no florescimento da literatura chamada cortes. Contriburam para
instaurar na Frana os achados e as novidades da poesia dos trovadores, de
sorte, que a aventura cavalheiresca uniu-se ao sentimentalismo amoroso,
unio que constitui uma das caractersticas da novela do sculo XII. Entretanto,
Chrtien de Troyes no se limitou, em suas novelas, a direta narrao de uma
peripcia cavalheiresca, com seus lances hericos; seus episdios
"maravilhosos e a exaltao das virtudes militares de seres extraordinrios;
nem adotou a aventura de um contedo amoroso; esboa uma hbil e acertada
caracterizao psicolgica dos personagens principais da ao. Alm de tudo
isto, pretendeu dar suas novelas o transcendente valor de uma lio moral e
espiritual destinada ao aperfeioamento da sociedade na qual vivia, de modo
principal, da aristocracia que lia suas obras. Tal propsito decisivo e
deliberado em nosso escritor, pois nos versos iniciais de Le chevaliers de
charrete distingue, em sua obra literria, amatria (matire), que o assunto,
ou argumento da narrao, o simples relato de feitos novelescos, do sentido
(sans), que deve ser a interpretao doutrinal da obra, o que chamaramos sua
tese. De uma afirmao feita no Erec desprende-se que a ordenao e
articulao da matria com o sentido, ou seja, a acomodao da intriga do
relato uma tese, constitui ajunta (conjointure) da novela. O criar novelas de
Chrtien de Troyes , pois, algo que ambiciona ser muito mais que o simples
narrar, colocando uma rica trama de aventuras a servio de uma tendncia
exaltao dos valores morais do cavaleiro.
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Esta inteno superior no deve ser esquecida quando se l O conto
do Graal (Le Cont du Graal), pois se nos ativermos, exclusivamente, a sua
matria, em alguns trechos poderia parecer um ingnuo conto, ou uma
insignificante novela de aventuras. Correramos o perigo de valoriz-lo s em
ateno a seus inegveis mritos literrios. A obra vai precedida de uma
dedicatria ao conde Felipe de Flandes, ou seja, Felipe de Alsacia, quem,
desde 1168, foi conde de Flandes; partiu para Ultramar como cruzado em
setembro de 1190 e morreu em Acre em junho seguinte. Entre 1168 e 1191,
pois, iniciou Chrtien de Troyes a redao do conto do Graal, e os intentos
feitos para precisar mais a data se revelaram pouco firmes. Esta dedicatria
surpreende, por seu carter religioso; glosa nela vrios versculos neo-
testamentrios e disserta sobre a caridade; o que d estas pginas
introdutrias, um acusado matiz cristo que por fora tem que corresponder
com o profundosentido que o autor pensa dar em sua obra.
Chrtien escolheu como protagonista de sua narrao um moo em
plena adolescncia, forte, hbil caador e ingnuo; vivendo em uma "erma
floresta solitria" isolado do resto do mundo. Unicamente entregue caa e
sem outra relao humana a no ser sua me e os lavradores que cultivam
suas terras, situadas em Gales. Este moo pertence uma ilustre linhagem de
cavaleiros; tanto seu pai, como seus dois irmos maiores, foram vtimas das
guerras e dos combates; devido a isso, sua me o criou em completa
ignorncia de tudo quanto acontece no mundo, principalmente da cavalaria.
Todavia, a fora do sangue se impe aos planos maternos; assim que o moo,
no incio da novela, encontra-se com alguns cavaleiros, decide
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irrevogavelmente ser um deles encaminhando-se corte do rei Artur para que
lhe arme; o qual produz tal desgosto a sua me que cai morta ao v-lo partir de
seu lado. Desta sorte, Chrtien pode expor a seus leitores as etapas da
formao cavalheiresca, que seu jovem heri percorre numa velocidade
vertiginosa. Ao sair da solitria morada materna, o heri est na plenitude de
suas foras fsicas; robusto e valente, condies naturais, indispensveis,
para tudo o que tenha que exercer na cavalaria. Sua chegada corte do rei
Artur provoca dois maravilhosos vaticnios, pois, tanto a donzela que jamais
sorriu, quanto o bufo, prognosticam que aquele galhardo e ingnuo jovem
est destinado a ser o melhor cavaleiro do mundo. A vitria do moo sobre o
cavaleiro Vermelho, deve-se primria habilidade daquele no lanamento de
flechas, adquirida em suas caadas: um tipo de luta que se acha muito
distante do sbio tecnicismo da nobre arte das armas. Por esta razo, depois
desta primeira vitria, Chrtien leva seu protagonista ao castelo de Gornemant
de Goort, cavaleiro amadurecido e experiente, que gosta muito das virtudes e
da simpatia do jovem selvagem. Ensina-lhe lies de cavalaria, que o moo
aprende com grande preciso e rapidamente, por fim, consagra-o cavaleiro.
Nosso protagonista j um cavaleiro; os episdios da defesa do castelo de
Belrepeire demonstram seu acerto e sua maestria no manejo das armas; mas
ali tambm, como corresponde a todo cavaleiro, nasce no jovem heri, seu
amor pela formosa Blancheflor.
Entretanto, h nele um remorso que o tortura: a sorte de sua me, que
viu cair desvanecida ao abandonar sua morada solitria. No sabe ainda que
morreu, embora o suspeita, isso tortura seu nimo com a conscincia do
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pecado. Esta situao, quer dizer, com a alma manchada por ele ter pecado,
oferece-lhe a mais alta de suas aventuras: a prova do castelo do Graal,
episdio culminante da novela. Convidado pelo Rico Rei Pescador, ou Rei
Aleijado, o jovem cavaleiro janta na ampla e suntuosa sala quadrada do
castelo. V desfilar ante si um singular cortejo em que figuram um pajem, que
empunha uma lana de cuja ponta emana uma gota de sangue; uma formosa
donzela que leva em suas mos umGraal; e outra com um prato de prata. O
heri, temendo revelar sua rusticidade, no se atreve a perguntar por que
sangra a lana, nem a quem se serve com aquele Graal. A razo de seu
mutismo o esclarece depois Chrtien mais profunda: o fato de achar-se
em pecado travou-lhe a lngua. Isso constitui o fatal engano do moo, pois, se
tivesse formulado aquelas duas perguntas, teria reparado uma srie de males
que afligiam precisamente a sua linhagem; j que, averiguaremos logo, que o
Rico Rei Pescador, prostrado pela paralisia e sem a posse de suas terras, teria
recuperado sade e domnios se aquelas duas perguntas tivessem sado dos
lbios do moo. Chrtien de Troyes no nos esclarece isso pontualmente
veremos que a novela ficou inacabada, mas, no cabe dvida de que a lana
que sangra a de Longinos, ou seja, aquela com a qual foi ferido o flanco de
Jesus Cristo. OGraal, nome que se dava a certos recipientes, um riqussimo
clice sagrado no qual se leva diariamente uma hstia ao Rei do Graal pai do
Rico Rei Pescador e irmo da me do protagonista, o qual h anos vive
exclusivamente graas ao alimento que lhe proporciona a Eucaristia. Este tipo
de milagre deu-se, com freqncia, na Idade Mdia e, ainda hoje em dia,
entusiasma aos cristos. O prato de prata , sem dvida alguma, a bandeja
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que fica debaixo do queixo, no qual comunga para evitar que, por um acidente,
a sagrada forma caia ao cho. O tema das perguntas no formuladas,
conduzindo maus danos, no estranho no folclore; mas, em nosso caso,
oferece uma surpreendente similitude com a cerimnia da Pscoa dos judeus,
cujo rito no pode iniciar-se, at que o mais jovem da famlia, tenha feito umas
ingnuas perguntas. No estranho que Chrtien tenha adaptado a seu
episdio este rito judaico, sobretudo se tivermos em conta a importncia da
comunidade israelita de Troyes no sculo XII. A formosa donzela portadora do
Graal , com toda segurana, uma figura simblica: a Igreja personificada, que
em representaes artsticas da poca est acostumada achar-se direita da
cruz, recolhendo em um rico clice o sangue do Salvador que emana da ferida
produzida pela lana de Longinos. A lana empunhada pelo pajem, que desfila
em nosso episdio, emana sem cessar, para significar, sem dvida, a
persistncia do sacrifcio do Glgota, que redime constantemente.
Nosso heri, se d conta de seu grande fracasso no castelo do Graal, no
dia seguinte, ao encontrar na solido do bosque sua prima, quem lhe faz ver
seu engano. Ento, quando por seu engano se faz responsvel, o jovem heri
da novelaadivinha seu nome e o averigua pela primeira vez o leitor: chama-se
Perceval. O nome vai unido personalidade, enquanto nosso heri no
significou nada para o mundo, viveu anonimamente; agora que, por sua culpa e
por seu pecado, impediu que se realizasse um bem e no evitou o mal, sua
responsabilidade lhe fez adivinhar seu nome. O episdio das gotas de sangue
sobre a neve, uma das mais belas pginas da literatura francesa medieval,
demonstra, por um lado, a idealizao do amor de Perceval pela formosa
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Blancheflor, a cor rosada, de cuja face lhe rememora, ao ver a branca neve
colorida pelo vermelho sangue; grandiosa metfora investida, que tentou mais
de uma vez, grandes poetas, desde Ovdio at Gngora. Por outro lado, este
episdio, na economia da novela, supe o cumprimento dos augrios da
donzela que jamais tinha sorrido e do bufo, graas ao qual, fica manifesto que
Perceval, quinze dias antes era um ingnuo moo selvagem, sendo agora o
melhor cavaleiro do mundo.
O Conto do Graal interrompe-se bruscamente, depois do verso 9234,
deixando em suspense um episdio. Deve-se a interrupo, que a morte
surpreendeu Chrtien de Troyes em plena redao da novela; quando a ao
principal desta, distava o bastante, sem dvida, de ter chegado a seu
desenlace. Isso motivou que tema do Graal se fizesse logo, algo misterioso e
vago. Os continuadores annimos da novela, que iniciaram seu trabalho ainda
no sculo XII, no acertaram a lhe dar um final congruente, nem digno do
grande tema criado pelo escritor de Champagne. Inclusive a crtica moderna,
at a mais recente, debateu-se em engenhosas e, s vezes, fantsticas
lucubraes sobre o Graal e as intenes de Chrtien de Troyes, o qual morreu
levando tumba o profundo e secreto de sua novela, do mesmo modo que o
marinheiro do romance castelhano do conde Arnaldos se joga ao mar sem nos
dizer sua cano.
O leitor observar que a ao principal da novela, ou seja, as aventuras
de Perceval, v-se concorrida, a partir de certo momento, por outra trama muito
distinta, que tem por heri Gauvain, o sobrinho do rei Artur. Esta dualidade de
assunto quis explicar o caso do autor pretender contrapor o cavaleiro
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inexperiente, Perceval, ao cavaleiro veterano, Gauvain. No obstante, h nas
duas tramas contradies to acusadas que no inverossmil acreditar que
Chrtien de Troyes, no momento em que lhe surpreendeu a morte, estava
escrevendo duas novelas muito distintas: uma dedicada a narrar as aventuras
de Perceval e outra, contar as faanhas de Gauvain; sendo que seus
rascunhos foram mesclados e absurdamente fundidos por quem os arrumou, a
fim de lhes dar uma forma, que hoje diramos publicvel, acreditando que
pertenciam mesma novela. Seja como for, a parte dedicada Gauvain de
grande beleza e revela a maestria de Chrtien como narrador. Constitui um
magnfico livro de cavalarias, no qual se destacam episdios to notveis como
o da Donzela das Mangas Pequenas, de uma delicadeza pouco comum; o do
Castelo das Rainhas, com seu ambiente de magia e de mistrios; e os da
Orgulhosa de Logres, que pe prova o cavalheirismo de Gauvain.
A presente traduo foi feita sobre o texto da edio de William Roach,
Chrtien de Troyes, Le romn de Perceval, ou Cont du Graal, em "Texte
littraires franais", Genve-Lille, 1959 (segunda impresso). Em algumas
passagens me separei de sua leitura, que a do manuscrito T, para ater-me
na edio crtica de Alfons Hilka, Der Perceval Roman (Le conte do Graal) em
"Christian von Troyes smtliche erhaltene Werke", V, Halle, 1932. Foi de
grande utilidade a consulta da prosa de 1530 (editada pela Hilka em apndice)
e da traduo em prosa francesa moderna de Lucien Foulet, Chrtien de
Troyes, Perceval de Gallois, ou o Cont du Graal, em "Cent romans
franais", Paris, 1947. Procurei ser o mais literal que permite a correo
idiomtica; conservei certas repeties do texto original e as freqentes
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mudanas de tempos verbais. O leitor no deve esquecer que o que est lendo
traduo de um relato escrito em versos curtos de rima consoante;
implicando ao autor ver-se, s vezes, obrigado rodeios um pouco forados
que, embora no original do sculo XII amoldem-se a uma determinada tcnica
narrativa, ao converter-se em prosa moderna pode surpreender. A fim de que
em todo momento se possa comparar minha verso, com o texto de Chrtien
de Troyes, na parte superior das pginas indico os versos franceses que
correspondem a seu contedo.
Martn
de Riquer
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Sabem por que diz o Evangelho "esconde os benefcios da sua esquerda"?
Porque, segundo o relato, a esquerda significa vanglria, que procede de falsa
hipocrisia. E o que significa a direita? A caridade, que no se envaidece de
suas boas obras, mas sim se esconde para que s as saiba aquele que se
chama Deus e caridade. Deus caridade. Quem segundo a Escritura vive em
caridade, diz So Paulo, e eu o tenho lido, que mora em Deus, e Deus nele.
Saibam, na verdade, que as ddivas que faz o bom conde Felipe so de
caridade; nunca fala disso com ningum a no ser com seu bom corao
generoso, que lhe aconselha obrar bem. No vale, pois, ele mais que
Alejandro, a quem no lhe importou a caridade, nem nenhum benefcio? Sim,
no o duvidem. Bem empregado estar, pois, o trabalho de Chrtien, que se
esfora e trabalha em excesso, por ordem do conde, em rimar o melhor conto
que foi contado na corte real: o Conto do Graal, sobre o qual o conde lhe
deu o livro. Ouam como cumpre seu encargo.
NA ERMA FLORESTA SOLITRIA
Era o tempo em que as rvores florescem, a erva, o bosque e os prados
verdes, os pssaros cantam docemente em seu latim pela manh e toda
criatura se inflama de alegria, quando o filho da Dama Viva se levantou na
Erma Floresta Solitria, e sem preguia ps a sela em seu corcel, pegou trs
flechas e saiu assim da morada de sua me. Pensou que iria ver os lavradores
de sua me, que lhe rastelavam a aveia; tinham doze bois e seis rastros. Assim
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entrou na floresta. De repente o corao se alegrou nas entranhas pela doura
do tempo, ao ouvir o canto gostoso dos pssaros: tudo isto lhe agradava. Pela
benignidade do tempo sereno tirou o freio do corcel e deixou que pastasse pela
verde erva fresca. Ele, que sabia lanar muito bem as flechas que levava, ia
em torno, disparando-as ora para trs, ora para frente, ora para baixo, ora para
cima, at que ouviu, vindo pelo bosque, cinco cavaleiros armados com todas as
suas armas. Enorme rudo faziam as armas dos que chegavam, pois,
freqentemente, chocavam-se com os ramos dos carvalhos e dos arranjos. As
lanas entrechocavam-se com os escudos; as armaduras chiavam; ressonava
a madeira, ressonava o ferro, tanto dos escudos, como das armaduras.
(VS. 108-191)
O moo ouvia e no via os que a ele caminhavam passo a passo, e muito
assombrado disse:
Por minha alma! Razo tinha minha me, minha senhora, quando me
disse que os diabos so as coisas mais feias do mundo; e para me instruirdisse que ante eles terei que benzer-se. Mas, eu desdenharei este ensino e
no me benzerei de modo algum, antes bem, atacarei em seguida, ao mais
forte, com uma destas flechas que levo e no se aproximar de mim nenhum
outro, conforme acredito.
Deste modo o moo falou para si, antes de v-los. Todavia, quando os viu
abertamente, assim que o bosque os descobriu, viu as armaduras cintilantes;
os cascos claros e reluzentes; o branco e o vermelho resplandecerem contra o
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sol, o ouro, o azul e a prata; pareceu-lhe muito formoso e muito agradvel, e
disse:
Ah, senhor Deus, perdo! So anjos os que aqui vejo. Realmente,
pequei agora muito e obrei muito mal, ao dizer que eram diabos. Contou-me
uma fbula, minha me, quando me disse que os anjos eram as coisas mais
belas que existem, exceto Deus, que mais belo que tudo. Aqui, acredito que
vejo nosso Senhor, pois, contemplo a um to formoso, que os outros, valha-me
Deus, no tm nem a dcima parte de beleza. Minha mesma me me disse
que se deve adorar, suplicar e honrar a Deus sobre todas as coisas. Eu
adorarei a este, e depois a todos os anjos.
Imediatamente atira-se ao cho e diz todo o credo e as oraes que sabia,
porque sua me as tinha ensinado. O principal dos cavaleiros, v e diz:
Fiquem para trs. O moo que vimos, caiu no cho de medo. Se formos
todos juntos para ele, parece-me que ser tal seu espanto que morrer, e no
poder responder a nada que perguntemos.
Todos param e ele se adianta galopando at o moo. Sada-o e o
tranqiliza dizendo:
Moo, no tenha medo.
No o tenho diz o moo, pelo Salvador em quem acredito. So vocs,
Deus?
No, a minha f.
Quem so, pois?
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Sou um cavaleiro.
Jamais conheci um cavaleiro responde o moo, nem vi, nem ouvi
falar nunca de nenhum, mas vocs so mais formosos que Deus. Oxal fosse
eu assim, to reluzente e feito deste modo!
Enquanto isso o cavaleiro aproximou-se dele perguntando-lhe:
Viu hoje, por estas bandas, cinco cavaleiros e trs donzelas?
Ao moo interessa averiguar e perguntar outras coisas. Com a mo toca a
lana, agarra-a e lhe diz:
Bom senhor amvel, voc que o chamam cavaleiro, o que isto que
leva?
(VS. 192-265)
- Agora sim...Parece que vou por bom caminho! responde o cavaleiro.
Eu que pensei, meu doce amigo, saber novas de ti, e as quer ouvir de mim.
J lhe direi: isto minha lana.
- Dizem que se lana disse ele como eu fao com minhas flechas?
- No, moo. muito tolo! Ataca-se com ela sem solt-la.
Assim, pois, vale mais uma destas trs flechas que vem aqui, porque
sempre que quero com elas mato pssaros e animais a meu prazer, e os mato
de to longe como se poderia fazer com uma lana.
Moo, isto no me importa nada. Mas, responda-me sobre os cavaleiros.
Diga-me se souber, onde esto e se viu as donzelas.
O moo agarra a ponta do escudo e lhe diz francamente:
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-O que isto e do que lhes serve?
-Moo diz ele isto uma brincadeira. Leva-me questes distintas
das quais eu peo e pergunto. Eu supunha, assim Deus me prospere, que
voc me daria novas em vez de que as soubesse de mim, e voc quer que
lhe d isso. Como , eu lhe direi isso, pois eu gosto de agradar. Isto que
levo se chama escudo.
-Chama-se escudo?
- Sim diz ele, e no devo desprez-lo porque me to fiel que, se
algum lana ou dispara sobre mim, interpe-se a todos os golpes. Este o
servio que me faz.
Entretanto, os que estavam atrs vieram a toda corrida para seu senhor, e
lhe disseram pouco tempo depois:
Senhor, o que lhe diz este gauls?
Desconhece as maneiras disse o senhor, assim Deus me perdoe,
pois, nada do que lhe perguntei respondeu direito nenhuma s vez, mas sim
pergunta como se chama tudo o que v e o que se faz com isso.
Senhor, saiba de uma vez para sempre, que os gauleses so, por
natureza, mais tolos que as bestas que pastam, e este como uma besta.
ignorante quem se detm com ele, seno quer entreter-se com bobagens e
gastar o tempo em tolices.
No sei diz ele, mas, assim seja Deus, com tanto que me ponha no
caminho lhe direi tudo o que queira saber; de outro modo no partirei.
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Logo, pergunta-lhe uma vez mais:
Moo, apesar dos pesares, diga-me dos cinco cavaleiros e tambm se
hoje encontrou, ou viu as donzelas.
O moo pega pela armadura e estica-a.
Diga-me agora disse ele , bom senhor, o que isso que tm vestido?
Moo, no sabe?
No sei.
Moo, minha armadura, e to pesada como o ferro.
de ferro?
Bem o pode ver.
(VS. 266-345)
No sei nada disto disse ele, mas muito bela, valha-me Deus. O
que fazem com ela e do que lhes serve?
Moo, muito simples de explicar. Se fosse me atirar um dardo, ou me
lanar uma flecha, no me faria nenhum dano.
Senhor cavaleiro, de tais armaduras preserve Deus, s coras e aos
cervos, pois no poderia matar a nenhum nem correria nunca mais atrs deles.
O cavaleiro replicou:
Moo, valha-o Deus, pode me dar novas dos cavaleiros e das donzelas?
Ele, que tinha muito pouco critrio, disse-lhe:
Nasceram assim?
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No, moo, impossvel que algum possa nascer assim.
Quem, pois, embelezou-lhes desta sorte?
Moo, eu te direi quem.
Diga, pois.
Com muito prazer. Ainda no se cumpriram cinco anos em que o rei
Artur, armou-me cavaleiro, deu-me toda esta guarnio. E agora me diga de
uma vez, o que foi feito dos cavaleiros, que passaram por aqui, levando as trs
donzelas. Iam passeando ou fugiam?
Ele disse:
Senhor, olhe para o bosque mais alto que rodeia aquela montanha. Ali
esto os desfiladeiros de Valbona.
Bem, o que, bom irmo?
Ali esto os lavradores de minha me, que semeiam e aram suas terras.
Se esta gente passou por ali e eles viram, dir-lhes-o isso.
Respondem-lhe que iro com ele, se os guiar, aos quais rastelam a aveia.
O moo monta em seu corcel e vai onde os lavradores rastelavam as terras
aradas, nas quais semearam a aveia. Assim que viram seu senhor ficaram
tremendo de medo. Sabem por que razo? Porque viram que com ele vinham
cavaleiros armados. Sabiam bem que se lhes perguntassem por seu ofcio e de
sua condio, eles queriam ser cavaleiro; sua me perderia o juzo, pois queria
evitar que vissem cavaleiros e se inteirassem nesse ofcio. O moo disse aos
trabalhadores:
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Viram passar por aqui cinco cavaleiros e trs donzelas?
Em todo o dia de hoje passearam por estes desfiladeiros respondem os
trabalhadores.
O moo disse ao cavaleiro que tinha falado tanto com ele:
Senhor, os cavaleiros e as donzelas passaram por aqui; mas, agora me
fale mais do rei que faz cavaleiros, e do lugar onde ele est com mais
freqncia.
Moo respondeu ele, direi que o rei mora em Carduel. Ainda no
passaram cinco dias que ele residia ali, pois, eu estive l e o vi. Seno o
encontrar ali, haver quem indique aonde se encaminhou. Mas, agora rogo que
me diga com que nome devo chama-lo.
(vs. 346-422)
- Senhor disse ele , j lhes direi isso: eu me chamo "bom filho".
- "Bom filho"? Suponho que tem algum outro nome.
Senhor, a minha f, meu nome "bom irmo".
Acredito. Bem, mas se quer saber a verdade, queria saber seu nome
verdadeiro.
- Senhor disse ele , posso dizer isso bem, porque meu verdadeiro
nome "bom senhor".
- Valha-me Deus! um bom nome. Tem algum mais?
-No, senhor, jamais tive outro algum.
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- Valha-me Deus! Ouvi as coisas mais surpreendentes que jamais ouvi e
que nunca penso ouvir.
Imediatamente o cavaleiro parte galopando, pois, tinha pressa em reunir-se
com os outros. O moo no demonstrava pressa em voltar para sua morada,
onde sua me tinha o corao enfermo e escurecido por sua demora. Assim
que o v, experimenta grande alegria, no pode escond-la, porque, como me
que muito o quer, corre para ele e lhe chama "Bom filho, bom filho!", mais de
cem vezes:
Bom filho, meu corao esteve muito torturado por sua demora. A dor
me afligiu tanto, que por pouco morro. Onde esteve hoje tanto tempo?
Onde, senhora? J lhe direi isso, sem mentir em nada, pois tive grande
alegria por uma coisa que vi. Me, no costumava dizer que os anjos e
Deus Nosso Senhor, so to formosos que jamais a natureza criou to
formosas criaturas, nem h nada to belo no mundo?
- Bom filho, e lhe digo isso outra vez; digo-lhe isso, porque verdade e lherepito isso.
- Cale-se, me! Acaso no acabo de ver as coisas mais formosas que
existem, que vo pela Erma Floresta? Imagino que so mais formosos do
que Deus e todos os seus anjos.
A me toma-o em seus braos e lhe diz:
- Bom filho, a Deus o encomendo, pois, sinto grande temor por ti. Voc viu,
penso, aos anjos dos que a gente se lamenta, que matam tudo que
alcanam.
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- No, me, no, no isto! Dizem que se chamam cavaleiros.
Ao ouvir pronunciar a palavra cavaleiros a me deprime-se; e assim que
se reps, disse como mulher aflita:
(VS. 423-521)
Ai, desventurada, que infeliz sou! Doce bom filho, queria lhe
preservar de ouvir falar de cavalaria e de que visse algum destes. Tivesse sido
cavaleiro, bom filho, se tivesse agradado ao Nosso Senhor que seu pai velasse
por voc e por seus amigos. Em todas as ilhas do mar no houve cavaleiro de
to alto mrito, nem to temido, nem aterrador, bom filho, como foi seu pai.
Bom filho, pode se orgulhar de que no desmentem em nada sua linhagem,
nem a minha, pois, eu procedo dos melhores cavaleiros desta comarca. Em
meus tempos no houve linhagem melhor que as minhas nas ilhas do mar;
mas os melhores decaram, e se viu em muitas ocasies, que as desditas
ocorrem aos nobres que se mantm em grande honra e em dignidade.
Maldade, vergonha e preguia no decaem, pois no podem, mas aos bons osdeixam decair. Seu pai, se no sabe, foi ferido no meio das pernas, de sorte
que seu corpo ficou aleijado. As grandes terras e os grandes tesouros que
como homem principal tinha, perderam-se completamente, e caiu em grande
pobreza. Empobrecidos, deserdados e arruinados foram injustamente os gentis
homens depois da morte de Uter Pendragon, que foi rei e pai do bom rei Artur.
As terras foram devastadas e os pobres abatidos, fugiu o que pde fugir. Seu
pai tinha esta morada nesta Erma Floresta; no pde fugir. Apressadamente,
trouxeram-no aqui em um beliche, pois, no sabia outro local no qual se
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refugiar. Voc era pequeno, e tinha dois formosos irmos; tambm pequenos,
um menino de peito, tinha pouco mais de dois anos. Quando seus dois irmos
eram maiores, com a licena e conselho de seu pai foram corte real para
conseguir armas e cavalos. O maior foi ao rei de Escavaln, e o serve tanto
que foi armado cavaleiro. O outro, que era menor, foi ao rei Ban de Gomeret.
Ambos os moos foram consagrados cavaleiros no mesmo dia. No mesmo dia
retornariam para casa, porque queriam dar alegria a mim e a seu pai, que j
no os viu mais, pois, foram vencidos pelas armas. Pelas armas ambos foram
mortos, pelo que eu senti grande dor e grande pena. Do maior chegaram novas
terrveis: os corvos e as gralhas lhe arrebentaram os olhos; assim encontraram-
no morto. Pela dor do filho morreu seu pai, e eu sofri vida muito amarga desde
que ele morreu. Vocs eram todo o consolo e todo o bem que eu tinha, nunca
ficava sem os meus. Deus s me deixou voc para que estivesse alegre e
contente.
O moo escuta muito pouco o que sua me vai dizendo.
D-me de comer diz; no sei do que me fala. Com muito gosto iria
ao rei que faz cavaleiros; e eu irei, que pese a quem pesar.
A me o retm e o cuida tanto como lhe possvel. Prepara e
confecciona uma grossa camisa de cnhamo e calas guisa de Gales; onde
se fazem, conforme acredito, calas e meias de uma pea; e uma capa com
capuz, de pele de cervo, fechada ao redor. Assim o equipou a me. S trs
dias o reteve, pois, para mais no foram eficazes suas adulaes. Ento, sentiu
a me uma estranha dor; beijou-o e o abraou chorando e lhe disse:
(VS. 522-613)
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Agora sinto uma dor muito grande, bom filho, quando o vejo partir. V a
corte do rei e diga-lhe que lhe d armas. No haver nenhum inconveniente,
pois, bem sei que dar. Todavia, quando chegar o momento de levar as armas,
o que ocorrer ento? Como poder dar conta, ao que jamais fizera, nem vira
fazer a outros? Realmente, temo que mal. Entretanto, ser pouco destro,
parece-me, porque no de admirar, que no se saiba, o que no se
aprendeu; o admirvel que no se aprenda o que v e ouve freqentemente.
Bom filho, quero lhe dar um conselho que deve compreender muito bem, e, se
lhe agrada record-lo, poder lhe chegar grande bem. Filho, se agradar a
Deus, e eu assim acredito, dentro em pouco, ser cavaleiro. Perto ou longe se
encontrar dama que tenha necessidade de amparo, ou donzela desconsolada;
preste-lhe sua ajuda, se ela lhe requerer isso, pois toda a honra radica nisso.
Quem no rende honra s damas, sua honra deve estar morta. Sirva damas
e donzelas, e ser honrado em toda parte; mas, se zangar alguma, no guarde
nada que lhe desagrade. Muito consegue de donzela quem a beija. Se lhe
consente que a beije, eu lhe probo o resto, se por mim quer deix-lo. Se ela
tiver anel no dedo, ou caritativa em seu cinturo; e por amor ou por rogo lhe der
isso, parecer bom e gentil que leve seu anel. Dou-lhe permisso para tomar o
anel e a caritativa. Bom filho, quero lhe dizer algo mais: nem a caminho, nem
em estalagem, no tenha por muito tempo companheiro sem lhe perguntar seu
nome; e saiba, em resoluo, que pelo nome se conhece homem. Bom filho,
converse-se com os mestres e esteja em sua companhia; os mestres no
aconselham mal nunca os quais tm ao seu lado. Rogo, sobretudo, que reze a
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Nosso Senhor em igreja e em monastrio, para que lhe d honra neste sculo
e permita-lhe comportar de tal sorte que chegue a bom fim.
Senhora disse ele , o que igreja?
Filho, ali onde se faz o servio de Deus, Aquele que fez cu e terra; e ps
nela homens e mulheres.
E o que monastrio?
Filho, o mesmo: uma casa formosa e muito santa na qual h corpos de
Santos e tesouros; ali se sacrifica o corpo de Jesus Cristo, o santo profeta, a
quem os judeus fizeram tantos insultos. Foi trado e julgado injustamente;
sofreu angstias de morte pelos homens e pelas mulheres; pois, as almas vo
para o inferno quando se separavam dos corpos, e Ele as resgatou dali. Foi
preso um poste, aoitado, sacrificado; e levou uma coroa de espinhos. Para
ouvir missa, oraes e para adorar a este Senhor lhe aconselho a ir ao
monastrio.
Irei, pois, de muito bom grado s Igrejas e aos monastrios disse o
moo de agora em diante. Assim lhe prometo isso.
Ento j no se entretm mais; despede-se e a me chora. A sela j
estava posta. Ia vestido maneira e guisa do Gales; levava nos ps calados
com adorno, e por toda parte onde ia, estava acostumado a levar trs flechas.
Quis faz-lo, mas, sua me lhe fez deixar duas, para que no parecesse muito
gauls, e, se pudesse, com muito prazer lhe faria desprender-se das trs.
Levava uma vara na mo direita para fustigar o cavalo.
(VS. 614-695)
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A me, que tanto o amava, chorando beija-o. Ao separar-se dele, roga a
Deus que o encaminhe.
Bom filho disse ela, Deus lhe guie, e onde quer que v, d-lhe
mais gozo do que para o que fica.
Quando o moo se afastou j a pouca distncia olhou para trs; viu sua
me de cabea baixa sobre a ponte; estava desvanecida como se tivesse
morta de cansao. Ele fustiga com a vara a garupa do cavalo, o qual parte,
sem tropear, e o leva a galope pela grande floresta escura. Cavalgou da
manh at que declinou o dia. Aquela noite dormiu no bosque at que
amanheceu o claro dia.
A DONZELA DA TENDA
Pela manh, com o canto dos pssaros, levantou-se o moo. Montou e
cavalgou at que viu uma tenda levantada em uma bela pradaria, perto do
arroio de uma fonte pequena. A tenda era maravilhosamente formosa: uma
metade era vermelha e a outra bordada de orifrs, em cima havia uma guia
dourada. O sol, claro e avermelhado, batia na guia, reluzindo todos os
campos pelo resplendor da tenda. Ao redor dela, que era a mais formosa do
mundo, havia cabanas de ramos e folhas; e se levantaram choas gaulesas. O
moo foi para a tenda, e disse antes de chegar:
Deus, agora vejo sua casa. Obraria com menosprezo se no o
adorasse. Realmente teve razo minha me ao me dizer que monastrio era a
coisa mais formosa que existe; e acrescentou que, sempre que encontrasse
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um monastrio, entrasse para adorar ao Criador em quem acredito. Com f
pedir-lhe-ei que me d hoje de comer, que o necessitarei muito.
Logo vai loja a qual encontra aberta; v no meio uma cama coberta
com uma colcha de seda; e na cama estava deitada, sozinha, uma donzela
dormindo. Seu acompanhante estava no bosque, aonde fora colher flores
frescas com as quais queria atapetar a loja, como estava acostumado a faz-lo.
Quando o moo entrou, seu cavalo soprou to forte que a donzela o
ouviu e despertou estremecida. O moo, que era simples, disse-lhe:
Donzela, saudao! Como minha me me ensinou a faz-lo. Minha
me me aconselhou e recomendou que saudasse s donzelas em qualquer
lugar que as encontrasse.
A donzela treme de medo pelo moo, que lhe parece bobo, e se tem por
loucura comprovada porque a encontrou sozinha.
Moo diz ela, segue seu caminho. Foge, antes de que meu
amigo o veja.
Antes lhe beijarei, por minha cabea diz o moo, pese a quem
pesar, pois minha me me recomendou isso.
(VS. 696-783)
Eu no o beijarei disse a donzela, se posso evit-lo. Foge, para
que meu amigo no o encontre aqui, porque seno o matar.
O moo, que tinha os braos fortes, abraou-a muito simples, pois no
soube faz-lo de outro modo. Colocou-a debaixo dele toda estendida, ela se
defendeu muito e revolveu-se quanto pde; mas no adiantou de nada, pois o
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moo violentamente, tanto se ela o queria como se no, beijou-a sete vezes,
conforme diz o conto, at que viu em seu dedo um anel com uma esmeralda
muito clara.
Tambm me disse minha me acrescentou ele, que tomasse o
anel de seu dedo, e que no lhe fizesse nada mais. D-me o anel, que o quero!
De modo algum ter meu anel disse a donzela , sabe-o bem,
seno me arrancar do dedo a fora.
O moo agarra a mo a fora, estende o dedo, tira-lhe o anel e o pe no
seu, e diz:
Donzela, passe bem. Agora partirei bem pago, e muito melhor beijar
voc do que a quaisquer garonetes da casa de minha me, pois no tem a
boca amarga.
E ela chora e diz:
Moo, no leve meu anel. Por isso eu seria maltratada e voc, cedo
ou tarde, perderia a vida, asseguro-lhe isso.
Ao moo no lhe chega ao corao nada do que ouve; mas como
estava em jejum morria penosamente de fome. Encontra uma garrafa cheia de
vinho e a seu lado um copo de prata, e v sobre um feixe de junco um
guardanapo branco e novo. Levanta-o e debaixo encontra trs bons bolos de
coisa tenra, e no lhe desagrada tal manjar. Pela fome que fortemente lhe
angustia parte um dos bolos e o come com grande apetite; na taa de prata
verte vinho, que no era mau, e o bebe com freqentes e longos goles; e diz:
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Donzela, estes bolos no sero hoje consumidos por mim. Venha
comer, que so muito bons. Cada um ter bastante para si e ainda sobrar um
inteiro.
Enquanto isso ela chora, e por muito que ele a negue e exorte, no lhe
responde nenhuma palavra, mas sim chora mais ainda e retorce as mos com
muita dureza. Ele comeu tanto quanto, bebeu at ficar satisfeito, tampou o que
sobrava e se despediu imediatamente, encomendando a Deus aquela a quem
no gostou de sua saudao:
Deus lhe guarde disse, formosa amiga; mas, por Deus, no se
aborrea que leve seu anel, pois antes de que eu mora de morte lhe
recompensarei isso. Vou com sua licena.
Ela chora e diz que no o recomendar a Deus, pois por sua culpa ter
mais vergonha e mais falta de sorte que jamais teve nenhuma desgraada; e
enquanto viva no ter socorro, nem ajuda; que saiba bem, que a traiu.
Ela ficou assim chorando, e no passou muito tempo seu amigo voltou
do bosque; viu os rastros do moo, que seguia seu caminho, e isso lhe
indignou. Ao encontrar chorando sua amiga, disse-lhe.
(VS. 784-864)
Senhora; acredito, pelos sinais que vejo, que aqui esteve um
cavaleiro.
No, senhor, asseguro-lhe isso; esteve um moo de Gales, irritante,
vilo e tolo, que bebeu tanto vinho seu como lhe agradou e comeu seus trs
bolos.
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E por isso chora, formosa? Queria que o tivesse bebido e comido
tudo.
H algo mais, senhor disse ela. Est em jogo meu anel, que me
tirou e o leva. Preferiria estar morta do que o tivesse levado assim.
Aqui ele se turva, com o corao angustiado e diz:
Por minha f, isto um ultraje. Desde o momento que o leva e que fique.
Porm, acredito que ter feito algo mais. Se houve algo mais, no o esconda.
Senhor disse ela, beijou-me.
Beijou-lhe?
Seriamente, j lhe digo isso. Mas foi contra minha vontade.
Ao contrrio: vocs gostaram e voc cedeu; no encontrou nisso
oposio alguma responde aquele a quem o cimes tortura. Pensa que
no lhe conheo? Sim, certo; conheo-lhe bem. No sou to tonto, nem to
vesgo, que no veja sua falsidade. Entrou em mau caminho, em m desdita:
seu cavalo no comer aveia, ser sangrado at que eu me vingue. E quando
perder as ferraduras, no voltar a ser ferrado; e se morrer, seguir-me-o a p.
Jamais trocaro as roupas as quais vestem, me seguir a p e nua at que lhe
tenha talhado a cabea. Esta ser minha justia.
E ento sentou e comeu.
NA CORTE DO REI ARTUR
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O moo cavalgou at que viu um carvoeiro, que levava um asno adiante, e
lhe disse:
Campons que leva um asno adiante, ensina-me o caminho mais reto
para ir ao Carduel. Quero ver o rei Artur, o qual dizem que ali faz cavaleiros.
Moo responde-lhe nesta direo h um castelo edificado ao
lado do mar. Se voc for a este castelo, doce bom amigo, encontrar ao rei
Artur alegre e triste.
Agora satisfar meu desejo me dizendo por que o rei tem alegria e
tristeza.
Direi isso em seguida responde-lhe. O rei Artur, com toda sua
hoste, lutou com o rei Rin. O rei das ilhas foi vencido e, por isso, o rei Artur
est alegre; mas est zangado com seus companheiros que partiram de seu
castelo, onde vivem mais amplamente, e no sabe o que deles; e esta a
tristeza que tem o rei.
O moo no aprecia as novas artimanhas dadas pelo carvoeiro;
encaminhando-se na direo indicada, at que ao lado do mar viu um castelo
muito bem situado, forte e formoso.
(VS. 865-951)
E v sair pela porta um cavaleiro armado que levava uma taa de ouro na
mo; com a esquerda sujeitava a lana, o freio e o escudo, e na direita levava a
taa de ouro. Assentavam-lhe muito bem as armas, que eram todas vermelhas.
O moo viu aquelas armas to belas, que eram muito novas, gostou e se disse:
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Com minha f, as pedirei ao rei; se me der, estarei muito bem, e
maldito seja quem procura outras.
Corre para o castelo, pois est impaciente para chegar a corte; mas quando
passa ao lado do cavaleiro, este o reteve um momento e pergunta:
Aonde vai, moo? Diga-me.
Vou corte responde para pedir ao rei estas armas.
Moo disse o cavaleiro, far muito bem; vem, pois, em seguida, e
volta. E dir ao malvado rei que se quer ter sua terra sujeita a meu senhorio,
que me entregue isso, ou que envie quem a defenda contra mim, afirmo que
minha. E acreditar quando lhe disser que recentemente lhe tirei esta taa que
levo com todo o vinho que bebia.
Que se busque outro mensageiro, porque este no entendeu nenhuma
palavra. No parou at a corte, onde o rei e os cavaleiros estavam sentados
para comer. A sala estava ao mesmo nvel terra, pavimentada, e era to larga
como longa, e o moo entrou nela a cavalo. O rei Artur estava sentado
pensativo cabeceira da mesa, e todos os cavaleiros riam e brincavam uns
com outros, salvo ele, que estava pensativo e mudo. O moo se adianta sem
saber a quem saudar, porque no conhece o rei, e para ele vai Yonet, que
levava uma faca na mo, ao que diz:
Vassalo, voc que vem aqui levando uma faca na mo, ensina-me quem
o rei.
Yonet, que era muito corts, responde-lhe:
Amigo, veja ali.
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Ele em seguida foi para ele e o saudou como soube. O rei, pensativo, no
lhe disse uma palavra, e ele outra vez o interpelou; o rei continua muito
pensativo e no pronuncia palavra.
A minha f disse o moo ento, este rei no fez jamais nenhum
cavaleiro. Como poderia fazer cavaleiros se no lhe pode tirar nenhuma
palavra?
Ento se dispe a partir e fez dar a volta a cabea de seu corcel; mas,
como homem de pouco julgamento, to perto do rei o tinha conduzido, que
diante dele, e isso no fbula, atirou-lhe sobre a mesa um chapu de feltro
que levava. O rei volta para o moo a cabea, que tinha inclinada, e
abandonando toda sua preocupao, diz-lhe:
Bom irmo, seja bem vindo. Rogo que no leve a mal que no tenha
respondido a sua saudao; no lhe pude responder por desgosto; pois o pior
inimigo que tenho, quem mais me odeia e mais me consterna, veio disputar
minha terra; e to nscio que diz que, queira ou no, a possuir toda,
livremente. Chama-se o cavaleiro Vermelho da Floresta de Quinqueroi. A
rainha veio sentar-se aqui, diante de mim, para consolar e ver os cavaleiros
feridos. No estivesse indignado com o muito que o cavaleiro disse, ainda
diante de mim agarrou minha taa e a levantou to nscio que derramou sobre
a rainha todo o vinho que continha. Foi isso um insulto to feio e to vil que a
rainha, inflamada de clera e de indignao, encerrou-se em sua cmara, onde
morre; e no acredito, Deus me perdoe, que saia viva disso.
(VS. 952-1038)
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Ao moo no importa nada o que o rei diz e conta, nem sua dor, nem sua
afronta, e tanto faz sua mulher. Diz:
Faa-me cavaleiro, senhor rei, que quero partir.
Claros estavam os olhos na face do moo selvagem de arma. Ao
contempl-lo ningum o teria por sensato, mas todos os que o viam o
consideravam formoso e galhardo.
Amigo disse o rei, desmonte e d seu corcel a um pajem, que o
guardar e far seu gosto. Dentro de pouco ser cavaleiro, para minha honra e
seu proveito.
E o moo responde:
No foram desmontados aqueles que encontrei por estas bandas, e
vocs querem que eu desmonte. No desmontarei, por minha cabea. Mas,
apresse-se, tenho que ir.
Ah! disse o rei, bom amigo amvel, farei com muito gosto para
seu proveito e para minha honra.
Pela f que devo ao Criador disse o moo, bom senhor rei, em
meus dias serei cavaleiro se no for cavaleiro vermelho. D-me as armas
iguais as daquele que leva sua taa de ouro, o qual encontrei diante da porta.
O mordomo, que estava ferido, e que se zangou pelo que tinha ouvido,
disse:
Amigo, justo. Vai agora mesmo pegar as armas porque so suas. No
procedeu como parvo quando veio aqui em busca disto.
O rei ao ouvi-lo, indignou-se e disse ao Keu:
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Muito injustamente zomba deste moo; isso uma grande mcula em um
mestre. Porque se o moo simples, isso deve-se: se for nobre, sua
educao, a qual teve um mau professor, e ainda pode chegar a ser um digno
vassalo. vilania burlar-se de outro e prometer sem dar. O mestre no deve
prometer a outro nada que no possa, ou no queira lhe dar, pois ganharia a
m vontade de quem, sem lhe prometer nada, seu amigo; e desde que o
prometeu, aspira ter a promessa. Saibam, portanto, que prefervel negar uma
coisa que faz-la esperar em vo. Para falar a verdade, de si mesmo se burla;
a si mesmo engana, quem faz uma promessa e no cumpre, e aliena o corao
de seu amigo.
(VS. 1039-1123)
Assim falava o rei ao Keu; e ao moo que partia vinha uma donzela,
formosa e gentil avisando-o e sorrindo diz o seguinte:
Moo, se viver longo tempo, penso e acredito no interior de meu
corao que em todo mundo no existir, nem haver, nem se conhecermelhor cavaleiro que voc; assim o penso, estimo e acredito.
A donzela no sorria desde h mais de seis anos e disse to alto que
todos ouviram. Keu, a quem tais palavras zangaram muito, saltou e com a
palma lhe deu um bofeto to rude na tenra cara, que a fez cair no cho.
Depois de esbofetear a donzela encontrou, junto a uma chamin, um bufo, e
com indignao e clera, deu um chute no fogo ardente, j que este bufo
estava acostumado a dizer: "Esta donzela no sorrir at que veja aquele que
alcanar todo o senhorio da cavalaria."
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E assim, enquanto ele grita e ela chora, o moo no se entretm e parte,
sem conselho de ningum, atrs do Cavaleiro Vermelho.
LUTA COM O CAVALEIRO VERMELHO
Yonet, conhecia os melhores atalhos e com muito prazer levava novas
corte. Ia sozinho por um jardim que havia ao lado da sala e saia por uma porta
at que chegou diretamente ao caminho no qual o cavaleiro esperava cavalaria
e aventura.
O moo chegou para ele com grande pressa para lhe tirar suas armas; e o
cavaleiro, pela espera, tinha deixado a taa de ouro em um degrau de rocha
grantica. Quando estava prximo o suficiente para que pudesse ouvir, o moo
gritou:
Deixe suas armas. J no as levar mais, porque o rei Artur lhe
manda isso.
E o cavaleiro lhe pergunta:
Moo, vem algum aqui para manter o direito do rei? Se vem algum,
no me esconda isso.
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Como, diabo! Est zombando de mim, senhor cavaleiro, que ainda
no tirei as armas? Tire-as! isso o que mando.
Moo responde ele, eu pergunto se vem algum da parte do rei
que queira combater comigo.
Senhor cavaleiro, tire as armas. Que no tenha que ser eu quem as
estorve, pois no tolero que as tenha mais. Saiba que lhe atacarei se me fizer
falar mais.
Ento o cavaleiro se irritou; levantou com as duas mos a lana e, pela
ponta que no tinha ferro, deu-lhe tal golpe ao longo das costas, que o fez
agachar-se at o pescoo do cavalo. O moo se encolerizou ao sentir-se ferido
pelo golpe que tinha recebido; aponta o melhor que sabe no olho do cavaleiro e
atira-lhe o dardo, sem adverti-lo, nem ouvi-lo, do meio do olho lhe atravessou
at o crebro, de modo que pela nuca escorria sangue e os miolos. Pela dor o
corao parou. Inclina-se e cai estirado ao cho.
(VS. 1124-1217)
O moo desmonta, deixa a lana de lado e tira-lhe o escudo do pescoo.
Todavia, no sabe como arrumar-lhe com o elmo que leva na cabea, pois
ignora como separ-lo. Tem vontade de descer-lhe a espada; porm, no sabe
como faz-lo, nem consegue tirar da bainha que leva a arma. Agarra, sacode e
estira.
Yonet, ao v-lo em tais apuros, fica rindo e lhe diz:
O que isto, amigo? O que faz?
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No sei. Pensei que seu rei me tinha dado estas armas. Todavia, antes
conseguirei esquartejar ao morto para fazer chuletas, do que levar uma de
suas armas; pois, esto to pregadas ao corpo, o de dentro est to unido ao
de fora, parecendo-me que so tudo um s.
No se preocupe com nada, pois eu as separarei muito bem, se quiser
disse Yonet.
Faa logo, pois respondeu o moo, e me d isso imediatamente.
Yonet pe mos obra e o descala at a junta; no deixou no corpo
nenhum armamento ou proteo, nem elmo na cabea, nem nenhuma outra
armadura.
Entretanto, o moo no quer tirar a vestimenta, por mais que Yonet o
diga, prefere deixar uma cmoda capa de tecido de seda felpuda, a qual o
cavaleiro vestia debaixo da armadura, quando estava vivo. Nem autoriza que
tire as botas que cala. Replica:
Diabo! Que brincadeira esta? Trocaria minhas boas roupas, queminha me me fez outro dia, pelas deste cavaleiro? Minha grossa camisa de
cnhamo pela sua, que sutil e delicada? Queria que trocasse meu couro, que
no penetra gua, por este, que no suportaria nenhuma gota? Maldito seja o
cangote de quem, agora e sempre, troque suas boas vestimentas por outras
to ms.
Dura tarefa instruir a um nscio. Por mais rogos que lhe faam, s
quer ficar com as armas. Yonet ata os armamentos e sobre as botas cala as
esporas. Depois observou a armadura: era tal qual nunca houve outra melhor;
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sobre a touca coloca o elmo, que lhe assentou muito bem. Ensina-lhe rodear a
espada folgada e pendente, logo aps pe o p no estribo e monta no corcel.
Jamais tinha visto estribos, quanto s esporas, s conhecia o ltego e a vara.
Yonet lhe traz o escudo e a lana dando-os e, antes que se v, o moo lhe diz:
Amigo, tome meu corcel e leve-o, muito bom e lhe dou porque j no
o necessito mais. Leve ao rei sua taa e sadem-no de minha parte. Diga
donzela que Keu pegou na bochecha, que se puder, antes de morrer, penso
surrar quele banana, de tal modo, que ela se considerar vingada.
Ele responde que devolver ao rei sua taa e transmitir a mensagem
entendida. E assim separam-se e segue cada um para um lado.
Yonet entra pela porta da sala onde esto os bares, entrega ao rei sua
taa e lhe diz:
Senhor, alegre-se, pois, o seu cavaleiro que esteve aqui, devolve-lhe sua
taa.
De que cavaleiro me fala?
(VS. 1218-1304)
Responde Yonet:
Daquele que a pouco saiu daqui.
Refere-se ao moo gauls diz o rei que me pediu as armas na
reunio em nosso acampamento, daquele cavaleiro que voc fez tantos
insultos quanto pde?
Refiro-me a ele, senhor, verdadeiramente.
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E como conseguiu minha taa? Ama-o e aprecia-o tanto, que
amavelmente a deu?
Ao contrrio, o moo pagou to caro, que morreu.
E como foi isto, bom amigo?
Senhor, no sei. Mas, vi que o cavaleiro o golpeou com a lana,
zangando-o muito. O moo por sua vez deu com um dardo na viseira, de modo
que lhe fez sair o sangue por detrs, derramando o crebro e deu com ele em
terra.
Ento disse o rei ao mordomo:
Ah, Keu, que mal obrastes hoje! Por culpa de sua injuriosa lngua, proferiu
tantas inconvenincias, arrebatando o moo que hoje tanto me ajudou.
Senhor disse Yonet ao rei, por minha cabea: ele manda dizer por
mim donzela da rainha que Keu golpeou por despeito, por averso e dio a
ele, que a vingar, se encontrar ocasio para isso.
Quando o bufo, que estava sentado ao lado do fogo, ouviu estas
palavras, ficou em p e muito contente foi ante o rei, com tanta alegria que
saltava e saltava, e disse:
Senhor rei, assim Deus me salve, agora se aproximam nossas
aventuras. Com freqncia as vero dolorosas e duras. E eu lhes prognostico
que Keu pode estar seguro de que em m hora viu seus ps, suas mos, sua
lngua nscia e vil; pois, antes de que transcorra uma quinzena, o cavaleiro
ter vingado o chute que me deu, ser bem devolvida, comprada e paga cara,
a bofetada que deu donzela, porque lhe quebrar o brao direito entre o
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cotovelo e o sovaco. Meio ano o ter pendurado do pescoo, muito justo e
to certo que obrar assim quanto tem que morrer.
Tanto arderam estas palavras ao Keu que por pouco arrebenta de
indignao e de clera, por pouco esteve de maltrat-lo diante de todos at
mat-lo. Mas no o atacou porque desagradaria ao rei, o qual disse:
Ai, ai, Keu, quanto me zangou hoje! Se algum tivesse dirigido e
adestrado nas armas ao moo, de modo que tivesse aprendido um pouco a
servir do escudo e da lana, tnhamos, sem dvida alguma, um bom cavaleiro;
mas no sabe de armas, nem de nenhuma outra coisa, nem pouco, nem muito;
nem sequer saber desembainhar a espada se o precisar. Agora vai armado
em seu cavalo, se encontrar algum vassalo que, para ficar com suas arreios,
no duvidar em aleij-lo. Logo o matar, ou o aleijar, pois, no saber
defender-se, de to simples e bruto como , e facilmente perder a partida.
Assim o rei lamenta e deplora ao moo tendo o rosto entristecido. Todavia,
como no pudia reparar nada, deixa de continuar falando.
COM O GORNEMANT DE GOORT
(VS. 1305-1389)
O moo sem demora vai cavalgando pela floresta, at que chega numa
terra plana; pela qual discorre um rio que, em suas partes mais largas, tem um
campo suspenso; e na extenso do leito se acumulou toda a gua. Atravessa
toda uma pradaria para o grande rio que ressona. Todavia, no entrou na gua
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porque a viu muito veloz e negra; mais profunda que a de Loira. Segue ao
longo da borda, perto de uma grande rocha viva, sobre a qual, um declive
descia por volta do mar e havia um castelo muito rico e resistente. Quando o rio
chegava desembocadura, o moo se voltou para a esquerda e viu nascer as
torres do castelo, pois lhe pareceu que nasciam e que surgiam da rocha. No
meio do castelo se erguia uma torre slida e grande. Em frente baa, um
poderoso muro que combatia com o mar e o mar batia a seu p. Nas quatro
paredes do muro, cujos blocos de pedras eram duros, havia quatro baixas
torres que eram muito compactas e belas. O castelo estava muito bem situado
e bem disposto em seu interior. Frente ao redor do muro havia uma ponte de
pedra, areia e cal suspensa sobre a gua. Era alto, firme, slido e cercado por
pilastras. No meio da ponte havia uma torre, adiante uma ponte elevada, que
parecia estabelecida para o que justamente lhe compete: de dia era ponte e de
noite porta.
O moo caminha para a ponte, pelo que se entretm num mestre vestido
com roupas de cor prpura. Eis aqui aquele que vem fazer a ponte. Para
mostrar autoridade, o mestre leva um basto na mo, e detrs dele seguem
dois pajens guardies. O moo recorda bem o que sua me lhe ensinou, pois,
cumprimenta e diz:
Senhor, isto me ensinou minha me.
Deus te abenoe, bom irmo respondeu o mestre, que ao falar
conheceu que era simples e tolo . Bom irmo, de onde vem?
-De onde? Da corte do rei Artur.
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-E o que fazia?
O rei, que boa ventura haja, fez-me cavaleiro.
Cavaleiro! Deus me proteja! No suspeitava que agora, precisamente,
lembrasse disto; imaginava que lhe preocupavam coisas muito distintas para
fazer cavaleiros. Diga-me, amvel irmo, quem te deu estas armas?
O rei me deu responde isso.
Deu-lhe isso? Como?
E lhe conta o que j ouvistes no conto. Se o contasse eu outra vez seria
irritante e aborrecido, e com isso nenhum conto ganha nada.
E o mestre lhe pergunta o que sabe fazer com o cavalo.
Fao-o correr acima e abaixo, como fazia com o corcel que tinha antes,
que trouxe da casa de minha me.
(VS. 1390-1468)
Diga-me tambm, bom amigo, o que sabe fazer com suas armas?
Sei prepara-las e arrebatar, do modo como me armou com elas o pajem
que diante de mim desarmou o cavaleiro que matei; e as levo com tanta
agilidade que no me pesam nada.
Por minha f disse o mestre, aprovo-o e me agrada. Todavia, diga-
me seno o molesta, o que lhe traz por aqui?
Senhor, minha me ensinou aproximar-me dos mestres em qualquer
lugar que os encontrasse, e que acreditasse o que me dissessem, pois muito
proveitos ganham os que os escutam.
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E o mestre responde:
Bom irmo, bendita seja sua me, que to bem lhe aconselhou. Porm,
quer me dizer algo mais?
Sim.
O que?
-Uma coisa somente: que me albergue hoje.
- Com muito gosto diz o mestre , mas, com a condio de que me
outorgue um dom do qual vero seguir-se grande benefcio.
-Qual? diz ele.
- Que seguir os conselhos de sua me e os meus.
Por minha f, outorgo-o disse ele.
Pois, desmonte.
E ele desmonta. Um dos dois pajens que o acudiu toma seu cavalo, e o
outro o desarma. Assim ficou em seu rstico traje, com as botas e a capa de
cervo, mal feita e mal cortada, que lhe tinha dado sua me. O mestre fez calar
as esporas cortantes de ao que o pajem havia trazido, monta em seu cavalo,
pendura no pescoo o escudo, toma a lana e diz:
Amigo, aprenda agora a dirigir as armas. Fixa bem como se deve levar a
lana, espetar e reter o cavalo.
Logo desdobra a insgnia, mostra e ensina como se deve pegar o escudo.
Joga-o um pouco para frente, para que alcance o pescoo do cavalo, afirma a
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lana e espeta o cavalo, o qual valia cem marcos; que corria mais elegante,
mais rpido e com mais vigor que nenhum.
O mestre conhecia muito de smbolos, de cavalos e de lanas, pois,
aprendeu na sua infncia. Concedia muito ao moo, o qual se fixou em tudo o
que fez. Quando demonstrou tudo, bem e garboso, ante o moo, que tinha
estado muito atento, volta com a lana erguida e lhe pergunta:
Amigo, saberiam dirigir assim a lana, o escudo, espetar e conduzir o
cavalo?
E ele responde decidido que no quer viver, nem um s dia mais, nem
possuir fazenda, at sab-lo fazer assim.
O que no se sabe pode aprender, se a gente puser nisso af e
entendimento, amvel amigo diz o mestre. Em todo ofcio convm, ter
corao, trabalho e costume. Com estes trs meios se chega a conhec-lo,
como voc jamais o fizera, nem o vira fazer a ningum, no merece desprezo,
nem censura por no saber faz-lo.
Logo o mestre o fez montar, ele comeou a levar to distrado a lana e
o escudo como se sempre tivesse vivido entre torneios e guerras; tivesse
percorrido todas as terras em demanda de batalhas e aventuras; pois lhe vinha
da natureza; quando a natureza o ensina fica em todo o corao, nada pode
ser rduo para o esforo da natureza e do corao.
Tudo desempenhava to bem, que o mestre estava muito satisfeito;
dizendo em seu interior que se toda sua vida se aplicasse e ocupasse em
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armas, no o teria aprendido to bem. Quando o moo acabou sua trajetria,
retornou ao mestre com a lana erguida, como lhe tinha visto fazer, e lhe diz:
_Senhor, tenho-o feito bem? Cr que convm mais esforo, se quero
faz-lo? Jamais viram meus olhos nada que tanto desejasse; mas queria saber
tanto como sabe voc.
- Amigo responde o mestre, se puser seu corao nisso, conseguir;
no deve se inquietar de modo algum.
Trs vezes o mestre montou, e trs vezes lhe ensinou tudo quanto pde lhe
ensinar em matria de armas, e trs vezes o fez montar. A ltima lhe disse:
Amigo, se encontrasse um cavaleiro que lhe atacasse, o que faria?
Atacaria-o por minha vez.
E se sua lana rompesse?
Depois disto no teria mais receio de lhe atacar a murros.
Amigo, no faa isto.
-O que farei, pois?
- Deve lhe obrigar a esgrimir a espada.
Ento, o mestre que tanto deseja lhe ensinar armas e lhe instruir de
modo que saiba bem defender-se com a espada; obrigando-se a isso a atacar
quando se apresente a ocasio, finca no cho a lana muito direita, logo lana
mo espada e diz:
Amigo, deste modo se defender se o atacarem.
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Nisto, Deus me valha responde, ningum sabe tanto como eu,
pois me exercitei com os almofadinhas e as fascas da casa de minha me, ao
ponto de fatigar-me em algumas ocasies.
Assim, pois, vamos pra casa, porque j no sei que mais ensinar
diz o mestre, e esta noite, em que pese a quem pesar, So Julio nos dar
bom albergue.
E assim se vo, um ao lado do outro, e o moo diz a seu anfitrio:
- Senhor, minha me me recomendou que soubesse o nome de todo
aquele com quem fora ou com quem fizesse longa companhia. E se o que
me recomendou sensato, quero saber seu nome.
- Amvel amigo diz o mestre, eu me chamo Gornemant do Goort.
(VS. 1549-1638)
Assim, um ao lado do outro, chegaram ao castelo. Ao incio da escada
aproximou-se um agradvel pajem levando um manto curto, com o qual correu
a abrigar ao moo para que, depois do calor, o frio no lhe fizesse mal. O
mestre tinha ricas estadias, formosas, grandes e bons servidores. A comida
boa, agradvel e bem preparada, estava disposta. Os cavaleiros lavaram-se e
sentaram-se mesa. O mestre sentou ao lado do moo e comeu com ele na
mesma tigela. No preciso que faa relao de quantos manjares houve nem
de sua qualidade, pois comeram e beberam o suficiente, e j no falo mais da
comida.
Quando levantaram da mesa, o mestre, que era muito corts, rogou ao
moo que esteve sentado a seu lado, que ficasse um ms; de bom grado o
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acolheria se quisesse um ano inteiro, e enquanto isso lhe ensinaria, se lhe
parecia bem, coisas que lhe seriam teis em uma necessidade. E o moo lhe
respondeu:
Senhor, no sei se estamos perto da morada onde minha me vive,
mas peo a Deus que conduza a ela para que ainda a possa ver, pois a vi cair
deprimida ao p da ponte, diante da porta, e no sei se estava viva, ou morta.
Sei bem que caiu deprimida pela dor que lhe produzi quando a deixei; e por
esta razo no possvel que me ausente muito at saber seu estado. Irei
amanh ao amanhecer.
O mestre v que de nada serve insistir. No diz nada mais, sem outra
conversa vo se deitar, pois, as camas j estavam feitas. O mestre se levantou
de manh e foi cama do moo o qual encontrou deitado, e lhe fez levar,
doando-lhe camisa e calas muito finas como vu; calas importadas do Brasil
e capa de tecido de seda indiana, uma malha que se faz na ndia. Orientou-o
para que se vestisse com aquelas vestimentas e disse:
Amigo, se me cr, vestir estas roupas que v aqui.
E o moo respondeu:
- Bom senhor, por muito que me diga, acaso as roupas que fez minha
me no valem mais que estas? E quer que ponha isso?
-Moo, por minha cabea e pela f que devo a meus olhos, estas valem
muito mais.
Replicou o moo:
Valem menos.
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- Voc disse, bom amigo, quando o trouxe aqui dentro, que obedeceria
todos os meus mandatos.
- E assim o farei disse o moo, e no o decepcionarei em nada.
Apressa-se a colocar as roupas e deixa as de sua me. O mestre agacha-
se e cala a espora direita, pois era costume ao presentear um cavaleiro calar
a espora neste. Havia muitos outros moos, e todos os que podem aproximar
querem intervir em arm-lo. O mestre pegou a espada rodeou-a e beijou-a;
dizendo que com a espada, tinha-lhe dado a mais alta ordem que Deus tenha
feito e instaurado: a ordem da cavalaria, que deve ser sem vilania. E
acrescenta:
(VS. 1639-1721)
Bom irmo, se por acaso precisar combater com algum cavaleiro, lembre-
se do que agora quero dizer e rogar: se voc vencer, de modo que ele j no
possa defender-se de voc, nem se opor voc, ou seja obrigado a ficar sua
merc, tenha compaixo e apesar de tudo no o mate. No me agrada falar
muito: se a gente for muito falador, s vezes, diz coisas consideradas
desnecessrias, pois, o sbio diz e repete: "Quem fala muito, machuca-se a si
mesmo." Por isso, o aconselho, bom amigo, que no fale demais. Tambm
rogo que se encontrar homem, ou mulher; seja rfo, ou seja dama,
desorientados, aconselhe-os; far grande bem se souber aconselh-los e se
tiver autoridade para tal. Recomendo-lhe outra coisa que no deve desdenhar,
porque no deve ser desdenhada: v de bom grado ao monastrio para pedir
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quele que tudo tem feito, que tenha piedade de sua alma e que neste sculo
terreno, guarde-o como cristo dele.
O moo disse ao mestre:
Por todos os apstolos de Roma seja abenoado, bom senhor, pois, o
mesmo ouvi dizer minha me.
No diga nunca, bom irmo acrescenta o mestre, que sua me o
ensinou, diga apenas que fui eu. Saiba que no o reprovo por hav-lo dito at
agora, todavia, daqui em diante, por favor, rogo que se emende; pois, continuar
dizendo desnecessrio. Rogo-lhe, pois, que guarde este conselho.
Como direi, pois, doce senhor?
Poder dizer que quem lecionou e ensinou isso, foi quem o presenteou e
calou sua espora.
O moo d sua palavra, promete ao mestre que pode ficar seguro,
enquanto viva, s falar dele, pois parece muito certa tal instruo.
Ento o mestre o benze, com sua mo levantada para o alto e diz:
Posto que quer partir, vai com Deus e que Ele o guie, j que o
intranqiliza ficar aqui.
NO BELREPEIRE
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O novo cavaleiro separa-se de sua hospedagem, pois, tem muita pressa
em chegar para ver sua me e encontr-la viva e s. Adentra por florestas
solitrias, pois nelas se encontra melhor que na terra plana, porque estava
acostumado aos bosques. Cavalga at que v um castelo forte e bem situado;
fora dos muros no havia nada, salvo mar, gua e terra erma. Apressa-se em
caminhar para o castelo at que chega porta, porm, antes de alcan-la,
teve que passar por uma ponte to fraca que duvida que possa sustent-lo. O
moo sobe a pontezinha e cruza sem que lhe ocorra dano, vergonha, nem
inconveniente algum. Quando chegou ante a porta a encontrou fechada com
chave; golpeia-a no brandamente e grita no muito baixo. Tanto chamou que
se aproximou da janela da sala uma donzela fraca e plida, que disse:
Quem chama?
(VS. 1722-1805)
Ele olhou para a donzela, viu-a e disse:
- Boa amiga, sou um cavaleiro rogando-lhe que me faa entrar aqui e
albergue-me esta noite.
- Senhor contesta ela, posso consenti-lo, mas, me agradecer muito
pouco por isto; no obstante lhe albergaremos o melhor que pudermos.
A donzela retira-se. Ele, que espera diante da porta, receia fazer muito
tempo que est ali e chama de novo. Em seguida chegaram quatro servidores
com tochas, cada um dos quais rodeava uma boa espada. Abriram a porta e
lhe disseram:
Entre!
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Se os servidores desfrutassem de prosperidade, talvez tivessem sido muito
mais gentis; entretanto, padeceram de tanta misria entre jejuns e viglias, que
um no ficaria assombrado caso um casse. Alm disso, o moo observou, que
por fora, a terra estava nua e deserta; muito pouco encontrou dentro. Por
qualquer lugar que ia, achava desfeitas as ruas e via as casas arruinadas, sem
que as habitasse homem nem mulher. Havia na vila dois monastrios, que
foram duas abadias: uma de monjas aterrorizadas e a outra de monges
desamparados. De modo algum encontrou bem adornados, nem paramentados
aqueles monastrios; antes, bem viu arrebentados e fendidos seus muros e as
torres destrudas. As casas estavam abertas tanto de dia como de noite. Em
nenhum lugar de todo o castelo havia moinho para molar, nem forno para
cozer; ali no havia nem vinho, nem po, nem nada venda que se pudesse
adquirir com dinheiro. To desprovido encontrou o castelo, que no havia nem
po, nem massa, nem vinho, nem cidra e nem cerveja.
Os quatro servidores levam-no a um palcio coberto de tbua, onde o fazem
desmontar e o desarmam. Em seguida, desce um pajem por uma das escadas
da sala com um manto pardo que pe nas costas do cavaleiro. Outro leva seu
cavalo ao estbulo no qual havia muito pouco trigo, feno e aveia, pois, na casa
no ficava mais. Outros pajens fazem-no subir por uma escada de uma sala
muito formosa. Saem ao seu encontro dois mestres e uma donzela. Eles
tinham os cabelos grisalhos, embora no completamente branco; teriam todo o
sangue da juventude e todas as suas foras, se no padecessem dor e
desgosto. A donzela aproximou-se mais graciosa, mais elegante e mais atrativa
que gavio, ou papagaio. Seu manto e sua estola eram de prpura escura,
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adornada de ouro, e as peles de arminho no estavam pudas. O colarinho do
manto estava bordado com enfeites negros e chapeados. Se alguma vez me
agradou descrever a beleza que Deus ps em corpo ou em face de mulher,
agora agrada-me em faz-lo de novo sem mentir nem em uma s palavra. Ia
descoberta, e eram tais seus cabelos que aquele que os visse imaginaria que
eram de ouro puro, pois eram loiros e com muito brilho. A frente era alta,
branca e lisa como se tivesse sido obrada por mo de homem acostumado a
esculpir pedras preciosas, marfim ou madeira. Sobrancelhas perfeitas e amplo
sobrecenho; na face os olhos brilhantes, claros e rasgados; tinha o nariz reto e
aquilino; e em seu rosto melhor se advinham o branco sobre o vermelho do que
o sinople(verde) sobre a prata. Na verdade, para roubar os coraes da gente,
fez Deus dela um prodgio, depois no criou outra semelhante, nem antes a
tinha criado. Assim que o cavaleiro a viu, saudou-a e seus dois acompanhantes
saudaram-no. A donzela amavelmente o pega pela mo e diz:
(VS. 1806-1900)
Bom senhor, em verdade, seu albergue esta noite aqui, no ser como
conviria a um mestre. Se agora lhe dissesse qual nossa situao e nosso
estado, poderia parecer que o fazia com m inteno para partir daqui; mas, se
lhe agradar, venha e aceite o albergue tal qual , e Deus lhe d um melhor
manh.
Conduzindo-o pela mo at uma cmara retirada, que era muito formosa,
larga e ampla. Sentam-se os dois sobre uma colcha de seda estendida em
cima de uma cama. Tambm chegaram outros cavaleiros, que se sentaram em
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grupos de quatro, cinco e seis, permanecendo calados, olhando quele que
estava ao lado de sua senhora e no dizia uma palavra. Abstinha-se de falar
porque recordava o conselho dado pelo mestre, enquanto isso, todos os
cavaleiros debatiam em voz baixa, e diziam:
Deus! Muito me surpreende que este cavaleiro seja mudo. Seria grande
lstima, pois, jamais nasceu de mulher cavaleiro to gentil. Agrada-nos muito
estar ao lado de minha senhora, e a minha senhora tambm estar ao lado dele,
se no fossem ambos mudos. To formoso ele e to formosa ela, que
nunca houve cavaleiro e donzela to adequados para estar juntos, e parece
que Deus fez um para o outro, para que juntos estivessem.
Assim comentavam entre eles todos os que estavam ali. A donzela
esperava que lhe falasse algo, at que se deu conta de que ele no
pronunciaria uma palavra enquanto ela no se dirigisse primeiro; deste modo
disse-lhe muito amavelmente:
-Senhor, de onde vm hoje?
-Senhora respondeu, dormi em casa de um mestre, num castelo
onde fui bem e gentilmente albergado. H cinco torres fortes e excelentes, uma
grande e quatro pequenas; poderia descrever todo o edifcio, porm, no sei o
nome do castelo; sei, entretanto, que o mestre se chama Gornemant do Goort.
- Ah, bom amigo! disse a donzela, muito agradveis so suas
palavras e fala de modo muito corts. Que o soberano Deus lhe premie por
hav-lo chamado mestre, pois, jamais disseram uma palavra mais certa. Posso
lhe assegurar, por So Riquier, que ele mestre. Saibam que sou sobrinha
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dele, todavia, faz muito tempo que no o vejo. bem certo que, desde que
sara de sua casa, no conheceu, assim acredito, ningum mais mestre que
ele. Muito brilhante e alegre albergue lhe deve ter dado, pois, sabe faz-lo bem,
como mestre, amvel, poderoso, acomodado e rico. Mas aqui dentro s h
cinco miserveis pes que um tio meu, prior, homem muito santo e religioso,
enviou-me para jantar esta noite junto com uma tina de vinho fermentado. O
nico alimento que temos um coro, morto nesta manh, com uma flecha de
um dos meus servidores.
(VS. 1901-1992)
Ento ordena que ponham as mesas e, depois disso, sentam-se para
jantar. Pouco tempo ficaram sentados comendo, todavia, com grande apetite.
Aps cearem separaram-se em dois grupos: os que a noite passada velaram
foram dormir e prepararam-se os que deviam aquela noite velar o castelo.
Eram cinqenta servidores e cavaleiros. Os demais trabalharam em excesso
acomodando seu hspede; ocupando-se da cama, pem brancos lenis,
colchas muito rica e um travesseiro na cabeceira. O cavaleiro desfrutou
naquela noite, toda a comodidade e todo o deleite que se pode imaginar em
uma cama, exceto o prazer da donzela, se a agradasse, ou o da dama, se lhe
fosse permitido; entretanto, ele no sabia nada sobre o amor, nem de coisa
alguma. Assim, dormiu pouco depois, pois, no havia nada que lhe
preocupasse.
Porm, a que o albergara no repousa, encerrada em sua cmara. Ele
dorme tranqilamente e ela considera uma batalha que se d em si mesmo e
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contra a qual no tem defesa. Agita-se muito, muito se sobressalta, volta-se
muitas vezes, muito se intranqiliza. Coloca sobre a camisola um manto de
seda de cor de gro, lanando-se aventura como audaz e atrevida. No
precisamente uma v empreitada, porque tem o propsito de ir ao seu hspede
e lhe dizer parte de seu pensamento. Afasta-se de sua cama. Ao sair da
cmara tem tal medo que todos os seus membros tremem e o corpo sua. Saiu
chorando. Vai para a cama onde ele dorme lamentando-se e suspirando muito.
Inclina-se, ajoelha-se e chora at molhar toda a cara com suas lgrimas; no
tem ousadia para fazer mais.
Chorou tanto, que ele acordou. Surpreso e admirado ao sentir sua cara
molhada; ajoelhada ante sua cama e estreitamente abraada nele pelo
pescoo. Faz-lhe a cortesia de tom-la imediatamente entre seus braos e
atrai-la para si; dizendo:
Formosa, o que lhe acontece? Por que veio aqui?
(VS. 1993-2093)
Ah, gentil cavaleiro, piedade! Rogo-lhe por Deus e por seu Filho que
no me considere vil porque vim aqui. E embora esteja quase nua, de modo
algum imaginei loucura, maldade, nem vilania; porque no mundo no existe
criatura to desgraada, nem to desventurada que eu no o seja mais. Nada
do que tenho me satisfaz, nem passei um s dia sem dano. Sou to
desventurada que nunca mais virei outra noite depois da de hoje, nem mais dia
que o de amanh, porque me matarei com minhas prprias mos. Dos
trezentos e dez cavaleiros com os quais estava guarnecido este castelo, s
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ficaram aqui cinqenta; porque duzentos e sessenta foram levados, mortos e
aprisionados por um cavaleiro muito mau, Anguinguern, mordomo de
Clamadeu das ilhas. Tanto me pesa os quais esto na priso, quanto os
mortos, porque sei bem que morrero e nunca podero sair. Tantos mestres
morreram por mim que justo que esteja desconsolada. Anguinguern passou
todo um inverno e um vero em assdio, daqui pra frente, sem mover-se,
sempre aumenta sua fora. A nossa est minguada, as provises esgotadas, a
ponto de no ficar nem para alimentar uma abelha. Agora estamos to
perdidos porque amanh, se Deus no o remediar, este castelo lhe entregar,
pois, j no pode defender-se, me levar com ele como cativa. Porm, antes
que me leve viva, matar-me-ei. Morta, pouco me importar que me leve.
Clamadeu, que quer me ter, no me ter de modo algum, a no ser sem vida e
sem alma. Guardo em meu porta-jia uma faca de fino ao, que afundarei em
meu corao. Isto o que tinha para dizer; e agora retomarei meu caminho e
lhe deixarei repousar.
Logo, se se atrever, poder o cavaleiro fazer-se digno de elogio, porque
ela unicamente foi chorar sobre sua cama, embora lhe desse a entender outra
coisa, para lhe colocar no nimo de empreender batalha, se o fizer por ela, a
fim de defender sua terra. Ele responde:
Amiga querida, coloque nesta noite um semblante mais belo. Console-se,
no chore mais, aproxime-se mais de mim e enxugue as lgrimas de seus
olhos. Deus, se o quiser, far amanh mais bem do que o que me disse. Deite-
se comigo nesta cama, que bastante larga para os dois. Hoje no me
deixar.
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E ela diz:
Faria-o se pudesse.
Ele a beijava e a tinha estreitada entre seus brao. Muito brandamente e
com cuidado a pe debaixo da colcha. Ela permite ser beijada e no acredito,
que isto lhe zangue. Assim estiveram toda a noite deitados, um ao lado do
outro, boca com boca, at a manh que traz o dia. A noite foi to agradvel,
porque boca com boca, brao com brao, dormiram at que amanheceu.
Ao amanhecer a donzela retornou a sua cmara, sem criada, nem
garonete, vestiu-se e se comps, pois, a ningum despertou. Os que de noite
velaram, assim que puderam ver o dia, despertaram os que dormiram e os
fizeram levantar da cama, o que efetuaram sem tardana. Naquele mesmo
momento a donzela foi a seu cavaleiro e lhe disse amavelmente:
Senhor, Deus lhe d bom dia. Acredito que no far longa estadia aqui,
pois seria em vo. Ir e no me pesa, porque no seria corts que isso me
pesasse, j que aqui no lhe honramos, nem o tratamos bem. Peo a Deus que
lhe proporcione melhor albergue, onde haja mais po, mais vinho e mais boas
coisas do que neste.
(VS. 2094-2179)
Ele contestou:
Formosa, no ser hoje o dia que procure outro albergue, pois, antes departir daqui, deixarei toda sua terra em paz, se me for possvel. Caso encontre
seu inimigo l fora, pesar-me- que fique ali mais tempo, embora nenhum dano
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lhe faa. Todavia, se o matar e vencer, peo-lhe, como galardo, que seu amor
seja meu. No aceitarei nenhuma outra recompensa.
Responde-lhe com muito puritanismo:
Senhor, pede-me coisa muito pobre e muito pequena, porm se lhe
recusasse tomaria como orgulho, por isso, no lhe quero negar isso. No
obstante, no diga que eu sou sua amiga com a condio e o trato de que voc
tenha que morrer por mim, seria um grande dano; porque saiba, de certo seu
corpo e sua idade no so tais que lhe permitam opor-se, nem sustentar
combate, nem batalha com cavaleiro to duro, to forte e to robusto, como o
que l fora espera.
Isto j veremos hoje diz porque irei combater com ele, sem que
nenhum conselho me impea.
Ela fica em tal transe, que por um lado o reprova e por outro o instiga;
porque ocorre, s vezes, de algum resistir renunciar ao que deseja, quando a
outro desejoso fazer toda sua vontade, a fim de que o deseje mais ainda. Ela
obrou sabiamente, pois lhe colocou no nimo o que tanto o est reprovando.
Ele diz que lhe tragam as armas que pediu; trazem-nas, armam-no e o fazem
montar em um cavalo que lhe prepararam no meio da praa. No h quem no
lastime dizendo:
Senhor, Deus o ajude neste dia, e d grande mal ao servidor,
Anguinguern, que destruiu todo este pas.
Assim oram todas e todos. Acompanham-no at a porta, e quando o vem
fora do castelo, gritam todos a uma s voz:
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8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes
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Gentil senhor, que a verdadeira cruz na qual Deus permitiu que
padecesse seu Filho, guarde-lhe hoje de perigo de morte, de desgraa e da
priso. Devolva-o sem machucado, ao lugar onde seja feliz, deleitando-se e
satisfeito.
Assim todos oravam por ele.
Quando os da hoste o viram chegar, mostraram-no, em seguida,
Anguinguern, que estava sentado diante de sua tenda. Parecia que lhe
entregariam o castelo antes de anoitecer, ou que algum sairia do castelo para
lutar com ele corpo a corpo. J tinha empacotado os armamentos. Sua gente
estava muito contente porque acreditava ter conquistado o castelo e todo o
pas. Anguinguern, assim que o viu, armou-se rapidamente. Foi at ele mais
compassado em um corcel forte e robusto, e lhe disse:
Moo, quem o envia? Diga-me o motivo de sua vinda. Deve buscar paz
ou batalha?
(VS. 2180-2287)
E voc o que faz nesta terra? responde ele. Voc me dir primeiro
por que matou aos cavaleiros e devastou todo o pas.
Ele responde todo orgulhoso e arrogante:
Quero que hoje me esvaziem este castelo. Rendam a torre, que muito me
resistiu e meu senhor ter a donzela.
Malditas sejam tais novas e quem te disse isto! responde o moo.
Ser necessrio renunciar a quanto disputa.
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8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes
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Por So Pedro diz Anguinguern, que me est dizendo boas
necessidades. s vezes ocorre pagar os danos, quem no tem culpa.
Ento o moo se zangou e afirmou a lana na bainha da cinta; e ambos
deixaram que os cavalos corressem quanto podiam um contra outro. Pela
indignao e a sanha que tinham e pela fora de seus braos fazem voar por
aqui e por l as peas e as lascas das lanas. S caiu Anguinguern, ferido
atravs do escudo, que sentiu dolorosamente o brao e o flanco. O moo, que
no sabia atac-lo a cavalo, fica de p na terra, toma a espada e o ameaa.
No saberia lhes descrever mais detalhadamente o que se passou, nem todos
os golpes um por um, mas a batalha durou muito e muito rudes foram os
encontros at que Anguinguern caiu.
O moo avanou ferozmente sobre ele, at pedir misericrdia. O moo
diz que no concederia nem pouca, nem muita. Todavia, lembrou-se de que o
mestre lhe tinha aconselhado que vencendo no matasse o cavaleiro vencido e
submetido. E aquele lhe dizia:
Doce amigo, no seja to desumano, a ponto de no me outorgar
misericrdia. Confesso-te e te concedo que voc o melhor. Na verdade um
bom cavaleiro, mas no at onde acreditava. Quem no tenha visto nosso
combate e conhea ambos, no acreditar que voc, s com suas armas,
matou-me em batalha. Porm, se eu der testemunho, ante minha gente e em
minha tenda mesmo, que me derrotou com suas armas, minha palavra ser o
suficiente. Sua honra crescer tanto que jamais cavaleiro a de