o conto do graal - chrétien de troyes

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  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    Chrtien de Troyes

    O Conto do Graal

    www.espelhosdatradicao.blogspot.com

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    NOTA PRELIMINAR

    Escassos so os dados que possumos sobre a personalidade de

    Chrtien de Troyes, cuja obra literria se conservam cinco extensas novelas de

    atribuio segura: Erec, Cligs, Le chevaliers au lion (intitulada tambm

    Yvain), Le chevaliers de la charrete (a qual, s vezes, se d o ttulo de seu

    protagonista, Lncelot) e Le Cont du Graal. Com certa verossimilhana lhe

    atribui tambm outra novela de carter cavalheiresco e piedoso, Guillaume

    d'Angleterre (da qual existe uma traduo em prosa castelhana do sculo XIV),

    uma adaptao de uma fbula ovidiana sobre o mito de Filomela. Das seis

    poesias lricas que os cancioneiros atribuem Chrtien de Troyes, duas so

    com segurana obra de nosso escritor. Este, por outra parte, confessa, nos

    versos iniciais de Cligs, ter traduzido os Remedia Amoris e o Ars

    Amatoria de Ovdio; composto uma narrao sobre o mito de Tntalo e Plope

    (sem dvida baseado nas Metamorfoses ovidianas); e um relato sobre "o rei

    Marc e Iseut la rubia", ou seja, a lenda de Tristo, todo o qual se perdeu. Tendo

    em conta as pessoas s quais dedica suas obras, chegamos concluso de

    que a produo de Chrtien de Troyes desenvolveu-se entre os anos 1159 e

    1190.

    Trata-se, pois, de um escritor da segunda metade do sculo XII que,

    como os homens de cultura de seu tempo, possui uma slida preparao

    clssica, posta de manifesto no to somente em suas verses dos tratados

    erticos do Ovdio e em suas adaptaes de fbulas mitolgicas, mas tambm

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    dvida, cidade em que nasceu nosso escritor. Tanto Mara de Champagne

    como sua me Leonor de Aquitania desempenharam um papel muito

    importante no florescimento da literatura chamada cortes. Contriburam para

    instaurar na Frana os achados e as novidades da poesia dos trovadores, de

    sorte, que a aventura cavalheiresca uniu-se ao sentimentalismo amoroso,

    unio que constitui uma das caractersticas da novela do sculo XII. Entretanto,

    Chrtien de Troyes no se limitou, em suas novelas, a direta narrao de uma

    peripcia cavalheiresca, com seus lances hericos; seus episdios

    "maravilhosos e a exaltao das virtudes militares de seres extraordinrios;

    nem adotou a aventura de um contedo amoroso; esboa uma hbil e acertada

    caracterizao psicolgica dos personagens principais da ao. Alm de tudo

    isto, pretendeu dar suas novelas o transcendente valor de uma lio moral e

    espiritual destinada ao aperfeioamento da sociedade na qual vivia, de modo

    principal, da aristocracia que lia suas obras. Tal propsito decisivo e

    deliberado em nosso escritor, pois nos versos iniciais de Le chevaliers de

    charrete distingue, em sua obra literria, amatria (matire), que o assunto,

    ou argumento da narrao, o simples relato de feitos novelescos, do sentido

    (sans), que deve ser a interpretao doutrinal da obra, o que chamaramos sua

    tese. De uma afirmao feita no Erec desprende-se que a ordenao e

    articulao da matria com o sentido, ou seja, a acomodao da intriga do

    relato uma tese, constitui ajunta (conjointure) da novela. O criar novelas de

    Chrtien de Troyes , pois, algo que ambiciona ser muito mais que o simples

    narrar, colocando uma rica trama de aventuras a servio de uma tendncia

    exaltao dos valores morais do cavaleiro.

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    Esta inteno superior no deve ser esquecida quando se l O conto

    do Graal (Le Cont du Graal), pois se nos ativermos, exclusivamente, a sua

    matria, em alguns trechos poderia parecer um ingnuo conto, ou uma

    insignificante novela de aventuras. Correramos o perigo de valoriz-lo s em

    ateno a seus inegveis mritos literrios. A obra vai precedida de uma

    dedicatria ao conde Felipe de Flandes, ou seja, Felipe de Alsacia, quem,

    desde 1168, foi conde de Flandes; partiu para Ultramar como cruzado em

    setembro de 1190 e morreu em Acre em junho seguinte. Entre 1168 e 1191,

    pois, iniciou Chrtien de Troyes a redao do conto do Graal, e os intentos

    feitos para precisar mais a data se revelaram pouco firmes. Esta dedicatria

    surpreende, por seu carter religioso; glosa nela vrios versculos neo-

    testamentrios e disserta sobre a caridade; o que d estas pginas

    introdutrias, um acusado matiz cristo que por fora tem que corresponder

    com o profundosentido que o autor pensa dar em sua obra.

    Chrtien escolheu como protagonista de sua narrao um moo em

    plena adolescncia, forte, hbil caador e ingnuo; vivendo em uma "erma

    floresta solitria" isolado do resto do mundo. Unicamente entregue caa e

    sem outra relao humana a no ser sua me e os lavradores que cultivam

    suas terras, situadas em Gales. Este moo pertence uma ilustre linhagem de

    cavaleiros; tanto seu pai, como seus dois irmos maiores, foram vtimas das

    guerras e dos combates; devido a isso, sua me o criou em completa

    ignorncia de tudo quanto acontece no mundo, principalmente da cavalaria.

    Todavia, a fora do sangue se impe aos planos maternos; assim que o moo,

    no incio da novela, encontra-se com alguns cavaleiros, decide

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    irrevogavelmente ser um deles encaminhando-se corte do rei Artur para que

    lhe arme; o qual produz tal desgosto a sua me que cai morta ao v-lo partir de

    seu lado. Desta sorte, Chrtien pode expor a seus leitores as etapas da

    formao cavalheiresca, que seu jovem heri percorre numa velocidade

    vertiginosa. Ao sair da solitria morada materna, o heri est na plenitude de

    suas foras fsicas; robusto e valente, condies naturais, indispensveis,

    para tudo o que tenha que exercer na cavalaria. Sua chegada corte do rei

    Artur provoca dois maravilhosos vaticnios, pois, tanto a donzela que jamais

    sorriu, quanto o bufo, prognosticam que aquele galhardo e ingnuo jovem

    est destinado a ser o melhor cavaleiro do mundo. A vitria do moo sobre o

    cavaleiro Vermelho, deve-se primria habilidade daquele no lanamento de

    flechas, adquirida em suas caadas: um tipo de luta que se acha muito

    distante do sbio tecnicismo da nobre arte das armas. Por esta razo, depois

    desta primeira vitria, Chrtien leva seu protagonista ao castelo de Gornemant

    de Goort, cavaleiro amadurecido e experiente, que gosta muito das virtudes e

    da simpatia do jovem selvagem. Ensina-lhe lies de cavalaria, que o moo

    aprende com grande preciso e rapidamente, por fim, consagra-o cavaleiro.

    Nosso protagonista j um cavaleiro; os episdios da defesa do castelo de

    Belrepeire demonstram seu acerto e sua maestria no manejo das armas; mas

    ali tambm, como corresponde a todo cavaleiro, nasce no jovem heri, seu

    amor pela formosa Blancheflor.

    Entretanto, h nele um remorso que o tortura: a sorte de sua me, que

    viu cair desvanecida ao abandonar sua morada solitria. No sabe ainda que

    morreu, embora o suspeita, isso tortura seu nimo com a conscincia do

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    pecado. Esta situao, quer dizer, com a alma manchada por ele ter pecado,

    oferece-lhe a mais alta de suas aventuras: a prova do castelo do Graal,

    episdio culminante da novela. Convidado pelo Rico Rei Pescador, ou Rei

    Aleijado, o jovem cavaleiro janta na ampla e suntuosa sala quadrada do

    castelo. V desfilar ante si um singular cortejo em que figuram um pajem, que

    empunha uma lana de cuja ponta emana uma gota de sangue; uma formosa

    donzela que leva em suas mos umGraal; e outra com um prato de prata. O

    heri, temendo revelar sua rusticidade, no se atreve a perguntar por que

    sangra a lana, nem a quem se serve com aquele Graal. A razo de seu

    mutismo o esclarece depois Chrtien mais profunda: o fato de achar-se

    em pecado travou-lhe a lngua. Isso constitui o fatal engano do moo, pois, se

    tivesse formulado aquelas duas perguntas, teria reparado uma srie de males

    que afligiam precisamente a sua linhagem; j que, averiguaremos logo, que o

    Rico Rei Pescador, prostrado pela paralisia e sem a posse de suas terras, teria

    recuperado sade e domnios se aquelas duas perguntas tivessem sado dos

    lbios do moo. Chrtien de Troyes no nos esclarece isso pontualmente

    veremos que a novela ficou inacabada, mas, no cabe dvida de que a lana

    que sangra a de Longinos, ou seja, aquela com a qual foi ferido o flanco de

    Jesus Cristo. OGraal, nome que se dava a certos recipientes, um riqussimo

    clice sagrado no qual se leva diariamente uma hstia ao Rei do Graal pai do

    Rico Rei Pescador e irmo da me do protagonista, o qual h anos vive

    exclusivamente graas ao alimento que lhe proporciona a Eucaristia. Este tipo

    de milagre deu-se, com freqncia, na Idade Mdia e, ainda hoje em dia,

    entusiasma aos cristos. O prato de prata , sem dvida alguma, a bandeja

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    que fica debaixo do queixo, no qual comunga para evitar que, por um acidente,

    a sagrada forma caia ao cho. O tema das perguntas no formuladas,

    conduzindo maus danos, no estranho no folclore; mas, em nosso caso,

    oferece uma surpreendente similitude com a cerimnia da Pscoa dos judeus,

    cujo rito no pode iniciar-se, at que o mais jovem da famlia, tenha feito umas

    ingnuas perguntas. No estranho que Chrtien tenha adaptado a seu

    episdio este rito judaico, sobretudo se tivermos em conta a importncia da

    comunidade israelita de Troyes no sculo XII. A formosa donzela portadora do

    Graal , com toda segurana, uma figura simblica: a Igreja personificada, que

    em representaes artsticas da poca est acostumada achar-se direita da

    cruz, recolhendo em um rico clice o sangue do Salvador que emana da ferida

    produzida pela lana de Longinos. A lana empunhada pelo pajem, que desfila

    em nosso episdio, emana sem cessar, para significar, sem dvida, a

    persistncia do sacrifcio do Glgota, que redime constantemente.

    Nosso heri, se d conta de seu grande fracasso no castelo do Graal, no

    dia seguinte, ao encontrar na solido do bosque sua prima, quem lhe faz ver

    seu engano. Ento, quando por seu engano se faz responsvel, o jovem heri

    da novelaadivinha seu nome e o averigua pela primeira vez o leitor: chama-se

    Perceval. O nome vai unido personalidade, enquanto nosso heri no

    significou nada para o mundo, viveu anonimamente; agora que, por sua culpa e

    por seu pecado, impediu que se realizasse um bem e no evitou o mal, sua

    responsabilidade lhe fez adivinhar seu nome. O episdio das gotas de sangue

    sobre a neve, uma das mais belas pginas da literatura francesa medieval,

    demonstra, por um lado, a idealizao do amor de Perceval pela formosa

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    Blancheflor, a cor rosada, de cuja face lhe rememora, ao ver a branca neve

    colorida pelo vermelho sangue; grandiosa metfora investida, que tentou mais

    de uma vez, grandes poetas, desde Ovdio at Gngora. Por outro lado, este

    episdio, na economia da novela, supe o cumprimento dos augrios da

    donzela que jamais tinha sorrido e do bufo, graas ao qual, fica manifesto que

    Perceval, quinze dias antes era um ingnuo moo selvagem, sendo agora o

    melhor cavaleiro do mundo.

    O Conto do Graal interrompe-se bruscamente, depois do verso 9234,

    deixando em suspense um episdio. Deve-se a interrupo, que a morte

    surpreendeu Chrtien de Troyes em plena redao da novela; quando a ao

    principal desta, distava o bastante, sem dvida, de ter chegado a seu

    desenlace. Isso motivou que tema do Graal se fizesse logo, algo misterioso e

    vago. Os continuadores annimos da novela, que iniciaram seu trabalho ainda

    no sculo XII, no acertaram a lhe dar um final congruente, nem digno do

    grande tema criado pelo escritor de Champagne. Inclusive a crtica moderna,

    at a mais recente, debateu-se em engenhosas e, s vezes, fantsticas

    lucubraes sobre o Graal e as intenes de Chrtien de Troyes, o qual morreu

    levando tumba o profundo e secreto de sua novela, do mesmo modo que o

    marinheiro do romance castelhano do conde Arnaldos se joga ao mar sem nos

    dizer sua cano.

    O leitor observar que a ao principal da novela, ou seja, as aventuras

    de Perceval, v-se concorrida, a partir de certo momento, por outra trama muito

    distinta, que tem por heri Gauvain, o sobrinho do rei Artur. Esta dualidade de

    assunto quis explicar o caso do autor pretender contrapor o cavaleiro

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    inexperiente, Perceval, ao cavaleiro veterano, Gauvain. No obstante, h nas

    duas tramas contradies to acusadas que no inverossmil acreditar que

    Chrtien de Troyes, no momento em que lhe surpreendeu a morte, estava

    escrevendo duas novelas muito distintas: uma dedicada a narrar as aventuras

    de Perceval e outra, contar as faanhas de Gauvain; sendo que seus

    rascunhos foram mesclados e absurdamente fundidos por quem os arrumou, a

    fim de lhes dar uma forma, que hoje diramos publicvel, acreditando que

    pertenciam mesma novela. Seja como for, a parte dedicada Gauvain de

    grande beleza e revela a maestria de Chrtien como narrador. Constitui um

    magnfico livro de cavalarias, no qual se destacam episdios to notveis como

    o da Donzela das Mangas Pequenas, de uma delicadeza pouco comum; o do

    Castelo das Rainhas, com seu ambiente de magia e de mistrios; e os da

    Orgulhosa de Logres, que pe prova o cavalheirismo de Gauvain.

    A presente traduo foi feita sobre o texto da edio de William Roach,

    Chrtien de Troyes, Le romn de Perceval, ou Cont du Graal, em "Texte

    littraires franais", Genve-Lille, 1959 (segunda impresso). Em algumas

    passagens me separei de sua leitura, que a do manuscrito T, para ater-me

    na edio crtica de Alfons Hilka, Der Perceval Roman (Le conte do Graal) em

    "Christian von Troyes smtliche erhaltene Werke", V, Halle, 1932. Foi de

    grande utilidade a consulta da prosa de 1530 (editada pela Hilka em apndice)

    e da traduo em prosa francesa moderna de Lucien Foulet, Chrtien de

    Troyes, Perceval de Gallois, ou o Cont du Graal, em "Cent romans

    franais", Paris, 1947. Procurei ser o mais literal que permite a correo

    idiomtica; conservei certas repeties do texto original e as freqentes

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    mudanas de tempos verbais. O leitor no deve esquecer que o que est lendo

    traduo de um relato escrito em versos curtos de rima consoante;

    implicando ao autor ver-se, s vezes, obrigado rodeios um pouco forados

    que, embora no original do sculo XII amoldem-se a uma determinada tcnica

    narrativa, ao converter-se em prosa moderna pode surpreender. A fim de que

    em todo momento se possa comparar minha verso, com o texto de Chrtien

    de Troyes, na parte superior das pginas indico os versos franceses que

    correspondem a seu contedo.

    Martn

    de Riquer

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    Sabem por que diz o Evangelho "esconde os benefcios da sua esquerda"?

    Porque, segundo o relato, a esquerda significa vanglria, que procede de falsa

    hipocrisia. E o que significa a direita? A caridade, que no se envaidece de

    suas boas obras, mas sim se esconde para que s as saiba aquele que se

    chama Deus e caridade. Deus caridade. Quem segundo a Escritura vive em

    caridade, diz So Paulo, e eu o tenho lido, que mora em Deus, e Deus nele.

    Saibam, na verdade, que as ddivas que faz o bom conde Felipe so de

    caridade; nunca fala disso com ningum a no ser com seu bom corao

    generoso, que lhe aconselha obrar bem. No vale, pois, ele mais que

    Alejandro, a quem no lhe importou a caridade, nem nenhum benefcio? Sim,

    no o duvidem. Bem empregado estar, pois, o trabalho de Chrtien, que se

    esfora e trabalha em excesso, por ordem do conde, em rimar o melhor conto

    que foi contado na corte real: o Conto do Graal, sobre o qual o conde lhe

    deu o livro. Ouam como cumpre seu encargo.

    NA ERMA FLORESTA SOLITRIA

    Era o tempo em que as rvores florescem, a erva, o bosque e os prados

    verdes, os pssaros cantam docemente em seu latim pela manh e toda

    criatura se inflama de alegria, quando o filho da Dama Viva se levantou na

    Erma Floresta Solitria, e sem preguia ps a sela em seu corcel, pegou trs

    flechas e saiu assim da morada de sua me. Pensou que iria ver os lavradores

    de sua me, que lhe rastelavam a aveia; tinham doze bois e seis rastros. Assim

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    entrou na floresta. De repente o corao se alegrou nas entranhas pela doura

    do tempo, ao ouvir o canto gostoso dos pssaros: tudo isto lhe agradava. Pela

    benignidade do tempo sereno tirou o freio do corcel e deixou que pastasse pela

    verde erva fresca. Ele, que sabia lanar muito bem as flechas que levava, ia

    em torno, disparando-as ora para trs, ora para frente, ora para baixo, ora para

    cima, at que ouviu, vindo pelo bosque, cinco cavaleiros armados com todas as

    suas armas. Enorme rudo faziam as armas dos que chegavam, pois,

    freqentemente, chocavam-se com os ramos dos carvalhos e dos arranjos. As

    lanas entrechocavam-se com os escudos; as armaduras chiavam; ressonava

    a madeira, ressonava o ferro, tanto dos escudos, como das armaduras.

    (VS. 108-191)

    O moo ouvia e no via os que a ele caminhavam passo a passo, e muito

    assombrado disse:

    Por minha alma! Razo tinha minha me, minha senhora, quando me

    disse que os diabos so as coisas mais feias do mundo; e para me instruirdisse que ante eles terei que benzer-se. Mas, eu desdenharei este ensino e

    no me benzerei de modo algum, antes bem, atacarei em seguida, ao mais

    forte, com uma destas flechas que levo e no se aproximar de mim nenhum

    outro, conforme acredito.

    Deste modo o moo falou para si, antes de v-los. Todavia, quando os viu

    abertamente, assim que o bosque os descobriu, viu as armaduras cintilantes;

    os cascos claros e reluzentes; o branco e o vermelho resplandecerem contra o

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    sol, o ouro, o azul e a prata; pareceu-lhe muito formoso e muito agradvel, e

    disse:

    Ah, senhor Deus, perdo! So anjos os que aqui vejo. Realmente,

    pequei agora muito e obrei muito mal, ao dizer que eram diabos. Contou-me

    uma fbula, minha me, quando me disse que os anjos eram as coisas mais

    belas que existem, exceto Deus, que mais belo que tudo. Aqui, acredito que

    vejo nosso Senhor, pois, contemplo a um to formoso, que os outros, valha-me

    Deus, no tm nem a dcima parte de beleza. Minha mesma me me disse

    que se deve adorar, suplicar e honrar a Deus sobre todas as coisas. Eu

    adorarei a este, e depois a todos os anjos.

    Imediatamente atira-se ao cho e diz todo o credo e as oraes que sabia,

    porque sua me as tinha ensinado. O principal dos cavaleiros, v e diz:

    Fiquem para trs. O moo que vimos, caiu no cho de medo. Se formos

    todos juntos para ele, parece-me que ser tal seu espanto que morrer, e no

    poder responder a nada que perguntemos.

    Todos param e ele se adianta galopando at o moo. Sada-o e o

    tranqiliza dizendo:

    Moo, no tenha medo.

    No o tenho diz o moo, pelo Salvador em quem acredito. So vocs,

    Deus?

    No, a minha f.

    Quem so, pois?

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    Sou um cavaleiro.

    Jamais conheci um cavaleiro responde o moo, nem vi, nem ouvi

    falar nunca de nenhum, mas vocs so mais formosos que Deus. Oxal fosse

    eu assim, to reluzente e feito deste modo!

    Enquanto isso o cavaleiro aproximou-se dele perguntando-lhe:

    Viu hoje, por estas bandas, cinco cavaleiros e trs donzelas?

    Ao moo interessa averiguar e perguntar outras coisas. Com a mo toca a

    lana, agarra-a e lhe diz:

    Bom senhor amvel, voc que o chamam cavaleiro, o que isto que

    leva?

    (VS. 192-265)

    - Agora sim...Parece que vou por bom caminho! responde o cavaleiro.

    Eu que pensei, meu doce amigo, saber novas de ti, e as quer ouvir de mim.

    J lhe direi: isto minha lana.

    - Dizem que se lana disse ele como eu fao com minhas flechas?

    - No, moo. muito tolo! Ataca-se com ela sem solt-la.

    Assim, pois, vale mais uma destas trs flechas que vem aqui, porque

    sempre que quero com elas mato pssaros e animais a meu prazer, e os mato

    de to longe como se poderia fazer com uma lana.

    Moo, isto no me importa nada. Mas, responda-me sobre os cavaleiros.

    Diga-me se souber, onde esto e se viu as donzelas.

    O moo agarra a ponta do escudo e lhe diz francamente:

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    -O que isto e do que lhes serve?

    -Moo diz ele isto uma brincadeira. Leva-me questes distintas

    das quais eu peo e pergunto. Eu supunha, assim Deus me prospere, que

    voc me daria novas em vez de que as soubesse de mim, e voc quer que

    lhe d isso. Como , eu lhe direi isso, pois eu gosto de agradar. Isto que

    levo se chama escudo.

    -Chama-se escudo?

    - Sim diz ele, e no devo desprez-lo porque me to fiel que, se

    algum lana ou dispara sobre mim, interpe-se a todos os golpes. Este o

    servio que me faz.

    Entretanto, os que estavam atrs vieram a toda corrida para seu senhor, e

    lhe disseram pouco tempo depois:

    Senhor, o que lhe diz este gauls?

    Desconhece as maneiras disse o senhor, assim Deus me perdoe,

    pois, nada do que lhe perguntei respondeu direito nenhuma s vez, mas sim

    pergunta como se chama tudo o que v e o que se faz com isso.

    Senhor, saiba de uma vez para sempre, que os gauleses so, por

    natureza, mais tolos que as bestas que pastam, e este como uma besta.

    ignorante quem se detm com ele, seno quer entreter-se com bobagens e

    gastar o tempo em tolices.

    No sei diz ele, mas, assim seja Deus, com tanto que me ponha no

    caminho lhe direi tudo o que queira saber; de outro modo no partirei.

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    Logo, pergunta-lhe uma vez mais:

    Moo, apesar dos pesares, diga-me dos cinco cavaleiros e tambm se

    hoje encontrou, ou viu as donzelas.

    O moo pega pela armadura e estica-a.

    Diga-me agora disse ele , bom senhor, o que isso que tm vestido?

    Moo, no sabe?

    No sei.

    Moo, minha armadura, e to pesada como o ferro.

    de ferro?

    Bem o pode ver.

    (VS. 266-345)

    No sei nada disto disse ele, mas muito bela, valha-me Deus. O

    que fazem com ela e do que lhes serve?

    Moo, muito simples de explicar. Se fosse me atirar um dardo, ou me

    lanar uma flecha, no me faria nenhum dano.

    Senhor cavaleiro, de tais armaduras preserve Deus, s coras e aos

    cervos, pois no poderia matar a nenhum nem correria nunca mais atrs deles.

    O cavaleiro replicou:

    Moo, valha-o Deus, pode me dar novas dos cavaleiros e das donzelas?

    Ele, que tinha muito pouco critrio, disse-lhe:

    Nasceram assim?

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    No, moo, impossvel que algum possa nascer assim.

    Quem, pois, embelezou-lhes desta sorte?

    Moo, eu te direi quem.

    Diga, pois.

    Com muito prazer. Ainda no se cumpriram cinco anos em que o rei

    Artur, armou-me cavaleiro, deu-me toda esta guarnio. E agora me diga de

    uma vez, o que foi feito dos cavaleiros, que passaram por aqui, levando as trs

    donzelas. Iam passeando ou fugiam?

    Ele disse:

    Senhor, olhe para o bosque mais alto que rodeia aquela montanha. Ali

    esto os desfiladeiros de Valbona.

    Bem, o que, bom irmo?

    Ali esto os lavradores de minha me, que semeiam e aram suas terras.

    Se esta gente passou por ali e eles viram, dir-lhes-o isso.

    Respondem-lhe que iro com ele, se os guiar, aos quais rastelam a aveia.

    O moo monta em seu corcel e vai onde os lavradores rastelavam as terras

    aradas, nas quais semearam a aveia. Assim que viram seu senhor ficaram

    tremendo de medo. Sabem por que razo? Porque viram que com ele vinham

    cavaleiros armados. Sabiam bem que se lhes perguntassem por seu ofcio e de

    sua condio, eles queriam ser cavaleiro; sua me perderia o juzo, pois queria

    evitar que vissem cavaleiros e se inteirassem nesse ofcio. O moo disse aos

    trabalhadores:

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    21/209

    Viram passar por aqui cinco cavaleiros e trs donzelas?

    Em todo o dia de hoje passearam por estes desfiladeiros respondem os

    trabalhadores.

    O moo disse ao cavaleiro que tinha falado tanto com ele:

    Senhor, os cavaleiros e as donzelas passaram por aqui; mas, agora me

    fale mais do rei que faz cavaleiros, e do lugar onde ele est com mais

    freqncia.

    Moo respondeu ele, direi que o rei mora em Carduel. Ainda no

    passaram cinco dias que ele residia ali, pois, eu estive l e o vi. Seno o

    encontrar ali, haver quem indique aonde se encaminhou. Mas, agora rogo que

    me diga com que nome devo chama-lo.

    (vs. 346-422)

    - Senhor disse ele , j lhes direi isso: eu me chamo "bom filho".

    - "Bom filho"? Suponho que tem algum outro nome.

    Senhor, a minha f, meu nome "bom irmo".

    Acredito. Bem, mas se quer saber a verdade, queria saber seu nome

    verdadeiro.

    - Senhor disse ele , posso dizer isso bem, porque meu verdadeiro

    nome "bom senhor".

    - Valha-me Deus! um bom nome. Tem algum mais?

    -No, senhor, jamais tive outro algum.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    22/209

    - Valha-me Deus! Ouvi as coisas mais surpreendentes que jamais ouvi e

    que nunca penso ouvir.

    Imediatamente o cavaleiro parte galopando, pois, tinha pressa em reunir-se

    com os outros. O moo no demonstrava pressa em voltar para sua morada,

    onde sua me tinha o corao enfermo e escurecido por sua demora. Assim

    que o v, experimenta grande alegria, no pode escond-la, porque, como me

    que muito o quer, corre para ele e lhe chama "Bom filho, bom filho!", mais de

    cem vezes:

    Bom filho, meu corao esteve muito torturado por sua demora. A dor

    me afligiu tanto, que por pouco morro. Onde esteve hoje tanto tempo?

    Onde, senhora? J lhe direi isso, sem mentir em nada, pois tive grande

    alegria por uma coisa que vi. Me, no costumava dizer que os anjos e

    Deus Nosso Senhor, so to formosos que jamais a natureza criou to

    formosas criaturas, nem h nada to belo no mundo?

    - Bom filho, e lhe digo isso outra vez; digo-lhe isso, porque verdade e lherepito isso.

    - Cale-se, me! Acaso no acabo de ver as coisas mais formosas que

    existem, que vo pela Erma Floresta? Imagino que so mais formosos do

    que Deus e todos os seus anjos.

    A me toma-o em seus braos e lhe diz:

    - Bom filho, a Deus o encomendo, pois, sinto grande temor por ti. Voc viu,

    penso, aos anjos dos que a gente se lamenta, que matam tudo que

    alcanam.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    23/209

    - No, me, no, no isto! Dizem que se chamam cavaleiros.

    Ao ouvir pronunciar a palavra cavaleiros a me deprime-se; e assim que

    se reps, disse como mulher aflita:

    (VS. 423-521)

    Ai, desventurada, que infeliz sou! Doce bom filho, queria lhe

    preservar de ouvir falar de cavalaria e de que visse algum destes. Tivesse sido

    cavaleiro, bom filho, se tivesse agradado ao Nosso Senhor que seu pai velasse

    por voc e por seus amigos. Em todas as ilhas do mar no houve cavaleiro de

    to alto mrito, nem to temido, nem aterrador, bom filho, como foi seu pai.

    Bom filho, pode se orgulhar de que no desmentem em nada sua linhagem,

    nem a minha, pois, eu procedo dos melhores cavaleiros desta comarca. Em

    meus tempos no houve linhagem melhor que as minhas nas ilhas do mar;

    mas os melhores decaram, e se viu em muitas ocasies, que as desditas

    ocorrem aos nobres que se mantm em grande honra e em dignidade.

    Maldade, vergonha e preguia no decaem, pois no podem, mas aos bons osdeixam decair. Seu pai, se no sabe, foi ferido no meio das pernas, de sorte

    que seu corpo ficou aleijado. As grandes terras e os grandes tesouros que

    como homem principal tinha, perderam-se completamente, e caiu em grande

    pobreza. Empobrecidos, deserdados e arruinados foram injustamente os gentis

    homens depois da morte de Uter Pendragon, que foi rei e pai do bom rei Artur.

    As terras foram devastadas e os pobres abatidos, fugiu o que pde fugir. Seu

    pai tinha esta morada nesta Erma Floresta; no pde fugir. Apressadamente,

    trouxeram-no aqui em um beliche, pois, no sabia outro local no qual se

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    24/209

    refugiar. Voc era pequeno, e tinha dois formosos irmos; tambm pequenos,

    um menino de peito, tinha pouco mais de dois anos. Quando seus dois irmos

    eram maiores, com a licena e conselho de seu pai foram corte real para

    conseguir armas e cavalos. O maior foi ao rei de Escavaln, e o serve tanto

    que foi armado cavaleiro. O outro, que era menor, foi ao rei Ban de Gomeret.

    Ambos os moos foram consagrados cavaleiros no mesmo dia. No mesmo dia

    retornariam para casa, porque queriam dar alegria a mim e a seu pai, que j

    no os viu mais, pois, foram vencidos pelas armas. Pelas armas ambos foram

    mortos, pelo que eu senti grande dor e grande pena. Do maior chegaram novas

    terrveis: os corvos e as gralhas lhe arrebentaram os olhos; assim encontraram-

    no morto. Pela dor do filho morreu seu pai, e eu sofri vida muito amarga desde

    que ele morreu. Vocs eram todo o consolo e todo o bem que eu tinha, nunca

    ficava sem os meus. Deus s me deixou voc para que estivesse alegre e

    contente.

    O moo escuta muito pouco o que sua me vai dizendo.

    D-me de comer diz; no sei do que me fala. Com muito gosto iria

    ao rei que faz cavaleiros; e eu irei, que pese a quem pesar.

    A me o retm e o cuida tanto como lhe possvel. Prepara e

    confecciona uma grossa camisa de cnhamo e calas guisa de Gales; onde

    se fazem, conforme acredito, calas e meias de uma pea; e uma capa com

    capuz, de pele de cervo, fechada ao redor. Assim o equipou a me. S trs

    dias o reteve, pois, para mais no foram eficazes suas adulaes. Ento, sentiu

    a me uma estranha dor; beijou-o e o abraou chorando e lhe disse:

    (VS. 522-613)

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    25/209

    Agora sinto uma dor muito grande, bom filho, quando o vejo partir. V a

    corte do rei e diga-lhe que lhe d armas. No haver nenhum inconveniente,

    pois, bem sei que dar. Todavia, quando chegar o momento de levar as armas,

    o que ocorrer ento? Como poder dar conta, ao que jamais fizera, nem vira

    fazer a outros? Realmente, temo que mal. Entretanto, ser pouco destro,

    parece-me, porque no de admirar, que no se saiba, o que no se

    aprendeu; o admirvel que no se aprenda o que v e ouve freqentemente.

    Bom filho, quero lhe dar um conselho que deve compreender muito bem, e, se

    lhe agrada record-lo, poder lhe chegar grande bem. Filho, se agradar a

    Deus, e eu assim acredito, dentro em pouco, ser cavaleiro. Perto ou longe se

    encontrar dama que tenha necessidade de amparo, ou donzela desconsolada;

    preste-lhe sua ajuda, se ela lhe requerer isso, pois toda a honra radica nisso.

    Quem no rende honra s damas, sua honra deve estar morta. Sirva damas

    e donzelas, e ser honrado em toda parte; mas, se zangar alguma, no guarde

    nada que lhe desagrade. Muito consegue de donzela quem a beija. Se lhe

    consente que a beije, eu lhe probo o resto, se por mim quer deix-lo. Se ela

    tiver anel no dedo, ou caritativa em seu cinturo; e por amor ou por rogo lhe der

    isso, parecer bom e gentil que leve seu anel. Dou-lhe permisso para tomar o

    anel e a caritativa. Bom filho, quero lhe dizer algo mais: nem a caminho, nem

    em estalagem, no tenha por muito tempo companheiro sem lhe perguntar seu

    nome; e saiba, em resoluo, que pelo nome se conhece homem. Bom filho,

    converse-se com os mestres e esteja em sua companhia; os mestres no

    aconselham mal nunca os quais tm ao seu lado. Rogo, sobretudo, que reze a

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    26/209

    Nosso Senhor em igreja e em monastrio, para que lhe d honra neste sculo

    e permita-lhe comportar de tal sorte que chegue a bom fim.

    Senhora disse ele , o que igreja?

    Filho, ali onde se faz o servio de Deus, Aquele que fez cu e terra; e ps

    nela homens e mulheres.

    E o que monastrio?

    Filho, o mesmo: uma casa formosa e muito santa na qual h corpos de

    Santos e tesouros; ali se sacrifica o corpo de Jesus Cristo, o santo profeta, a

    quem os judeus fizeram tantos insultos. Foi trado e julgado injustamente;

    sofreu angstias de morte pelos homens e pelas mulheres; pois, as almas vo

    para o inferno quando se separavam dos corpos, e Ele as resgatou dali. Foi

    preso um poste, aoitado, sacrificado; e levou uma coroa de espinhos. Para

    ouvir missa, oraes e para adorar a este Senhor lhe aconselho a ir ao

    monastrio.

    Irei, pois, de muito bom grado s Igrejas e aos monastrios disse o

    moo de agora em diante. Assim lhe prometo isso.

    Ento j no se entretm mais; despede-se e a me chora. A sela j

    estava posta. Ia vestido maneira e guisa do Gales; levava nos ps calados

    com adorno, e por toda parte onde ia, estava acostumado a levar trs flechas.

    Quis faz-lo, mas, sua me lhe fez deixar duas, para que no parecesse muito

    gauls, e, se pudesse, com muito prazer lhe faria desprender-se das trs.

    Levava uma vara na mo direita para fustigar o cavalo.

    (VS. 614-695)

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    27/209

    A me, que tanto o amava, chorando beija-o. Ao separar-se dele, roga a

    Deus que o encaminhe.

    Bom filho disse ela, Deus lhe guie, e onde quer que v, d-lhe

    mais gozo do que para o que fica.

    Quando o moo se afastou j a pouca distncia olhou para trs; viu sua

    me de cabea baixa sobre a ponte; estava desvanecida como se tivesse

    morta de cansao. Ele fustiga com a vara a garupa do cavalo, o qual parte,

    sem tropear, e o leva a galope pela grande floresta escura. Cavalgou da

    manh at que declinou o dia. Aquela noite dormiu no bosque at que

    amanheceu o claro dia.

    A DONZELA DA TENDA

    Pela manh, com o canto dos pssaros, levantou-se o moo. Montou e

    cavalgou at que viu uma tenda levantada em uma bela pradaria, perto do

    arroio de uma fonte pequena. A tenda era maravilhosamente formosa: uma

    metade era vermelha e a outra bordada de orifrs, em cima havia uma guia

    dourada. O sol, claro e avermelhado, batia na guia, reluzindo todos os

    campos pelo resplendor da tenda. Ao redor dela, que era a mais formosa do

    mundo, havia cabanas de ramos e folhas; e se levantaram choas gaulesas. O

    moo foi para a tenda, e disse antes de chegar:

    Deus, agora vejo sua casa. Obraria com menosprezo se no o

    adorasse. Realmente teve razo minha me ao me dizer que monastrio era a

    coisa mais formosa que existe; e acrescentou que, sempre que encontrasse

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    28/209

    um monastrio, entrasse para adorar ao Criador em quem acredito. Com f

    pedir-lhe-ei que me d hoje de comer, que o necessitarei muito.

    Logo vai loja a qual encontra aberta; v no meio uma cama coberta

    com uma colcha de seda; e na cama estava deitada, sozinha, uma donzela

    dormindo. Seu acompanhante estava no bosque, aonde fora colher flores

    frescas com as quais queria atapetar a loja, como estava acostumado a faz-lo.

    Quando o moo entrou, seu cavalo soprou to forte que a donzela o

    ouviu e despertou estremecida. O moo, que era simples, disse-lhe:

    Donzela, saudao! Como minha me me ensinou a faz-lo. Minha

    me me aconselhou e recomendou que saudasse s donzelas em qualquer

    lugar que as encontrasse.

    A donzela treme de medo pelo moo, que lhe parece bobo, e se tem por

    loucura comprovada porque a encontrou sozinha.

    Moo diz ela, segue seu caminho. Foge, antes de que meu

    amigo o veja.

    Antes lhe beijarei, por minha cabea diz o moo, pese a quem

    pesar, pois minha me me recomendou isso.

    (VS. 696-783)

    Eu no o beijarei disse a donzela, se posso evit-lo. Foge, para

    que meu amigo no o encontre aqui, porque seno o matar.

    O moo, que tinha os braos fortes, abraou-a muito simples, pois no

    soube faz-lo de outro modo. Colocou-a debaixo dele toda estendida, ela se

    defendeu muito e revolveu-se quanto pde; mas no adiantou de nada, pois o

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    29/209

    moo violentamente, tanto se ela o queria como se no, beijou-a sete vezes,

    conforme diz o conto, at que viu em seu dedo um anel com uma esmeralda

    muito clara.

    Tambm me disse minha me acrescentou ele, que tomasse o

    anel de seu dedo, e que no lhe fizesse nada mais. D-me o anel, que o quero!

    De modo algum ter meu anel disse a donzela , sabe-o bem,

    seno me arrancar do dedo a fora.

    O moo agarra a mo a fora, estende o dedo, tira-lhe o anel e o pe no

    seu, e diz:

    Donzela, passe bem. Agora partirei bem pago, e muito melhor beijar

    voc do que a quaisquer garonetes da casa de minha me, pois no tem a

    boca amarga.

    E ela chora e diz:

    Moo, no leve meu anel. Por isso eu seria maltratada e voc, cedo

    ou tarde, perderia a vida, asseguro-lhe isso.

    Ao moo no lhe chega ao corao nada do que ouve; mas como

    estava em jejum morria penosamente de fome. Encontra uma garrafa cheia de

    vinho e a seu lado um copo de prata, e v sobre um feixe de junco um

    guardanapo branco e novo. Levanta-o e debaixo encontra trs bons bolos de

    coisa tenra, e no lhe desagrada tal manjar. Pela fome que fortemente lhe

    angustia parte um dos bolos e o come com grande apetite; na taa de prata

    verte vinho, que no era mau, e o bebe com freqentes e longos goles; e diz:

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    Donzela, estes bolos no sero hoje consumidos por mim. Venha

    comer, que so muito bons. Cada um ter bastante para si e ainda sobrar um

    inteiro.

    Enquanto isso ela chora, e por muito que ele a negue e exorte, no lhe

    responde nenhuma palavra, mas sim chora mais ainda e retorce as mos com

    muita dureza. Ele comeu tanto quanto, bebeu at ficar satisfeito, tampou o que

    sobrava e se despediu imediatamente, encomendando a Deus aquela a quem

    no gostou de sua saudao:

    Deus lhe guarde disse, formosa amiga; mas, por Deus, no se

    aborrea que leve seu anel, pois antes de que eu mora de morte lhe

    recompensarei isso. Vou com sua licena.

    Ela chora e diz que no o recomendar a Deus, pois por sua culpa ter

    mais vergonha e mais falta de sorte que jamais teve nenhuma desgraada; e

    enquanto viva no ter socorro, nem ajuda; que saiba bem, que a traiu.

    Ela ficou assim chorando, e no passou muito tempo seu amigo voltou

    do bosque; viu os rastros do moo, que seguia seu caminho, e isso lhe

    indignou. Ao encontrar chorando sua amiga, disse-lhe.

    (VS. 784-864)

    Senhora; acredito, pelos sinais que vejo, que aqui esteve um

    cavaleiro.

    No, senhor, asseguro-lhe isso; esteve um moo de Gales, irritante,

    vilo e tolo, que bebeu tanto vinho seu como lhe agradou e comeu seus trs

    bolos.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    E por isso chora, formosa? Queria que o tivesse bebido e comido

    tudo.

    H algo mais, senhor disse ela. Est em jogo meu anel, que me

    tirou e o leva. Preferiria estar morta do que o tivesse levado assim.

    Aqui ele se turva, com o corao angustiado e diz:

    Por minha f, isto um ultraje. Desde o momento que o leva e que fique.

    Porm, acredito que ter feito algo mais. Se houve algo mais, no o esconda.

    Senhor disse ela, beijou-me.

    Beijou-lhe?

    Seriamente, j lhe digo isso. Mas foi contra minha vontade.

    Ao contrrio: vocs gostaram e voc cedeu; no encontrou nisso

    oposio alguma responde aquele a quem o cimes tortura. Pensa que

    no lhe conheo? Sim, certo; conheo-lhe bem. No sou to tonto, nem to

    vesgo, que no veja sua falsidade. Entrou em mau caminho, em m desdita:

    seu cavalo no comer aveia, ser sangrado at que eu me vingue. E quando

    perder as ferraduras, no voltar a ser ferrado; e se morrer, seguir-me-o a p.

    Jamais trocaro as roupas as quais vestem, me seguir a p e nua at que lhe

    tenha talhado a cabea. Esta ser minha justia.

    E ento sentou e comeu.

    NA CORTE DO REI ARTUR

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    32/209

    O moo cavalgou at que viu um carvoeiro, que levava um asno adiante, e

    lhe disse:

    Campons que leva um asno adiante, ensina-me o caminho mais reto

    para ir ao Carduel. Quero ver o rei Artur, o qual dizem que ali faz cavaleiros.

    Moo responde-lhe nesta direo h um castelo edificado ao

    lado do mar. Se voc for a este castelo, doce bom amigo, encontrar ao rei

    Artur alegre e triste.

    Agora satisfar meu desejo me dizendo por que o rei tem alegria e

    tristeza.

    Direi isso em seguida responde-lhe. O rei Artur, com toda sua

    hoste, lutou com o rei Rin. O rei das ilhas foi vencido e, por isso, o rei Artur

    est alegre; mas est zangado com seus companheiros que partiram de seu

    castelo, onde vivem mais amplamente, e no sabe o que deles; e esta a

    tristeza que tem o rei.

    O moo no aprecia as novas artimanhas dadas pelo carvoeiro;

    encaminhando-se na direo indicada, at que ao lado do mar viu um castelo

    muito bem situado, forte e formoso.

    (VS. 865-951)

    E v sair pela porta um cavaleiro armado que levava uma taa de ouro na

    mo; com a esquerda sujeitava a lana, o freio e o escudo, e na direita levava a

    taa de ouro. Assentavam-lhe muito bem as armas, que eram todas vermelhas.

    O moo viu aquelas armas to belas, que eram muito novas, gostou e se disse:

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    33/209

    Com minha f, as pedirei ao rei; se me der, estarei muito bem, e

    maldito seja quem procura outras.

    Corre para o castelo, pois est impaciente para chegar a corte; mas quando

    passa ao lado do cavaleiro, este o reteve um momento e pergunta:

    Aonde vai, moo? Diga-me.

    Vou corte responde para pedir ao rei estas armas.

    Moo disse o cavaleiro, far muito bem; vem, pois, em seguida, e

    volta. E dir ao malvado rei que se quer ter sua terra sujeita a meu senhorio,

    que me entregue isso, ou que envie quem a defenda contra mim, afirmo que

    minha. E acreditar quando lhe disser que recentemente lhe tirei esta taa que

    levo com todo o vinho que bebia.

    Que se busque outro mensageiro, porque este no entendeu nenhuma

    palavra. No parou at a corte, onde o rei e os cavaleiros estavam sentados

    para comer. A sala estava ao mesmo nvel terra, pavimentada, e era to larga

    como longa, e o moo entrou nela a cavalo. O rei Artur estava sentado

    pensativo cabeceira da mesa, e todos os cavaleiros riam e brincavam uns

    com outros, salvo ele, que estava pensativo e mudo. O moo se adianta sem

    saber a quem saudar, porque no conhece o rei, e para ele vai Yonet, que

    levava uma faca na mo, ao que diz:

    Vassalo, voc que vem aqui levando uma faca na mo, ensina-me quem

    o rei.

    Yonet, que era muito corts, responde-lhe:

    Amigo, veja ali.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    34/209

    Ele em seguida foi para ele e o saudou como soube. O rei, pensativo, no

    lhe disse uma palavra, e ele outra vez o interpelou; o rei continua muito

    pensativo e no pronuncia palavra.

    A minha f disse o moo ento, este rei no fez jamais nenhum

    cavaleiro. Como poderia fazer cavaleiros se no lhe pode tirar nenhuma

    palavra?

    Ento se dispe a partir e fez dar a volta a cabea de seu corcel; mas,

    como homem de pouco julgamento, to perto do rei o tinha conduzido, que

    diante dele, e isso no fbula, atirou-lhe sobre a mesa um chapu de feltro

    que levava. O rei volta para o moo a cabea, que tinha inclinada, e

    abandonando toda sua preocupao, diz-lhe:

    Bom irmo, seja bem vindo. Rogo que no leve a mal que no tenha

    respondido a sua saudao; no lhe pude responder por desgosto; pois o pior

    inimigo que tenho, quem mais me odeia e mais me consterna, veio disputar

    minha terra; e to nscio que diz que, queira ou no, a possuir toda,

    livremente. Chama-se o cavaleiro Vermelho da Floresta de Quinqueroi. A

    rainha veio sentar-se aqui, diante de mim, para consolar e ver os cavaleiros

    feridos. No estivesse indignado com o muito que o cavaleiro disse, ainda

    diante de mim agarrou minha taa e a levantou to nscio que derramou sobre

    a rainha todo o vinho que continha. Foi isso um insulto to feio e to vil que a

    rainha, inflamada de clera e de indignao, encerrou-se em sua cmara, onde

    morre; e no acredito, Deus me perdoe, que saia viva disso.

    (VS. 952-1038)

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    35/209

    Ao moo no importa nada o que o rei diz e conta, nem sua dor, nem sua

    afronta, e tanto faz sua mulher. Diz:

    Faa-me cavaleiro, senhor rei, que quero partir.

    Claros estavam os olhos na face do moo selvagem de arma. Ao

    contempl-lo ningum o teria por sensato, mas todos os que o viam o

    consideravam formoso e galhardo.

    Amigo disse o rei, desmonte e d seu corcel a um pajem, que o

    guardar e far seu gosto. Dentro de pouco ser cavaleiro, para minha honra e

    seu proveito.

    E o moo responde:

    No foram desmontados aqueles que encontrei por estas bandas, e

    vocs querem que eu desmonte. No desmontarei, por minha cabea. Mas,

    apresse-se, tenho que ir.

    Ah! disse o rei, bom amigo amvel, farei com muito gosto para

    seu proveito e para minha honra.

    Pela f que devo ao Criador disse o moo, bom senhor rei, em

    meus dias serei cavaleiro se no for cavaleiro vermelho. D-me as armas

    iguais as daquele que leva sua taa de ouro, o qual encontrei diante da porta.

    O mordomo, que estava ferido, e que se zangou pelo que tinha ouvido,

    disse:

    Amigo, justo. Vai agora mesmo pegar as armas porque so suas. No

    procedeu como parvo quando veio aqui em busca disto.

    O rei ao ouvi-lo, indignou-se e disse ao Keu:

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

    36/209

    Muito injustamente zomba deste moo; isso uma grande mcula em um

    mestre. Porque se o moo simples, isso deve-se: se for nobre, sua

    educao, a qual teve um mau professor, e ainda pode chegar a ser um digno

    vassalo. vilania burlar-se de outro e prometer sem dar. O mestre no deve

    prometer a outro nada que no possa, ou no queira lhe dar, pois ganharia a

    m vontade de quem, sem lhe prometer nada, seu amigo; e desde que o

    prometeu, aspira ter a promessa. Saibam, portanto, que prefervel negar uma

    coisa que faz-la esperar em vo. Para falar a verdade, de si mesmo se burla;

    a si mesmo engana, quem faz uma promessa e no cumpre, e aliena o corao

    de seu amigo.

    (VS. 1039-1123)

    Assim falava o rei ao Keu; e ao moo que partia vinha uma donzela,

    formosa e gentil avisando-o e sorrindo diz o seguinte:

    Moo, se viver longo tempo, penso e acredito no interior de meu

    corao que em todo mundo no existir, nem haver, nem se conhecermelhor cavaleiro que voc; assim o penso, estimo e acredito.

    A donzela no sorria desde h mais de seis anos e disse to alto que

    todos ouviram. Keu, a quem tais palavras zangaram muito, saltou e com a

    palma lhe deu um bofeto to rude na tenra cara, que a fez cair no cho.

    Depois de esbofetear a donzela encontrou, junto a uma chamin, um bufo, e

    com indignao e clera, deu um chute no fogo ardente, j que este bufo

    estava acostumado a dizer: "Esta donzela no sorrir at que veja aquele que

    alcanar todo o senhorio da cavalaria."

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    E assim, enquanto ele grita e ela chora, o moo no se entretm e parte,

    sem conselho de ningum, atrs do Cavaleiro Vermelho.

    LUTA COM O CAVALEIRO VERMELHO

    Yonet, conhecia os melhores atalhos e com muito prazer levava novas

    corte. Ia sozinho por um jardim que havia ao lado da sala e saia por uma porta

    at que chegou diretamente ao caminho no qual o cavaleiro esperava cavalaria

    e aventura.

    O moo chegou para ele com grande pressa para lhe tirar suas armas; e o

    cavaleiro, pela espera, tinha deixado a taa de ouro em um degrau de rocha

    grantica. Quando estava prximo o suficiente para que pudesse ouvir, o moo

    gritou:

    Deixe suas armas. J no as levar mais, porque o rei Artur lhe

    manda isso.

    E o cavaleiro lhe pergunta:

    Moo, vem algum aqui para manter o direito do rei? Se vem algum,

    no me esconda isso.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    Como, diabo! Est zombando de mim, senhor cavaleiro, que ainda

    no tirei as armas? Tire-as! isso o que mando.

    Moo responde ele, eu pergunto se vem algum da parte do rei

    que queira combater comigo.

    Senhor cavaleiro, tire as armas. Que no tenha que ser eu quem as

    estorve, pois no tolero que as tenha mais. Saiba que lhe atacarei se me fizer

    falar mais.

    Ento o cavaleiro se irritou; levantou com as duas mos a lana e, pela

    ponta que no tinha ferro, deu-lhe tal golpe ao longo das costas, que o fez

    agachar-se at o pescoo do cavalo. O moo se encolerizou ao sentir-se ferido

    pelo golpe que tinha recebido; aponta o melhor que sabe no olho do cavaleiro e

    atira-lhe o dardo, sem adverti-lo, nem ouvi-lo, do meio do olho lhe atravessou

    at o crebro, de modo que pela nuca escorria sangue e os miolos. Pela dor o

    corao parou. Inclina-se e cai estirado ao cho.

    (VS. 1124-1217)

    O moo desmonta, deixa a lana de lado e tira-lhe o escudo do pescoo.

    Todavia, no sabe como arrumar-lhe com o elmo que leva na cabea, pois

    ignora como separ-lo. Tem vontade de descer-lhe a espada; porm, no sabe

    como faz-lo, nem consegue tirar da bainha que leva a arma. Agarra, sacode e

    estira.

    Yonet, ao v-lo em tais apuros, fica rindo e lhe diz:

    O que isto, amigo? O que faz?

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    No sei. Pensei que seu rei me tinha dado estas armas. Todavia, antes

    conseguirei esquartejar ao morto para fazer chuletas, do que levar uma de

    suas armas; pois, esto to pregadas ao corpo, o de dentro est to unido ao

    de fora, parecendo-me que so tudo um s.

    No se preocupe com nada, pois eu as separarei muito bem, se quiser

    disse Yonet.

    Faa logo, pois respondeu o moo, e me d isso imediatamente.

    Yonet pe mos obra e o descala at a junta; no deixou no corpo

    nenhum armamento ou proteo, nem elmo na cabea, nem nenhuma outra

    armadura.

    Entretanto, o moo no quer tirar a vestimenta, por mais que Yonet o

    diga, prefere deixar uma cmoda capa de tecido de seda felpuda, a qual o

    cavaleiro vestia debaixo da armadura, quando estava vivo. Nem autoriza que

    tire as botas que cala. Replica:

    Diabo! Que brincadeira esta? Trocaria minhas boas roupas, queminha me me fez outro dia, pelas deste cavaleiro? Minha grossa camisa de

    cnhamo pela sua, que sutil e delicada? Queria que trocasse meu couro, que

    no penetra gua, por este, que no suportaria nenhuma gota? Maldito seja o

    cangote de quem, agora e sempre, troque suas boas vestimentas por outras

    to ms.

    Dura tarefa instruir a um nscio. Por mais rogos que lhe faam, s

    quer ficar com as armas. Yonet ata os armamentos e sobre as botas cala as

    esporas. Depois observou a armadura: era tal qual nunca houve outra melhor;

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    sobre a touca coloca o elmo, que lhe assentou muito bem. Ensina-lhe rodear a

    espada folgada e pendente, logo aps pe o p no estribo e monta no corcel.

    Jamais tinha visto estribos, quanto s esporas, s conhecia o ltego e a vara.

    Yonet lhe traz o escudo e a lana dando-os e, antes que se v, o moo lhe diz:

    Amigo, tome meu corcel e leve-o, muito bom e lhe dou porque j no

    o necessito mais. Leve ao rei sua taa e sadem-no de minha parte. Diga

    donzela que Keu pegou na bochecha, que se puder, antes de morrer, penso

    surrar quele banana, de tal modo, que ela se considerar vingada.

    Ele responde que devolver ao rei sua taa e transmitir a mensagem

    entendida. E assim separam-se e segue cada um para um lado.

    Yonet entra pela porta da sala onde esto os bares, entrega ao rei sua

    taa e lhe diz:

    Senhor, alegre-se, pois, o seu cavaleiro que esteve aqui, devolve-lhe sua

    taa.

    De que cavaleiro me fala?

    (VS. 1218-1304)

    Responde Yonet:

    Daquele que a pouco saiu daqui.

    Refere-se ao moo gauls diz o rei que me pediu as armas na

    reunio em nosso acampamento, daquele cavaleiro que voc fez tantos

    insultos quanto pde?

    Refiro-me a ele, senhor, verdadeiramente.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    E como conseguiu minha taa? Ama-o e aprecia-o tanto, que

    amavelmente a deu?

    Ao contrrio, o moo pagou to caro, que morreu.

    E como foi isto, bom amigo?

    Senhor, no sei. Mas, vi que o cavaleiro o golpeou com a lana,

    zangando-o muito. O moo por sua vez deu com um dardo na viseira, de modo

    que lhe fez sair o sangue por detrs, derramando o crebro e deu com ele em

    terra.

    Ento disse o rei ao mordomo:

    Ah, Keu, que mal obrastes hoje! Por culpa de sua injuriosa lngua, proferiu

    tantas inconvenincias, arrebatando o moo que hoje tanto me ajudou.

    Senhor disse Yonet ao rei, por minha cabea: ele manda dizer por

    mim donzela da rainha que Keu golpeou por despeito, por averso e dio a

    ele, que a vingar, se encontrar ocasio para isso.

    Quando o bufo, que estava sentado ao lado do fogo, ouviu estas

    palavras, ficou em p e muito contente foi ante o rei, com tanta alegria que

    saltava e saltava, e disse:

    Senhor rei, assim Deus me salve, agora se aproximam nossas

    aventuras. Com freqncia as vero dolorosas e duras. E eu lhes prognostico

    que Keu pode estar seguro de que em m hora viu seus ps, suas mos, sua

    lngua nscia e vil; pois, antes de que transcorra uma quinzena, o cavaleiro

    ter vingado o chute que me deu, ser bem devolvida, comprada e paga cara,

    a bofetada que deu donzela, porque lhe quebrar o brao direito entre o

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    cotovelo e o sovaco. Meio ano o ter pendurado do pescoo, muito justo e

    to certo que obrar assim quanto tem que morrer.

    Tanto arderam estas palavras ao Keu que por pouco arrebenta de

    indignao e de clera, por pouco esteve de maltrat-lo diante de todos at

    mat-lo. Mas no o atacou porque desagradaria ao rei, o qual disse:

    Ai, ai, Keu, quanto me zangou hoje! Se algum tivesse dirigido e

    adestrado nas armas ao moo, de modo que tivesse aprendido um pouco a

    servir do escudo e da lana, tnhamos, sem dvida alguma, um bom cavaleiro;

    mas no sabe de armas, nem de nenhuma outra coisa, nem pouco, nem muito;

    nem sequer saber desembainhar a espada se o precisar. Agora vai armado

    em seu cavalo, se encontrar algum vassalo que, para ficar com suas arreios,

    no duvidar em aleij-lo. Logo o matar, ou o aleijar, pois, no saber

    defender-se, de to simples e bruto como , e facilmente perder a partida.

    Assim o rei lamenta e deplora ao moo tendo o rosto entristecido. Todavia,

    como no pudia reparar nada, deixa de continuar falando.

    COM O GORNEMANT DE GOORT

    (VS. 1305-1389)

    O moo sem demora vai cavalgando pela floresta, at que chega numa

    terra plana; pela qual discorre um rio que, em suas partes mais largas, tem um

    campo suspenso; e na extenso do leito se acumulou toda a gua. Atravessa

    toda uma pradaria para o grande rio que ressona. Todavia, no entrou na gua

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    porque a viu muito veloz e negra; mais profunda que a de Loira. Segue ao

    longo da borda, perto de uma grande rocha viva, sobre a qual, um declive

    descia por volta do mar e havia um castelo muito rico e resistente. Quando o rio

    chegava desembocadura, o moo se voltou para a esquerda e viu nascer as

    torres do castelo, pois lhe pareceu que nasciam e que surgiam da rocha. No

    meio do castelo se erguia uma torre slida e grande. Em frente baa, um

    poderoso muro que combatia com o mar e o mar batia a seu p. Nas quatro

    paredes do muro, cujos blocos de pedras eram duros, havia quatro baixas

    torres que eram muito compactas e belas. O castelo estava muito bem situado

    e bem disposto em seu interior. Frente ao redor do muro havia uma ponte de

    pedra, areia e cal suspensa sobre a gua. Era alto, firme, slido e cercado por

    pilastras. No meio da ponte havia uma torre, adiante uma ponte elevada, que

    parecia estabelecida para o que justamente lhe compete: de dia era ponte e de

    noite porta.

    O moo caminha para a ponte, pelo que se entretm num mestre vestido

    com roupas de cor prpura. Eis aqui aquele que vem fazer a ponte. Para

    mostrar autoridade, o mestre leva um basto na mo, e detrs dele seguem

    dois pajens guardies. O moo recorda bem o que sua me lhe ensinou, pois,

    cumprimenta e diz:

    Senhor, isto me ensinou minha me.

    Deus te abenoe, bom irmo respondeu o mestre, que ao falar

    conheceu que era simples e tolo . Bom irmo, de onde vem?

    -De onde? Da corte do rei Artur.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    -E o que fazia?

    O rei, que boa ventura haja, fez-me cavaleiro.

    Cavaleiro! Deus me proteja! No suspeitava que agora, precisamente,

    lembrasse disto; imaginava que lhe preocupavam coisas muito distintas para

    fazer cavaleiros. Diga-me, amvel irmo, quem te deu estas armas?

    O rei me deu responde isso.

    Deu-lhe isso? Como?

    E lhe conta o que j ouvistes no conto. Se o contasse eu outra vez seria

    irritante e aborrecido, e com isso nenhum conto ganha nada.

    E o mestre lhe pergunta o que sabe fazer com o cavalo.

    Fao-o correr acima e abaixo, como fazia com o corcel que tinha antes,

    que trouxe da casa de minha me.

    (VS. 1390-1468)

    Diga-me tambm, bom amigo, o que sabe fazer com suas armas?

    Sei prepara-las e arrebatar, do modo como me armou com elas o pajem

    que diante de mim desarmou o cavaleiro que matei; e as levo com tanta

    agilidade que no me pesam nada.

    Por minha f disse o mestre, aprovo-o e me agrada. Todavia, diga-

    me seno o molesta, o que lhe traz por aqui?

    Senhor, minha me ensinou aproximar-me dos mestres em qualquer

    lugar que os encontrasse, e que acreditasse o que me dissessem, pois muito

    proveitos ganham os que os escutam.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    E o mestre responde:

    Bom irmo, bendita seja sua me, que to bem lhe aconselhou. Porm,

    quer me dizer algo mais?

    Sim.

    O que?

    -Uma coisa somente: que me albergue hoje.

    - Com muito gosto diz o mestre , mas, com a condio de que me

    outorgue um dom do qual vero seguir-se grande benefcio.

    -Qual? diz ele.

    - Que seguir os conselhos de sua me e os meus.

    Por minha f, outorgo-o disse ele.

    Pois, desmonte.

    E ele desmonta. Um dos dois pajens que o acudiu toma seu cavalo, e o

    outro o desarma. Assim ficou em seu rstico traje, com as botas e a capa de

    cervo, mal feita e mal cortada, que lhe tinha dado sua me. O mestre fez calar

    as esporas cortantes de ao que o pajem havia trazido, monta em seu cavalo,

    pendura no pescoo o escudo, toma a lana e diz:

    Amigo, aprenda agora a dirigir as armas. Fixa bem como se deve levar a

    lana, espetar e reter o cavalo.

    Logo desdobra a insgnia, mostra e ensina como se deve pegar o escudo.

    Joga-o um pouco para frente, para que alcance o pescoo do cavalo, afirma a

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    lana e espeta o cavalo, o qual valia cem marcos; que corria mais elegante,

    mais rpido e com mais vigor que nenhum.

    O mestre conhecia muito de smbolos, de cavalos e de lanas, pois,

    aprendeu na sua infncia. Concedia muito ao moo, o qual se fixou em tudo o

    que fez. Quando demonstrou tudo, bem e garboso, ante o moo, que tinha

    estado muito atento, volta com a lana erguida e lhe pergunta:

    Amigo, saberiam dirigir assim a lana, o escudo, espetar e conduzir o

    cavalo?

    E ele responde decidido que no quer viver, nem um s dia mais, nem

    possuir fazenda, at sab-lo fazer assim.

    O que no se sabe pode aprender, se a gente puser nisso af e

    entendimento, amvel amigo diz o mestre. Em todo ofcio convm, ter

    corao, trabalho e costume. Com estes trs meios se chega a conhec-lo,

    como voc jamais o fizera, nem o vira fazer a ningum, no merece desprezo,

    nem censura por no saber faz-lo.

    Logo o mestre o fez montar, ele comeou a levar to distrado a lana e

    o escudo como se sempre tivesse vivido entre torneios e guerras; tivesse

    percorrido todas as terras em demanda de batalhas e aventuras; pois lhe vinha

    da natureza; quando a natureza o ensina fica em todo o corao, nada pode

    ser rduo para o esforo da natureza e do corao.

    Tudo desempenhava to bem, que o mestre estava muito satisfeito;

    dizendo em seu interior que se toda sua vida se aplicasse e ocupasse em

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    armas, no o teria aprendido to bem. Quando o moo acabou sua trajetria,

    retornou ao mestre com a lana erguida, como lhe tinha visto fazer, e lhe diz:

    _Senhor, tenho-o feito bem? Cr que convm mais esforo, se quero

    faz-lo? Jamais viram meus olhos nada que tanto desejasse; mas queria saber

    tanto como sabe voc.

    - Amigo responde o mestre, se puser seu corao nisso, conseguir;

    no deve se inquietar de modo algum.

    Trs vezes o mestre montou, e trs vezes lhe ensinou tudo quanto pde lhe

    ensinar em matria de armas, e trs vezes o fez montar. A ltima lhe disse:

    Amigo, se encontrasse um cavaleiro que lhe atacasse, o que faria?

    Atacaria-o por minha vez.

    E se sua lana rompesse?

    Depois disto no teria mais receio de lhe atacar a murros.

    Amigo, no faa isto.

    -O que farei, pois?

    - Deve lhe obrigar a esgrimir a espada.

    Ento, o mestre que tanto deseja lhe ensinar armas e lhe instruir de

    modo que saiba bem defender-se com a espada; obrigando-se a isso a atacar

    quando se apresente a ocasio, finca no cho a lana muito direita, logo lana

    mo espada e diz:

    Amigo, deste modo se defender se o atacarem.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    Nisto, Deus me valha responde, ningum sabe tanto como eu,

    pois me exercitei com os almofadinhas e as fascas da casa de minha me, ao

    ponto de fatigar-me em algumas ocasies.

    Assim, pois, vamos pra casa, porque j no sei que mais ensinar

    diz o mestre, e esta noite, em que pese a quem pesar, So Julio nos dar

    bom albergue.

    E assim se vo, um ao lado do outro, e o moo diz a seu anfitrio:

    - Senhor, minha me me recomendou que soubesse o nome de todo

    aquele com quem fora ou com quem fizesse longa companhia. E se o que

    me recomendou sensato, quero saber seu nome.

    - Amvel amigo diz o mestre, eu me chamo Gornemant do Goort.

    (VS. 1549-1638)

    Assim, um ao lado do outro, chegaram ao castelo. Ao incio da escada

    aproximou-se um agradvel pajem levando um manto curto, com o qual correu

    a abrigar ao moo para que, depois do calor, o frio no lhe fizesse mal. O

    mestre tinha ricas estadias, formosas, grandes e bons servidores. A comida

    boa, agradvel e bem preparada, estava disposta. Os cavaleiros lavaram-se e

    sentaram-se mesa. O mestre sentou ao lado do moo e comeu com ele na

    mesma tigela. No preciso que faa relao de quantos manjares houve nem

    de sua qualidade, pois comeram e beberam o suficiente, e j no falo mais da

    comida.

    Quando levantaram da mesa, o mestre, que era muito corts, rogou ao

    moo que esteve sentado a seu lado, que ficasse um ms; de bom grado o

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    acolheria se quisesse um ano inteiro, e enquanto isso lhe ensinaria, se lhe

    parecia bem, coisas que lhe seriam teis em uma necessidade. E o moo lhe

    respondeu:

    Senhor, no sei se estamos perto da morada onde minha me vive,

    mas peo a Deus que conduza a ela para que ainda a possa ver, pois a vi cair

    deprimida ao p da ponte, diante da porta, e no sei se estava viva, ou morta.

    Sei bem que caiu deprimida pela dor que lhe produzi quando a deixei; e por

    esta razo no possvel que me ausente muito at saber seu estado. Irei

    amanh ao amanhecer.

    O mestre v que de nada serve insistir. No diz nada mais, sem outra

    conversa vo se deitar, pois, as camas j estavam feitas. O mestre se levantou

    de manh e foi cama do moo o qual encontrou deitado, e lhe fez levar,

    doando-lhe camisa e calas muito finas como vu; calas importadas do Brasil

    e capa de tecido de seda indiana, uma malha que se faz na ndia. Orientou-o

    para que se vestisse com aquelas vestimentas e disse:

    Amigo, se me cr, vestir estas roupas que v aqui.

    E o moo respondeu:

    - Bom senhor, por muito que me diga, acaso as roupas que fez minha

    me no valem mais que estas? E quer que ponha isso?

    -Moo, por minha cabea e pela f que devo a meus olhos, estas valem

    muito mais.

    Replicou o moo:

    Valem menos.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    - Voc disse, bom amigo, quando o trouxe aqui dentro, que obedeceria

    todos os meus mandatos.

    - E assim o farei disse o moo, e no o decepcionarei em nada.

    Apressa-se a colocar as roupas e deixa as de sua me. O mestre agacha-

    se e cala a espora direita, pois era costume ao presentear um cavaleiro calar

    a espora neste. Havia muitos outros moos, e todos os que podem aproximar

    querem intervir em arm-lo. O mestre pegou a espada rodeou-a e beijou-a;

    dizendo que com a espada, tinha-lhe dado a mais alta ordem que Deus tenha

    feito e instaurado: a ordem da cavalaria, que deve ser sem vilania. E

    acrescenta:

    (VS. 1639-1721)

    Bom irmo, se por acaso precisar combater com algum cavaleiro, lembre-

    se do que agora quero dizer e rogar: se voc vencer, de modo que ele j no

    possa defender-se de voc, nem se opor voc, ou seja obrigado a ficar sua

    merc, tenha compaixo e apesar de tudo no o mate. No me agrada falar

    muito: se a gente for muito falador, s vezes, diz coisas consideradas

    desnecessrias, pois, o sbio diz e repete: "Quem fala muito, machuca-se a si

    mesmo." Por isso, o aconselho, bom amigo, que no fale demais. Tambm

    rogo que se encontrar homem, ou mulher; seja rfo, ou seja dama,

    desorientados, aconselhe-os; far grande bem se souber aconselh-los e se

    tiver autoridade para tal. Recomendo-lhe outra coisa que no deve desdenhar,

    porque no deve ser desdenhada: v de bom grado ao monastrio para pedir

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    quele que tudo tem feito, que tenha piedade de sua alma e que neste sculo

    terreno, guarde-o como cristo dele.

    O moo disse ao mestre:

    Por todos os apstolos de Roma seja abenoado, bom senhor, pois, o

    mesmo ouvi dizer minha me.

    No diga nunca, bom irmo acrescenta o mestre, que sua me o

    ensinou, diga apenas que fui eu. Saiba que no o reprovo por hav-lo dito at

    agora, todavia, daqui em diante, por favor, rogo que se emende; pois, continuar

    dizendo desnecessrio. Rogo-lhe, pois, que guarde este conselho.

    Como direi, pois, doce senhor?

    Poder dizer que quem lecionou e ensinou isso, foi quem o presenteou e

    calou sua espora.

    O moo d sua palavra, promete ao mestre que pode ficar seguro,

    enquanto viva, s falar dele, pois parece muito certa tal instruo.

    Ento o mestre o benze, com sua mo levantada para o alto e diz:

    Posto que quer partir, vai com Deus e que Ele o guie, j que o

    intranqiliza ficar aqui.

    NO BELREPEIRE

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    O novo cavaleiro separa-se de sua hospedagem, pois, tem muita pressa

    em chegar para ver sua me e encontr-la viva e s. Adentra por florestas

    solitrias, pois nelas se encontra melhor que na terra plana, porque estava

    acostumado aos bosques. Cavalga at que v um castelo forte e bem situado;

    fora dos muros no havia nada, salvo mar, gua e terra erma. Apressa-se em

    caminhar para o castelo at que chega porta, porm, antes de alcan-la,

    teve que passar por uma ponte to fraca que duvida que possa sustent-lo. O

    moo sobe a pontezinha e cruza sem que lhe ocorra dano, vergonha, nem

    inconveniente algum. Quando chegou ante a porta a encontrou fechada com

    chave; golpeia-a no brandamente e grita no muito baixo. Tanto chamou que

    se aproximou da janela da sala uma donzela fraca e plida, que disse:

    Quem chama?

    (VS. 1722-1805)

    Ele olhou para a donzela, viu-a e disse:

    - Boa amiga, sou um cavaleiro rogando-lhe que me faa entrar aqui e

    albergue-me esta noite.

    - Senhor contesta ela, posso consenti-lo, mas, me agradecer muito

    pouco por isto; no obstante lhe albergaremos o melhor que pudermos.

    A donzela retira-se. Ele, que espera diante da porta, receia fazer muito

    tempo que est ali e chama de novo. Em seguida chegaram quatro servidores

    com tochas, cada um dos quais rodeava uma boa espada. Abriram a porta e

    lhe disseram:

    Entre!

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    Se os servidores desfrutassem de prosperidade, talvez tivessem sido muito

    mais gentis; entretanto, padeceram de tanta misria entre jejuns e viglias, que

    um no ficaria assombrado caso um casse. Alm disso, o moo observou, que

    por fora, a terra estava nua e deserta; muito pouco encontrou dentro. Por

    qualquer lugar que ia, achava desfeitas as ruas e via as casas arruinadas, sem

    que as habitasse homem nem mulher. Havia na vila dois monastrios, que

    foram duas abadias: uma de monjas aterrorizadas e a outra de monges

    desamparados. De modo algum encontrou bem adornados, nem paramentados

    aqueles monastrios; antes, bem viu arrebentados e fendidos seus muros e as

    torres destrudas. As casas estavam abertas tanto de dia como de noite. Em

    nenhum lugar de todo o castelo havia moinho para molar, nem forno para

    cozer; ali no havia nem vinho, nem po, nem nada venda que se pudesse

    adquirir com dinheiro. To desprovido encontrou o castelo, que no havia nem

    po, nem massa, nem vinho, nem cidra e nem cerveja.

    Os quatro servidores levam-no a um palcio coberto de tbua, onde o fazem

    desmontar e o desarmam. Em seguida, desce um pajem por uma das escadas

    da sala com um manto pardo que pe nas costas do cavaleiro. Outro leva seu

    cavalo ao estbulo no qual havia muito pouco trigo, feno e aveia, pois, na casa

    no ficava mais. Outros pajens fazem-no subir por uma escada de uma sala

    muito formosa. Saem ao seu encontro dois mestres e uma donzela. Eles

    tinham os cabelos grisalhos, embora no completamente branco; teriam todo o

    sangue da juventude e todas as suas foras, se no padecessem dor e

    desgosto. A donzela aproximou-se mais graciosa, mais elegante e mais atrativa

    que gavio, ou papagaio. Seu manto e sua estola eram de prpura escura,

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    adornada de ouro, e as peles de arminho no estavam pudas. O colarinho do

    manto estava bordado com enfeites negros e chapeados. Se alguma vez me

    agradou descrever a beleza que Deus ps em corpo ou em face de mulher,

    agora agrada-me em faz-lo de novo sem mentir nem em uma s palavra. Ia

    descoberta, e eram tais seus cabelos que aquele que os visse imaginaria que

    eram de ouro puro, pois eram loiros e com muito brilho. A frente era alta,

    branca e lisa como se tivesse sido obrada por mo de homem acostumado a

    esculpir pedras preciosas, marfim ou madeira. Sobrancelhas perfeitas e amplo

    sobrecenho; na face os olhos brilhantes, claros e rasgados; tinha o nariz reto e

    aquilino; e em seu rosto melhor se advinham o branco sobre o vermelho do que

    o sinople(verde) sobre a prata. Na verdade, para roubar os coraes da gente,

    fez Deus dela um prodgio, depois no criou outra semelhante, nem antes a

    tinha criado. Assim que o cavaleiro a viu, saudou-a e seus dois acompanhantes

    saudaram-no. A donzela amavelmente o pega pela mo e diz:

    (VS. 1806-1900)

    Bom senhor, em verdade, seu albergue esta noite aqui, no ser como

    conviria a um mestre. Se agora lhe dissesse qual nossa situao e nosso

    estado, poderia parecer que o fazia com m inteno para partir daqui; mas, se

    lhe agradar, venha e aceite o albergue tal qual , e Deus lhe d um melhor

    manh.

    Conduzindo-o pela mo at uma cmara retirada, que era muito formosa,

    larga e ampla. Sentam-se os dois sobre uma colcha de seda estendida em

    cima de uma cama. Tambm chegaram outros cavaleiros, que se sentaram em

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    grupos de quatro, cinco e seis, permanecendo calados, olhando quele que

    estava ao lado de sua senhora e no dizia uma palavra. Abstinha-se de falar

    porque recordava o conselho dado pelo mestre, enquanto isso, todos os

    cavaleiros debatiam em voz baixa, e diziam:

    Deus! Muito me surpreende que este cavaleiro seja mudo. Seria grande

    lstima, pois, jamais nasceu de mulher cavaleiro to gentil. Agrada-nos muito

    estar ao lado de minha senhora, e a minha senhora tambm estar ao lado dele,

    se no fossem ambos mudos. To formoso ele e to formosa ela, que

    nunca houve cavaleiro e donzela to adequados para estar juntos, e parece

    que Deus fez um para o outro, para que juntos estivessem.

    Assim comentavam entre eles todos os que estavam ali. A donzela

    esperava que lhe falasse algo, at que se deu conta de que ele no

    pronunciaria uma palavra enquanto ela no se dirigisse primeiro; deste modo

    disse-lhe muito amavelmente:

    -Senhor, de onde vm hoje?

    -Senhora respondeu, dormi em casa de um mestre, num castelo

    onde fui bem e gentilmente albergado. H cinco torres fortes e excelentes, uma

    grande e quatro pequenas; poderia descrever todo o edifcio, porm, no sei o

    nome do castelo; sei, entretanto, que o mestre se chama Gornemant do Goort.

    - Ah, bom amigo! disse a donzela, muito agradveis so suas

    palavras e fala de modo muito corts. Que o soberano Deus lhe premie por

    hav-lo chamado mestre, pois, jamais disseram uma palavra mais certa. Posso

    lhe assegurar, por So Riquier, que ele mestre. Saibam que sou sobrinha

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    dele, todavia, faz muito tempo que no o vejo. bem certo que, desde que

    sara de sua casa, no conheceu, assim acredito, ningum mais mestre que

    ele. Muito brilhante e alegre albergue lhe deve ter dado, pois, sabe faz-lo bem,

    como mestre, amvel, poderoso, acomodado e rico. Mas aqui dentro s h

    cinco miserveis pes que um tio meu, prior, homem muito santo e religioso,

    enviou-me para jantar esta noite junto com uma tina de vinho fermentado. O

    nico alimento que temos um coro, morto nesta manh, com uma flecha de

    um dos meus servidores.

    (VS. 1901-1992)

    Ento ordena que ponham as mesas e, depois disso, sentam-se para

    jantar. Pouco tempo ficaram sentados comendo, todavia, com grande apetite.

    Aps cearem separaram-se em dois grupos: os que a noite passada velaram

    foram dormir e prepararam-se os que deviam aquela noite velar o castelo.

    Eram cinqenta servidores e cavaleiros. Os demais trabalharam em excesso

    acomodando seu hspede; ocupando-se da cama, pem brancos lenis,

    colchas muito rica e um travesseiro na cabeceira. O cavaleiro desfrutou

    naquela noite, toda a comodidade e todo o deleite que se pode imaginar em

    uma cama, exceto o prazer da donzela, se a agradasse, ou o da dama, se lhe

    fosse permitido; entretanto, ele no sabia nada sobre o amor, nem de coisa

    alguma. Assim, dormiu pouco depois, pois, no havia nada que lhe

    preocupasse.

    Porm, a que o albergara no repousa, encerrada em sua cmara. Ele

    dorme tranqilamente e ela considera uma batalha que se d em si mesmo e

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    contra a qual no tem defesa. Agita-se muito, muito se sobressalta, volta-se

    muitas vezes, muito se intranqiliza. Coloca sobre a camisola um manto de

    seda de cor de gro, lanando-se aventura como audaz e atrevida. No

    precisamente uma v empreitada, porque tem o propsito de ir ao seu hspede

    e lhe dizer parte de seu pensamento. Afasta-se de sua cama. Ao sair da

    cmara tem tal medo que todos os seus membros tremem e o corpo sua. Saiu

    chorando. Vai para a cama onde ele dorme lamentando-se e suspirando muito.

    Inclina-se, ajoelha-se e chora at molhar toda a cara com suas lgrimas; no

    tem ousadia para fazer mais.

    Chorou tanto, que ele acordou. Surpreso e admirado ao sentir sua cara

    molhada; ajoelhada ante sua cama e estreitamente abraada nele pelo

    pescoo. Faz-lhe a cortesia de tom-la imediatamente entre seus braos e

    atrai-la para si; dizendo:

    Formosa, o que lhe acontece? Por que veio aqui?

    (VS. 1993-2093)

    Ah, gentil cavaleiro, piedade! Rogo-lhe por Deus e por seu Filho que

    no me considere vil porque vim aqui. E embora esteja quase nua, de modo

    algum imaginei loucura, maldade, nem vilania; porque no mundo no existe

    criatura to desgraada, nem to desventurada que eu no o seja mais. Nada

    do que tenho me satisfaz, nem passei um s dia sem dano. Sou to

    desventurada que nunca mais virei outra noite depois da de hoje, nem mais dia

    que o de amanh, porque me matarei com minhas prprias mos. Dos

    trezentos e dez cavaleiros com os quais estava guarnecido este castelo, s

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    ficaram aqui cinqenta; porque duzentos e sessenta foram levados, mortos e

    aprisionados por um cavaleiro muito mau, Anguinguern, mordomo de

    Clamadeu das ilhas. Tanto me pesa os quais esto na priso, quanto os

    mortos, porque sei bem que morrero e nunca podero sair. Tantos mestres

    morreram por mim que justo que esteja desconsolada. Anguinguern passou

    todo um inverno e um vero em assdio, daqui pra frente, sem mover-se,

    sempre aumenta sua fora. A nossa est minguada, as provises esgotadas, a

    ponto de no ficar nem para alimentar uma abelha. Agora estamos to

    perdidos porque amanh, se Deus no o remediar, este castelo lhe entregar,

    pois, j no pode defender-se, me levar com ele como cativa. Porm, antes

    que me leve viva, matar-me-ei. Morta, pouco me importar que me leve.

    Clamadeu, que quer me ter, no me ter de modo algum, a no ser sem vida e

    sem alma. Guardo em meu porta-jia uma faca de fino ao, que afundarei em

    meu corao. Isto o que tinha para dizer; e agora retomarei meu caminho e

    lhe deixarei repousar.

    Logo, se se atrever, poder o cavaleiro fazer-se digno de elogio, porque

    ela unicamente foi chorar sobre sua cama, embora lhe desse a entender outra

    coisa, para lhe colocar no nimo de empreender batalha, se o fizer por ela, a

    fim de defender sua terra. Ele responde:

    Amiga querida, coloque nesta noite um semblante mais belo. Console-se,

    no chore mais, aproxime-se mais de mim e enxugue as lgrimas de seus

    olhos. Deus, se o quiser, far amanh mais bem do que o que me disse. Deite-

    se comigo nesta cama, que bastante larga para os dois. Hoje no me

    deixar.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    E ela diz:

    Faria-o se pudesse.

    Ele a beijava e a tinha estreitada entre seus brao. Muito brandamente e

    com cuidado a pe debaixo da colcha. Ela permite ser beijada e no acredito,

    que isto lhe zangue. Assim estiveram toda a noite deitados, um ao lado do

    outro, boca com boca, at a manh que traz o dia. A noite foi to agradvel,

    porque boca com boca, brao com brao, dormiram at que amanheceu.

    Ao amanhecer a donzela retornou a sua cmara, sem criada, nem

    garonete, vestiu-se e se comps, pois, a ningum despertou. Os que de noite

    velaram, assim que puderam ver o dia, despertaram os que dormiram e os

    fizeram levantar da cama, o que efetuaram sem tardana. Naquele mesmo

    momento a donzela foi a seu cavaleiro e lhe disse amavelmente:

    Senhor, Deus lhe d bom dia. Acredito que no far longa estadia aqui,

    pois seria em vo. Ir e no me pesa, porque no seria corts que isso me

    pesasse, j que aqui no lhe honramos, nem o tratamos bem. Peo a Deus que

    lhe proporcione melhor albergue, onde haja mais po, mais vinho e mais boas

    coisas do que neste.

    (VS. 2094-2179)

    Ele contestou:

    Formosa, no ser hoje o dia que procure outro albergue, pois, antes departir daqui, deixarei toda sua terra em paz, se me for possvel. Caso encontre

    seu inimigo l fora, pesar-me- que fique ali mais tempo, embora nenhum dano

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    lhe faa. Todavia, se o matar e vencer, peo-lhe, como galardo, que seu amor

    seja meu. No aceitarei nenhuma outra recompensa.

    Responde-lhe com muito puritanismo:

    Senhor, pede-me coisa muito pobre e muito pequena, porm se lhe

    recusasse tomaria como orgulho, por isso, no lhe quero negar isso. No

    obstante, no diga que eu sou sua amiga com a condio e o trato de que voc

    tenha que morrer por mim, seria um grande dano; porque saiba, de certo seu

    corpo e sua idade no so tais que lhe permitam opor-se, nem sustentar

    combate, nem batalha com cavaleiro to duro, to forte e to robusto, como o

    que l fora espera.

    Isto j veremos hoje diz porque irei combater com ele, sem que

    nenhum conselho me impea.

    Ela fica em tal transe, que por um lado o reprova e por outro o instiga;

    porque ocorre, s vezes, de algum resistir renunciar ao que deseja, quando a

    outro desejoso fazer toda sua vontade, a fim de que o deseje mais ainda. Ela

    obrou sabiamente, pois lhe colocou no nimo o que tanto o est reprovando.

    Ele diz que lhe tragam as armas que pediu; trazem-nas, armam-no e o fazem

    montar em um cavalo que lhe prepararam no meio da praa. No h quem no

    lastime dizendo:

    Senhor, Deus o ajude neste dia, e d grande mal ao servidor,

    Anguinguern, que destruiu todo este pas.

    Assim oram todas e todos. Acompanham-no at a porta, e quando o vem

    fora do castelo, gritam todos a uma s voz:

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    Gentil senhor, que a verdadeira cruz na qual Deus permitiu que

    padecesse seu Filho, guarde-lhe hoje de perigo de morte, de desgraa e da

    priso. Devolva-o sem machucado, ao lugar onde seja feliz, deleitando-se e

    satisfeito.

    Assim todos oravam por ele.

    Quando os da hoste o viram chegar, mostraram-no, em seguida,

    Anguinguern, que estava sentado diante de sua tenda. Parecia que lhe

    entregariam o castelo antes de anoitecer, ou que algum sairia do castelo para

    lutar com ele corpo a corpo. J tinha empacotado os armamentos. Sua gente

    estava muito contente porque acreditava ter conquistado o castelo e todo o

    pas. Anguinguern, assim que o viu, armou-se rapidamente. Foi at ele mais

    compassado em um corcel forte e robusto, e lhe disse:

    Moo, quem o envia? Diga-me o motivo de sua vinda. Deve buscar paz

    ou batalha?

    (VS. 2180-2287)

    E voc o que faz nesta terra? responde ele. Voc me dir primeiro

    por que matou aos cavaleiros e devastou todo o pas.

    Ele responde todo orgulhoso e arrogante:

    Quero que hoje me esvaziem este castelo. Rendam a torre, que muito me

    resistiu e meu senhor ter a donzela.

    Malditas sejam tais novas e quem te disse isto! responde o moo.

    Ser necessrio renunciar a quanto disputa.

  • 8/8/2019 O Conto do Graal - Chrtien de Troyes

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    Por So Pedro diz Anguinguern, que me est dizendo boas

    necessidades. s vezes ocorre pagar os danos, quem no tem culpa.

    Ento o moo se zangou e afirmou a lana na bainha da cinta; e ambos

    deixaram que os cavalos corressem quanto podiam um contra outro. Pela

    indignao e a sanha que tinham e pela fora de seus braos fazem voar por

    aqui e por l as peas e as lascas das lanas. S caiu Anguinguern, ferido

    atravs do escudo, que sentiu dolorosamente o brao e o flanco. O moo, que

    no sabia atac-lo a cavalo, fica de p na terra, toma a espada e o ameaa.

    No saberia lhes descrever mais detalhadamente o que se passou, nem todos

    os golpes um por um, mas a batalha durou muito e muito rudes foram os

    encontros at que Anguinguern caiu.

    O moo avanou ferozmente sobre ele, at pedir misericrdia. O moo

    diz que no concederia nem pouca, nem muita. Todavia, lembrou-se de que o

    mestre lhe tinha aconselhado que vencendo no matasse o cavaleiro vencido e

    submetido. E aquele lhe dizia:

    Doce amigo, no seja to desumano, a ponto de no me outorgar

    misericrdia. Confesso-te e te concedo que voc o melhor. Na verdade um

    bom cavaleiro, mas no at onde acreditava. Quem no tenha visto nosso

    combate e conhea ambos, no acreditar que voc, s com suas armas,

    matou-me em batalha. Porm, se eu der testemunho, ante minha gente e em

    minha tenda mesmo, que me derrotou com suas armas, minha palavra ser o

    suficiente. Sua honra crescer tanto que jamais cavaleiro a de