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    NOTA INTRODUTRIA:

    O que pode nos dizer um autor que morreu h 60 anos e escreveu a parte mais importante de sua

    obra isolado do mundo, na cela de uma priso? Acrescente-se a essas condies desfavorveis

    o fato do autor em questo ser comunista, alm de originrio do que era ento uma das regiesmais pobres de um dos mais atrasados pa ses da Europa Ocidental.

    Mas, por mais paradoxal que possa parecer, o fato que Antonio Gramsci continua a inspirar e a

    servir como referncia para boa parte do pensamento contemporneo, seja ele - ou no - de

    tradio socialista. Mais importante ainda: as circunstncias s quais se fez referncia acima,

    contribuem de forma dec isiva para a relevncia do autor.

    Comunista, foi ativo intelectual e politicamente num perodo histrico que se definiu pela adeso ou pela rejeio da Revoluo de Outubro - e que s ganha novos contornos com os episdios

    de 1989. Mas Gramsci no foi qualquer comunista: foi um comunista italiano. Por isso, teve de se

    defrontar com os problemas de um pas que no era nem Oriente nem bem Ocidente, mas um

    outro Ocidente, como afirmou no ltimo texto que escreveu antes de ser preso por ordem dos

    fascistas.

    Desta perspectiva, pde pensar as estratgias polticas mais adequadas a Leste e a Oeste: a

    guerra de movimento, ataque frontal fortaleza do inimigo, como se viu na Rssia de 1917 -experincia encerrada no Ocidente em 1848; e a guerra de posio, que obrigava o

    revolucionrio a ser paciente, enquanto de sua trincheira procurava estabelecer uma nova

    direo intelectual e moral - hegemonia - para a vida de sua sociedade. Mas, como se no

    bastasse ser um comunista italiano, Gramsci era ainda um sardo orgulhoso. Pde, desta forma,

    enfrentar os problemas de um pas fraturado pelas desigualdades entre Norte prspero e Sul

    miservel, que persistiam depois de mais de meio sculo de unificao, e das quais as classes

    dominantes de ambas as regies souberam tirar proveito.

    A forte presena de algumas destas questes no debate poltico brasileiro atual, e o horizonte

    interpretativo por elas fornecido, nos levou a conceber o evento do qual este caderno objeto.

    O que nos motivou no foi apenas a realizao de um seminrio comemorativo, mas sobretudo a

    discusso a respeito de como o pensamento e as categorias de anlise gramscianas tm sido

    utilizadas - e s vezes at reivindicadas. Por isso, pareceu-nos que uma abordagem mais

    aprofundada de temas caros ao autor pudesse ser um exerccio intelectualmente instigante.

    Para realizar esta tarefa, contamos com a colaborao generosa de conferencistas edebatedores, aos quais agradecemos imensamente. No foi possvel, contudo, incluir nesta

    publicao as intervenes e discusses realizadas no bloco que tratou Os Intelectuais, o Poder

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    e a Construo da Nao, tal como consta no programa, por absoluta impossibilidade do

    palestrante de revisar o material. Mas, resta aos interessados a possibilidade de consultar as fitas

    gravadas durante o evento, disponveis ao pblico no arquivo do IEA-USP. No podemos deixar

    de mencionar ainda o apoio incondicional dos membros do falecido Grupo de Teoria Poltica do

    IEA em todas as atividades desenvolvidas. Porm, a concretizao de todo este trabalho

    certamente no teria sido possvel sem a ajuda pronta e entusiasmada de Cludia Regina N.

    Pereira, analista de comunicao soc ial do IEA.

    Raquel Kritsch.

    Bernardo Ricupero.

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    1. COERO E CONSENTIMENTO: AS DUAS FACES DA POLTICA

    Prof. Dr. O live iros S. Fe rreira

    OESP e FFLCH/ USP

    Estas anotaes resultam de um curso de Ps-graduao no Departamento de Poltica da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. No , como se

    poderia supor, uma apresentao escrita daquilo que foi comunicado aos alunos e deles

    recebido. mais e menos. Menos, porque no reproduz o intercmbio de opinies nem sempre

    concordantes, muito menos o raciocnio que o ardor da disputa (assim pensamos depois de tudo

    acalmado) tornou brilhante. Mais, na medida em que o produto de reflexes que se foram

    sedimentando, de revises talvez mais profundas do que fosse desejvel e mesmo conveniente

    expor.

    Muito delas parecero sem ligao com coisas escritas e publicadas no passado. Ao argir Os 45

    cavaleiros hngaros, Celso Lafer disse que eu pretendera fazer um acerto de contas com o

    passado. No o entendi, ento. Ao revisitar a Flandres ocupada pelos 45 cavaleiros hngaros

    durante alguns meses, creio fazer conscientemente aquele acerto que, possivelmente, poca

    da defesa da tese de livre-docncia, fosse presente sem que eu tivesse tido a inteno, portanto

    a vontade de faz-lo.

    Por que volto aos 45 cavaleiros hngaros? Porque preciso meditar sobre a teoria da

    hegemonia que ali se expe. O que requer que se volte Flandres, que no mais pode ser

    ocupada. Tentemos o rduo caminho, comeando pelo incio. Ettore Ciccotti l-se em

    Gramsci , durante o governo Giolitti de antes de 1914, costumava com freqncia recordar um

    episdio da guerra dos Trinta Anos: parece que 45 cavaleiros hngaros se estabeleceram em

    Flandres e, como a populao estivesse desarmada e desmoralizada pela longa guerra,

    conseguiram por mais de seis meses tiranizar o pas. Na realidade, em qualquer ocasio possvel

    que surjam 45 cavaleiros hngaros onde no existe um sistema protetor das populaes inermes,

    dispersas, constrangidas ao trabalho para viver e, portanto, sem condies, em momento algum,

    de repelir os assaltos, as incurses, as depredaes, os golpes de mo executados por um certo

    esprito de sistema e um mnimo de previso estratgica. A quase todos parece impossvel, no

    entanto, que uma situao como esta dos 45 cavaleiros hngaros possa-se verificar jamais: e

    nesta descrena deve-se ver um documento de inocncia poltica....

    Desse texto extremamente rico, conclua eu que o grande nmero se submete aos

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    numericamente poucos porque esses ltimos so organizados e situados em posies polticas

    as posies que decorrem da maior ou menor probabilidade de ter mais ou menos riqueza,

    prestgio e poder que se diriam ser estratgicas. Ora, olhando para trs, no me acanharia em

    dizer que a referncia aos 45 cavaleiros hngaros, populao desarmada e desmoralizada pela

    longa guerra, essa insistncia na fora associada a posies estratgicas no terreno poltico,

    simplesmente representa uma ruptura no corpo da obra que ento submetia argio. Ela

    Os 45 cavaleiros hngaros fora toda construda para negar que se pudesse falar em

    hegemonia, colocando a fora como elemento dominante. A concluso a que chegava, ento,

    lembrando o escrito de Ciccotti, privilegiava a fora. Sem dvida, Gramsci, ao falar do

    Centauro maquiavlico, associa (e no poderia deixar de faz-lo) fora e consenso,

    autoridade e hegemonia:

    Outro ponto a ser fixado e desenvolvido escreve Gramsci no Caderno 13 aquele da

    dupla perspectiva na ao poltica e na vida estatal. Vrios graus em que se pode apresentar a

    dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais complexos, mas que podem reduzir-se

    teoricamente a dois graus fundamentais, correspondentes dupla natureza do Centauro

    maquiavlico, ferina e humana, da fora e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da

    violncia e da civilizao, do momento individual e daquele universal (da Igreja e do Estado),

    da agitao e da propaganda, da ttica e da estratgia.... No Caderno 8, havia dito: Como

    hegemonia significa um determinado sistema de vida moral (concepo da vida etc.), eis que a

    histria histria religiosa, segundo o princpio Estado-Igreja do Croce..

    O sentido de hegemonia que encontrava em Gramsci e fazia meu, no sabendo ao certo se

    era o de Gramsci que assimilava, ou o de Oliveiros S. Ferreira que procurava apresentar como se

    de Gramsci fora era totalmente distinto daquele com que conclua o livro de ento,

    reproduzindo a histria dos 45 cavaleiros hngaros. A tese era que a hegemonia resultava apenas

    do consenso, que se traduzia numa bela expresso: direo intelectual e moral (eu diria, direo

    cultural, intelectual e poltica) do processo. Desde os primeiros pargrafos, para no dizer da

    introduo dos 45 cavaleiros, eu cuidava de mostrar que exatamente por ser uma proposio

    de consenso, a hegemonia no se poderia estabelecer a menos que fosse tomada no sentido de

    totalizante (falando em termos politicamente corretos), mas que c laramente totalitrio.

    preciso cuidado quando se emprega a palavra consenso. A ao poltica, dos anos 60 em

    diante, popularizou o termo, buscando com ele significar o acordo de todos em substituio

    regra da maioria. Na verdade, os que levaram a palma nessa porfia contra a maioria queriam

    dizer que um e no preciso mais do que um dos membros da associao poltica pode

    impedir a ao dela em nome de seu direito de d iscordar: se um discorda, no h consenso eportanto no se decide. O consenso, nesse sentido, substantivo historicamente datado destes

    tempos atuais, politicamente corretos, em que a regra da maioria, trao caracterstico das

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    democracias, est sendo solapada. Ao estabelecer esse sentido de consenso, buscou-se induzir

    os que ouvem ou lem a supor que a divergncia de opinies nunca de tal ordem que no se

    possa, cedendo aqui, recuando acol, chegar a um ponto comum que bem pesadas as

    coisas, ao fim e ao cabo nada significar para quem cede menos, pois no engaja a sua

    vontade numa ao que a maioria teria estabelecido contra seu ponto de vista, mas no

    estabeleceu porque ele dissentiu. Essa viso coeva do consenso , na aparncia, a quintessncia

    da democracia, pois um apelo a que se respeitem os direitos do um; na essncia, a nova

    forma de paralisar as decises da associao poltica quando se est em minoria.

    No nesse sentido que consenso se aplica em Gramsci. Seria estranho que um bolchevista

    aceitasse, no fragor da luta poltica dos anos 20 e 30, essa estranha idia de que a associao

    poltica s se move por consenso; seria pedir que dom Antnio aceitasse que Lenin e Kerenski

    poderiam ter resolvido suas divergncias em torno de uma mesa de conferncias, cada um

    cedendo um pouco: um, aceitando o cretinismo parlamentar e deixando de lado o projeto de

    tomar o Palcio de Inverno, o outro, concordando em que o partido, uma vez no poder, pode e

    deve exercer a sua d itadura em nome do proletariado.

    Nesse particular, no dizer que a hegemonia um conceito totalitrio e que s pode e s deve ser

    entendido dessa forma porque a supremacia de uma concepo do mundo sobre outra ,

    no h o que revisitar a Flandres. O que merece reviso, isto sim, pretender que os poucos

    mandam no grande nmero por estar em posio estrategicamente superior. Apesar de estar em

    posio poltica estrategicamente superior da populao batida pelas intempries da guerra

    prolongada, os 45 cavaleiros hngaros no exerceram hegemonia sobre a Flandres e no o

    fizeram porque a dominaram apenas pela fora. No relato de Ciccotti no se cuida de direo

    intelectual e moral, ou de direo intelectual, cultural e poltica; trata-se to s de dominao

    pela fora, do direito do mais forte. O que obriga reconhecer que depois de longas digresses

    sobre a importncia de sustentar-se o primado da direo intelectual e moral sobre a fora,

    transformando o Centauro maquiavlico num monstro de apenas uma face ou seria uma

    fauce? eu acabava afirmando que era a fora que permitia a dominao. Que me perdoe,

    hoje, Rousseau, para quem, todos sabemos, a fora nunca criou o Direito.

    Ao admitir tal coisa, negada ao longo de toda a dissertao, eu isolava o social do poltico, e

    com isso de certa forma negava toda uma quase-batalha intelectual durante a qual havia

    procurado desqualificar a expresso Cincia Poltica, buscando substitu-la por outra mais

    concorde com a realidade das coisas: Sociologia Poltica. Ao mal interpretar o relato de

    Ciccotti, separava claramente Sociologia e Poltica, e com isso talvez tivesse feito a alegria dos

    que buscavam afirmar a autonomia do Poltico frente ao Econmico, numa tentativa de superaro marxismo c lssico ou da vulgata.

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    Hoje, ao voltar Flandres, pergunto-me se esse corte epistemolgico no seria a rigor a intuio

    daquilo que tempos depois a mim se imps como realidade: que a evoluo da tcnica, a

    tecnologia dos novos tempos, a informatizao da produo, dos servios, do amor, a dita

    globalizao que velha como o sculo XVI no apenas apontavam (escrevia em 82) na

    direo da separao entre o social (em sentido amplo) e o poltico, como j davam evidentes

    sinais de que a Poltica, especialmente o Governo, hoje arte que se pratica separadamente da

    sociedade global na forma em que a entendia a Sociologia clssica. Isso, muito embora os que

    exercitam a arte da poltica e de governar possam ser prisioneiros de grupos de interesse que no

    mais representam a sociedade, mas partes dela, um microcosmo daquele macrocosmo que

    julgvamos ser coerente, ainda que distinto em suas partes constituintes, e sobre o qual o

    marxismo e a Sociologia clssica e o bolchevismo e nele, especialmente Trotsky e Gramsci

    construiram suas formulaes tericas.

    Ao pisar de novo o solo da Flandres, preciso ter a coragem de reconhecer que Silone poderia

    ter tido razo ao colocar na boca do Prof. Pickup a frase plena de heterodoxia: O homem o

    homem e a sociedade a sociedade. Ou, traduzindo para nosso universo, que o Estado o

    Estado e a sociedade no a sociedade, so as mulheres e os homens. O que assaz diferente.

    Sobre que materiais constru, naquele ento, a teoria da hegemonia? Antes de responder a essa

    questo inquietante, convm deixar claro que no prprio Gramsci poderemos encontrar vises

    diferentes do que seja hegemonia. Inclusivamente esta viso, extremamente sugestiva, que

    concilia a um tempo fora e persuaso, mas vai muito alm desta dicotomia sobre a qual se

    discute tanto: Uma vez que existiam essas condies preliminares, j racionalizadas pelo

    desenvolvimento histrico, foi relativamente fcil racionalizar a produo e o trabalho,

    combinando habilmente a fora (destruio do sindicalismo operrio de base territorial) com a

    persuaso (altos salrios, benefcios soc iais diversos, propaganda ideolgica e poltica habilssima)

    e conseguindo centrar toda a vida do pas sobre a produo. A hegemonia nasce da fbrica e

    no necessita para exercitar-se seno de uma quantidade mnima de intermedirios profissionais

    da poltica e da ideologia (Cad. 22, redao final do que escrevera no C aderno 1).

    Voltando atrs. Sobre que materiais constru a teoria da hegemonia? Basicamente, como dito

    atrs, sobre o consenso, mas consenso no sentido em que os antigos o definiam: a solidariedade

    do todo com as partes e dessas com aquele. Ora, ao longo de todo o trabalho, o que procurava

    mostrar eram as dificuldades de alcanar-se essa solidariedade sem a qual a coeso social

    no existe da perspectiva dos clssicos numa sociedade polissegmentada complexa (ou de

    classes) em que os conflitos interindividuais e a coalescncia ou no dos segmentos so a marca

    caracterstica dela, sociedade polissegmentada. Rousseau, precursor da Sociologia como queriaDurkheim, chamava ateno para o fato de que cada um de ns pertence a diferentes grupos

    sociais, diversas sociedades particulares, que guardam com seus membros uma relao

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    especial: a vontade delas geral em relao a seus membros, mas particular em relao

    sociedade global, que tem uma vontade geral: podemos ser bons pais de famlia, sacerdotes

    zelosos, bravos soldados... e maus cidados.

    Ora, fcil compreender como se pode ser bom pai de famlia e at bravo soldado: somos assim

    porque aderimos aos padres de comportamento imperantes no grupo, interiorizamos normas de

    conduta vigentes e procuramos fazer que o comportamento real no se afaste muito daquele

    prescrito idealmente pelas normas, a fim de fugir s sanes que atingem os que violam essas

    mesmas normas. O que de menos fcil compreenso portanto mais difcil de aceitar

    emocionalmente e explicar intelectualmente como se pode ser bom cidado,

    pertencendo a sociedades particulares, grupos sociais haja ou no referncia terica s classes

    sociais, que so inclusivas com relao aos grupos que as compem e por isso mesmo

    multifuncionais como queria Gurvitch , cada um desses grupos tendo elaborado na interao

    de seus componentes e dele, grupo, com o meio ambiente circundante, sua especial viso do

    mundo nem sempre concorde com o padro do bom cidado estabelecido pelos Cdigos.

    Sem dvida, existe o temor da sano legal para os atos que contrariem as normas da Ordem

    J urdica vigente e o ser bom cidado poderia ser definido como a obedincia s normas,

    qualquer que seja o critrio de legitimao delas que adotemos. Mas a solidariedade social,

    todos sabemos, no se funda exclusivamente sobre o temor da sano legal ou a expectativa da

    recompensa pelo fato de respeitarmos padres abstratos de legalidade. Gramsci via o problema

    com clareza e o colocava em termos muito parecidos com os de Rousseau. por isso que,

    tambm para ele, ainda que disfarada aqui e ali com as boas intenes bolchevistas, brota a

    idia de que o indviduo pertence a vrios grupos, cada qual o solicitando de uma maneira

    especial.

    Antes de prosseguir, gostaria de assinalar que, na crtica que faz aos bolchevistas, Rodolfo

    Mondolfo, que foi professor de Gramsci, v em dom Antonio um dos poucos com estatura de

    filsofo. Filsofo ou aprendiz de filsofo, pouco importa, o fato que Gramsci sabia que a vida

    moderna se passava numa sociedade de classes, e eu diria que ele no hesitaria em admitir que,

    se se podem encontrar fraces de classe na burguesia, seguramente elas tambm existiro no

    proletariado. Isso, por um lado. Por outro, dom Antonio no era apenas um marxista, nem um

    filsofo ou aprendiz de filsofo; diria que tinha uma viso sociolgica clssica! profunda dos

    problemas com os quais se defrontava na sua reflexo no crcere. essa viso sociolgica dos

    problemas que explica a lucidez com que encara a oposio entre o Norte e o Sul, a cidade e o

    campo, a importncia da composio demogrfica das sociedades europias e da histria que

    elas vivenc iaram para explicar o porque do fordismo no ter deitado razes na Europa.

    Mais do que essa viso sociolgica, importa ter presente a percepo embora seja um

    adversrio da psicanlise freudiana da importncia que para ele tm, na vida das soc iedades,

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    as pocas de libertinismo, especialmente o iluminista, e a definio do papel da mulher na

    formulao de uma nova concepo do mundo. Este pequeno trecho do caderno 22, redao

    final do que se dissera no caderno 1, diz tudo a este respeito: A questo tico-civil mais

    importante ligada questo sexual aquela da formao de uma nova personalidade feminina;

    enquanto a mulher no tiver atingido no s uma real independncia frente ao homem, mas

    tambm um novo modo de conceber a si prpria e sua parte nas relaes sexuais, a questo

    sexual permanecer rica de caracteres mrbidos e ser necessrio ser cauteloso em todas as

    inovaes legislativas.

    Mas voltemos ao que interessa. Socilogo, Gramsci sabia que a sociedade era polissegmentada

    complexa. O trecho que citarei em seguida guarda estranhas ressonncias com o Rousseau da

    Economia poltica, que mencionei mais ac ima: Acontece sempre que as pessoas pertencem a

    mais de uma sociedade particular e amide a sociedades que essencialmente [variante

    interlinear: objetivamente] esto em contraste entre si.

    J notei em outra parte continua ele que em uma determinada soc iedade ningum

    desorganizado e sem partido, mesmo que se entendam organizao e partido em sentido lato, e

    no formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares, de carter dplice, natural e

    contratual ou voluntrio, uma ou outra prevalesce relativa ou absolutamente, constituindo o

    aparato hegemnico de um grupo social sobre o resto da populao (ou sociedade civil), base

    do Estado compreendido estreitamente como aparato governativo-coercitivo. Esse texto de

    redao nica, no Caderno 6. (inverti a ordem dos pargrafos).

    Quando se busca compreender como se estabelece a hegemonia desse grupo social sobre o

    resto da populao, -se forosamente levado a considerar um problema que muitas vezes

    ignorado nas anlises polticas e, diria mesmo, at nas da boa Sociologia: a lio do Prof.

    Pickup, esse estranho personagem de Silone na Escola dos ditadores. No que se possa

    sacramentar a afirmao de que o homem o homem e a sociedade a sociedade. Pickup

    ter razo, porm, se se pensar que a sociedade (qualquer que seja ela, particular ou global) s

    pode existir como ns a pretendemos estudar natural e contratual ou voluntria em funo

    da interao dos indivduos que a compem. Durkheim falava na coalescncia dos segmentos

    para explicar os diferentes tipos de sociedade global. Gramsci vai mais longe: como o indivduo

    pertence a diferentes grupos, da inter-relao entre os indviduos que o grupo se constituir, e

    a relao entre o grupo e os indivduos que permitir a cada um de ns escolher sua viso do

    mundo. Eu diria que h, nos Cadernos, uma quase insistncia na importncia que tem, para a

    anlise terica e para a anlise do que se d na prtica, a compreenso de c omo, considerando

    a psicologia individual, se forma a conscincia da pertena a um grupo, alm da compreensodo comportamento do indivduo em relao. Ousaria mesmo dizer que se poderia traduzir muitas

    passagens dos Cadernos para a linguagem de Gurvitch: da interao entre os diferentes Eu

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    com os Tu e os Ele que resulta o Ns e cada um desses seres singulares uma

    individualidade com dupla conscincia, diria Gramsci, a verbal e a real.

    Ora, a conscincia real fruto de um processo em que o indivduo e podemos ousar dizer, o

    grupo toma conscincia dos reais fatores de poder que produzem sua condio de

    subordinao. Essa tomada de conscincia, porm, convm ter presente, quando resulta de um

    processo espontneo, que vem de dentro do indivduo ou da prxis grupal, tem como nico

    efeito uma paralisia na ao, o indviduo ou o grupo no sabendo se aceita os valores que

    internalizou na sua conscincia verbal, os quais tornam a ligar um grupo social determinado, [a

    influir] na conduta moral, na direo da vontade, de modo mais ou menos enrgico; ou se, pelo

    contrrio, adere queles valores que nascem desse reiterado esforo de aplicar-se realidade e

    sofrer dela seus influxos a famosa prxis que se autosubverte to ressaltada por Mondolfo. A

    passagem dessa conscincia verbal para a conscincia real pode dar-se, porm, de maneira no

    to espontnea e a idia do estrangeiro secular, que Becker popularizou na sua leitura de

    von Wiese, extremamente til neste contexto. o estrangeiro secular que leva os cafoni de

    Fontamara a chegar idia de fazer um jornal que tem como ttulo Que devemos fazer?. o

    estrangeiro sagrado, o membro do Agitprop, quem, na linguagem de Gramsci faz o indivduo

    ter conscincia de ser parte de uma determinada fora hegemnica, primeira fase para uma

    ulterior e progressiva autoconscincia na qual teoria e prtica finalmente se unificam ainda,

    diria eu, que a teoria seja apenas a vulgata.

    No me estenderei para no prejudicar a discusso. Mas ressaltarei que so muitos os trechos em

    que Gramsci ressalta a necessidade de eliminar os intelectuais dos grupos adversrios pela

    fora armada ou pela cooptao a fim de que um grupo possa estabelecer a sua direo

    intelectual sobre os intelectuais, que sero os formuladores especializados ele usa a expresso

    skilled encarregados de transmitir aos simples a viso do mundo do grupo dirigente.

    Ressalto que o importante a reter que Gramsci tem conscincia de que pertencemos a N

    sociedades particulares, como diria Rousseau. essa dificuldade de se ter uma viso do mundo

    uniforme, vlida e vigente para a sociedade ou os grupos que se deseja dirigir, que torna o

    estabelecimento da hegemonia cada vez mais difcil. Sobretudo quando os indivduos e por

    que no os grupos? so guiados por aquilo que ele chama de um sentimento quase instintivo

    de liberdade, autonomia e poder. Rousseau, sabendo das dificuldades de se estabelecer a

    Vontade Geral sobre as sociedades particulares, escreveu que quem viola as regras do contrato

    no se beneficia de suas vantagens. No havendo o contrato e sendo a lei estatal mero

    instrumento de cuja ao se pode fugir de muitas maneiras, de que modos e maneiras

    estabelecer a hegemonia de um grupo sobre intelectuais e desses sobre classes? Especialmenteagora que as frmulas totalitrias esto fora de moda e, mais do que isso, provaram na queda do

    Imprio Sovitico que 70 anos de culto ao Partido apenas permitiram que uma parte da massa

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    marchasse, ostentando os smbolos do antigo regime, e a Igreja Orotodoxa voltasse triunfante.

    Para que haja hegemonia, preciso conquistar as conscincias dos simples, tambm eles

    movidos pelo sentimento de autonomia e independncia, e tambm eles membros de

    sociedades particulares. Talvez por ter esses problemas em vista que Gramsci deixa entrever

    com clareza que sua viso de hegemonia significa o predomnio de um grupo sobre todos os

    demais, oferecendo aos membros deles, para que substituam seus antigos valores por novos, uma

    perspectiva, uma viso do mundo que seja uma nova religio no sentido de Crocce, sendo

    portanto totalitria. E por isso que ele tem como seu adversrio no a burguesia, mas a

    Companhia de J esus. porque sabe que, no seu af de proselitismo, a Companhia sac rificava a

    F Liturgia; da mesma maneira que sabia que a Igreja Catlica tratava diferentemente, da

    perspectiva da liberdade de crtica e de conhecimento, os intelectuais e os simples. A

    Companhia, a servio do Papa, era o grupo que instrua os intelectuais; os padres, fossem jesutas

    ou seculares ou de quaisquer ordens, cuidariam de trazer os simples para o redil onde

    aprenderiam que acima de tudo est Deus, senhor de todas as coisas, depois o prncipe Torlonia,

    senhor da Terra, depois os guardas armados do prncipe Torlonia, depois os cachorros, depois eles,

    os cafoni.

    Muito obrigado.

    Prof. Dr. Cc e ro Romo d e A raujoFFLCH/ USP

    Minha interveno apenas procurar compreender melhor a anlise do Prof. Oliveiros para que,

    no debate talvez, possamos refinar a reviso que ele faz de seu trabalho de livre-docncia.

    Ao ler o p a p e r que escreveu para este colquio, no qual o Prof. Oliveiros prope a sua reviso,

    fiquei tentado a fazer comparaes com autores que venho estudando mais intensamente nosltimos tempos, e que talvez possam ajudar a situar melhor (ao menos para mim) o debate que

    estamos fazendo aqui.

    Ao falar de sociedade polissegmentada complexa, o Prof. Oliveiros faz um paralelo entre

    Gramsci, Durkheim e o Rousseau da Ec o no m ia Poltic a. Gostaria de fazer mais um paralelo e

    lembrar o que o filsofo norte-americano J ohn Rawls recentemente chamou de "o fato do

    pluralismo". Os indivduos num complexo polissegmentado pertencem a vrias pequenas

    sociedades particulares que, como cita o Prof. Oliveiros, "amide esto essencialmente emcontraste entre si". Ao interagir com diferentes sociedades particulares o indivduo "disputado"

    por diferentes concepes de mundo. Mas o que o "fato do pluralismo" em Rawls?

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    Grosseiramente falando, a coexistncia numa mesma sociedade de diferentes - e no raro

    contraditrias - concepes totais (ou "abrangentes") de mundo, organizadas por sua vez em

    diferentes grupos ou pequenas soc iedades particulares.

    Logo no comeo de seu ltimo livro, Lib e ra lism o Poltic o(Mxico: Fondo de Cultura, 1995), Rawls

    considera duas alternativas ao "fato do pluralismo": ou sua dissoluo pela fora (este o que

    chama o fato da opresso), supondo que os indivduos e grupos que abraam diferentes

    concepes do mundo considerem seu cultivo um aspecto essencial, inegocivel de suas vidas;

    ou sua d issoluo pela converso voluntria de todos a uma s concepo. Curiosamente, para

    Rawls, a primeira alternativa plausvel, embora necessariamente instvel e significando, na

    prtica, o fim de qualquer forma de democracia liberal. Mas a segunda considerada muito

    improvvel, se se preservar nela o ambiente liberal-democrtico. Por qu? Vou c itar o autor:

    "A diversidade de doutrinas compreensivas, religiosas, filosficas e morais, que encontramos nas

    sociedades democrticas modernas, no constituem uma mera situao histrica que

    repentinamente poder terminar; uma caracterstica permanente da cultura pblica da

    democracia. Nas condies polticas e sociais que asseguram os direitos e as liberdades bsicas

    de instituies livres, uma diversidade de doutrinas compreensivas opostas e inconciliveis surgir

    e persistir, se que tal diversidade j no est ocorrendo." (Lib e ra lism o Poltic o, p.57)

    O diagnstico de Rawls, portanto, o seguinte: quanto mais desenvolvidas so as instituies

    democrticas, menor a chance de que uma concepo de mundo venha a obter predomnio

    sobre as demais. Ou ainda: maior a chance de o pluralismo se ampliar. Para que haja a

    hegemonia de uma concepo, s mesmo atravs da eliminao forada das instituies

    democrticas.

    A citao que o Prof. Oliveiros faz de um trecho dos Ca d ernos d o Crc erenos leva de fato a

    pensar, contudo, que Gramsci via a segunda alternativa como plausvel e, talvez, como a nica

    plausvel. Afinal, como a coeso soc ial, a dominao poltica e, mais amplamente, a hegemonia,

    seria possvel se as sociedades estivessem realmente recortadas por concepes de mundo em

    choque entre si? No teria necessariamente de existir uma "dominante"? A pergunta me parece

    muito pertinente. E ela coloca alguns obstculos sada idealizada por Rawls em sua sociedade

    bem-ordenada. O prprio autor o reconhece. Cito-o novamente:

    "As lutas mais agudas se do pelos mais altos valores, pelo que mais desejvel: pela religio,

    pelas vises filosficas acerca do mundo e da vida, e por diferentes concepes morais do bem.

    Deveria parecer-nos extraordinrio, ento, que, estando em to profunda oposio nestesaspectos, a cooperao justa entre os cidados (...) possa ser possvel. Na realidade, a

    experinc ia histrica nos sugere que d ificilmente essa cooperao se d." (idem, p.29)

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    Todavia, o fato do pluralismo a partir do qual Rawls faz suas reflexes tambm me parece

    uma percepo igualmente forte, e se impe a ns como uma realidade incontornvel das

    sociedades contemporneas, pelo menos no Ocidente. Ainda que discordemos da resposta

    rawlsiana, ainda que a achemos utpica, considero seu ponto de partida bastante razovel.

    (Digo isso porque, a despeito das crticas que se faz a Rawls nesse ponto, no acho que a

    diversidade e o pluralismo a que ele se refere sejam meras iluses, como se por trs delas operasse

    uma silenciosa concepo nica de mundo.)

    Como o Prof. Oliveiros salientou, Gramsci tem um olhar de socilogo - e de socilogo clssico.

    Como tal, ele est interessado em entender o mecanismo pelo qual concepes de mundo

    ascendem, atingem seu apogeu e depois decaem, dando lugar a outras. Como socilogo, a

    impresso que temos que Gramsci v essas ascenses e quedas das ideologias como um dado

    permanente da condio humana.

    Mas Gramsci no foi apenas um observador do mundo. Ele tambm foi um agente da histria, um

    intelectual comunista, interessado em cultivar e dar alento a uma certa concepo de mundo.

    Fao ento a vocs a seguinte pergunta, e acho que ela pode ajudar a refinar a reviso do Prof.

    Oliveiros: como o Gramsci comunista veria o Gramsci socilogo? Fao essa pergunta porque ela

    nos permite refletir no s sobre como Gramsci teria pensado a fo rmageral das concepes de

    mundo no passado e no presente que o trabalho do socilogo , mas sobre o con tedode

    suaconcepo de mundo, de seu socialismo ou de seu materialismo histrico. Em que ela seria

    diferente das concepes que o antecederam ou que lhe eram concorrentes? O que ela teria a

    propor de melhor? Que possibilidades, que campo de coisas novas ela ofereceria para a

    existncia humana que as outras teriam sido incapazes de oferecer? Que razes, afinal, ele teria a

    oferecer para pensar que seu socialismo era uma concepo de mundo capaz de disputar a

    hegemonia da sociedade com as concorrentes?

    No me lembro se Gramsci chegou a trabalhar questes como essas em seus textos. Mas elas

    poderiam esclarecer melhor se, ao contrrio do Gramsci socilogo, o Gramsci socialista

    vislumbraria a possibilidade de um futuro radicalmente diferente do passado, onde no mais as

    concepes totais de mundo dominantes se sucederiam umas s outras inexoravelmente, como

    uma lei de ferro. Ser que, neste caso, ele no vislumbraria uma resposta d iferente, indita, para o

    problema da soc iedade polissegmentada, que comportasse, por exemplo (como em Rawls), uma

    coexistncia estvel e razoavelmente tolerante de diferentes e contraditrias concepes de

    mundo? Ou ser que, agora talvez em consonncia com um certo tipo de rac ioc nio sociolgico,

    o socialismo de Gramsci no representaria, afinal (pelo menos na forma), uma ruptura radicalcom o passado, desde que seu predomnio ideolgico no seria algo muito diferente, por

    exemplo, do predomnio ideolgico do catolicismo no perodo medieval?

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    So questes que no esto nada claras para mim, e gostaria que o Prof. Oliveiros as

    comentasse.

    Uma reflexo complementar aos tpicos acima diz respeito a possveis alternativas, em Gramsci,

    ao conceito de "ideologia" ou de "concepo de mundo". At aqui, eu s pude fazer um paralelo

    entre o fato do pluralismo de Rawls e a sociedade polissegmentada complexa porque estou

    supondo uma convergncia acerca do que queremos dizer quando usamos o termo

    concepo de mundo. Acontece que em Rawls o pluralismo possvel e estvel apenas

    porque h uma profunda diferena entre ter uma concepo de mundo e ter uma concepo

    de justia: a primeira particular a um indivduo ou grupo, e a mais abrangente possvel; a

    segunda pode ser comum a toda sociedade e, ao mesmo tempo, bastante restrita, posto que

    se trata apenas de uma concepo de cooperao social. Vou ilustrar como entendo essa

    diferena com uma experincia pessoal que tive recentemente:

    Outro dia me pediram para ler um documento escrito por um advogado, no qual este defendia

    certa causa mobilizando uma srie de artigos da Constituio, alm de normas do direito civil e

    comercial. O documento me pareceu impecvel. Mas qual no foi minha surpresa ao conhec-lo

    pessoalmente, horas depois, e descobrir que se tratava no s de um advogado, mas de um lder

    pentecostal! Nada no documento insinuava o menor trao de suas convices religiosas. E foi

    sobre isso, e no sobre direito, que acabamos conversando. Ento falou-me abertamente sobre

    suas crenas: descreveu-me como a humanidade surgiu sobre a Terra; como ela cresceu a partir

    de Ado e Eva e quais eram os propsitos divinos ao cri-los; como um grupo de anjos liderados

    por Lcifer se revoltou contra Deus e como o mal surgiu ento no meio dos homens. Tambm me

    relatou com grande convico o futuro que nos est reservado, a todos, como o mundo chegar

    ao fim e porque neste dia s haver para cada um de ns duas opes (e no trs, como

    pensam os catlicos): o cu ou o inferno.

    uma pena que nossa conversa no tenha sido suficientemente longa para que tivesse a

    chance de lhe fazer uma pergunta que, para mim, crucial: como ele aliava suas convices

    religiosas defesa da lei e, em particular, da Constituio brasileira? Como ele encaixava isso

    dentro da viso que ele me relatou? Seria uma aliana ocasional ou algo mais slido? Um

    casamento por convenincia ou um casamento por amor? Estou inclinado a achar que, nele,

    trata-se de algo mais slido.

    De qualquer forma, essa conversa circunscreve bem o que estou entendendo aqui por

    concepo de mundo: uma viso totalizante da natureza, do homem, da histria. No precisa sers de tipo religioso, como no caso deste advogado, mas tem de ser totalizante. J a concepo

    de cooperao social se refere a algo bem mais limitado. Isto , se refere apenas queles

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    compromissos polticos e morais que possibilitam um pentecostal entabular uma discusso

    pblica, e mesmo um conflito mais ou menos pacfico, com um no-pentecostal: coisas como a

    Constituio, as normas do direito etc.

    Pois bem. Quero com esse ponto apenas refrasear a questo que apresentei acima: ser que em

    Gramsci a hegemonia necessariamente apenas a hegemonia de vises dessa espcie? Ser

    que seu nico modelo de hegemonia a do tipo exercido pela Igreja Catlica medieval ou

    daquela que seria exercida pelos pentecostais caso eles conquistassem os coraes e mentes

    dos que vivem em nossa soc iedade? Afinal: o que impediria Gramsci de pensar que a hegemonia

    pode ser, no futuro, a hegemonia no de uma concepo de mundo, mas de uma viso mais

    restrita, e portanto mais modesta, algo que envolvesse, apenas e simplesmente, como em Rawls,

    os t e rmos, sempre alterveis, da interao poltica e social dos diferentes grupos e indivduos de

    uma sociedade pluralista?

    Prof. Dr. Leonel Itaussu Almeida Mello

    FFLCH/ USP

    A noo de hegemonia um dos conceitos-chave no pensamento poltico de Antnio Gramsci.

    Embora atribusse a paternidade do conceito a Lnin - que enfatizava na hegemonia o momentoda coero -, Gramsci enriquece-o com uma interpretao original, acrescentando-lhe nova

    amplitude ao enfatizar na hegemonia o momento de direo cultural e ideolgica. A

    hegemonia , na imagem de Maria-Antonietta Macciocchi, a parte visvel do iceberg sob a qual

    se encontra todo o corpo terico-poltico gramsciano. Dito de outra forma, todo o pensamento

    poltico de Gramsci (a noo de bloco histrico, a distino entre sociedade civil e sociedade

    poltica, o papel do intelectual como funcionrio da superestrutura e a concepo do partido

    poltico como o Prncipe Moderno) articula-se-ia em torno do conceito de hegemonia. Embora

    no seja a nica, esta seria, pois, sua mais importante contribuio para a teoria marxista.

    Para Gramsci, a estrutura a base scio-econmica em que se assenta e pela qual

    determinada, em ltima instncia, a superestrutura poltico-ideolgica. A estrutura seria formada

    pelo conjunto das foras materiais e do mundo da produo, ou seja, a totalidade das foras

    produtivas e as correspondentes relaes de produo. A superestrutura abarcaria duas grandes

    esferas: a sociedade civil (ou ideologia) e a sociedade poltica (ou Estado). Podemos distinguir,

    afirma Gramsci, dois grandes nveis na superestrutura, o que pode ser designado como

    sociedade civil, isto , o conjunto dos organismos, habitualmente chamados internos eprivados, e o da sociedade poltica ou Estado, correspondendo respectivamente funo de

    hegemonia que o grupo dirigente exerce sobre o conjunto social e da dominao direta ou

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    comando, que se expressa atravs do Estado e do poder jurdico.

    O vnculo orgnico e a unidade dialtica entre a estrutura e a superestrutura engendram o bloco

    histrico, no qual as foras materiais so o contedo e as ideologias a forma. A sociedade civil

    englobaria a extensa rede de funes educativas e ideolgicas; a sociedade poltica - o Estado

    em sentido estrito - exerceria o monoplio da fora e da coero. O Estado, agora em sentido

    amplo, seria formado pelo conjunto da sociedade civil e da sociedade poltica. Pode-se dizer,

    segundo Gramsci, que o Estado a sociedade poltica + a sociedade civil: uma hegemonia

    protegida pela coero.

    A articulao orgnica do bloco histrico, isto , a ligao entre estrutura e superestrutura, e, no

    interior da superestrutura, a ligao entre sociedade civil e sociedade poltica, realizada pelos

    intelectuais. Os intelectuais, escreve Gramsci, so os empregados do grupo dominante para

    o exerccio das funes subalternas da hegemonia social e do governo poltico. A mais original

    contribuio da anlise gramsciana est, portanto, no papel que a sociedade civil desempenha

    no seio do b loco histrico. Enquanto Marx pensa a soc iedade c ivil como o conjunto das relaes

    econmicas, ou seja, como um momento da estrutura, Gramsci situa a sociedade civil na esfera

    da superestrutura ideolgica. esse novo enfoque que possibilita o estudo, em toda a sua

    complexidade, da noo de hegemonia.

    Para J ean-Marc Piotte, Gramsci inspira-se em Croce e em Lnin para formular o conceito de

    hegemonia. De Croce, retira a significao cultural de hegemonia; de Lenin, a significao

    poltica. Ainda que identificando a noo de hegemonia com a ditadura do proletariado, o

    conceito gramsciano mais amplo que o leninista, pois, como foi dito, engloba o aspecto de

    direo cultural e ideolgica. Assim, sociedade civil caberia a funo de hegemonia. E

    sociedade poltica, a de dominao. sociedade civil competiria a formao do consenso;

    sociedade poltica, o exerccio da coero.

    Na noo de hegemonia gramsciana, a classe que monopoliza o poder deve ser a um tempo

    dirigente e dominante. Uma classe social dirigente em relao s classes auxiliares ou aliadas,

    das quais obtm a adeso ativa, a participao e o consentimento para o exerccio do poder.

    Uma classe dominante em relao s classes opositoras, s quais deve neutralizar - quando e se

    necessrio - pelo uso da coero. A supremacia de um grupo social, afirma Gramsci,

    manisfesta-se de duas maneiras, como dominao e como direo intelectual e moral. Um

    grupo social dominante em relao a grupos adversos, que ele busca liquidar ou mesmo

    submeter pela fora das armas, e dirigente em relao a grupos que lhe so prximos ou

    aliados.

    Cabe, pois, distinguir no interior do bloco histrico trs tipos de grupos sociais. Um primeiro,

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    formado pela classe fundamental que exerce a funo diretiva do sistema hegemnico; um

    segundo, integrado pelas classes auxiliares que, atravs do consenso, ampliam a base social da

    hegemonia; e um terceiro, composto pelas classes subalternas que, por serem opositoras, esto

    marginalizadas do sistema hegemnico.

    Aos intelectuais cabe a funo de cimentar a poltica de alianas, fornecendo a soldadura do

    bloco histrico. Primeiro, imprimindo classe fundamental um elevado grau de homogeneidade

    e autoconscincia, isto , transformando-a de classe em si em uma classe para si. Em seguida,

    assimilando ou suprimindo tanto os intelectuais tradicionais da antiga classe hegemnica quanto

    os intelectuais orgnicos das classes auxiliares e subalternas. Por fim, difundindo a ideologia da

    classe fundamental no conjunto do organismo social - ou seja, universalizando-a-, de forma a

    obter o consenso necessrio ao funcionamento do sistema hegemnico. Enfocado segundo a

    tica da classe operria, o partido revolucionrio o intelectual coletivo que, cumprindo as

    mesmas funes do intelectual orgnico, desenvolve nela a autoconscincia proletria. Dito de

    outra forma, o partido deve forjar um sistema de alianas que articule as classes subalternas em

    torno da classe operria, criando a base social necessria formao de um novo bloco

    histrico.

    Abordando a questo do partido como o centro de sua elaborao terica, Gramsci realiza uma

    nova leitura de Maquiavel, repensando e atualizando o mito do Prncipe. Para ele, as tarefas

    fundamentais do Prncipe moderno ultrapassam os limites do carisma de um heri individual - o

    Condo t t i e ro renascentista - e s podem ser realizadas por um partido poltico, capaz de forjar

    uma vontade coletiva nacional-popular e de edificar um novo tipo de Estado. propsito,

    escreve: O Prncipe moderno, o mito-prncipe, no pode ser uma pessoal real, um indivduo

    concreto; s pode ser um organismo, um elemento de sociedade complexo no qual comece a

    concretizar-se uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente em ao. Esse

    organismo j foi dado pelo desenvolvimento histrico e o partido poltico; a primeira clula na

    qual se resumem os germes de vontade coletiva que tendem a vir a ser universais e totais.

    Caberia, pois, ao partido revolucionrio - atravs da aliana entre a classe operria e as demais

    classes subalternas - criar um novo sistema hegemnico e assumir a direo da sociedade civil.

    Essa seria a condio preliminar e necessria para o enfrentamento final com a classe

    antagnica, de forma a arrebatar-lhe o domnio do Estado e organizar as bases de um novo

    bloco histrico.

    A originalidade do conceito de hegemonia e sua importncia na filosofia da prxis se explicitam

    na elaborao de diferentes estratgias para o Oriente (pases semi-industrializados) e o

    Ocidente (pases industrializados). Para tanto, Gramsci estabelece a comparao entre a artemilitar e a arte da poltica. Na guerra de movimento, a artilharia abre brechas nas linhas

    inimigas, pelas quais irrompe a infantaria e obtm uma vitria imediata e decisiva. Na guerra de

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    posio, o equilbrio de foras entre os antagonistas implica uma estratgia de desgaste e a

    perspectiva de uma vitria a longo prazo. Na arte da poltica, a guerra de movimento seria o

    ataque direto e frontal ao poder, do qual resultaria a conquista imediata do aparelho de Estado.

    A guerra de posio designaria, por sua vez, uma luta prolongada pela obteno da

    hegemonia na sociedade civil, como condio prvia para o domnio da sociedade poltica. As

    crises econmicas, que enfraquecem e desorganizam momentaneamente as foras inimigas,

    desempenhariam no plano da poltica o papel da artilharia pesada na arte militar.

    Na Rssia de 1917, os bolcheviques conquistaram o poder de assalto e puderam conservar o

    domnio do Estado, pois a sociedade poltica al era tudo e a sociedade civil no era nada.

    Em outras palavras, o domnio do aparelho de Estado possibilitou classe operria estender em

    poucas semanas sua hegemonia ao campesinato e assumir o controle dos centros vitais e dos

    pontos estratgicos do pas. No Oriente, escreve Gramsci, o Estado era tudo, a sociedade civil

    era primria e gelatinosa; no Ocidente, ao contrrio, existia uma correlao eficaz entre o Estado

    e a sociedade civil, e a um tremor do Estado podia ver-se uma robusta estrutura da sociedade

    civil. O Estado era apenas a trincheira avanada, atrs da qual existia uma poderosa cadeia de

    fortalezas e casamatas (...)

    Dessa diferenc iao fundamental entre Oriente e Ocidente - cujos exemplos extremos eram a

    Rssia de 1917 e a Itlia de 1922 - Gramsci extrai importantes concluses de ordem estratgica.

    Na Itlia, contrariamente ao que sucedera na Rssia, a crise desorganizou a classe operria e

    culminou com a vitria do fascismo. Ali, o desenvolvimento do capitalismo industrial conduziu

    democrac ia liberal-burguesa e engendrou uma soc iedade c ivil forte, complexa e articulada, que

    possua a uma correlao eficaz com o Estado. Como decorrncia dessa correlao eficaz, a

    debilidade conjuntural do Estado em 1920-22 foi compensada pelo surgimento, na esfera da

    sociedade civil, de grupos para-militares que - apoiados pelos capitalistas, latifundirios e

    camadas mdias - garantiram pela fora a sobrevivncia do Estado.

    A primazia da sociedade civil sobre o Estado nos pases capitalistas avanados levou Gramsci a

    traar para o Ocidente uma estratgia distinta da que fora empregada no Oriente. Dito de

    outra forma, no Ocidente a guerra de movimento deveria ceder lugar guerra de posio.

    A luta pela conquista de uma hegemonia incontestvel sobre a sociedade civil, a obteno de

    um vigoroso apoio das classes subalternas, a formao de uma ampla rede de alianas polticas

    e a construo de um novo bloco histrico que oferecesse uma clara alternativa ao bloco

    histrico dominante, todas essas condies deveriam necessariamente preceder a conquista do

    aparelho de Estado. Em sntese, nos pases capitalistas avanados do Ocidente, onde existia um

    equilbrio adequado entre sociedade civil e sociedade poltica, era imprescindvel, para umanova classe que pretendesse ascender ao poder, primeiro, tornar-se dirigente na sociedade civil,

    para, depois de conquistada essa direo moral e intelectual, tornar-se finalmente dominante

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    no Estado.

    Em 1928, quando do julgamento de Gramsci, o representante do Estado fascista lanou sobre o

    acusado poltico o seguinte antema: preciso impedir esse crebro de pensar por vinte anos.

    Em 1937, aps uma dcada de martrio nas masmorras do fascismo, morria Antnio Gramsci. Em

    1997, sessenta anos depois de sua morte, os Ca d ernos d o Crc ere acrescentam uma nova e

    grandiosa dimenso estatura de Gramsci como ser humano, personagem histrico, terico

    marxista e dirigente poltico da classe operria. Quanto memria de seu verdugo, no ficou

    nem poeira daquele esbirro do fascismo, e seu nome perdeu-se para sempre nos esgotos da

    Histria. Antnio Gramsci, porm, imortalizado nos Quade rn i , viver pela eternidade ou, para usar

    suas prprias palavras, fr ewig.

    ________________________

    Prof. Dr. Oliveiros S. Ferreira- Agradeo as intervenes dos colegas. Bom, primeiro, no fundo, o

    que eu pretendi fazer foi simplesmente dizer, voltando Flandres, que extremamente difcil

    estabelecer a hegemonia baseando-se simplesmente na fora. Segundo: eu creio que a

    comparao levantada aqui entre a Flandres e o Oriente um tanto quanto exagerada.

    Encontraremos reflexes especficas sobre o Oriente, em que se apresenta a soc iedade civil como

    gelatinosa. At o velho Trotski diria que o capitalismo na Rssia foi uma criao do Estado e que a

    sociedade civil no tinha condies para isso. Mas, imaginar que a Flandres fosse gelatinosa por

    ter sido destruda pela guerra - a economia destruda pela guerra, a sociedade dilacerada pela

    guerra, embora uma guerra prolongada - nos permitiria ousar dizer que os pases que foram

    destrudos pela primeira e segunda guerras, estavam na situao da Flandres - o que no

    verdade. Creio que a comparar Flandres com o Oriente , digamos, levar o poder um pouco

    longe demais.

    Em segundo lugar, a referncia ao Palcio de Inverno, recordou-me o livro de um coronel

    canadense - que eu li h muito tempo - chamado Go lpe de Estad o .Ele dizia que, se houvesse um

    regimento fiel, a revoluo no teria acontecido. De incio, o Leonel tem toda a razo. Agora,

    sucede que a guerra civil, que foi at 21, se no me engano, no se deu apenas porque as

    potncias ocidentais fizeram a sua interveno: os generais brancos no teriam reduzido o poder

    sovitico, em novembro de 18, ao que fra o antigo gro-ducado de Moscou, no fosse a

    adeso de massas. De massas que acreditavam na igreja ortodoxa, que acreditavam no czar. O

    Gramsci dizia que a revoluo s tinha chegado ao campo quando o primeiro soviete foi criado

    no campo, em 1923. Qual era a situao do partido? O partido estava na guerra civil. E guerra

    civil e hegemonia realmente no combinam - embora no devssemos deixar de refletir sobre oque Trotski dizia sobre a organizao: sem dvida, foi essencial para que o Exrcito Vermelho

    pudesse vencer a guerra civil. Mas se no fossem as idias da revoluo - vamos admitir que seja

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    propaganda - a organizao teria sido ineficiente. De maneira que, digamos, no plano das idias,

    ns podemos realmente colocar as coisas assim.

    Eu ainda chamaria a ateno para uma outra coisa: se lermos com ateno os Cade rnos, no

    encontraremos uma definio nica de Gramsci do que seja hegemonia. por isso que eu

    questionei, a certa altura, se era o Oliveiros que estava interpretando o Gramsci, ou se o Gramsci

    que eu lia era o Gramsci que eu colocava nas minhas palavras. Eu tenho a impresso que foi um

    pouco isto: eu pensei um pouco em encontrar apoio no Gramsci. Fui l e encontrei! Mas vejam, a

    hegemonia para o G ramsci a um tempo fora e consenso: direo intelectual e moral e, mais

    do que isso, a hegemonia funo. O chefe de estado exerce, pela sua funo, a hegemonia - o

    que realmente complica qualquer tentativa de se chegar a uma definio precisa do que o

    Gramsci pretendia dizer sobre hegemonia.

    Uma observao ainda sobre o que o Leonel disse: que aps a conquista do poder, o grupo que

    o conquistou - ainda que seja uma sociedade Oriental - tende se tornar hegemnico. Tem de se

    transformar em dirigente. Isso no ortodoxia: quando vou ao poder, eu j tenho de ser

    dirigente. Isso est c laro no Gramsci, se vocs lembrarem da citao. Porque, notemos o seguinte:

    os hegemnicos no somos ns, que estamos reunidos aqui nesta sala, no; ns somos os

    intelectuais, os instrumentos do grupo hegemnico, quer dizer, o puro Gramsci e as guerras de

    posies. Sem dvida alguma, a guerra de posio uma noo gramsciana; mas necessrio

    ver, eu creio, bom que se diga, que ao se fixar no poder, esquecemos as transformaes que se

    do no seio da sociedade, que alteram as relaes de fora, as relaes de poder. Esquecemos

    que os revolucionrios - que entendem dessas coisas muito mais do que ns - tinham essas

    transformaes da sociedade em mente. Lnin quis atrasar - e atrasou tanto quanto possvel - a

    insurreio, porque ele queria ter a maioria na turma: queria ter uma espcie de legitimidade

    popular para tomar o poder. Quer dizer, ele no estava preocupado exclusivamente com o

    programa do poder: estava preocupado com a repercusso que isso teria sobre a populao.

    Agora a interveno doCcero. Vejam, quando Rousseau fala no pluralismo - se possvel ou no

    a coexistncia de concepes do mundo contraditrias, e que o predomnio de uma se dar

    pela opresso da outra ou pela converso -, lembro-me de duas coisas: uma o Gramsci, que

    citarei logo em seguida; outra o Orwell do 1984, em que o pobre coitado caiu nas mos do

    ministrio do amor: o ministrio do amor no queria que ele abjurasse, no queria que ele se

    confessasse oprimido. Porque todo mundo sabia que ele se confessaria oprimido: ele queria a

    converso dele, se necessrio pela fora - quem leu 1984 sabe que ele se converte,

    transformando a sua personalidade: coloquem a minha namorada no meu lugar e no me

    torturem.

    Mas no Gramsci - eu diria que h uma quase concordncia - acontece sempre que as pessoas

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    singulares pertencem a mais de uma sociedade particular. E amide sociedades que

    essencialmente esto em contraste - esse pedao eu li. Uma poltica totalitria tende assim: 1) a

    obter que membros de um determinado partido - se voc quiser, grupo social - encontrem nesse

    s partido todas as satisfaes que antes encontravam em uma multiplicidade de organizaes,

    isto , a romper todos os fios que ligam esses membros a organismos culturais estranhos; 2) a

    destruir todas as outras organizaes ou a incorpor-las em um sistema no qual o partido seja o

    nico regulador. E isto acontece: a) quando o partido dado portador de uma nova cultura - a

    se tem as vrias condies sucessivas de algo, uma fase progressiva; b) quando o partido dado

    quer impedir que uma ou outra fora portadora de uma nova cultura se torne ela totalitria, e se

    tenha uma fase recessiva e reacionria.

    A converso vem, como eu tentei demonstrar, pelo estrangeiro secular. E a vem realmente,

    como voc observou, porque no apenas um socilogo, mas tambm um observador da

    natureza humana. Quer dizer, a preocupao do Gramsci em acentuar o sentimento de

    liberdade, autonomia e poder, que nossa prpria, como o embrio de razo que existe no

    homem natural de Devane ios, do Disc urso sob ra a d esig ua ld a d e. Esta preocupao uma

    preocupao de fato com a condio humana. E esta preocupao com a condio humana

    que permite o progresso: se o simples no tivesse esse sentimento de autonomia,

    independncia e poder, o homem que o partido enviou a Fontamara no teria conseguido fazer

    o jornal. Seria impossvel fazer o jornal, porque todos estariam submetidos velha concepo de

    que Deus o senhor de todas as coisas e de que o prncipe est agora em cima da terra.

    E antec ipo - misturando as coisas: eu no diria, e no direi, que o Gramsci tem a preocupao de

    fazer comparaes com o predomnio catlico na Idade Mdia: ele preocupava-se em ter,

    digamos, como ponto de referncia na conquista do simples a Igreja Catlica. E mostrar como

    esta Igreja no seu tempo capaz de desenvolver uma pedagogia, uma propaganda para dois

    tipos de pessoas: para ns, que somos os intelectuais - e a ns podemos discutir se realmente os

    nomes escritos no Mar Morto valem ou no valem, etc., etc.; e uma outra pedagogia para o

    simples, para quem essas coisas no valem: o simples tem de ser abordado substituindo-se a

    liturgia pela f ... vo a missa todos os dias, respeitam o padre, saem correndo atrs dos

    pentecostais, etc. O que no impede tambm que esse princpio de liberdade e autonomia

    provoque c ises. E essa preocupao com condio humana - esse dado indemonstrvel, que

    difcil para um marxista -, esse dado de que h este sentimento de autonomia, liberdade e poder,

    que o leva a afirmar claramente - e a se d a grande crise da hegemonia - que, na sua vida

    normal, o simples se diz um simples e se distingue do outro, no porque seja mais inteligente, ou

    seja sua percepo mais apurada, ou porque a natureza o fez diferente, mas porque ele percebe

    que h algo diverso na fbrica: ele percebe que l h algo d iferente - e se distingue daquele queacha que no h nada de diferente na fbrica.

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    A partir desse momento em que ele se distingue, que comea raciocinar fora do quadro

    hegemnico que foi imposto, da concepo do mundo que aprendeu quando criana, que

    conheceu na escola, que vivenciou nos tribunais, a quando ele comea a descobrir que isso

    tem algo de mais profundo do que simplesmente o positivismo legal, autoridade tradicional

    paterna e assim por diante. Ele caminha para a distino: diferencia e depois distingue - eu sou

    diferente. E a partir do momento em que sou diferente, eu estou em condies de romper. E a ele

    faz meno tal ciso. Veja, o dilogo no de surdos, porque, eu diria, vamos imaginar que

    no tivesse lido Rousseau e sem ter lido o Gramsci, ele chega mesma concluso. Quer dizer, a

    hegemonia, dado o fato da sociedade ser plural, polisegmentada, complexa, de c lasse, etc, tem

    de ser estabelecida por um partido que seja totalitrio. E com relao aos valores dessa

    hegemonia: essa hegemonia - ele cita vrias vezes - tem o sentido de religio. algo ao qual ns

    aderimos emocionalmente. E isto fundamental: e a partir do instante que aderimos

    emocionalmente, estamos dispostos a morrer por isso. E se no estivermos dispostos a morrer por

    isso, ns no seremos nem hegemnicos, nem hegemoniados. Porque - agora o problema da

    soc iedade moderna, tal como eu vejo hoje, e da a tentativa de reviso da Flandres - o n, hoje,

    que o pluralismo est chegando a extremos extraordinariamente graves.

    E a eu volto outra vez aos clssicos, porque os clssicos j viam tudo, e diviso do trabalho:

    Comte j falava na diviso anmica do trabalho, que isto que ns estamos vendo hoje. Uma

    diviso anmica do trabalho que produz anomia na sociedade - e quem duvidar da anomia da

    soc iedade s precisa ir periferia de So Paulo, para no falar das favelas do Rio de J aneiro: a

    anomia se manifesta nos dois estados. Ns temos o estado constitucional, no qual nenhum de ns

    acredita: os dois modelos do estado, o judicirio e o legislativo, esto reduzidos a zero. O que

    sobra: Luiz Napoleo Bonaparte. Eu lembraria uma c itao, se no me engano de um soc ilogo

    da escola francesa, que diz que o nico ponto de convergncia numa sociedade

    polissegmentada e complexa o estado. portanto, digamos assim, um acordo sobre os

    princpios bsicos o que nos leva a obedecer a lei positiva. E, no instante em que esse estado se

    fragmenta - porque seu corpo administrativo se corporativizou e a sociedade tambm -, fica difcil

    estabelecer a hegemonia: quem vai ser hegemnico? O juiz? O deputado? Quem?

    Bom, quanto questodele imaginar ou no uma sociedade futura, eu diria que ele fala pouco

    de uma sociedade futura. evidente que est presente o pensamento dele. Mas ele usa a

    expresso soc iedade regulada, que d margem s mais diferentes interpretaes.

    Prof. Dr. Ccero Romo de Arajo- Algumas falas aqui me fizeram recordar o Weber, quando fala

    que os homens tm sde tanto de bens materiais quanto de bens espirituais. E essa sde - queenvolve dois tipos de mente - me faz vir cabea a questo do surgimento de vrios movimentos

    religiosos, no s no Brasil, mas em escala internacional. Ao mesmo tempo que do ponto de vista

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    dos sistemas econmicos e polticos parece imperar o niilismo, como se a contrapartida deste

    imprio do niilismo nos sistemas econmicos e polticos gerasse, na franja da soc iedade, essa sde

    mais intensa ainda de bens espirituais. Agora, o interessante que a nossa sociedade vive um

    processo de espraiamento destes sistemas, e particularmente da empresa capitalista no nvel

    internacional, que parece conviver perfeitamente com budistas, islmicos, catlicos,

    pentecostais, etc.

    como se a empresa capitalista hoje pudesse se relacionar com tudo, sem ter necessariamente

    de converter o budista, o catlico, ou o pentecostal: tudo se passa como se houvesse entre eles

    uma relao completamente assptica. E, por outro lado, esses crentes convivem com os frutos

    dos resultados tecnolgicos e com a produo da empresa capitalista, sem se contaminar. O

    islmico do Afeganisto poder usar um mssil de ltima gerao sem se contaminar com isso. Eu

    fico perplexo diante desta questo. Por outro lado, percebo que nos comentrios do Prof.

    Oliveiros, e mesmo do Leonel, ao contrrio do que acontece em Rawls, h uma viso bastante

    pessimista em relao segmentao. Talvez por isso o Prof. Oliveiros use a palavra

    polissegmentada, e no pluralista - ponha a nfase no termo polissegmentado, e no no

    pluralismo. O pluralismo parece ter uma conotao mais positiva, enquanto polissegmentado tem

    uma conotao mais ameaadora, de algo terrvel que pode estar amea ando a estabilidade

    do sistema poltico. Parece-me que esta viso esconde um certo pessimismo.

    Prof. Dr. Oliveiros S. Ferreira- Eu, por ex., sou pessimista. Bom, duas ou trs observaes rpidas. Eu

    lembraria Rousseau: um rei imbecil pode at governar as pessoas. Mas s se conquista as pessoas

    quando se conquista os seus coraes. Voc levanta um problema srio, que o da, digamos

    assim, sede de bens espirituais e materiais que coexistem. Eu duvido que um religioso abdique de

    bens materiais - a no ser que seja um trapista, um aceta. A sede de bens materiais me parece

    hoje mais importante: ela se alastra com uma rapidez que ns no conseguimos imaginar:

    falamos em islo, em catolicismo, mas nos esquecemos do orientalismo, que est abraando por

    esse pas, do sincretismo religioso que j se espalhou por todas as camadas sociais. E a est uma

    coisa curiosssima: isso a prova que as organizaes faliram - organizaes tais como Igrejas

    Catlicas, Protestantes - tradicionais -, faliram como apelo, porque so organizaes que talvez

    no queiram ficar na organizao.

    E, s para concluir, no que se refere a essa busca de bens espirituais - j que voc falou na

    derrota de Cristo -, eu lembraria So Paulo, que foi quem triunfou pela organizao. Na primeira

    epstola a Timteo - eu guardo de memria porque acho fantstica -, So Paulo dizia que o

    dinheiro no mal: o mal a cobia do dinheiro. E o que ns estamos vivendo hoje a cobiado dinheiro. por isso que o mal est instalado. E lembraria, s para encerrar, que Satans no

    um rebelde. Satans, como est no velho testamento, um princpio no criado, ele anda e

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    conversa com Deus quando quer.

    Eu agradeo a colaborao e os comentrios dos companheiros. Desculpem se me excedi um

    pouco.

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    2.A CONSTRUO DA HEGEMONIA NO BRASIL: UMA VISO

    GRAMSCIANA

    Prof. Dr. Luis Werne c k Via nna

    IUPERJ

    Olha, agradeo sinceramente o convite para estar aqui, e particularmente por poder participar

    dessa mesa com pessoas que me so to caras, embora tenha estado acostumado a conviver

    com elas num espao extra acadmico. Mas enfim, foi a sorte que nos ps nesse latifndio, de

    estarmos hoje todos vivendo o mundo da institucionalizao, da cincia dentro da universidade. tudo diferente do que a gente queria, mas - vai ver! - tudo exatamente igual ao que a gente

    merecia.

    Vou tentar fazer uma interveno tranqila e descansada, procurando estabelecer um dilogo,

    uma conversa, sem a menor tentativa de convencer, de persuadir. Trata-se basicamente de

    conduzir a uma problematizao.

    Estou convencido a mim mesmo, posso convencer! - de que h um problema de interpretaodo Brasil. O melhor exemplo disso foi dado numa entrevista recente revista Veja do Presidente

    da Repblica, colega nosso, que formulou um projeto de governo, um projeto para o Brasil, com

    base numa interpretao do Brasil. Nesse sentido, est havendo uma enorme articulao entre

    vida pblica e universidade. Essa articulao diz respeito a quem o melhor portador de uma

    interpretao do Brasil, sendo capaz, a partir desta interpretao, de solidarizar uma aliana

    larga, no sentido de realizar ou viabilizar suas intenes, consumar seus projetos e suas

    motivaes. Essa disputa vem de longe e penso que a raiz de tudo isso est no Imprio, que um

    perodo que precisamos conhecer melhor para que possamos entender o que somos.

    no nascer do Estado-nao brasileiro que se estabelece a natureza mais profunda dos partidos

    que aqui se apresentam. Qual a controvrsia que os divide? H vrias controvrsias. A

    centralidade na questo da poltica, do Estado, a perspectiva dos liberais. Para eles, na raiz dos

    nossos erros, na herana dos nossos males, estaria a transmisso do Estado patrimonial portugus,

    que teria, na linguagem do R. Faoro, atravessado o oceano. Do outro lado, h a nfase numa

    sociologia - especialmente numa sociologia agrria - de uma percepo do patrimonialismo a

    partir da prpria sociabilidade, em oposio queles que o entendem a partir da configuraoda histria. Esse o partido de Oliveira Vianna, o partido de Florestan Fernandes e sobretudo de

    um clssico da sociologia brasileira, para mim clssico entre os clssicos, apesar de todos os

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    problemas que tem, que o livro de Maria Slvia Carvalho Franco, Hom en s Livres na O rd em

    Escravocrata.

    Temos vivido esta controvrsia por algum tempo, sendo que formulamos projetos, a partir das

    interpretaes do Brasil que tomam expresso dentro desses dois blocos, valorizando a nossa

    tradio ou a desqualificado. Basicamente o dilema se apresenta entre continuidade de um lado

    e descontinuidade do outro. Um bom exemplo dessa antiga oposio est na srie de

    controvrsias, de 1944, entre Roberto Simonsen e Eugnio Gudin, a respeito de se o pas teria

    vocao industrial ou agrria. Mas voltando entrevista presidencial, j que a mencionei no bom

    sentido, anoto que a vai clara meno descontinuidade.

    O partido liberal o partido da descontinuidade entre ns. o partido que identifica l na nossa

    origem um elemento de despotismo, de orientalismo. Lembro, por exemplo, que para estudar a

    distncia que contrapunha o Estado sociedade civil no Imprio, Simon Schwartzman, em Base s

    d o A ut o rita rism o Bra sile iro, chega a fazer uma citao do estudo de Karl Wittfogel consagrado ao

    despotismo oriental. Esta tambm a identificao que faz Tavares Bastos da natureza de nosso

    Estado, como sendo um Estado oriental.

    De outro lado, o Florestan mostra que o Estado nascido aqui no incio do sculo XIX tem um

    componente liberal, onde o liberalismo no uma idia fora do lugar. Possui, ao contrrio, um

    elemento revolucionrio, que atua ao longo do Imprio, e ajuda a produzir a complexificao e a

    diferenciao da vida social, muito especialmente, no que se refere sua dimenso mercantil.

    Este tambm o Estado de Maria Silvia C. Franco, particularmente no captulo em que estuda a

    administrao pblica em Guaratinguet. Ali ela demonstra como o que havia de novo - a

    tentativa de criar uma ordem racional-legal - derivava do Centro. Assim se estabelece uma

    perspectiva oposta a de R. Faoro no uso do modelo weberiano: no curso da modernizao, a

    ordem privada vai se apropriando da administrao pblica e da administrao da justia.

    Mas por qu o primado de uma ou outra interpretao? Por que este pas no se arruma? No

    consegue se alinhar com a sua prpria histria e no consegue formular um projeto de devir

    apenas a partir da fsica dos seus interesses, embora um dos partidos, o partido da

    descontinuidade, defenda a prevalncia desta dimenso, da fsica dos interesses? Quando

    Raymundo Faoro discute o Estado Novo, na pg. 725 do penltimo captulo do segundo volume

    de Os Dono s d o Pode r, coloca juntamente em seu panteo da malaisebrasileira, J os Bonifcio,

    Dom Pedro II e Getlio Vargas. H claramente a a explicitao de um ponto: de que o interesse

    deve deslocar a metafsica.

    Nesse sentido, venho trabalhando h algum tempo, procurando elucidar, pelo menos para mim,

    essas questes que tm uma incidncia to poderosa na vida republicana. de se notar que

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    quem redigiu o discurso de posse de Fernando Collor de Mello tenha sido J os Guilherme

    Merquior, trabalhando em cima de Os donos do pod e rcomo livro-texto. E a referncia central,

    organizadora de toda a interpretao da j referida entrevista do Presidente Fernando Henrique,

    est na categoria de patrimonialismo. Mas por que vale a pena sovacar tambm o eixo da

    continuidade e nisso a procurar desvendar o que seja esta Ibria brasileira?

    Penso que a categoria revoluo passiva em Gramsci seja muito fecunda para estabelecer os

    termos de uma discusso. Tenho mesmo procurado sugerir a natureza precoce e singular da

    revoluo passiva no Brasil e na Amrica Ibrica de maneira geral. Vale a pena,

    consequentemente, escrutinarmos as condies em que esse processo se deu e procurarmos

    tambm trazer o tema do Risorgimento, tal como trabalhado por Gramsci, no sentido de nos

    ajudar a arrumar essa questo.

    Por outro lado, se pode dizer que a Amrica, tanto a do Norte como a do Sul, filha das

    revolues nacional-libertadoras. O primeiro marco das revolues nacional-libertadoras da

    Amrica do Norte, antes, portanto, de 1789. A Amrica chega, assim, tambm a participar do

    debate europeu, na medida em que a Revoluo Americana confirmava A Riq ue za d a s Na e s,

    de Adam Smith, e favorecia a emergncia das idias libertrias revolucionrias na Frana do final

    dos anos 80. A Revoluo Americana , portanto, anterior Restaurao e faz parte do

    movimento de conformao do que havia de mais novo no mundo no seu momento.

    No entanto, no nosso caso, no caso da Amrica Ibrica, o processo se singulariza. Em primeiro

    lugar, porque com a Restaurao pegamos o ciclo declinante do liberalismo, do ponto de vista

    poltico; e de outro lado, porque na medida em que esse subcontinente se libera do domnio

    ibrico, ele tambm confirma e consagra a expanso inglesa. Ento ns somos filhos desse

    momento em que, em sua forma pura, o liberalismo poltico perde mpeto, na sua capac idade de

    universalizao. Mas, por outro lado, o liberalismo econmico se torna dominante e vai viver uma

    trajetria de afirmao mundial.

    S que neste contexto ns, brasileiros, nos particularizamos ainda mais, porque nossa revoluo

    nacional-libertadora foi abortada devido transmigrao. E a transmigrao um episdio de

    uma luta europia envolvendo a Frana e a Inglaterra, na poca do domnio dos exrcitos de

    Napoleo, em que a nossa famlia real foge da revoluo. Ironicamente, foge de uma revoluo

    l para fazer uma outra revoluo aqui. Mas com isso o que se frustra? O processo que vinha se

    acumulando desde antes da Inconfidncia, que era um processo nativista, que tendia a fazer

    com que o nosso caso reiterasse o que ocorreu na Amrica Hispnica em geral, de nos prmos

    em armas, com nossos caudilhos, os nossos jacobinos, nossa massa ignara, a ral sem direitos ...

    Mas, ainda mais srio, do ponto de vista da contextualizao, do avano da ordem burguesa no

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    mundo: ns fazemos parte deste momento to plido, to sem cor, do ponto de vista da sua

    expressividade poltica - e to poderoso no que se refere sua expressividade econmica -, que

    o da expanso da Inglaterra, do incio da hegemonia britnica sob a forma moderna de

    mercados abertos, de circulao de mercadorias, da Revoluo Industrial.

    Ento, como pode se dar essa revoluo nacional-libertadora frustrada, realizada por um homem

    que viveu 40 anos no contexto europeu, J os Bonifc io, e pelo prncipe herdeiro de Portugal, que

    institui uma monarquia constitucional, correspondente ao que queriam alguns setores, digamos,

    mais liberais? verdade que chegamos a uma constituinte. verdade que chegamos

    explicitao de uma constituio; verdade que nosso Estado nasce do contexto da

    explicitao de uma ordem racional-legal - o Cdigo Penal de 1830, elaborado por Bernardo

    Pereira Vasconcelos, um liberal com formao de scholar;e todo ele, como se sabe, informado

    pela obra de J eremy Bentham. Outro exemplo dessa atitude nosso Cdigo de Processo Civil,

    que de 1832.

    Nesses casos, v-se que o que est a o Estado tentando criar sobre a sociedade uma ordem

    racional-legal, embora num contexto de latifndio, de escravido. particularmente na questo

    agrria, como nota precisamente Florestan Fernandes, em A Revo luo Burg ue sa no Brasil, que se

    estabelece a re sta urao que define esse processo. A restaurao da estrutura da economia

    colonial, por meio da qual o Estado emergente estabelece a sua relao com o mundo, se

    inscreve no contexto internac ional, no mercado mundial, nas relaes internacionais.

    Acentuando ainda mais essas tendncias liberais, a luta contra o poder moderador, contra o

    Conselho de Estado, a idia de uma monarquia constitucional, a descentralizao, etc, so idias

    que assumem particular importncia na dcada de 30, depois do 7 de abril, da abdicao de D.

    Pedro I. Esse momento pode ser interpretado como uma tentativa de se viver uma experincia

    americana. Se se toma o Ensaio sobre Direito Administrat ivo, do Visconde de Uruguai, que

    pertence ao outro partido - especialmente o captulo dedicado centralizao -, um dos autores

    mais citados Tocqueville e seu A De m oc ra c ia na Amric a. E Tocqueville citado de forma no

    s abundante, mas muito generosa em relao sua produo. Um ponto que se estabelece

    de que ns somos out ros, porque na idia da continuidade est presente a idia de que temos

    uma distintividade. E a pode-se lembrar de dois autores que fazem parte do nosso imaginrio e

    que ajudam muito a evocar essa tradio: Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro.

    Agora o que foi o perodo dos anos 30? Um perodo de ressurgimento daquilo que ficou

    obstaculizado, porque a nossa revoluo nacional-libertadora se frustrou. Mas qual foi o contexto

    que acabou por se formar durante a Regncia? Anarquia, guerra civil, ameaa de separatismo,etc. No penso, porm, que este o momento em que a Ibria, mais uma vez como presena

    nefasta sobre a nossa histria, se materializa para nos aviltar. Acredito que este foi o momento da

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    construo pragmtica brasileira, do nosso iberismo: a construo da nossa Ibria. Mas uma

    Ibria que faz referncia tambm Inglaterra e aos EUA. A Amrica, como grande desiderato,

    um lugar para onde se deve ir; mas a Amrica como uma impossibilidade, por estarmos num

    contexto muito perverso para a instituio de um processo com este tipo de orientao.

    No entanto, qual era a alternativa liberal? Digamos que entre unidade e liberdade se deva ficar

    com a dimenso da liberdade. Agora, qual era o preo de vivenciar a dimenso da liberdade

    naquela circunstncia? Era o da revoluo agrria, anti-escravista, jacobina e popular -

    concebido isso como um processo de revoluo permanente. A memria dos nossos liberais no

    consulta, porm, esta hora decisiva, esta hora determinante, porque esto convencidos de que a

    este Estado que recebemos como herana cabe a responsabilidade pelos nossos padecimentos,

    pelos nossos males, como dizia Tavares Bastos. E contra isso que eles se voltam. Mas para libertar

    o qu? Simplesmente: o indivduo, a fsica dos interesses.

    Quem entendeu isso magnificamente bem foi Oliveira Vianna, no primeiro volume dePop ulae s

    M e rid iona is d o Bra sil,quando deu graas a Deus pelo fato de que os liberais no tivessem feito

    interpelaes democrticas no mundo agrrio. Porque com a habilidade militar do sertanejo, a

    habilidade militar do caudilho e com aquilo que poderia ser feito com o matuto do Centro-Sul, se

    teria armado uma revoluo democrtica nesse Pas - a construo dele -, que teria

    comprometido a grande obra da unidade nacional. A interpretao liberal, portanto, se tem

    fixado no plano da poltica, da reforma poltica, da reforma das instituies polticas, como

    prvias para a mudana do pas. Historicamente, se tem mantida desatenta, ao largo da

    sociologia brasileira, especialmente da sociologia agrria brasileira. Penso que isto representa

    uma hipoteca da interpretao liberal que faz com que ela perca muito da sua capac idade de

    persuaso.

    Entendo, assim, que esses anos 30 foram como um momento decisivo - hora em que as opes

    estratgicas determinantes para o futuro do pas se apresentaram de forma mais clara. A partir

    da forma tomadas certas decises na dcada de quarenta, especialmente com a lei de

    interpretao do Ato Adicional, que devolveram a preponderncia do Centro sobre a

    sociedade, afirmando uma clara primazia do pblico sobre o privado entre ns. A questo

    fundamental do momento ser: unidade ou secesso. Insisto que um liberal poderia

    perfeitamente abrir mo da un i dadeapostando no partido da l iberdade, mas o preo d isso era a

    revoluo permanente.

    Com isso se abre o perodo do Segundo Reinado, com uma marca que acredito no uma

    transferncia direta de fora, mas uma opo estratgica interna - o que no quer dizer que nohaja comunicao com a cultura pombalina, ibrica.

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    Vive-se nessa situa o por quase 50 anos. At que com a proclamao da repblica, ou melhor,

    com o governo Prudente de Moraes, o pas muda de orientao. Mas a que preo?

    Fundamentalmente com a privatizao do pblico. O mundo dos interesses emerge, com So

    Paulo conseguindo instituir os seus interesses como interesses dominantes a serem universalizados

    pelo Estado. A poltica do Convnio de Taubat, de 1906, expressa muito isso e j foi estudada

    suficientemente por Celso Furtado e tantos outros. Mas, por outro lado, este liberalismo foi

    tambm incapaz de dar encaminhamento satisfatrio emergente questo social brasileira que

    vinha ganhando fora com a industrializao.

    Conhecemos o caldo de cultura complicado que esteve presente nos anos 20 desse sculo. E de

    como 1930, com esse personagem contnuo a Pombal, J os Bonifc io, D. Pedro II, que foi

    Getlio Vargas: restaura-se o patrimonialismo, a prevalncia da administrao, do direito

    administrativo, das concepes administrativas - com a correspondente linguagem de denncia

    por parte de seus detratores, sobre os cartrios, o estamento burocrtico, a desqualificao da

    esfera pblica. Paradoxalmente, contudo, a Revoluo de 1930 foi capaz de universalizar sua

    proposta. O que foi possvel, em primeiro lugar, porque foi-se capaz de direcionar a mudana de

    eixo do pas, no sentido da industrializao, e sobretudo da questo social, com o

    estabelecimento da legislao social. Isto, apesar da organizao corporativa dos sindicatos. Mas

    o mais importante que o sindicalismo, os trabalhadores urbanos, foram trazidos, a partir da, para

    o interior da coleo das pessoas com direito nesse pas.

    Um outro momento complicado de confronto entre os partidos da descontinuidade e da

    continuidade o final dos anos 50. Este um momento que ope o ISEB USP, ou eixo ISEB-PCB

    versus USP. A USP apresenta uma outra leitura do Brasil: pensava a poltica no pela poltica, pelo

    Estado, mas pela sociedade, em que se procura emancipar o interesse da poltica. O que

    aparece, por exemplo, no tema do populismo no Franc isco Weffort, nosso colega, e tambm no

    tema do nacional-desenvolvimentismo em Florestan - em ambos significando mudanas que

    confirmavam o processo de dominao. A idia bsica por trs dessa interpretao de que a

    modernizao conduzida pelo Estado no trazia consigo o aumento da autonomia dos setores

    subordinados da sociedade. Dessa forma, a soluo imaginada de que era necessrio criar

    uma situao quase de limpeza social, em que a estrutura de classe pudesse se manifestar em

    toda a sua integridade, sem conhecer os obstculos, os entraves, as intromisses da esfera

    poltica que abastardariam a constituio de uma boa identidade classista.

    A fsica dos interesses recebe, portanto, atravs da USP, este reforo. No toa, em So Paulo

    que surgem o PSDB e o PT. Da crtica ao Estado sai o PSDB. Da crtica a uma situao de vida

    popular, trabalhadora, contaminada pela poltica do Estado, sai o PT. Mas tanto um como o outrodefendem a idia de que preciso exercer essa descontaminao, criando uma estrutura de

    classe perfeita, europia.

  • 5/28/2018 IEA Caderno Gramsci (Kritsch&Ricupero - Orgs)

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    Na outra ponta aparecem o ISEB e o PCB. Essa ponta trabalha em que direo? Na direo da

    continuidade. E pela primeira vez no PCB, com a Declarao de Maro de 1958, afirma-se a

    revoluo passiva como um cenrio propcio para o avano da luta popular, das conquistas

    sociais e da democracia no Brasil. A revoluo passiva aparece, portanto, no como um

    programa, mas como um critrio de interpretao. Ningum ingnuo de desconhecer os limites

    da anlise feita no interior desse eixo, na perspectiva do ISEB, e do PC B, especialmente com a sua

    crena de que na polarizao atraso-modernidade estaria contida a possibilidade quase

    mecnica de superao de um plo pelo outro. Mesmo assim, foi um momento, eu diria, de

    reconhecimento por parte da esquerda brasileira do processo fundo e surdo que vinha se

    desenvolvendo no pas.

    O golpe de 64 enlouqueceu esse quadro, mas por pouco tempo, porque logo em seguida as

    foras sociais e polticas tenderam ao alinhamento no sentido do caminho da continuidade. E

    assim se buscou a transio poltica do autoritarismo para a democracia. No foi um processo

    fcil: havia quem indicasse o caminho da ruptura. Mas em muito pouco tempo estas propostas

    estavam entregues ao reino da pura fabulao e vivemos a transio - claro que por 15 anos -

    com uma lgica dominada pela disputa de hegemonia que envolve a interpretao sobre o

    Brasil.

    Mas como completar o Brasil? Orden-lo, segundo os valores do mercado, garantir o ensino

    elementar para todos, uma universidade de elite bem treinada, uma estrutura de classes

    educada, disposta em torno dos seus interesses destitudos de metafsica recriando o capitalismo

    a partir de um expurgo societrio de sua histria e tradies? Diria que a transio esteve por

    muito pouco para se definir por este caminho. E o que a tirou dele e abriu novos rumos

    surpreendentes, inesperados, foi um ator ignorado h cinco sculos na histria do Brasil: a ral dos

    homens sem direitos vivendo sobre estatuto da dependncia pessoal no campo brasileiro, os

    trabalhadores sem terra. Foram eles que, contornando essa armao, trouxeram ao cenrio

    novos interesses e uma nova metafsica, inclusive associados como esto a uma velha instituio

    ibrica, os jesutas, portadores da idia de comunidade e de solidariedade social.

    Realizar, portanto, de um ato, o projeto da descontinuidade - como tentou Collor com a reforma

    do Estado, como vem fazendo este governo - no sentido de estabelecer uma nova relao entre

    pblico-privado, poltica e economia, Estado e sociedade civil, se no se tornou