merleau-ponty e a crise da razÃo rodrigo vieira marques
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Universidade Federal de Satildeo Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciecircncias
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia
MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZAtildeO
Rodrigo Vieira Marques
SAtildeO CARLOS 2011
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MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZAtildeO
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Universidade Federal de Satildeo Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciecircncias
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia
MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZAtildeO
Rodrigo Vieira Marques
Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal de Satildeo Carlos como parte dos requisitos para obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em Filosofia Orientador Dr Richard Theisen Simanke
SAtildeO CARLOS 2011
Ficha catalograacutefica elaborada pelo DePT da Biblioteca ComunitaacuteriaUFSCar
M357mp
Marques Rodrigo Vieira Merleau-Ponty e a crise da razatildeo Rodrigo Vieira Marques -- Satildeo Carlos UFSCar 2012 380 f Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de Satildeo Carlos 2011 1 Filosofia francesa 2 Merleau-Ponty Maurice 1908-1961 3 Fenomenologia I Tiacutetulo CDD 194 (20a)
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Dedico este trabalho agrave minha famiacutelia solo fecundo e afaacutevel no qual se encontram minhas raiacutezes
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar ao Dr Richard Theisen Simanke por sua orientaccedilatildeo
segura valiosas sugestotildees e principalmente por sua consideraccedilatildeo de que
antes de tudo o pensamento eacute uma experiecircncia Tambeacutem ao Dr Pascal
Dupond especialmente por ter possibilitado meu acesso aos ineacuteditos de
Merleau-Ponty aleacutem de suas sugestotildees e cordial atenccedilatildeo Por fim a todos os
que direta ou indiretamente propiciaram a percepccedilatildeo que fez nascer o
presente trabalho
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Una est quae reparet seque ipsa reseminet ales Assyrii phoenica uocant non fruge neque herbis sed turis lacrimis et suco uiuit amomi [] haec ubi quinque suae conpleuit saecula uitae ilicet in ramis tremulaeque cacumine palmae unguibus et puro nidum sibi construit ore quo simul ac casias et nardi lenis aristas quassaque cum fulua substrauit cinnama murra [] se super inponit finitque in odoribus aeuum inde ferunt totidem qui uiuere debeat annos corpore de patrio paruum phoenica renasci cum dedit huic aetas uires onerique ferendo est ponderibus nidi ramos leuat arboris altae [] fertque pius cunasque suas patriumque sepulcrum perque leues auras Hyperionis urbe potitus ante fores sacras Hyperionis aede reponit (Oviacutedio) Nichts ist drinnen nichts ist drauszligen denn was innen ist ist auszligen(Goethe)
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RESUMO
Este trabalho parte de uma leitura da filosofia de Merleau-Ponty centrada na
noccedilatildeo de ldquoCrise da Razatildeordquo fundamentando-se no pressuposto de que se
trata de um conceito fundamental da fenomenologia contemporacircnea No
pensamento cartesiano jaacute era possiacutevel encontrar a ideia de crise poreacutem
tratava-se da constataccedilatildeo de uma ldquocrise das ciecircnciasrdquo Algo semelhante
havia tambeacutem em Valeacutery especialmente ao se falar de uma ldquocrise do
espiacuteritordquo A novidade de Husserl estava justamente em mostrar que a crise
tal como ele a vivia era mais profunda abalava a proacutepria Razatildeo Este
trabalho assume a tarefa de mostrar que natildeo se limitando a uma crise das
ciecircncias do espiacuterito ou da proacutepria Razatildeo Merleau-Ponty discute uma crise
presente no proacuteprio homem ou antes nos diversos pontos de vista que se
tem a seu respeito Eacute neste sentido que o seu projeto filosoacutefico se
fundamenta em primeiro lugar na tentativa de estabelecer um diaacutelogo entre
os pontos de vista da filosofia e da ciecircncia Por conseguinte justifica-se uma
investigaccedilatildeo da divergecircncia destes pontos procurando elucidar natildeo soacute o
cenaacuterio no qual o conflito se encontra mas tambeacutem a sua gecircnese Do mesmo
modo partindo de uma compreensatildeo merleau-pontiana da crise por fim
este trabalho assume tambeacutem a tarefa de se indagar acerca da repercussatildeo
desta mesma crise na relaccedilatildeo do saber filosoacutefico consigo mesmo logo no
modo da proacutepria filosofia entender a sua histoacuteria estando pois a
importacircncia desta incursatildeo no ensejo de explicitar o que para Merleau-
Ponty seria uma possiacutevel via de superaccedilatildeo
Palavras-chave Filosofia Francesa Maurice Merleau-Ponty Fenomenologia
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ABSTRACT
This work takes its point of departure in Merleau-Pontyrsquos Philosophy
centered in the notion of ldquoCrisis of Reasonrdquo basing itself on the
presupposition that this is a fundamental concept of contemporary
phenomenology In the Cartesian thought already it was possible to find the
idea of the crisis however it was the finding of a ldquocrisis of sciencesrdquo
Something similar was also in Valeacutery especially when he speaks of a ldquocrisis
of spiritrdquo The novelty of Husserl was exactly in showing that the crisis as he
lived it was deeper shook the Reason itself This work assumes the task of
showing that not limiting to a crisis of sciences of the spirit or of Reason
itself Merleau-Ponty discusses a present crisis in the man himself or rather
in the diverse points of view that has about him In this sense his
philosophical project is based primarily on the attempt to establish a
dialogue with the points of view of the philosophy and of the science
Therefore an inquiry of the divergence of these points is warranted
elucidating not only the scenario in which the conflict is but also its genesis
Likewise starting from a Merleau-Pontian understanding of the crisis
finally this study also assumes the task of asking about the repercussions
of this crisis in the relation of philosophical knowledge to itself then in the
way of his own philosophy to understand its history being therefore the
importance of this incursion in the desire to explain what according to
Merleau-Ponty would be a possible way of overcoming
Keywords French Philosophy Maurice Merleau-Ponty Phenomenology
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REacuteSUMEacute
Ce travail a son point de deacutepart dans la philosophie de Merleau-Ponty
centreacute dans la notion de laquo Crise de la Raison raquo en srsquoappuyant donc sur la
preacutesupposition qursquoelle srsquoagit drsquoun concept fondamental de la pheacutenomeacutenologie
contemporaine Dans la penseacutee cartesienne crsquoeacutetait deacutejagrave possible de trouver
lrsquoideacutee de crise cependant elle srsquoagissait de la constatation drsquoune laquo crise des
sciences raquo Quelque chose de semblable se passait avec Valery notamment
quand il dit drsquoune laquo crise de lrsquoesprit raquo La noveauteacute de Husserl eacutetait juste
montrer que la crise telle qursquoil la vivait eacutetait plus profonde eacutebrahlait la
Raison elle-mecircme Ce travail assume la tacircche de montrer que en ne srsquoen
tenant pas agrave une crise des science de lrsquoesprit ou de la Raison elle-mecircme
Merleau-Ponty met en question une crise preacutesente chez lrsquohomme lui-mecircme
dans les divers points de vue qursquoon a sur lui Crsquoest pouquoi que son projet
philosophique tout drsquoabord se fonde sur la tentative drsquoeacutetablir un dialogue
entre les points de vue de la philosophie et de la science Une recherche de la
divergence des ces points de vue donc elle se justifie en cherchant agrave
eacutelucider non seulement le sceacutenario dont le conflit se trouve mais aussi la
geacutenegravese de celui-ci De mecircme en partant drsquoune compreacutehension merleau-
pontienne de la crise en fin de comptes ce travail assume la tacircche de se
demander sur la reacutepercussion de cette mecircme crise dans le rapport du savoir
philosophique agrave soi mecircme donc dans la maniegravere dont la philosophie elle-
mecircme comprendre son histoire en eacutetant alors lrsquoimportance de cette
incursion dans le deacutesir drsquoexpliciter ce qui serait drsquoapregraves Merleau-Ponty une
possible voie de deacutepassement
Mots-cleacute Philosophie Franccedilaise Maurice Merleau-Ponty Pheacutenomeacutenologie
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SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO PRIMEIRA PARTE ndash O ldquoMAL-ESTARrdquo DA RAZAtildeO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS Capiacutetulo I ndash Da Crise do Espiacuterito agrave Crise da Razatildeo o Mundo-da-Vida 11 O ldquomal-estarrdquo da Razatildeo A Crise do Espiacuterito 12 A Fenomenologia e a Crise da Razatildeo os limites do
cientificismo e o retorno ao Mundo-da-Vida 13 A Ruumlckfrage e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a Lebenswelt como
proposta de superaccedilatildeo do naturalismo como Ursprungsklaumlrung como retorno ao mundo preacute-copernicano
Capiacutetulo II ndash Os limites do Mundo Claacutessico e o Teatro Cartesiano o problema da representaccedilatildeo 21 Um ponto de partida O mundo claacutessico e o mundo moderno 22 Descartes e o problema da ldquorepresentaccedilatildeordquo o
operacionalismo de Descartes e a intuitus mentis 221 O operacionalismo cartesiano e a identificaccedilatildeo de lux e lumen 222 A intuitus mentis e o positivismo da visatildeo 223 A similitude e o arbiacutetrio cartesiano do signo 224 Caminhos de desconstruccedilatildeo a reabilitaccedilatildeo do sensiacutevel e o
enigma do olhar 2241 A descorberta da afetividade das cores 2242 Os limites da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva 2243 O enigma do olhar e os impasses da representaccedilatildeo 225 A transformaccedilatildeo da luz natural e a releitura do Cogito 23 A gecircnese da Crise nas relaccedilotildees com a Natureza Capiacutetulo III ndash O pseudocartesianismo e o Realismo Cientificista o paradoxo do Menon 31 Apresentaccedilatildeo do problema Descartes e o cientificismo 32 A psicologia claacutessica o objetivismo cientificista 33 A tradiccedilatildeo intelectualista e seus cenaacuterios 34 As ldquoruiacutenas do pensamentordquo e o ldquoconflito dos pontos de vistardquo a
crise na compreensatildeo do homem 341 O conflito dos pontos-de-vista na compreensatildeo do homem a
compreensatildeo do intervalo do saber cientiacutefico e do saber filosoacutefico
342 A encarnaccedilatildeo do sujeito e as faces da subjetividade encarnada ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo
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SEGUNDA PARTE ndash CRISE E FILOSOFIA O SENTIDO DA FEcircNIX Capiacutetulo IV ndash A Crise do Entendimento e o Sentido da Histoacuteria a Historiografia Filosoacutefica 41 A experiecircncia filosoacutefica da Verdade 42 A crise do entendimento e os entraves da historiografia
claacutessica o problema da histoacuteria 43 O horizonte intelectualista de fundo cartesiano presente na
histoacuteria da filosofia ldquoa ordem das razotildeesrdquo ndash Da leitura de Descartes agrave historiografia filosoacutefica
44 Merleau-Ponty e a Histoacuteria do Pensamento a filosofia interrogativa o ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] o sentido da Fecircnix
441 Um ponto de partida Da ldquoordem das razotildeesrdquo agraves ldquorazotildees da ordemrdquo ndash a busca pelo sentido da ldquoordem cartesianardquo
442 O entrecruzamento de objetividade e subjetividade o impensado [das Ungedachte]
45 A ldquoexperiecircncia do pensamentordquo nas trilhas de uma ldquoexperiecircncia da linguagemrdquo a filosofia interrogativa o sentido da Fecircnix
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS ANEXOS A arqueoriginaacuteria Terra natildeo se move ndash E Husserl (Traduccedilatildeo) Notas sobre o desenvolvimento de meus conceitos ndash K Goldstein (Traduccedilatildeo) Textos de Candidatura ao Collegravege de France ndash M Merleau-Ponty (Traduccedilatildeo) Referecircncias
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INTRODUCcedilAtildeO A noccedilatildeo de ldquocriserdquo certamente natildeo eacute um privileacutegio do
pensamento contemporacircneo Ao contraacuterio ela oculta talvez uma pretensatildeo
que sempre tenha assombrado o saber filosoacutefico pretensatildeo esta que os
antigos poderiam chamar de ὕβρις [hybris] ou seja uma excessiva
confianccedila um desmedido orgulho semelhante agrave iniciativa dos homens em
querer superar o poderio dos deuses Em que consistiria este
desmensuramento Onde estaria a ausecircncia de seu oposto a saber a
virtuosa prudecircncia aquilo que os romanos tatildeo bem nomearam bona mens a
capacidade do homem em reconhecer a sua proacutepria humanidade Se
pensarmos na inserccedilatildeo deste termo no discurso positivista podemos talvez
compreender o sentido deste ldquoexcessordquo Trata-se justamente da crenccedila ou do
mito de que uma eacutepoca esteja isenta de conflitos que seja possiacutevel falar de
uma passagem do caos agrave ordem ou melhor que entre dois sistemas
ordenados podemos encontrar uma ldquozona de transiccedilatildeo caoacuteticardquo cujo
ordenamento se dissipa no exato instante em que mediante uma nova
configuraccedilatildeo um outro ordenamento ocupe o seu lugar Daiacute o ensejo de
romper na histoacuteria com toda e qualquer ldquofaixa de turbulecircnciardquo ateacute que
magicamente os conflitos sejam dissipados
Pensando assim de certa forma jaacute no pensamento antigo natildeo
encontrariacuteamos dificuldades em situar ldquomomentos de criserdquo O problema se
agrava contudo quando natildeo mais partimos do pressuposto de que a
histoacuteria siga um movimento linear deste modo fundada em uma
circularidade as faixas de conflitos se converteriam antes em nervuras
viriam a impregnar cada linha que constitui a vivecircncia que se tem de cada
momento ou melhor de cada acontecimento histoacuterico Qual seria entatildeo o
sentido de se falar em crise Seguramente natildeo mais como a passagem da
desordem agrave ordem Antes como o aceno de que como no teatro na
emergecircncia de um novo drama torna-se preeminente a mudanccedila do cenaacuterio
Pensando nestas consideraccedilotildees ao falar de uma ldquocrise das ciecircnciasrdquo natildeo era
esta ideia o que Descartes tinha em vista e cometeriacuteamos aqui ateacute mesmo
um equiacutevoco a legitimaccedilatildeo de uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo se lhe exigiacutessemos
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um compromisso com a circularidade da histoacuteria ou mesmo com a proacutepria
histoacuteria paisagem que lhe era desconhecida terra estrangeira a que seu
pensamento natildeo chegara a avistar Ao falar de crise o que alimenta o
pensamento cartesiano eacute a constataccedilatildeo de que algo faltava agraves ciecircncias de
seu tempo Partindo de uma unidade da sapientia humana como confiar em
uma construccedilatildeo projetada por vaacuterios arquitetos O que faltaria agraves ciecircncias
era o mesmo que nortearia os meandros do projeto filosoacutefico de Descartes
ou seja a descoberta de um fundamentum inconcussum capaz de lhe
garantir a seguranccedila tatildeo almejada Neste ldquoalicerce inabalaacutevelrdquo repousaria o
Cogito e suas certezas apodiacuteticas frutos de um meacutetodo bem elaborado e
dirigido pelos princiacutepios da Razatildeo A crise tinha pois uma soluccedilatildeo seguir
os preceitos da Prima Philosophia demonstrar agraves ciecircncias galhos de uma
uacutenica aacutervore a necessidade de se nutrirem de uma mesma raiz ou seja da
Metafiacutesica conduzida pela ldquoluz naturalrdquo
No caso de Valeacutery jaacute tendo sido fundada a razatildeo claacutessica a crise
parecia avanccedilar um pouco mais adiante ela quase invadia o terreno do
Espiacuterito Curiosamente neste caso ainda natildeo totalmente tematizada mas
ferozmente vivida seraacute a proacutepria histoacuteria que incitaraacute este sentimento a
Guerra o assombro da contradiccedilatildeo a ameaccedila de uma eminente derrocada
natildeo soacute dos ordenamentos de uma eacutepoca mas de seu saber Poreacutem ao
contraacuterio de um terremoto a repecursatildeo de um possiacutevel abalo natildeo poderia
significar outra coisa que o esquecimento ou enfraquecimento desta proacutepria
razatildeo ainda tida como legiacutetima Ao falar em crise Valeacutery apenas ressentia
um tempo no qual as luzes do espiacuterito comeccedilavam a se esconder por traacutes
das nuvens da ignoracircncia do natildeo-saber O que caberia agrave filosofia
Resguardar o seu tesouro proteger-se e denunciar o que ldquopoderiardquo vir a ser
um crime de lesa-majestade Eacute assim que a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty antes
de ter sentido na carne as consequecircncias de uma Guerra tambeacutem iria viver
este descompasso da Razatildeo Mas por que a Guerra Natildeo seria confundir o
ldquoconceitordquo de crise por sua vez ldquoabstratordquo com os infortuacutenios dos
acontecimentos Natildeo seria alimentar o historicismo ou antes misturar o
transcendental e o empiacuterico Nesta ressalva jaacute encontramos a resposta Se a
vivecircncia da Guerra comeccedilava a afetar o terreno do Espiacuterito eacute porque de
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fato a crenccedila que se tinha nele de certa forma ao menos nas paisagens de
pensamento que procuramos descrever ndash afinal natildeo nos esqueccedilamos dos
ldquolibertinos barrocosrdquo ndash natildeo tinha um papel coadjuvante mas principal
basilar Eacute assim que pouco a pouco encontramos na compreensatildeo do que
antes era uma crise de valores agravada pela desumanizaccedilatildeo das relaccedilotildees
sociais e poliacuteticas a clivagem para uma crise dos fundamentos que lhes
serviam de alicerce Quais seriam as consequecircncias disto
Em primeiro lugar o sentimento de que mais do que uma crise
das ciecircncias o que emergia era uma crise da proacutepria Razatildeo ou melhor de
um determinado projeto de Razatildeo Eacute assim que no pensamento husserliano
iraacute se configurar o sentimento de uma crise engendrada e agravada
especialmente pelo desenvolvimento das ciecircncias do homem e das ciecircncias
em geral Seria o reconhecimento de uma ldquozona de turbulecircnciardquo o
engendramento do mito positivista No caso da fenomenologia a mudanccedila
de um cenaacuterio que por sua vez natildeo se concentrava em uma fase a partir da
qual se anunciava uma evolutiva mudanccedila mas encontrava antes sua
gecircnese na eacutepoca que lhe antecedera daiacute o sentido de uma ldquoarqueologia
fenomenoloacutegica da razatildeordquo um ldquoeclipse dos absolutosrdquo Qual seria o papel da
Filosofia No caso de Husserl fazer com que a Razatildeo comparada a uma
Fecircnix renascesse poreacutem nas trilhas de um τέλοϛ [teacutelos] que encontrava
suas origens e projeto no pensamento grego Seria esta a percepccedilatildeo que
Merleau-Ponty tivera de sua eacutepoca Seraacute assim que entenderaacute os abalos dos
fundamentos da Razatildeo atestados na ciecircncia em geral pelos trabalhos de Le
Roy e Duhem nas ciecircncias do homem pelas pesquisas psicoloacutegicas
socioloacutegicas e histoacutericas na filosofia pelo ceticismo inserido pelo asseacutedio do
psicologismo do historicismo e do naturalismo No final das contas como se
daria a sua recepccedilatildeo da crise husserliana
Em um curso dado no Collegravege de France ao pensar na ideia de
crise Merleau-Ponty procurava justamente elencar os seus rastros Onde
podemos encontraacute-la Para o filoacutesofo haveria uma crise da racionalidade
que se estabelecia ldquonas relaccedilotildees entre os homensrdquo ldquonas relaccedilotildees com a
Naturezardquo na experiecircncia da verdade presente nas relaccedilotildees entre a ciecircncia e
o mundo vivido e por fim na proacutepria filosofia e sua possibilidade
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(MERLEAU-PONTY 1996 p 40) Constantemente nas Notes du Travail e
nos Reacutesumeacutes des cours Merleau-Ponty voltava-se para sua eacutepoca procurava
entender o seu tempo e isto porque ao perceber os limites da Metafiacutesica
tinha por pretensatildeo elaborar uma ldquonova ontologiardquo Isso se torna eacuteclatant
principalmente nas notas ainda ineacuteditas por ocasiatildeo de seus Projets des
livres1 Em uma destas notas encontramos uma indagaccedilatildeo do filoacutesofo que
nos chama a atenccedilatildeo trata-se de uma nota datada de 25 de setembro de
1958 que a nosso ver constitui o coraccedilatildeo de seus derradeiros projetos
filosoacuteficos assim como um caminho de leitura para os seus primeiros
trabalhos Encontramos ali uma pergunta acerca do sentido das ldquoruiacutenasrdquo de
uma ldquoRuinenlandschaft unsere Tagerdquo ou confusatildeo na qual se encontra o
pensamento moderno assim como expressa nomeadamente Eugen Fink ao
afirmar que ldquovivemos em lsquoruiacutenas de pensamentosrsquordquo (MERLEAU-PONTY
2000b p 299)
Ora sabemos que de certo modo a existecircncia de ruiacutenas indica
sobretudo os sedimentos e os despojos do que antes poderiam ter sido os
monumentos de uma civilizaccedilatildeo antiga Esta imagem natildeo eacute gratuita em
Merleau-Ponty (2000b p 40) ela faz parte daquele movimento arqueoloacutegico
que ele assumira como componente de seu meacutetodo filosoacutefico2
Vislumbramos todavia nesta imagem duas possibilidades de compreensatildeo
ruiacutena pode significar tanto despojos ou destroccedilos quanto confusatildeo
desordem caos O interessante eacute que neste caso a confusatildeo tem nos
destroccedilos o signo do que poderia ter sido a sua origem Podemos falar
assim que o filoacutesofo denunciava antes de tudo uma proto-ruiacutena uma
arqui-ruiacutena uma ruiacutena originante e originaacuteria das discordacircncias e confusotildees
1 Algumas destas notas arquivadas na Biblioteca Nacional da Franccedila jaacute foram transcritas por alguns pesquisadores da obra merleau-pontiana dentre eles Lefort Barbaras e Dupond Quando se tratar das notas ainda ineacuteditas vale salientar que aqui seguiremos a transcriccedilatildeo de Dupond Iremos identificaacute-las como NBNF Os siacutembolos [ ] fazem referecircncia agrave paginaccedilatildeo da Biblioteca e os siacutembolos ( ) indicam a paginaccedilatildeo segundo os manuscritos de Merleau-Ponty 2 Cf Merleau-Ponty (2000b p 40) ldquoOr si la perception est ainsi lrsquoacte commun de toutes nos fonctions motrices et affectives non moins que des sensorielles il nous faut redeacutecouvrir la figure du monde perccedilu par un travail comparable agrave celui de lrsquoarcheacuteologue car elle est ensevelie sous les seacutediments des connaissances ulteacuterieuresrdquo
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da filosofia consigo mesma e com as ciecircncias Como o interesse do filoacutesofo
natildeo era indutivo (MERLEAU-PONTY 2000b p 25)3 o seu empreendimento
soacute poderia beirar as tecircnues fronteiras entre epistemologia e ontologia mais
do que o pressuposto ldquoconflitordquo ndash jaacute resolvido em alguns comentadores do
filoacutesofo sem nunca ter existido radicalmente na obra merleau-pontiana ela
mesma ndash entre fenomenologia e ontologia4 O que constitui portanto esta
proto-ruiacutena que tanto inquieta o filoacutesofo O que estaacute de fato em jogo na
constataccedilatildeo de que ldquovivemos em ruiacutenas de pensamentosrdquo (MERLEAU-
PONTY NBNF [2] (1)) Qual seria a razatildeo destas ruiacutenas Natildeo seria o
sentimento de que a filosofia tem muito mais a investigar e a compreender
do que a pergunta constante entre alguns de seus contemporacircneos se a
verdade estaria com Tomaacutes de Aquino ou com Engels5
Para o filoacutesofo a nosso ver natildeo eacute nada de outro que a iniciativa
reflexiva em definir a filosofia ldquoem relaccedilatildeo a certos seresrdquo atitude esta
presente no naturalismo no humanismo e no teiacutesmo os quais para
Merleau-Ponty nos escombros de uma crise da Razatildeo teriam perdido todo o
seu sentido (MERLEAU-PONTY NBNF [4] (2)) Esta iniciativa desdobra-se
no que se tornara um dos grandes alvos do deacutesaveu do filoacutesofo o ldquoneo-
criticismordquo ou ldquointelectualismordquo especialmente na compreensatildeo da
subjetividade em sua relaccedilatildeo com o mundo e o ldquooperacionalismo
3 ldquoMais en mecircme temps notre recherche demeure philosophique Notre traitement des faits reste distinct du traitement inductif et scientifique Il nrsquoest pas question pour nous de consideacuterer la parole ou la penseacutee comme la simple somme des faits de la langue ou des faits de penseacutee tels qursquoils se sont produits ici ou lagrave agrave telle date En chacun drsquoeux nou essayons de saisir ce qui reprend et sublime le preacuteceacutedent anticipe le suivant lrsquoeacutemergence drsquoune structure drsquoune champ drsquoexpeacuterience qui en font plus qursquoun eacuteveacutenement une institutionrdquo 4 A nosso ver Merleau-Ponty natildeo estaacute preocupado em se situar seja no campo da fenomenologia seja no da epistemologia seja no da ontologia Sua intenccedilatildeo eacute fazer filosofia e filosofar eacute atravessar todas essas proviacutencias haja vista que o que move a reflexatildeo eacute antes uma ldquoquestatildeordquo do que a legitimidade de um selo que confirme a participaccedilatildeo em uma ldquoseita filosoacuteficardquo 5 ldquoLrsquoideacutee qursquoen France aujourdrsquohui des ecirctres humains se divisent sur la question de savoir si saint Thomas et Engels ont raison ou tor dans ce qursquoils disent de la Nature ndash cette ideacutee me paraicirct consternante quand on pense agrave tout ce qursquoil y a agrave connaicirctre ou agrave comprendre On ne peut en quelques mots esquisser une philosophie Disons seulement qursquoil faudrait une philosophie de lrsquoecirctre brut et non cette philosophie de lrsquoecirctre sage qui voudrait faire croire qursquoil y a une maniegravere de rendre le monde explicable ndash et une eacutetude attentive du sens un autre sens que le sens des ideacutees un sens fuyant et allusif auquel manque toute puissance directe sur les choses quoi qursquoil y paraisse et srsquoy deacuteveloppe pour peu que certains obstacles aient eacuteteacute leveacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 299)
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naturalistardquo presente no tratamento das ciecircncias6 Natildeo estaria na
divergecircncia radical destas clivagens em seus equiacutevocos e paradoxos mesmo
indiretamente um dos pressupostos e indiacutecios do sentimento de crise que
passaria a assediar epistemologicamente e filosoficamente o seacuteculo XX Do
mesmo modo conforme indicamos se o ldquonaturalismo o humanismo e o
teiacutesmo perderam toda a significaccedilatildeo em nossa culturardquo (MERLEAU-PONTY
2000a p 219) se ldquotodas essas concepccedilotildees natildeo deixam de imiscuir-se umas
nas outrasrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 219) fazendo pois do problema
ontoloacutegico um problema dominante o que resta a um pensamento
conduzido pelas categorias do mundo claacutessico Como sair deste labirinto
Onde estaria o fio de Ariadne
Para Merleau-Ponty natildeo estaria na tentativa de tatildeo-somente
denunciar os limites da ciecircncia nem muito menos no ensejo de recuperar o
que seria um autecircntico projeto de Razatildeo e seu τέλοϛ [teacutelos] Daiacute que a proacutepria
noccedilatildeo de crise ao ter sido direcionada para o conflito dos pontos de vista
que se tem acerca do homem deveria ela mesma sofrer um eclipse
convertendo-se na oportunidade de reencontro daquilo que
verdadeiramente encontra-se nas fibras da proacutepria Razatildeo portanto da
possibilidade que se abre agrave filosofia de repensar a si mesma e de rever em
sua ontologia suas relaccedilotildees com as outras ciecircncias e saberes voltando-se
pois para o fundo de silecircncio do qual ela mesma emergira ou seja para
uma experiecircncia preacutevia do mundo Seria ali que para Merleau-Ponty
poderiacuteamos encontrar o fio de Ariadne a nos guiar nos labirintos construiacutedos
pela metafiacutesica claacutessica Ora eacute pensando neste modo de encarar a crise de
purificar suas pretensotildees positivistas empreendimento de κάθαρσις
6 Nisto estaria inclusive aquilo que mutatis mutandis segundo Horkheimer deve ser entendido como uma espeacutecie de ldquodoenccedila da Razatildeordquo ldquoSe focircssemos falar de uma doenccedila afetando a razatildeo essa doenccedila natildeo deveria ser entendida como tendo acometido a razatildeo em algum momento histoacuterico mas como inseparaacutevel da natureza da razatildeo na civilizaccedilatildeo tal como a conhecemos ateacute entatildeo A doenccedila da razatildeo consiste no fato dela ter nascido da necessidade humana de dominar a naturezardquo (HORKHEIMER 1947 p 176) Neste sentido Horkheimer acrescentaria ateacute mesmo que ldquose poderia dizer que a loucura coletiva que hoje se estende dos campos de concentraccedilatildeo ateacute as aparentemente mais inofensivas reaccedilotildees da cultura de massas jaacute estava presente em germe na objetivaccedilatildeo primitiva na primeira contemplaccedilatildeo calculadora do mundo pelo homemrdquo (HORKHEIMER 1947 p 176)
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[Kaacutetharsis] que teve seu iniacutecio no pensamento husserliano que
procuraremos estruturar o nosso trabalho
O nosso texto se encontra subdivido em duas partes Na
primeira parte que dispomos em trecircs capiacutetulos tratamos do que seria um
ldquomal-estarrdquo da Razatildeo presente em uma espeacutecie de eclipse dos ldquoabsolutosrdquo e
a proposta de um retorno ao Mundo-da-vida finalizando com a tematizaccedilatildeo
da crise que no entender de Merleau-Ponty estaria presente conforme jaacute
indicamos no conflito dos pontos de vista da ciecircncia e da filosofia tal como
se manifesta na compreensatildeo do homem Na segunda formada por um
capiacutetulo versamos sobre a relaccedilatildeo existente entre Crise e Filosofia Qual
seraacute o percurso que iremos percorrer em cada parte Primeiramente vale
lembrar que natildeo nos pautaremos aqui na disposiccedilatildeo das questotildees que
procuraremos elucidar na riacutegida obediecircncia do que seriam as mutaccedilotildees
sofridas pelo pensamento de Merleau-Ponty desde La Structure du
comportement ateacute Le Visible et lrsquoInvisible desobrigando-nos da necessidade
presente em alguns leitores do filoacutesofo de estabelecer um quadro evolutivo
cujas restriccedilotildees impossibilitariam um diaacutelogo presente dentre os diversos
momentos da obra De modo diverso partiremos antes do que ao longo de
sua filosofia parece unir cada momento de seu projeto natildeo nos parecendo a
ideia de ldquoevoluccedilatildeordquo apropriada ao seu modo de filosofar Evidentemente eacute
certo que por exemplo a noccedilatildeo de ldquoconsciecircncia perceptivardquo nos uacuteltimos
trabalhos perde o seu espaccedilo para o que nos revela a ldquofeacute perceptivardquo que nos
une ao mundo No entanto tendo por centralidade os problemas filosoacuteficos
e natildeo a cisatildeo fenomenologia e ontologia o que procuraremos mostrar eacute
justamente o modo pelo qual elas se integram no pensamento de Merleau-
Ponty
Eacute partindo deste pressuposto que na primeira parte
notadamente no terceiro capiacutetulo ao tratar da criacutetica feita pelo filoacutesofo ao
pensamento cartesiano tentaremos integrar La Structure du comportement e
Lrsquoœil et lrsquoesprit ou antes mostrar como neste uacuteltimo texto ao contraacuterio de
se tratar tatildeo-somente de uma filosofia da arte o que encontramos eacute o ensejo
de desconstruccedilatildeo do complexo ontoloacutegico no qual fomos relegados pelo
pensamento cartesiano Assim sendo apresentando o diaacutelogo de Merleau-
21
Ponty com Husserl desejamos explicitar o modo como se daraacute no filoacutesofo a
recepccedilatildeo da Krisis contrapondo por conseguinte o itineraacuterio que cada um
deles percorreraacute na elucidaccedilatildeo etioloacutegica dos descompassos nos quais se
encontra a Razatildeo Eacute assim que enquanto Husserl privilegia o projeto de
matematizaccedilatildeo de Galileu Merleau-Ponty opta por um diaacutelogo com
Descartes e com a tradiccedilatildeo cartesiana No entanto nem por isso havendo
um ldquodescompasso radicalrdquo ndash apesar de algumas divergecircncias no que se
refere a certos aspectos da ldquogenealogia da loacutegicardquo antes vinculadas a nosso
ver ao que constitui o projeto de cada filoacutesofo ndash e isto quando o que estaacute em
jogo eacute o convite a uma experiecircncia preacutevia do mundo daiacute o diaacutelogo que se
estabelece no primeiro capiacutetulo entre a Ruumlckfrage husserliana e a versatildeo
merleau-pontiana da Ursprungsklaumlrung em outros termos o ldquomundo preacute-
copernicanordquo e a ldquoNaturezardquo tambeacutem chamada por Merleau-Ponty
especialmente nos ineacuteditos como ldquomundo do silecircnciordquo No segundo capiacutetulo
trataremos tambeacutem do que seria em Descartes o ldquopositivismo da visatildeordquo a
passagem da ldquovisatildeo dos olhosrdquo para a ldquointuitus mentisrdquo para o ldquoolhar do
Espiacuteritordquo natildeo deixando de contrapor pois o modo como Merleau-Ponty iraacute
encarar estas questotildees A partir disto procuraremos mostrar o viacutenculo que
se estabelece entre Descartes e a ciecircncia claacutessica o Grande e o Pequeno
Racionalismo descrevendo portanto o que para Merleau-Ponty seria a
gecircnese da crise no diaacutelogo com as ciecircncias
Tendo por referecircncia estas consideraccedilotildees centraremo-nos no
que de acordo com Merleau-Ponty viria a constituir uma crise na
compreensatildeo do homem Seraacute a este desfeixo que conduziraacute os capiacutetulos
anteriores Comeccedilaremos pois mostrando a proposta merleau-pontiana de
um diaacutelogo entre filosofia e ciecircncia e isto mediante um solo que lhes eacute
comum uma espeacutecie de terceira dimensatildeo entre um discurso em primeira
pessoa e um discurso em terceira pessoa Por fim a partir da compreensatildeo
de uma subjetividade encarnada especialmente na Pheacutenomeacutenologie de
perception o nosso objetivo seraacute o de mostrar entre filosofia e ciecircncia a
compreensatildeo merleau-pontiana acerca do homem privilegiando as noccedilotildees
de ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo como as duas faces de uma mesma
experiecircncia corporal logo inserindo a compreensatildeo do homem na condiccedilatildeo
22
de ser encarnado dotado de corpo que eacute seu proacuteprio corpo no entre-deux de
um diaacutelogo com o que a ciecircncia moderna nos apresenta sobre o ldquoesquema
corporalrdquo e a filosofia nos diz sobre a vivecircncia do ldquocorpo proacutepriordquo Na
compreensatildeo do humano segundo Merleau-Ponty natildeo lhe haveria um saber
que servisse de via uacutenica mas um conjunto de pontos de vistas a nos revelar
as vaacuterias faces do fenocircmeno humano o modo originaacuterio de uma
subjetividade encarnada que estaacute no mundo que o habita tem a sua carne
entrelaccedilada com a proacutepria carne do mundo o que a nosso ver expressa
justamente na ruptura com a concepccedilatildeo cartesiana de homem presente na
gecircnese da crise o que poderia vir a ser uma via de superaccedilatildeo
Na segunda parte o foco seraacute a descriccedilatildeo do que para alguns
dos contemporacircneos de Merleau-Ponty seria a presenccedila da crise no proacuteprio
exerciacutecio filosoacutefico na relaccedilatildeo da filosofia consigo mesma e
consequentemente com sua proacutepria historiografia Como partimos do
pressuposto de que a ldquocrise na filosofiardquo seja antes a ldquocrise de um certo modo
de filosofarrdquo consideraremos o que para o filoacutesofo viria a constituir um dos
embaraccedilos da historiografia filosoacutefica presentes no que seria o modo de
compreender a ldquohistoacuteria do pensamentordquo Daiacute o direcionamento no quarto
capiacutetulo ao horizonte aberto pela indagaccedilatildeo de que compreensatildeo de histoacuteria
se efetivaria na historiografia filosoacutefica e seus meandros e isto no intuito de
em seguida tomando como referecircncia a criacutetica de Merleau-Ponty ao meacutetodo
estrutural-geneacutetico de Gueacuteroult tentar encontrar os rastros destas questotildees
na histoacuteria do pensamento ao menos os de um determinado modelo
historiograacutefico aquele que nos poderia remeter agraves questotildees que se
encontram na ldquogecircnese de uma Crise da Razatildeordquo Eacute assim que notamos em
Merleau-Ponty na leitura de Descartes natildeo a legitimaccedilatildeo inquestionaacutevel de
uma ldquoordem das razotildeesrdquo mas a busca do que seria na obra cartesiana ldquoas
razotildees da ordemrdquo o que nos possibilitaria explicitar na compreensatildeo
merleau-pontiana da historiografia filosoacutefica em conformidade com uma
ldquohistoacuteria vivardquo e suas astuacutecias uma ldquohistoacuteria verticalrdquo por conseguinte a
compreensatildeo da experiecircncia filosoacutefica como a busca de um ldquoimpensadordquo e
natildeo sendo isto o que justamente se nega uma dissecaccedilatildeo de estruturas
expliacutecitas no encadeamento das ideias de um texto Este modelo de leitura se
23
enquadra nos horizontes de uma crise da filosofia natildeo para tatildeo-somente
confirmaacute-la mas precisamente para explicitar que o que realmente poderia
condenar a filosofia ao nons-sens seria justamente o esquecimento de que
ela eacute sobretudo interrogaccedilatildeo o que natildeo conduz ao relativismo da leitura
mas pelo contraacuterio agrave abertura do texto a uma experiecircncia viva entre o leitor
e o escritor a subjetividade do filoacutesofo que estudamos e a nossa
subjetividade o que natildeo significa desrespeitar as suas ideias mas convidaacute-
las a um diaacutelogo buscando reencontraacute-las como momentos de uma ldquovida
pensanterdquo uma vez que o contraacuterio seria relegaacute-las agrave respeitosa majestosa
e cruel indiferenccedila da biblioteca Em suma para Merleau-Ponty quando nos
contentamos a dizer de um filoacutesofo apenas aquilo que este mesmo filoacutesofo
gostaria que disseacutessemos perdemos efetivamente o que seria uma histoacuteria
autecircntica do pensamento esquecemo-nos de que suas ideias tambeacutem se
encontram na tradiccedilatildeo que com ela tentara dialogar
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PRIMEIRA PARTE O ldquoMAL-ESTARrdquo DA RAZAtildeO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA
O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS
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CAPIacuteTULO I DA CRISE DO ESPIacuteRITO Agrave CRISE DA RAZAtildeO
O MUNDO-DA-VIDA Maintenant sur une immense terrasse drsquoElsinore qui va de Bacircle agrave Cologne qui touche aux sables de Nieuport aux marais de la Somme aux craies de Champagne aux granits drsquoAlsace ndash lrsquoHamlet europeacuteen regarde des millions de spectres (VALEacuteRY 1943 p 993) Tendo noacutes proacuteprios vivido duas ou trecircs crises profundas de nosso modo de pensar ndash a ldquocrise dos fundamentosrdquo e o ldquoeclipse dos absolutosrdquo matemaacuteticos a revoluccedilatildeo relativista a revoluccedilatildeo quacircntica ndash tendo sofrido a destruiccedilatildeo de nossas antigas ideias e feito o necessaacuterio esforccedilo de adaptaccedilatildeo agraves ideias novas estamos mais aptos que nossos predecessores a compreender as crises e as polecircmicas de outrora
(KOYREacute 1991 p 13)
11 O ldquomal-estarrdquo da Razatildeo a Crise do Espiacuterito
O historiador do pensamento francecircs Castelli Gattinara ao
tratar do periacuteodo do entre-guerra inicia seu texto com a bela frase de Valeacutery
ldquonoacutes as civilizaccedilotildees sabemos agora que somos mortaisrdquo7 Trata-se da frase
de um texto de 1919 La crise de lrsquoesprit No entanto eacute acompanhando vis-agrave-
vis as reflexotildees de Valeacutery que podemos melhor compreender os sentimentos
de espanto e de indagaccedilatildeo que ele procura expressar Neste sentido ainda
ao pensar em outros filoacutesofos especialmente nos que iriam viver os
paradoxos e desdobramentos desta eacutepoca a ideia de crise parece-nos mais
do que uma ldquoinvenccedilatildeordquo ou uma ldquoespeculaccedilatildeo intelectualrdquo a vivecircncia do
crepuacutesculo de certezas ateacute entatildeo inquestionaacuteveis a demoliccedilatildeo de paisagens
de pensamentos cujas ruiacutenas deixaram marcas indeleacuteveis no imaginaacuterio
europeu Ora pensando na filosofia de Merleau-Ponty natildeo seria entre essas
trincheiras e abalos siacutesmicos de uma ldquocrise dos fundamentosrdquo ou conforme
veremos de uma determinada concepccedilatildeo de razatildeo que a encontrariacuteamos
Natildeo estaria o filoacutesofo tambeacutem mutatis mutandis em um diaacutelogo
epistemoloacutegico com as questotildees inerentes conforme expressatildeo de Koyreacute a
7 ldquoNous autres civilisations nous savons maintenant que nous sommes mortellesrdquo (VALEacuteRY 1943 p 988)
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uma espeacutecie de ldquoeclipse dos absolutosrdquo Aqui se encontra pois uma das
pretensotildees de nossa tese pretensatildeo que talvez nenhuma novidade encerre
em si a saber a ideia de que natildeo compreende bem o projeto filosoacutefico de
Merleau-Ponty quem desconsidera sua pertenccedila agrave experiecircncia e ao
imaginaacuterio de uma crise da Razatildeo ou como diria Gattinara das ldquodiversas
crisesrdquo que passaram a assolar o pensamento claacutessico e seus sonhos
cabendo-nos contudo a tarefa de tentar explicitar por sua vez o sentido e o
peso que essa ideia tivera em seu pensamento (GATTINARA 1998)
A intrigante frase de Valeacutery ao falar de uma crise do Espiacuterito
apesar de seu peso semacircntico insere-nos ainda nas perspectivas de um
modo bastante francecircs de se encarar o problema que eclodia e se
manifestava com a emergecircncia cada vez mais crescente de um estado de
ldquodesrazatildeordquo daiacute haver ldquocrisesrdquo ndash e natildeo a Crise ndash daiacute a ldquocrise francesardquo natildeo ser
a ldquoKrisis alematilderdquo dado que cada um a viveria da sua maneira8 Valeacutery parece
nos dizer que ateacute entatildeo nunca se tinha tido o sentimento e de um modo
tatildeo traacutegico de que a Europa poderia ter o mesmo destino das antigas
civilizaccedilotildees que seus autores mais ceacutelebres poderiam ter seus escritos
transformados em miragens em enigmaacuteticos fragmentos tais como as
comeacutedias de Menandro Apesar da multiplicidade de crises que afloram em
vaacuterios setores segundo o poeta o que afligiria a alma europeia seria aquela
que se sucederia no proacuteprio acircmbito do espiacuterito ali ela seria muito mais
intensa Logo natildeo eacute sem sentido que ele nos diraacute que a ldquo[] a crise
intelectual mais sutil e que por sua proacutepria natureza toma as aparecircncias
mais enganadoras (porquanto se passa no reino mesmo da dissimulaccedilatildeo)
esta crise deixa dificilmente apreender o seu verdadeiro ponto a sua faserdquo
(VALEacuteRY 1943 p 990) Mantendo ainda uma simpatia por uma concepccedilatildeo
claacutessica de razatildeo a percepccedilatildeo da crise ainda era a percepccedilatildeo de tatildeo-somente
uma ldquofase criacuteticardquo na qual ldquoningueacutem pode dizer aquilo que amanhatilde estaraacute
8 ldquoCrsquoest le paradoxe de la crise on est certain de lrsquoincertitude Mais crsquoest aussi ce qui lui permet de se manifester de diverses faccedilons de srsquoarticuler selon des conjonctures historiques et geacuteographiques particuliegraveres Parce que lsquola crisersquo franccedilaise nrsquoest pas la lsquoKrisisrsquo allemande Ce que lrsquoon deacutefinit drsquohabitude comme lsquola penseacutee de la Krisisrsquo dans ce chaos geacutenial que fut la Mitteleuropa ne recouvre pas en effet totalement ce qursquoa eacuteteacute lsquola probleacutematique de la crisersquo en France durant la mecircme peacuterioderdquo(GATTINARA 1998 p 23)
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morto ou vivo em literatura em filosofia em esteacutetica Ningueacutem sabe tambeacutem
quais ideias ou quais modas de expressatildeo estaratildeo escritas na lista de
perdas quais novidades seratildeo proclamadasrdquo (VALEacuteRY 1943 p 990) Sendo
assim em um trecho que consideramos fundamental apesar de longo
Valeacutery nos daacute independente de seu modo de interpretar essa ldquocrise do
espiacuteritordquo um diagnoacutestico muito claro do que se passava
A esperanccedila certamente permanece e canta a meia voz Et cum vorandi vicerit libidinem Late triumphet imperator spiritus [Vencedor do apetite voraz que o espiacuterito soberano estenda longe o seu triunfo] No entanto a esperanccedila eacute apenas a desconfianccedila do ser em relaccedilatildeo agraves previsotildees precisas de seu espiacuterito Sugere que toda conclusatildeo desfavoraacutevel ao ser deve ser um erro de seu espiacuterito Os fatos todavia satildeo claros e impiedosos Haacute milhares de jovens escritores e de jovens artistas que estatildeo mortos Haacute a ilusatildeo perdida de uma cultura europeia e a demonstraccedilatildeo de impotecircncia do conhecimento em saber o que quer que seja haacute a ciecircncia atingida mortalmente em suas ambiccedilotildees morais e como desonrada pela crueldade de suas aplicaccedilotildees haacute o idealismo dificilmente vencedor profundamente ferido coberto de crimes e de erros a cobiccedila e a renuacutencia igualmente ridicularizadas as crenccedilas confundidas nos campos cruz contra cruz [lua] crescente contra [lua] crescente haacute os proacuteprios ceacuteticos desconcertados por acontecimentos tatildeo repentinos tatildeo violentos tatildeo comoventes e que brincam com os nossos pensamentos como o gato brinca com o rato ndash os ceacuteticos perdem suas duacutevidas as encontram as perdem e natildeo sabem mais se servir do movimento de seu espiacuterito A oscilaccedilatildeo do navio foi tatildeo forte que os candeeiros mais suspensos chegaram a derramar (VALEacuteRY 1943 p 990-1)
Contudo poderiacuteamos nos indagar como a filosofia francesa
respondera a essas questotildees No que diz respeito agrave ciecircncia vale salientar o
contrapeso e a importacircncia que teve nesta eacutepoca a insurreiccedilatildeo de uma
ldquofilosofia do espiacuteritordquo Eacute contra essa ldquociecircncia ferida moralmenterdquo eacute contra a
aplicaccedilatildeo natildeo questionada de suas formulaccedilotildees eacute contra a estreita visatildeo de
ciecircncias como a fisiologia e psicologia nascentes9 que se levantaram as
diversas versotildees do espiritualismo francecircs As divergecircncias nasciam a partir
da convicccedilatildeo de que tais pressupostos natildeo condiziam com o que eacute proacuteprio da
9 Eacute contra um discurso da exterioridade que deixa escapar a pergunta pelo homem e seu sentido eacute contra um tempo que esquecendo-se de se comprometer com a verdade caracterizava-se conforme Le Senne por ldquouma monstruosa alianccedila entre ciecircncia e Estado aquela fornece o conhecimento teacutecnico e este o torna o instrumento de seu capricho despoacuteticordquo (LE SENNE 1951 p XVIII)
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filosofia francesa10 No entanto mesmo colocando-se de imediato como a
resposta da filosofia francesa aos ataques do cientificismo e aos horrores da
Guerra o espiritualismo tinha tambeacutem em seu calcanhar de Aquiles a
defesa de uma ldquocerta tradiccedilatildeo cartesianardquo natildeo chegando por conseguinte a
alcanccedilar todos os sentidos e consequecircncias de um retorno agrave experiecircncia
humana Deste modo natildeo procurando desconstruir os princiacutepios que
alimentavam as ideias de seus antiacutepodas por fim acabaram por
compartilhar dos mesmos preacutejugeacutes que pensavam ter superado Talvez neste
ponto na falta de explicitaccedilatildeo das proacuteprias fibras de um posicionamento
contra o esquecimento da condiccedilatildeo humana encontrava-se a razatildeo pela
qual para Valeacutery o peso da crise se articulava no modo como essa mesma
crise encontrava o espiacuterito o estado intelectual de um tempo que mesmo
natildeo ousando historiaacute-lo o poeta esboccedilara em poucas linhas a sua
fisionomia trata-se de um tempo complexo carregado de informaccedilotildees e de
conhecimento de todas as ordens que se entrecruzam cuja desordem
encontra-se justamente na ldquolivre coexistecircncia em todos os espiacuteritos
cultivados das ideias mais dessemelhantes dos princiacutepios de vida e de
conhecimento mais opostosrdquo (VALEacuteRY 1943 p 992) Em outros termos na
raiz dos problemas encontramos como originante o ldquomodernismordquo ao qual a
Europa se entregou11 Eacute frente a essa confusatildeo ndash aquela que permitia em
10 No dizer de Lavelle ldquo[] eacute por excelecircncia uma filosofia da consciecircnciardquo (LAVELLE 1942 p 7) e como tal possui em si ldquo[] um aspecto metafiacutesico e um aspecto psicoloacutegico que ela natildeo pode separar um do outrordquo (LAVELLE 1942 p 8) Com efeito eacute preciso negar a ideia de um espiacuterito entendido a partir de sua capacidade de ldquoautoproduccedilatildeordquo Como acentua Lavelle Eacute preciso comeccedilar chegando a um consenso em torno de trecircs pontos essenciais que permitem perceber o que se deve entender pela palavra espiacuterito O primeiro eacute que o espiacuterito eacute uma atividade aliaacutes a uacutenica atividade que merece propriamente este nome sendo toda atividade material antes causada e sofrida do que causadora e agente () O segundo ponto eacute que o espiacuterito natildeo eacute absolutamente como se crecirc uma obscura espontaneidade da qual nos limitamos a conhecer os efeitos sem nada saber do poder que possui e que se exerceria fora de noacutes e sem noacutes () O terceiro ponto finalmente permite reavaliar e estender o sentido da palavra experiecircncia que todavia foi reservada por muito tempo agrave experiecircncia do objeto (LAVELLE 1942 p 268-9) 11 ldquoJe ne deacuteteste pas de geacuteneacuteraliser la notion de moderne et de donner ce nom agrave certain mode drsquoexistence au lieu drsquoen faire un pur synonyme de contemporain Il y a dans lrsquohistoire des moments et des lieux ougrave nous pourrions nous introduire nous modernes sans troubler excessivement lrsquoharmonie de ces temps -lagrave et sans y paraicirctre des objets infiniment curieux infiniment visibles des ecirctres choquants dissonants inassimilables Ougrave notre entreacutee ferait le moins de sensation lagrave nous sommes presque chez nous Il est clair que la Rome de Trajan et que lrsquoAlexandrie des Ptoleacutemeacutees nous absorberaient plus facilement que bien des localiteacutes
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um uacutenico livro encontrarmos os ecos dos ldquobaleacutes russosrdquo de Pascal de
Nietzsche de Rimbaud da pintura da ciecircncia etc ndash que surge apesar de
alguns contra-sensos uma das mais belas imagens de Valeacutery o Hamlet
europeu que observa milhares de espectros o Hamlet intelectual que medita
sobre a vida e a morte das verdades que medita tendo em suas matildeos
cracircnios ilustres como os de Leonardo da Vinci de Leibniz de Kant de Hegel
de Marx e de tantos outros Cracircnios que por sua vez ainda refletem seus
sonhos ou melhor os sonhos da razatildeo os mesmos que paradoxalmente
pensando na pintura de Goya poderiacuteamos dizer podiam ocultar e suscitar
ldquomonstrosrdquo Caminhando entre os abismos da ordem e da desordem o
Hamlet valeriano certamente natildeo poderia abandonar seus cracircnios sob pena
de deixar de ser o que se eacute O que fazer As uacuteltimas palavras de Valeacutery
nesta carta parece-nos indicar o que para ele poderia ser um possiacutevel
caminho
Adeus fantasmas O mundo natildeo precisa mais de vocecircs Nem de mim O mundo que batiza com o nome de progresso sua tendecircncia a uma nitidez fatal busca unir aos benefiacutecios da vida as vantagens da morte Uma certa confusatildeo reina tambeacutem mais ainda um pouco tempo e tudo se esclareceraacute noacutes veremos enfim aparecer o milagre de uma sociedade animal um perfeito e definitivo formigueiro (VALEacuteRY 1943 p 994)
O paradoxo da crise ndash aquele que conforme Gattinara trata-se
da certeza de que natildeo se tem certezas ndash evidenciava que ldquoa certeza com a
qual se pensava a Verdade como algo que seria preciso desvelar eacute
substituiacuteda cada vez mais pela inquietude frente a uma verdade por
construir e portanto impossiacutevel de alcanccedilar posto que eacute apenas um
horizonte idealrdquo (GATTINARA 1998 p 25) Daiacute a afirmaccedilatildeo de Bachelard
ldquono final do uacuteltimo seacuteculo acreditava-se ainda no caraacuteter empiricamente
unificado de nosso conhecimento do realrdquo (BACHELARD 1970 p 11) Em
concomitacircncia com a crise da concepccedilatildeo claacutessica de razatildeo podemos notar
moins reculeacutees dans le temps mais plus speacutecialiseacutees dans un seul type de moeurs et entiegraverement consacreacutees agrave une seule race agrave une seule culture et agrave un seul systegraveme de vierdquo (VALEacuteRY 1943 p 992)
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que natildeo soacute os saberes mas o proacuteprio ldquoeurdquo perde sua unidade a razatildeo
categorial torna-se uma ldquopretensatildeo ingecircnuardquo ou ldquouma ilusatildeo histoacutericardquo os
fundamentos se abalam e faz da estabilidade tambeacutem uma ilusatildeo o
abandono da materialidade das coisas perde-se em proveito do ldquovazio
mascarado pela linguagemrdquo e pelo ldquodevir fantasmagoacuterico das palavrasrdquo
resumindo o fio de Ariadne se perde Logo justifica-se o fato de
encontrarmos uma mesma experiecircncia embora vivida em cada um de um
modo diverso e por conseguinte ldquoos grandes signos do decliacutenio a Grande
Guerra o proacuteprio termo lsquocrisersquo os problemas da linguagem e do signo o
sentimento de um lsquomal de mar em terra firmersquo que Kafka descreveu mas
que se encontra um pouco por toda parterdquo (GATTINARA 1998 p 27) Ora
seraacute essa tambeacutem a percepccedilatildeo da geraccedilatildeo de Merleau-Ponty teria ela ido
aleacutem das constataccedilotildees do Hamlet valeriano Quanto a isso nos diraacute
Gattinara
[] Enquanto as geraccedilotildees de Brunschvicg e de Valeacutery tentavam salvar o que pode ser manifestando uma simpatia indiscutiacutevel pela certeza da razatildeo claacutessica a geraccedilatildeo de Bachelard De Broglie e Aragon encara a crise como uma ldquorevoluccedilatildeordquo na qual eacute preciso dar uma coerecircncia ao ldquodiscursordquo das ciecircncias As ciecircncias e a razatildeo cientiacutefica podem ser salvas se as fundarmos na crise no movimento de multiplicaccedilatildeo que a determina no problema (problemas) que suscita e portanto em uacuteltimo caso no incerto A crise pode ser definida como uma luta que faz triunfar a precariedade e a mudanccedila sobre a estabilidade [] (GATTINARA 1998 p 28)
Eacute a partir desta mudanccedila que segundo o historiador a
eternidade cede seu lugar a um tempo precaacuterio (vergaumlnglich) entrelaccedilado
uma ldquomistura de experiecircncia e espaccedilordquo que a evidecircncia cartesiana se
converte em uma ilusatildeo que se torna possiacutevel ldquoseguir o movimento por mais
desordenado e labiriacutentico que sejardquo (GATTINARA 1998 p 29) Mas natildeo
estaria tambeacutem a filosofia de Merleau-Ponty em meio a essas constataccedilotildees
indagaccedilotildees hesitaccedilotildees e perspectivas que marcariam a ldquogeraccedilatildeo de
Bachelard De Broglie e Aragonrdquo O que nos diz Merleau-Ponty sobre os
percalccedilos filosoacuteficos originados pela derrocada de um ldquoespiacuterito absolutordquo
Certamente os seus primeiros trabalhos versam justamente sobre esta
questatildeo Contudo gostariacuteamos de nos centrar em um nota da
31
Pheacutenomeacutenologie de la perception Ali a partir de uma criacutetica endereccedilada
especialmente a Alain e Lagneau filoacutesofos tidos geralmente como integrantes
do ldquoespiritualismo francecircsrdquo de modo particular no que diz respeito ao
posicionamento da ldquoanaacutelise reflexivardquo frente agrave percepccedilatildeo parece que se
delineiam algumas pistas para a resposta que procuramos Encontramos ali
um breve esboccedilo dos impasses criados por uma concepccedilatildeo equivocada do
ldquoespiacuteritordquo o que talvez tambeacutem esteja na gecircnese do que viria a ser a sua
ldquocriserdquo no caso a ldquocrise do espiacuteritordquo O interessante da criacutetica de Merleau-
Ponty natildeo estaacute simplesmente na explicitaccedilatildeo dos equiacutevocos presentes nas
concepccedilotildees destes filoacutesofos mas no sentimento presente neles de que aquilo
que eles postulavam a saber a ideia de uma ldquoconsciecircncia absolutardquo poderia
natildeo conter toda a verdade Jaacute natildeo seria este sentimento o pressentimento de
algum decliacutenio
Ao se tratar o sujeito como um ldquonaturante universalrdquo um
espiacuterito absoluto o que restaria ao espiacuterito seria tatildeo-somente ldquo[] o
sistema da experiecircncia compreendido aiacute meu corpo e meu eu empiacuterico
ligados ao mundo pelas leis da fiacutesica e da psicofisiologiardquo (MERLEAU-PONTY
1999 p 618-9) Eacute assim que o pensamento reflexivo acaba por ocultar ldquo[]
o noacute da consciecircncia perceptiva porque investiga as condiccedilotildees de
possibilidade do ser absolutamente determinado e deixa-se tentar por essa
pseudo-evidecircncia da teologia de que o nada natildeo eacute coisa algumardquo (MERLEAU-
PONTY 1999 p 618) Qual a consequecircncia disto A experiecircncia da
sensaccedilatildeo se torna apenas o desdobramento ldquopsiacutequicordquo oriundo das
excitaccedilotildees sensoriais e como tal natildeo pertence ao sujeito encontra-se
divorciada dele o que ndash como consequecircncia tendo em vista que o sujeito eacute
visto como um ldquonaturante universalrdquo ndash impossibilita ldquoqualquer ideia de uma
gecircnese do espiacuteritordquo uma vez que existindo o tempo mediante este espiacuterito
natildeo se poderia conceber a possibilidade de recolocaacute-lo ldquono tempordquo O espiacuterito
passa a ser visto pois sem historicidade vivendo em uma unidade indeleacutevel
com o verdadeiro Todavia se o ldquoeu empiacutericordquo natildeo fosse outro que o
desdobramento deste espiacuterito absoluto como entender o erro onde inserir a
ldquoopacidaderdquo Esta eacute a questatildeo que Lagneau se fazia em suas Ceacutelegravebres
Leccedilons Em razatildeo disso eacute que em seu pensamento a sensaccedilatildeo deixa de ser
32
um ldquoobjeto constituiacutedordquo em uma ldquorede de relaccedilotildees psicofiacutesicasrdquo Logo
concluiraacute Merleau-Ponty se ldquoo sentir natildeo pertence agrave ordem do constituiacutedordquo
se ldquoo Eu natildeo o encontra desdobrado diante de sirdquo eacute porque justamente
[] ele escapa ao seu olhar estaacute como que recolhido atraacutes dele estaacute ali como uma espessura ou uma opacidade que torna o erro possiacutevel delimita uma zona de subjetividade ou de solidatildeo representa-nos aquilo que estaacute ldquoantesrdquo do espiacuterito ele evoca seu nascimento e reclama uma anaacutelise mais profunda que esclareceria a ldquogenealogia da loacutegicardquo O espiacuterito tem consciecircncia de si como ldquofundadordquo nessa Natureza Haacute portanto uma dialeacutetica do naturado e do naturante da percepccedilatildeo e do juiacutezo no decorrer da qual sua relaccedilatildeo se inverte (MERLEAU-PONTY 1999 p 619)
Para Merleau-Ponty em Quatre-vingt-un chapitres sur lrsquoesprit et
les passions Alain faria um movimento semelhante ao de Lagneau De
acordo com o filoacutesofo ao pensar sobre a ldquograndeza aparenterdquo dos objetos
retirando do juiacutezo o papel de ldquoinstacircncia ratificadorardquo o que se vislumbrava
era o encaminhamento a uma subjetividade na qual a relaccedilatildeo com o mundo
natildeo se daacute mais mediante uma ldquoinspeccedilatildeo do espiacuteritordquo Logo se ldquo[] uma
aacutervore me parece sempre maior do que um homem mesmo se ela estaacute bem
distante de mim e o homem bem proacuteximordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 619)
isto se daacute natildeo graccedilas a uma alteraccedilatildeo promovida pelo juiacutezo pois
A percepccedilatildeo natildeo conclui a grandeza da aacutervore daquela do homem ou a grandeza do homem daquela da aacutervore nem uma e outra do sentido desses dois objetos mas ela faz tudo ao mesmo tempo a grandeza da aacutervore a grandeza do homem e sua significaccedilatildeo de aacutervore e de homem de forma que cada elemento se harmoniza com todos os outros e compotildee com eles uma paisagem em que todos coexistem Entra-se assim na anaacutelise daquilo que torna possiacutevel a grandeza e mais geralmente as relaccedilotildees ou as propriedades de ordem predicativa e nessa subjetividade ldquoanterior a toda geometriardquo que todavia Alain declarava incognosciacutevel (MERLEAU-PONTY 1999 p 620)
Merleau-Ponty nota em Alain o preluacutedio de uma anaacutelise
especialmente no que diz respeito agrave ldquograndezardquo dos objetos na qual o juiacutezo
encontra uma funccedilatildeo que lhe eacute mais profunda que lhe estaacute aqueacutem anaacutelise
semelhante agravequela que versando justamente sobre esta questatildeo
encontrariacuteamos nos psicoacutelogos ao se falar em uma Gestaltung da
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paisagem12 O que isto quer nos dizer Se partirmos da filosofia de Merleau-
Ponty natildeo poderemos falar unicamente no asseacutedio que devido agraves distorccedilotildees
de um ldquomodernismordquo o Espiacuterito enfrentava Pelo contraacuterio ldquoo modernismordquo
natildeo eacute uma ldquocausardquo da crise mas o delineamento de uma mudanccedila Logo no
que se refere ao ldquomodernismordquo o que temos eacute a elucidaccedilatildeo de que o sentido
dos princiacutepios que moviam o Mundo Claacutessico se esvaziara mudara de
direccedilatildeo e as razotildees disto se encontram nestes mesmos princiacutepios encontra-
se propriamente em seus fundamentos
Por conseguinte parece-nos que para o filoacutesofo falar em ldquocriserdquo
natildeo significa tambeacutem acentuar uma passagem que vai do caos agrave ordem natildeo
significa corroborar a ilusatildeo positivista de que seria legiacutetima a tarefa de se
explicitar um progresso pelo qual mediante uma eacutepoca criacutetica uma idade
orgacircnica teria que ceder o seu lugar a uma outra idade igualmente orgacircnica
Em outros termos natildeo se trata da fantasia positivista em crer que eacute
possiacutevel a uma eacutepoca viver sem incertezas e sem lutas Deste modo acaba
sendo por uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo que acreditamos ter sido o mundo
claacutessico o reino das certezas absolutas e das verdades apodiacuteticas Como natildeo
pensar nas obras inacabadas de Da Vinci Natildeo guardava tambeacutem a ciecircncia
claacutessica ldquoo sentimento de uma opacidade do mundordquo Natildeo era justamente ao
mundo segundo o filoacutesofo ldquo() que ela pretendia juntar-se por suas
construccedilotildees e por isso eacute que se acreditava obrigado a procurar para suas
operaccedilotildees um fundamento transcendente ou transcendentalrdquo (MERLEAU-
PONTY 1975b p 85) Igualmente natildeo acabamos de encontrar em filoacutesofos
tidos espiritualistas um encaminhamento a ideias que lhes deveriam ser
opostas
Conforme procuraremos mostrar para Merleau-Ponty ldquocriserdquo
significa pois a oportunidade que se tem quando se trata do pensamento
em rever e reformular seus princiacutepios e suas certezas Se eacute certo o que nos
diz Valeacutery acerca de uma ldquoCrise do Espiacuteritordquo eacute porque seguindo os
12 No proacuteximo capiacutetulo de certo modo retomaremos o tema da ldquograndezardquo e o seu significado filosoacutefico quando tratarmos da criacutetica de Merleau-Ponty agrave noccedilatildeo claacutessica de perspectiva
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movimentos da histoacuteria a nossa concepccedilatildeo do ldquoespiacuteritordquo natildeo eacute mais a
mesma Mais do que uma ldquomudanccedila suacutebitardquo se nos atentarmos agrave
etimologia a Krisiv [Kriacutesis] eacute tambeacutem um momento decisivo como jaacute nos
ensina o verbo Krinw [Kriacuteno] do qual este termo se origina o poder de se
fazer escolhas de fazer distinccedilotildees Contudo se a Crise de Valeacutery aquela que
poderiacuteamos entender como a expressatildeo de uma ldquocrise francesardquo natildeo nos eacute
suficiente para compreendermos a filosofia de Merleau-Ponty certamente o
trabalho etimoloacutegico natildeo o seria assim como tambeacutem natildeo o seria a denuacutencia
dos impasses nas relaccedilotildees da filosofia com a ciecircncia Acaso natildeo encontramos
em seu pensamento mais do que a explicitaccedilatildeo dos ecos de uma crise que se
vecirc consolidada nos trabalhos da ciecircncia No entanto qual seria a razatildeo
disto O fato eacute que no caso de Merleau-Ponty no compasso de uma ldquocrise
do espiacuteritordquo encontrariacuteamos ainda e talvez com mais veemecircncia os ecos de
uma outra Krisis a Crise da Razatildeo Se a Crise francesa natildeo eacute a Krisis alematilde
no pensamento merleau-pontiano encontramos a tentativa de dialogar com
ambas a fim de melhor compreender o seu tempo Por conseguinte quando
procuramos compreender a filosofia de Merleau-Ponty nos horizontes de um
sentimento de crise a fenomenologia de Husserl natildeo deixa de ter um topos
privilegiado O que isso significa Quais as razotildees Vejamos
12 A Fenomenologia e a Crise da Razatildeo os limites do cientificismo e o retorno ao mundo-da-vida
Segundo Merleau-Ponty ldquodesde a sua origem a fenomenologia
aparece como uma tentativa de resolver um problema colocado no iniacutecio do
seacuteculo pela Crise da filosofia das ciecircncias do homem e das ciecircncias em
geralrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 151) A fenomenologia em outras
palavras seria justamente o intento de superar de uma soacute vez todas essas
crises No que diz respeito agrave ciecircncia claacutessica a nosso ver o intento
husserliano natildeo eacute outro eacute o reconhecimento de que em sua deacutemarche o
que se pretende efetuar eacute uma ideia equivocada de razatildeo um conceito
embargado por contradiccedilotildees desde o seu nascimento Logo a Crise das
ciecircncias natildeo eacute o simples empreendimento de anaacutelise dos limites daquilo que
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se verifica a validade jaacute presente em Descartes e no qual a razatildeo se voltaria
criticamente contra os fundamentos das ciecircncias Em contrapartida
tampouco se limitaria agraves reflexotildees do Hamlet valeriano Quanto ao sentido
dessa Krisis satildeo esclarecedoras as seguintes palavras de Moura
[] esse tema [a crise da Razatildeo] parece ter a sua dataccedilatildeo circunscrita agrave primeira metade do nosso seacuteculo Pois se eacute verdade
que de maneira expliacutecita ou impliacutecita a noccedilatildeo de ldquocriserdquo sempre
frequumlentou a histoacuteria da filosofia eacute verdade tambeacutem que Descartes
por exemplo natildeo apontava para nenhuma ldquocrise da razatildeordquo mas para uma crise das ciecircncias ciecircncias cujos ldquoprinciacutepios incertosrdquo careciam
de uma legitimaccedilatildeo que a prima philosophia logo logo lhes viria
assegurar E se Kant apresentava a razatildeo pura como origem de
ilusotildees o que estava em questatildeo ali era apenas o ldquouso especulativordquo da razatildeo e natildeo a razatildeo ela mesma que se comportava muito bem no
domiacutenio da fiacutesica e da matemaacutetica ciecircncias que por si soacutes nunca
teriam suscitado o projeto criacutetico Ora seraacute muito diferente quando
Merleau-Ponty preocupado em restaurar a universalidade da razatildeo for censurar a proacutepria ciecircncia Por isso mesmo esse diagnoacutestico
longe de reeditar na atualidade a antiga e enfadonha suspeita da
ldquoseita ceacuteticardquo contra as pretensotildees da ldquorazatildeo dogmaacuteticardquo eacute formulado
hoje em dia por membros do proacuteprio partido racionalista Diagnoacutestico paradoxal sem duacutevida jaacute que enunciado no momento
histoacuterico em que as ciecircncias mais se expandem e se consolidam Era
exatamente desse paradoxo aparente que Husserl partia em A crise das ciecircncias europeacuteias e a fenomenologia transcendental de 1936 existe sim uma crise da razatildeo apesar do sucesso incontestaacutevel das
ciecircncias positivas (MOURA 2001 p 185-6)
Ora eacute neste sentido que a nosso ver o pensamento husserliano
eacute marcado pela busca constante por uma idealidade objetiva que se
evidencia antes no retorno ao mundo-da-vida do que no embaraccediloso
reducionismo psicologista em sua tarefa de tornar reais os ldquoestados de
consciecircnciardquo fazendo deles nada mais e nada menos do que ldquopedaccedilos da
naturezardquo O diagnoacutestico husserliano natildeo eacute o mesmo daquele elaborado quer
seja pelos existencialismos quer seja pelos pessimismos uma vez que natildeo
podemos negar ainda em Husserl a presenccedila latente de uma feacute na Razatildeo Eacute
esta mesma certeza que o leva a diagnoacutesticos nada simples para os seus
leitores que o conduz agrave certeza de que frente ao objetivismo cientificista
fundamentalmente histoacuterico e natildeo meramente ocasional a fenomenologia
pode se apresentar como uma soluccedilatildeo possiacutevel por seu rigoroso
reconhecimento e resgate daquilo que fora condenado pela cultura europeia
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ao esquecimento a saber o mundo-da-vida a Lebenswelt Natildeo seraacute tarefa
da fenomenologia por sua vez frente agrave Crise elucidar aquilo que deve ser
ou se entender por ciecircncia o que lhe pode legitimar de iure a sua proacutepria
cientificidade demonstrando que o meacutetodo utilizado por elas ao colocar-se
frente a sua aplicabilidade carece de licitude O caminho eacute bem outro
Trata-se da busca daquilo que se constitui como o fundamento e a gecircnese
desta Crise colocando-se de modo historial em seus desdobramentos no
percurso que fizera com que o pensamento moderno se tornasse o seu
resultado cabal Nesta perspectiva uma criacutetica do psicologismo ultrapassa a
si mesma levando-nos antes agravequilo que o filoacutesofo nos indica como uma
ldquoespeacutecie de enigma do mundordquo o mesmo que as outras eacutepocas natildeo se deram
conta e que por conseguinte natildeo deixa de nos lanccedilar frente ao enigma da
proacutepria subjetividade
A proposta frente agrave Crise eacute que seja modificado o modo pelo
qual o pensamento se coloca em relaccedilatildeo agrave ciecircncia dizendo de modo
husserliano eacute preciso mudar o modo de ldquoestimarrdquo a ciecircncia deixando de ser
a pergunta por sua cientificidade conforme assinalado para se tornar uma
indagaccedilatildeo acerca de seu sentido para a existecircncia humana Natildeo basta
encantar-se com a ciecircncia e a prosperity que traz consigo eacute ateacute mesmo
problemaacutetica a ingecircnua passagem de uma ldquociecircncia de fatordquo para uma
ldquohumanidade de fatordquo O que eacute preciso mostrar eacute que existem questotildees
cruciais a serem feitas e que foram simplesmente excluiacutedas Quais seriam
elas Diraacute Husserl ldquosatildeo as questotildees que versam sobre o sentido ou sobre a
ausecircncia de sentido de toda esta existecircncia humanardquo (HUSSERL 1992 vol
8 p 4 1976 p 10)13 E por que elas satildeo tatildeo importantes assim O que
torna estas questotildees fundamentais no entender do filoacutesofo eacute a capacidade
de atingir o homem moderno em suas relaccedilotildees quaisquer que elas sejam e
no modo pelo qual senhor de si mesmo eacute capaz de dar uma ldquoforma de
razatildeordquo a si mesmo e ao seu mundo-ambiente [sich und seine Umwelt
vernuumlnftig zu gestalten] (HUSSERL 1992 vol 8 p 4 1976 p 10) sem
13 ldquo[] die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseinsrdquo (HUSSERL 1992 vol 8 p 4 1976 p 10)
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todavia dar-se conta de suas consequecircncias14 Daiacute a preocupaccedilatildeo em
mostrar a partir de sua gecircnese os limites do naturalismo das ciecircncias
Pensando em suas construccedilotildees acaso ldquopodemos viver neste mundo cujo
acontecimento histoacuterico natildeo eacute nada de outro que um encadeamento
incessante de iacutempetos ilusoacuterios e de amargas decepccedilotildeesrdquo (HUSSERL 1992
vol 8 p 4-5 1976 p 11)15
Em outras palavras seguindo as pegadas de Husserl queremos
salientar que se a Crise natildeo eacute a denuacutencia da cientificidade que rege as
ciecircncias eacute porque a crise das ciecircncias eacute sobretudo uma ldquocrise de sentidordquo
Natildeo interessa saber se um determinado modelo ou proposta cientiacutefica
funciona ou natildeo Isso natildeo eacute para Husserl tarefa do filoacutesofo A questatildeo eacute
saber no entanto o que isso significa para a existecircncia humana e como
pode afetaacute-la dado que natildeo teria sentido falar em uma crise na condiccedilatildeo de
derrocada da proacutepria cientificidade cientiacutefica principalmente dados os
brilhantes desdobramentos da fiacutesica Mas como se inserem esses
desdobramentos em um determinado ldquoprojeto de vidardquo Pensando nesta
questatildeo podemos entender porque ao se voltar para os emergentes
desenvolvimentos da ldquoteacutecnicardquo o que estaacute em jogo eacute o modo como ela
funciona na condiccedilatildeo de um mecanismo de aumento das consequecircncias
geradas para a existecircncia humana por um determinado projeto de
14 Eacute o que assinala a Krisis ldquoUnseren nehmen wir von einer an der Wende des letzten Jahrhunderts hinsichtlich der Wissenschaften eingetretenen Umwendung der allgemeinen Bewertung Sie betrifft nicht ihre Wissenschaftlichkeit sondern das was sie was Wissenschaft uumlberhaupt dem menschlichen Dasein bedeutet hatte und bedeuten kann Die Ausschlieszligliechkeit in welcher sich in der zweiten Haumllfte des 19 Jahrhunderts die ganze Weltanschauung des modernen Menschen von den positiven Wissenschaften bestimmen und von der ihr verdankten bdquoprosperityldquo blenden lieszlig bedeutete ein gleichguumlltiges Sichabkehren von den Fragen die fuumlr ein echtes Menschentum die entscheindenden sind Bloszlige Tatsachenwissenschaften machen bloszlige Tatsachenmenschen Die Umwendung der oumlffentlichen Bewertung war insbesondere nach dem Kriege unvermeidlich und sie ist wie wir wissen in der jungen Generation nachgerade zu einer feindlichen Stimmung geworden In unserer Lebensnot ndash so houmlren wir ndash hat diese Wissenschaft uns nichts zu sagen Gerade die Fragen schlieszligt sie prinzipiell aus die fuumlr den in unseren unseligen Zeiten den schicksalsvollsten Umwaumllzungen preisgegebenen Menschen die brennenden sind die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseinsrdquo (HUSSERL 1992 vol 8 p 3-4 1976 p 10) 15 Cf o texto ldquoKoumlnnen wir uns damit beruhingen koumlnnen wir in dieser Welt leben deren geschichtliches Geschehen nichts anderes ist als eine unaufhoumlrliche Verkettung von illusionaumlren Aufschwuumlngen und bitteren Enttaumluschungenrdquo(HUSSERL 1992 vol 8 p 4-5 1976 p 11)
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cientificidade Neste sentido o que preocupa na metodologia cientificista eacute
que natildeo possui por se dar como um mero instrumento fim em si mesma
pois ao perder o seu caraacuteter teleoloacutegico estaacute impossibilitada de trazer
consigo o sentido da vida e da histoacuteria ao passo que ldquoo investigador perfeito
que tende tambeacutem em direccedilatildeo agrave perfeiccedilatildeo como ser humano nunca perde de
vista as relaccedilotildees que entreteacutem a ciecircncia que ele pratica com os fins gerais e
mais elevados do conhecimento humanordquo (HUSSERL 1982 p 231) Se essa
constataccedilatildeo possui um caraacuteter eacutetico-poliacutetico eacute porque se esmera em
primeiro lugar em um desconforto filosoacutefico gerado fundamentalmente pela
proacutepria noccedilatildeo de razatildeo que estaacute em jogo nestas consideraccedilotildees16 Eacute neste
sentido que para Husserl torna-se necessaacuterio compreender as relaccedilotildees que
se estabelecem entre filosofia e ciecircncia Como se daria especialmente nos
uacuteltimos trabalhos de Husserl essa explicitaccedilatildeo Conforme Olesen pensando
na compreensatildeo husserliana de Galileu seria o de mostrar ldquo[] que a
ciecircncia recobre (filosoficamente) no mesmo movimento em que ela descobre
(cientificamente)rdquo (OLESEN 1994 vol 29 p 12) logo ldquo[] a anaacutelise
husserliana das relaccedilotildees da filosofia e das ciecircncias pode agora apresentar-
se como lsquocriacutetica histoacutericarsquo (Geschichtskritik) []rdquo (OLESEN 1994 vol 29 p
13) Por conseguinte eacute tendo por referecircncia essa ldquocriacutetica histoacutericardquo
[Geschichtskritik] (HUSSERL 1954 p 59) ou antes mediante uma
ldquourspruumlngliche Sinngebungrdquo (HUSSERL 1954 p 46) pelo qual se constitui a
ciecircncia que sua anaacutelise descobre em Galileu ldquoum gecircnio que ao mesmo
16 Eacute a partir desta perspectiva que melhor entendemos as seguintes palavras de Koyreacute em um dos textos de seus Estudos Newtonianos palavras dotadas inconfundivelmente com o sotaque husserliano da Krisis ldquoHaacute algo do qual Newton deve ser sido responsaacutevel ndash ou para dizer melhor natildeo unicamente Newton mas a ciecircncia moderna em geral eacute a divisatildeo de nosso mundo em dois Eu disse que a ciecircncia moderna tinha invertido as barreiras que separavam os Ceacuteus e a Terra que ela uniu e unificou o Universo Isso eacute verdade Mas eu disse tambeacutem que ela fez isso substituindo o nosso mundo de qualidades e de percepccedilotildees sensiacuteveis mundo no qual vivemos amamos e morremos por um outro mundo o mundo da quantidade da geometria reificada mundo no qual embora haja lugar para toda coisa natildeo haacute mais para o homem Assim o mundo da ciecircncia ndash o mundo real ndash afasta-se e se separa inteiramente do mundo-da-vida que a ciecircncia foi incapaz de explicar ndash inclusive por uma explicaccedilatildeo dissolvente que faria dele uma aparecircncia lsquosubjetivarsquo Na verdade estes dois mundos satildeo todos os dias ndash cada vez mais ndash unidos pela praacutexis Mas para a teoria satildeo separados por um abismo Dois mundos o que quer dizer duas verdades Ou nenhuma verdade em absoluto Eacute nisto que consiste a trageacutedia do espiacuterito moderno que lsquoresolveu o enigma do Universorsquo mas tatildeo-somente para substituiacute-lo por um outro lsquoo enigma de si mesmorsquordquo (KOYREacute 1968 p 42-3)
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tempo (des)-cobre e (re)-cobrerdquo (HUSSERL 1954 p 49 OLESEN 1994 vol
29 p 12) pois
Originaacuterio este sentido natildeo deve todavia ser buscado em um lugar distante aleacutem da histoacuteria visto ser ele mesmo que devemos compreender como passagem saber como passagem do ldquomundo-da-vidardquo agrave ciecircncia De tal modo esta doaccedilatildeo de sentido originaacuterio por onde Galileu descobre a natureza como ldquoscritta in liacutengua matematicardquo recobrindo de uma soacute vez a natureza na medida em que ela eclode diferentemente de um suporte agrave matematizaccedilatildeo Todavia se a ldquodoaccedilatildeo originaacuteria de sentidordquo natildeo se faz alhures senatildeo na proacutepria ciecircncia natildeo cabe agrave ciecircncia enunciar em que esta doaccedilatildeo de sentido eacute doaccedilatildeo Digamos que cabe agrave ciecircncia fazer a passagem do mundo-da-vida agrave ciecircncia mas natildeo descrever essa passagem (OLESEN 1994 vol 29 p 13)
Por conseguinte o que significa entender Galileu a partir de uma
investigaccedilatildeo histoacuterica em um ldquosentido insoacutelitordquo [ungewohnten Sinn] como
acentua a traduccedilatildeo literal17 ou conforme Derrida a partir da investigaccedilatildeo
de uma ldquoproto-histoacuteriardquo [proto-histoire] Por que a atenccedilatildeo husserliana se
voltara para as investigaccedilotildees cientiacuteficas de Galileu18 De acordo com
Husserl ldquocertamente os Antigos conduzidos pela doutrina platocircnica das
Ideias jaacute tinham idealizado os nuacutemeros e as medidas empiacutericas as figuras
espaciais empiacutericas os pontos as linhas as superfiacutecies os corposrdquo19
Inclusive como ainda lembra Husserl
Com a geometria de Euclides tinha aparecido a ideia bastante impressionante de uma teoria dedutiva sistematicamente unificada orientada para um fim ideal de uma grande amplitude e de uma grande elevaccedilatildeo repousando em conceitos e princiacutepios fundamentais
17 Verbo ldquowohnenrdquo gewoumlhnt (habitual acostumado) 18 A este respeito vale salientar que segundo Franccedilois de Gandt Husserl tomara conhecimento de Galileu mediante uma ldquovulgata galileanardquo corrente em sua eacutepoca logo natildeo teria frequentado diretamente os seus trabalhos Por conseguinte a imagem do Galileu husserliano fora traccedilado tendo em vista o empreendimento de neo-kantianos como Hermann Cohen Paul Natorp e Ernst Cassirer (GANDT 2004 p 97-8) Teria saiacutedo inclusive das letras de Cassirer a certeza de que deveria ser pago a Galileu o tributo pela possibilidade de se lanccedilar uma ldquoponte entre Platatildeo e Kantrdquo Mas seria entatildeo a Krisis tatildeo-somente o locus de sedimentaccedilatildeo da recepccedilatildeo de uma determinada imagem inteiramente pronta de Galileu e de uma imagem pautada sobre um ldquofundo kantianordquo Eacute certo que natildeo e o proacuteprio Franccedilois de Gandt eacute levado a reconhecer no modus operandi da Krisis uma deacutemarche que por sua inegaacutevel originalidade natildeo deixara de repercutir com fecundidade na proacutepria histoacuteria das ciecircncias 19 (HUSSERL 1992 p 18 1976 p 26) ldquoDiese hatten zwar schon von der Platonischen Ideenlehre geleitet die empirischen Zahlen Maszliggroumlszligen die emprischen Raumfiguren die Punkte Linien Flaumlchen Koumlrper idealisiertrdquo
40
ldquoaxiomaacuteticosrdquo e progredindo por uma sequecircncia de raciociacutenios apodiacuteticos em suma um conjunto proveniente da racionalidade pura um conjunto de verdades absolutamente incondicionadas apreensiacuteveis diretamente ou indiretamente conjunto que se oferece a si mesmo aos olhares em sua verdade incondicionada (HUSSERL 1992 p 18-9 1976 p 26)20
Todavia se jaacute encontramos tudo isto em Euclides como salienta
Husserl qual seria entatildeo a novidade do pensamento moderno [claacutessico] Jaacute
natildeo havia ali uma conceituaccedilatildeo matemaacutetica da Natureza Na Krisis o
filoacutesofo nos responderia que natildeo De acordo com a Krisis ldquo[] a geometria de
Euclides e geralmente falando a matemaacutetica dos Antigos conhecia apenas
tarefas finitas ela conhecia apenas um a priori que se fecha de modo finitordquo21
Participando deste modo encontrar-se-ia por exemplo o silogismo
aristoteacutelico Neste sentido especialmente a partir de Galileu muda-se o
modo de se aproximar da Natureza Trata-se de um mundo ldquoinfinitordquo aquele
das idealidades que apenas pode ser atingido por um ldquomeacutetodo racional
sistematicamente unificadordquo Natildeo haacute mais sentido em se referir a uma
ldquorealidaderdquo que se aperfeiccediloa agrave medida que se aproxima de ldquoideiasrdquo perfeitas
mas ldquo[] eacute a proacutepria natureza que sob a direccedilatildeo da nova matemaacutetica
encontra-se idealizada ela proacutepria torna-se [] uma multiplicidade
matemaacuteticardquo (HUSSERL 1954 p 20 1976 p 26)22 A matemaacutetica como
instrumento de anaacutelise ao contraacuterio da loacutegica escolaacutestica torna-se
especialmente para Galileu o instrumento da ldquodescobertardquo23 No entanto
20ldquoNoch mehr mit der Euklidischen Geometrie war di houmlchst eindrucksvolle Idee einer auf ein weit-und hochgestecktes ideales Ziel ausgrichteten systematisch einheitlichen deduktiven Theorie erwachsen beruhend auf bdquoaxiomatischenldquo Grundbegriffen und Grund dsaumltzen in apodiktischen Schluszligfolgerungen fortschreitend ndash ein Ganzes aus reiner Rationalitaumlt ein in seiner unbedingten Wahrheit einsehbares Ganzes von lauter unbedingten unmittelbar und mittelbar einsichtigen Wahrheitenrdquo 21 (HUSSERL 1954 p 19 1976 p 26) ldquoAber die Euklidische Geometrie und die alte Mathematik uumlberhaupt kennt nur endliche Aufgaben ein endlich geschlossenes Apriorirdquo (HUSSERL 1992 p 19) 22ldquoIn der Galileischen Mathematisierung der Natur wird nun diese selbst unter der Leitung der neuen Mathematik idealisiert sie wird ndash modern ausgedruumlckt ndash selbst zu einer mathematischen Mannigfaltigkeitrdquo (HUSSERL 1954 p 20) 23 Assim embora reconheccedila o platonismo de Galileu do mesmo modo que Koyreacute Husserl sabe que mais do que uma admiraccedilatildeo o platonismo ao menos como fora recebido torna-se a base e o alicerce de um conhecimento marcado pela objetividade e a segura instabilidade das formas Nessa perspectiva a matemaacutetica natildeo eacute a expressatildeo de um amor pela Antiguidade que se revela no conhecimento de sua imagiacutestica mas vem a ser entendida
41
como se daria em Galileu a gecircnese de uma compreensatildeo matemaacutetica da
Natureza
Segundo Galileu a partir da nossa experiecircncia sensiacutevel eacute
possiacutevel identificar elementos tanto simples quanto absolutos que em
seguida podem ser traduzidos para uma linguagem matemaacutetica24 O
interessante eacute que apoacutes ter feito isto logo natildeo precisamos mais da proacutepria
experiecircncia Seraacute a matemaacutetica pura que ditaraacute as etapas posteriores Por
conseguinte natildeo haveria problema algum se nesta etapa algumas
hipoacuteteses natildeo se confirmassem empiricamente A demonstraccedilatildeo ou
verificaccedilatildeo cientiacutefica realizada a partir da experiecircncia seria simplesmente
um recurso facultativo para se usar com aqueles que natildeo confiam na
universalidade da matemaacutetica Contudo seraacute a distinccedilatildeo galileana herdada
de Kepler ldquoentre o que no mundo eacute absoluto objetivo imutaacutevel e
matemaacutetico e o que eacute relativo subjetivo flutuante e sensorialrdquo (BURTT
1991 p 67) que marcaraacute sua metafiacutesica Em outros termos eacute a separaccedilatildeo
do que haacute de manifesto em um fenocircmeno fiacutesico em ldquoqualidades primaacuteriasrdquo e
ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo que nos faraacute encontrar tambeacutem em Galileu um
dos alicerces do mundo moderno [claacutessico] aleacutem da fiacutesica newtoniana que
como salientaria Koyreacute teria dividido o mundo em dois
De um lado encontramos ldquoqualidades primaacuteriasrdquo que se referem
a tudo o que haacute de matematicamente traduziacutevel em um fenocircmeno Por outro
lado encontramos tambeacutem ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo que se referem a
experiecircncias como a sensaccedilatildeo Enquanto a primeira seria real concreta a
segunda natildeo sendo tatildeo real quanto a primeira encontrar-se-ia apenas
limitada agrave nossa subjetividade Aleacutem disso encontramos em Galileu ndash
semelhante em certos aspectos a Platatildeo ndash aqueacutem do mundo da exatidatildeo
matemaacutetica a distinccedilatildeo de um mundo de ldquoopiniotildees cambiantesrdquo e de um
como a proacutepria estrutura do Universo Essa eacute a razatildeo mediante a qual se entende tanto a substituiccedilatildeo da experiecircncia sensiacutevel por um mundo preacutevio ndash como diria Nietzsche por um Hinterwelt ndash como o atomismo galileano que tornava Platatildeo e Demoacutecrito estranhamente os fundamentos de uma mesma realidade 24 Eacute assim que conforme Burtt ldquovisto em sua totalidade o meacutetodo de Galileu pode ser decomposto em trecircs etapas intuiccedilatildeo ou resoluccedilatildeo demonstraccedilatildeo e experiecircncia empregando-se em cada caso seus termos prediletosrdquo (BURTT 1991 p 65)
42
mundo da ldquoexperiecircncia sensorialrdquo Assim ldquoos elementos confusos e
inconfiaacuteveis na figuraccedilatildeo sensorial da Natureza satildeo de algum modo efeitos
dos proacuteprios sentidosrdquo (BURTT 1991 p 67) pois ldquoeacute porque o quadro mental
resultante passou pelos sentidos que ele possui todas essas caracteriacutesticas
confusas e enganosasrdquo (BURTT 1991 p 67) Como podemos notar enquanto
as qualidades secundaacuterias natildeo passam de meros efeitos dos nossos sentidos
as primaacuterias seriam as que na Natureza satildeo de fato reais Como ressalta o
proacuteprio Galileu
() natildeo acredito que os corpos externos para provocar em noacutes esses gostos esses cheiros e esses sons requeiram mais que o
tamanho a figura o nuacutemero e o movimento vagaroso ou raacutepido e
julgo que se os ouvidos a liacutengua e as narinas fossem suprimidas a
figura os nuacutemeros e os movimentos certamente permaneceriam mas natildeo os odores nem os gostos nem os sons os quais sem o
animal vivo natildeo creio que constituam mais que nomes assim como
as coacutecegas natildeo satildeo nada mais que um nome se a axila ou a
membrana nasal fossem suprimidas (GALILEU 1942 vol IV p 333)25
A partir destas consideraccedilotildees portanto podemos entender as
razotildees que levaram Husserl a notar em Galileu aquele ldquosentido originaacuteriordquo
[urspruumlngliche Sinngebung] pelo qual se institui a ciecircncia claacutessica Tomando
Galileu como referecircncia a pretensatildeo husserliana eacute a de explicitar a cisatildeo
presente em seu tempo entre as ldquociecircncias do Espiacuteritordquo e as ldquociecircncias da
Naturezardquo que ao conduzir a um labirinto no qual a verdade se encontrava
fundada em teorias antagocircnicas acabava por nos situar frente a uma
espeacutecie de esquizofrenia da cultura26 Em especial nas Ideen II ao tratar da
25 ldquoPer lo che vo io pensando che questi sapori odori colori etc per la parte del suggetto nel quale ci par che riseggano non sieno altro che puri nomi ma tengano solamente lor residenza nel corpo sensitivo sigrave che rimosso lanimale sieno levate ed annichilate tutte queste qualitagrave tuttavolta perograve che noi sigrave come gli abbiamo imposti nomi particolari e differenti da quelli de gli altri primi e reali accidenti volessimo credere chesse ancora fussero veramente e realmente da quelli diverserdquo (GALILEU 1942 vol IV p 333) 26 Husserl reconhece sua diacutevida para com Dilthey ldquoo primeiro que observou as diferenccedilas essenciais que estatildeo em jogo aqui e o primeiro tambeacutem que tomou uma consciecircncia viva do fato de que a psicologia moderna ciecircncia natural do psiacutequico era incapaz de assegurar agraves ciecircncias concretas do espiacuterito a fundaccedilatildeo cientiacutefica que elas exigiamrdquo (HUSSERL 1952 p 175 1950 p 175) Contudo a seu ver ldquounicamente uma investigaccedilatildeo radical orientada rumo agraves fontes fenomenoloacutegicas da constituiccedilatildeo das ideias da natureza do corpo proacuteprio da alma e das diferentes ideias de ego e de pessoa pode aqui fornecer as explicitaccedilotildees
43
ldquoConstituiccedilatildeo do Mundo do Espiacuteritordquo o filoacutesofo nos acentua que a cultura
de um modo geral ou como ele mesmo diraacute ldquonossa visatildeo de mundo por
inteirordquo encontra-se determinada em sua ldquoessecircnciardquo e em seu ldquofundamentordquo
pela separaccedilatildeo entre o ldquomundo da naturezardquo e o ldquomundo do espiacuteritordquo ldquo()
entre uma teoria da alma proacutepria da ciecircncia de um lado e de outro uma
teoria da pessoa (teoria do ego egologia) assim como uma teoria da
sociedade (teoria da comunidade)rdquo (HUSSERL 1952 p 175 1950 p 246)
Encontramos pois seguindo em seus pressupostos uma variante leibniziana
da separaccedilatildeo entre quaestiones de facto e quaeligstiones de iure uma ciecircncia
que por si mesma natildeo conseguindo explicitar os fundamentos nos quais se
encontra alicerccedilada deixou no esquecimento o solo preacutevio de onde emergira
a saber o mundo-da-vida a Lebenswelt Daiacute por exemplo a necessidade de
uma nova psicologia de uma psicologia que natildeo sendo psicoloacutegica natildeo
compartilhe tambeacutem da incapacidade das ciecircncias de assegurar ldquoagraves ciecircncias
concretas do espiacuterito a fundaccedilatildeo cientiacutefica que elas exigemrdquo (HUSSERL 1952
p 175 1950 p 246) Como jaacute salientava o filoacutesofo em La philosophie comme
science rigoureuse
As ciecircncias da natureza natildeo nos desvelaram em nenhum ponto o misteacuterio da realidade atual da realidade em que vivemos agimos e
estamos A crenccedila geral de que tal eacute sua funccedilatildeo e que elas ainda natildeo estatildeo bastante avanccediladas para preenchecirc-la a opiniatildeo segundo a
qual elas poderiam por princiacutepio realizaacute-la revelou-se aos olhares
profundos como supersticcedilatildeo (HUSSERL 1993 p 170)
Por conseguinte mantendo o foco em Galileu conforme vimos
natildeo se daacute por acaso o empreendimento husserliano em natildeo centrar-se
unicamente naquela geometria ldquointeiramente prontardquo que lhe fora entregue
Nem mesmo eacute desconhecida do filoacutesofo a ameaccedila anacrocircnica que assombra
as suas reflexotildees Afinal natildeo estaria o pensador no direito de interrogar
antes de tudo ldquoo sentido originaacuterio da geometria que nos eacute entregue e nunca
deixa de advir com este mesmo sentido ndash geometria que natildeo deixa de advir e
ao mesmo tempo de se edificar ao permanecer atraveacutes de todas as suas
decisivas e ao mesmo tempo dar sua fecundidade e seu direito aos motivos plenamente vaacutelidos de todas as investigaccedilotildees desse gecircnerordquo (HUSSERL 1950 p 247)
44
novas formas na condiccedilatildeo de lsquoarsquo geometriardquo (HUSSERL 1992 p 365 1976
p 173 ndash traduccedilatildeo modificada por noacutes) 27 De acordo com Husserl a razatildeo e o
pensamento natildeo satildeo transluacutecidos pelo contraacuterio estatildeo sempre em processo
Neste sentido ao situarmos ldquoa geometriardquo em um horizonte histoacuterico eacute
preciso assinalar que natildeo se trata de um processo de determinaccedilatildeo mas de
um longo processo de indeterminaccedilatildeo haja vista que a ldquoconcreccedilatildeo histoacutericardquo
do mundo-da-vida natildeo se daacute por um mecanismo de mundificaccedilatildeo no qual o
todo seria simplesmente a soma das partes ela se encontra ao mesmo
tempo conforme veremos adiante ao falar da Terra como archeacute originaacuteria
em toda parte e em parte alguma Mas o que seria essa concreccedilatildeo A partir
dos anos 30 essa palavra passa a se encontrar nas letras de Husserl com
uma maior frequecircncia28 indicando as vaacuterias camadas que constituem a
nossa histoacuteria A histoacuteria eacute um todo constituiacutedo por camadas um modo de
reunir vaacuterios horizontes e assim por meio de junccedilotildees nascidas de uma
relaccedilatildeo entre o todo e a parte formarem uma realidade uma realidade que eacute
composta por uma concreccedilatildeo de vaacuterios horizontes Eacute assim que Husserl
vislumbra no mundo-da-vida o horizonte maior do qual se tornam possiacuteveis
todos os outros horizontes todas as outras concreccedilotildees Na concreccedilatildeo
temporal do mundo-da-vida encontramos o a priori de todas as outras
concreccedilotildees trazendo consigo em seu fundo tanto o horizonte da
subjetividade transcendental como da subjetividade relativa tanto da
transcendentalidade como da historicidade sendo por conseguinte o solo
concreto dos vaacuterios horizontes das vaacuterias relaccedilotildees de junccedilatildeo que constituem
a nossa histoacuteria Um objeto portanto natildeo eacute simplesmente um em-si posto
27 ldquoEs gilt vielmehr auch ja vor allem zuruumlckzufragen nach dem urspruumlnglichen Sinn der uumlberlieferten und weilterhin mit eben diesem Sinn fortgeltenden Geometrie ndash fortgeltend und zugleich fortgebildet und in allen neuen Gestalten bdquodieldquo Geometrierdquo (E Husserl 1992 p 365 1976 p 173) 28 No latim concreccedilatildeo eacute oriunda do verbo cōncrēscŏ [cōncrēscĕrĕ] significando crescer fazer-se espesso aumentar formar-se mediante uma agregaccedilatildeo de partes Por sua vez cōncrētŭs seria aquilo que foi formado por uma agregaccedilatildeo de partes composto por muitos elementos diferindo-se de ābstrăctŭs quer dizer o que foi tirado de o que foi separado Cōncrētio Cōncrētĭōnĭs eacute pois uma agregaccedilatildeo uma condensaccedilatildeo uma composiccedilatildeo eacute aquilo que foi formado por uma agregaccedilatildeo de partes
45
diante do sujeito mas antes uma rede de horizontes o mesmo valendo para
objetos da cultura como eacute o caso da geometria Daiacute a confissatildeo do filoacutesofo
Inevitavelmente nossas consideraccedilotildees conduziratildeo rumo aos
problemas mais profundos de sentido problemas da ciecircncia e da
histoacuteria da ciecircncia em geral e inclusive em uacuteltima instacircncia de uma
histoacuteria universal em geral embora nossos problemas e nossas explicitaccedilotildees que dizem respeito agrave geometria galileana detecircm uma
significaccedilatildeo exemplar (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)29 [E o
que mostraraacute este exemplo Acrescenta Husserl] Aqui um exemplo
mostraraacute com evidecircncia em primeiro lugar que nossas investigaccedilotildees satildeo precisamente histoacutericas em um sentido insoacutelito isto eacute segundo
uma direccedilatildeo temaacutetica que daacute acesso a problemas de fundo
totalmente alheios agrave histoacuteria (Historie) habitual problemas que em
sua ordem satildeo tambeacutem indubitavelmente histoacutericos (historische) (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)
Husserl remete agrave Lebenswelt na condiccedilatildeo de horizonte histoacuterico
tanto o transcendental como o histoacuterico conduzindo o problema da
horizontalidade para um solo preacutevio Falar em concreccedilatildeo histoacuterica e buscar
sua gecircnese natildeo se trataraacute portanto da busca pela materialidade pela qual
as coisas satildeo constituiacutedas mas do modo como suas partes se congregam
dado que como nos ensina a etimologia toda concreccedilatildeo seraacute sempre a
reuniatildeo de coisas distintas diversas Logo a Lebenswelt eacute tatildeo concreta como
qualquer ente do universo fiacutesico como uma cadeira uma aacutervore uma
montanha A sutileza estaacute em mostrar que o mundo-da-vida natildeo eacute um todo
constituiacutedo pela soma das partes tal como seria o mundo do fiacutesico mas o
horizonte maior que possibilita inclusive o universo fiacutesico que faz com que
as outras concreccedilotildees que se datildeo em seu interior sejam sempre relativas A
pergunta pela geometria pelo universo da fiacutesica e das ciecircncias eacute sobretudo
a pergunta pelo horizonte pelo solo pelo fundo que fez deles uma concreccedilatildeo
em nosso mundo sabendo ser histoacuterico este horizonte que nos permite
perceber um ente como componente do mundo o que significa dizer que haacute
uma concreccedilatildeo originaacuteria na qual todas as outras satildeo possiacuteveis o que faz da
29ldquoNotwendig werden unsere Betrachtungen an tiefste Sinnesprobleme heranfuumlhren Probleme der Wissenschaft und Wissenschftsgeschichte uumlberhaupt ja schlieszliglich einer Universalgeschichte uumlberhaupt so daszlig unsere die Galilesche Geometrie betreffenden Probleme und Auslegungen eine exemplarische Bedeutung erhaltenrdquo (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)
46
Lebenswelt frente agraves geometrias de Euclides e de Galileu diante do
naturalismo das ciecircncias antes de tudo um a priori um solo originaacuterio
O direcionamento a Galileu por conseguinte implica a pergunta
por uma geometria que se torna concreta mediante a histoacuteria dado que eacute
proacuteprio das diversas concreccedilotildees que compotildeem o nosso mundo se tornarem
concretas na forma de histoacuteria o que faz dela uma categoria ontoloacutegica do
mundo-da-vida Consequentemente natildeo estaacute em jogo apenas uma histoacuteria
relativa ldquoa histoacuteria da geometriardquo mas o proacuteprio sentido que faz da
historicidade uma categoria capaz de transcender inclusive uma ciecircncia da
histoacuteria Encontramo-nos pois diante de um outro modo aqueacutem da criacutetica
de se fazer histoacuteria encontramo-nos pois frente a um caminho arqueoloacutegico
no qual se busca em primeiro lugar a gecircnese de sentido que tornam as
concreccedilotildees de um ente ou de um conceito possiacuteveis O movimento
arqueoloacutegico que nos leva ao mundo-da-vida eacute um movimento que nos
mostra o modo como percebemos o sentido de tudo aquilo que eacute fazendo
com que o nosso mundo contra o naturalismo das ciecircncias e seus
movimentos de geometrizaccedilatildeo da Natureza natildeo se resuma no universo
fiacutesico mas seja antes a luz na qual toda manifestaccedilatildeo se torna possiacutevel
Ora eacute neste sentido que para Husserl torna-se justificada a
necessidade de compreender e elucidar as relaccedilotildees existentes entre este
mundo entendido como um horizonte histoacuterico originaacuterio e o mundo
cientiacutefico entre ciecircncia e vida A pergunta pelo sentido da ciecircncia claacutessica
implica na fenomenologia husserliana uma pergunta pelas condiccedilotildees a
priori que tornaram essa ciecircncia possiacutevel assim como toda e qualquer
ciecircncia possiacutevel tendo em vista um mundo no qual a ciecircncia ainda natildeo
tenha estendido seu reino e no qual em contrapartida ela se encontra
situada Eacute mediante a tal questionamento que a Lebenswelt se insere como
solo preacutevio e como horizonte de toda evidecircncia solo cujo conhecimento as
ciecircncias deixaram escapar e que paradoxalmente ldquo() poderia fornecer
sentido e validade agraves formaccedilotildees teoreacuteticas do saber objetivo em geral e ao
mesmo tempo lhe fornecer a dignidade de um saber a partir do fundamento
uacuteltimordquo (HUSSERL 1976 p 135) De acordo com o filoacutesofo em outros
termos eacute preciso encarar a ciecircncia dentre os vaacuterios projetos culturais
47
presentes na histoacuteria sendo um dos modos pelos quais o mundo-da-vida se
encontra revestido Logo a Lebenswelt eacute o campo no qual se torna possiacutevel
toda e qualquer evidecircncia O que se pretende eacute pois lembrar agraves ciecircncias
que anterior ao campo da ἐπιστήmicroη [episteacuteme] haacute primeiramente um mundo
doacutexico o mundo de nossas primeiras evidecircncias natildeo lhe cabendo postular
ser portadora de toda evidecircncia possiacutevel Haacute no retorno ao mundo-da-vida
um caminho de integraccedilatildeo dos vaacuterios horizontes e evidecircncias que se
manifestam na Lebenswelt inclusive o mundo preacute-cientiacutefico haja vista que
se haacute um comeccedilo da verdade eacute ali que ele se encontra natildeo nas matemaacuteticas
e na ciecircncia em geral mas em nossa relaccedilatildeo originaacuteria com o mundo Daiacute o
direcionamento agrave percepccedilatildeo e a um ego encarnado e preacute-reflexivo no qual
tal relaccedilatildeo se daacute anterior agrave reflexatildeo em um horizonte corporal pelo qual
mediante siacutenteses passivas constituiacutemos como nosso campo de existecircncia
Eacute neste sentido que para Husserl a Lebenswelt oferece sobretudo uma
unidade ao saber uma vez que todas as ciecircncias particulares fazem parte de
um sistema global de sentido perdendo assim a sua pretensa e absoluta
autonomia e rompendo de vez com as ilusotildees do objetivismo cientificista
Natildeo haacute pois conhecimento sem referecircncia a uma subjetividade originaacuteria
dado que toda relaccedilatildeo com um objeto leva consigo as marcas de uma gecircnese
subjetiva que encontra em um mundo previamente dado o seu horizonte um
mundo que eacute ao mesmo tempo solo fundante [Bodenfunktion] e caminho
metodoloacutegico um pensar retroativo [Leitfadenfunktion] que nos leva agrave sua
gecircnese em noacutes mesmos
Por conseguinte natildeo podemos nos esquecer de que o
direcionamento agrave tematizaccedilatildeo da Lebenswelt como um mundo anterior agrave
ciecircncia situa-se no horizonte de uma criacutetica ao objetivismo das ciecircncias
negando-lhes por conseguinte a pretensatildeo de se compreenderem como uma
ontologia geral A ciecircncia natildeo estaacute acima deste mundo mas nele se encontra
incluiacuteda sendo que ateacute mesmo os seus juiacutezos remetem no final das contas
a uma experiecircncia originaacuteria Como jaacute nos assinalava o sect105 da Formale und
transzendentale Logik a verdade do cientista natildeo eacute mais autecircntica do que a
verdade do comerciante cada uma em seu campo e em sua relatividade por
48
natildeo originar-se de uma mesma intenccedilatildeo natildeo podem ser consideradas
absolutas uma em detrimento da outra natildeo havendo uma verdade em si O
problema da ciecircncia estaacute em crer que ldquoseja necessaacuteriordquo existir ldquouma
evidecircncia que apreenda a verdade de modo absoluto () pois do contraacuterio
natildeo poderiacuteamos ter nenhuma verdade nem ciecircncia alguma nem poderiacuteamos
ter a pretensatildeo de tecirc-lasrdquo (HUSSERL 1962b p 287) Por conseguinte
O comerciante tem sua verdade mercantil natildeo eacute em relaccedilatildeo agrave sua situaccedilatildeo uma boa verdade a melhor que pode servi-lo Acaso natildeo eacute
uma verdade aparente porque o cientista julgando com outra
relatividade distinta com outros objetivos e ideias busca outras
verdades com as que podemos fazer muito mais coisas embora natildeo possamos fazer precisamente o que se necessita no mercado
Devemos deixar de nos cegarmos com as ideias e meacutetodos
regulativos das ciecircncias ldquoexatasrdquo particularmente na filosofia e na
loacutegica como se seu caraacuteter ldquoem sirdquo fosse uma norma efetivamente absoluta tanto no que diz respeito ao ser objetivo como agrave verdade
Essa atitude significa na realidade por causa das aacutervores natildeo ver o
bosque significa passar por alto os aspectos infinitos da vida e de
seu conhecimento os aspectos infinitos do ser relativo que soacute eacute racional nos limites dessa relatividade passar por alto com tal
realizar um resultado cognoscitivo grandioso mas de significaccedilatildeo
teleoloacutegica muito limitada (HUSSERL 1962b p 287-8)
Haacute portanto um caminho retroativo que conduz os juiacutezos da
loacutegica e da matemaacutetica ao juiacutezo da experiecircncia a um mundo no qual se
situam os juiacutezos evidentes da intuiccedilatildeo imediata Mais do que uma negaccedilatildeo
da ciecircncia eacute a explicitaccedilatildeo de um a priori subjetivo de um a priori da
Lebenswelt que se faz presente nos trabalhos do cientista Logo a
metodologia cientiacutefica assim como fora compreendida desde Galileu natildeo
pode ser absoluta nem ser tida como o verdadeiro ser mas antes haacute que se
levar em conta ldquo() o mundo da experiecircncia sensiacutevel que sempre vem dado
de antematildeo como evidecircncia inquestionada ()rdquo (HUSSERL 1954 p 77
1976 p 80) aquela a partir da qual se alimenta toda vida mental quer seja
cientiacutefica ou natildeo cientiacutefica Nisto encontra-se o paradoxo de Husserl o
ensejo de fundamentar a proacutepria relativizaccedilatildeo que ocorrendo
historicamente natildeo acontece sem fundamento Logo a verdade encontra-se
em sua gecircnese o conhecimento eacute algo que natildeo se faz sem o a priori da
correlaccedilatildeo universal sem o modo de visar da consciecircncia daiacute natildeo haver
49
uma verdade absoluta mas antes uma ldquoverdade viva que proveacutem das origens
viventes da vida absolutardquo (HUSSERL 1976 p 289) Natildeo se trata de um
modo falso de absolutizar a verdade mas de modo diverso compreendecirc-la
em seus horizontes uma vez que ldquotemos a verdade em uma intencionalidade
viva (que se chama ldquoevidecircnciardquo) cujo conteuacutedo permite distinguir entre
lsquoefetivamente dadorsquo e lsquoantecipadorsquo ou lsquoretidorsquo ou lsquoapresentado como algo
alheio ao eursquo etcrdquo (HUSSERL 1976 p 289)
Para Husserl por fim neste processo de criacutetica da ciecircncia
encontra-se a ideia de que cabe agrave filosofia reencontrar o seu teacutelos aquele
que tem sua gecircnese no universo grego o reencontro do pathos da admiraccedilatildeo
pelo qual se realiza a atitude teoreacutetica Em outros termos para Husserl o
iniacutecio da filosofia se daacute pelo que constitui o seu proacuteprio teacutelos a saber o
desejo pela atitude teoreacutetica fundada no ldquoideal da teoria purardquo [reine Theoria]
(HUSSERL 1976 p 331) que nasce justamente de uma paixatildeo teoacuterica cuja
perda por sua vez eacute a explicitaccedilatildeo deste estado de crise Neste sentido
como salienta Slatman ldquoo meacutetodo histoacuterico de Husserl eacute pois teleoloacutegico
ele explica o decliacutenio da cultura europeia como a perversatildeo da razatildeo na
histoacuteriardquo (SLATMAN 2001 p 53) Neste sentido de modo inverso ldquo[] o
renascimento de uma cultura que estabelecesse relaccedilotildees com a teoria pura
seria possiacutevel por uma orientaccedilatildeo na direccedilatildeo do teacutelosrdquo (SLATMAN 2001 p
53)30 Contudo a seu modo o ensinamento da Krisis assume a tarefa de
mostrar natildeo meramente a partir de uma explicaccedilatildeo cronoloacutegica e causal ndash a
qual se encontra por sua vez em uma espeacutecie de projeto de matematizaccedilatildeo
30 Em contrapartida vale dizer que para Merleau-Ponty tal concepccedilatildeo natildeo deixaria de apresentar problemas Quais as razotildees ldquoPrimeiramente Husserl situa no centro da histoacuteria o animal rationale Eacute a racionalidade que determina a histoacuteria e de certo modo natildeo se pode mais ver como a histoacuteria mesma eacute constitutiva para a gecircnese da idealidade objetiva ou para a gecircnese da tradiccedilatildeo em geral A histoacuteria eacute considerada como o desenvolvimento da racionalidade segundo uma perspectiva teleoloacutegica Em segundo lugar a filosofia teleoloacutegica concebe toda histoacuteria da filosofia de um soacute ponto de vista desde entatildeo ela nos impede uma investigaccedilatildeo sobre sua proacutepria relaccedilatildeo com a histoacuteria Com efeito Husserl natildeo explica sua relaccedilatildeo vis-agrave-vis com a histoacuteria Longe disso explica a partir de sua proacutepria ideia da filosofiardquo (SLATMAN 2001 p 53) O modo como a histoacuteria se apresenta a Merleau-Ponty marcaria talvez neste aspecto a discordacircncia com Husserl Natildeo haveria para usar uma expressatildeo de Slatman ldquouma maneira lsquonatildeo-histoacutericarsquo de abordar a histoacuteriardquo mas a busca de uma ldquohistoacuteria vivardquo Logo o que fundamenta a criacutetica natildeo eacute um direcionamento negativo ao passado mas um redimensionamento mesmo havendo um retorno ao passado a partir do presente
50
da natureza ndash o geacutermen e a gecircnese de uma visatildeo moderna [claacutessica] de
mundo por sua vez entendidos como uma genealogia histoacuterica do
objetivismo cientificista Daiacute que a preocupaccedilatildeo husserliana seja antes a de
se dirigir a uma ldquoquestatildeo em retornordquo [Ruumlckfrage] sobre o ldquo[] o sentido mais
originaacuterio segundo o qual a geometria nasceu um dia ltegt desde entatildeo
permaneceu presente como uma tradiccedilatildeo milenar ainda permanece para
noacutes e se manteacutem no que haacute de vivo em uma tradiccedilatildeo incessanterdquo (HUSSERL
1992 p 175 1976 p 365)31 O que seria este ldquocaminho retroativordquo esta
ldquoquestatildeo-em-retornordquo Vejamos a seguir
13 A Ruumlckfrage e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a Lebenswelt como proposta de superaccedilatildeo do naturalismo como Ursprungsklaumlrung como retorno ao mundo preacute-copernicano
De acordo com Husserl conforme jaacute indicamos a Lebenswelt eacute o
solo no qual todas as formas de concreccedilatildeo assim como todos os modos de
evidecircncia satildeo possiacuteveis O mundo de nossas primeiras evidecircncias o ponto
de partida de todo e qualquer outro mundo seraacute o ldquomundo doacutexicordquo O iniacutecio
mesmo da reflexatildeo encontra-se nesse mundo diria Husserl Ur-mundus Mas
uma questatildeo permanece se em meio agrave Lebenswelt que se constitui em
camadas vivemos em vaacuterias evidecircncias ingecircnuas como podemos trazecirc-las agrave
reflexatildeo O que Husserl propotildee Aqui estaacute a tarefa da fenomenologia da
Krisis como podemos pois explicitar este mundo originaacuterio que fora
soterrado pelo naturalismo das ciecircncias Para Husserl a resposta estaria em
um ldquoquestionamento retroativordquo [Ruumlckfrage] uma reformulaccedilatildeo da epocheacute A
partir de agora o iniacutecio dessa nova versatildeo da epocheacute fenomenoloacutegica
encontra-se no cotidiano e principalmente apoacutes ter estabelecido um diaacutelogo
com ele Haacute aqui um trabalho ldquoarqueoloacutegicordquo no qual as camadas satildeo
recuperadas apenas a partir de um diaacutelogo de um trabalho criacutetico Husserl
aponta para uma possibilidade de compreensatildeo dos diversos mundos que
31ldquo([] Unser Interesse sei stattdessen die Ruumlckfrage nach dem urspruumlnglichsten Sinn in welchem die Geometrie dereinst geworden ist ltundgt seitdem als Tradition der Jahrtausende da war noch fuumlr uns da und in lebendiger Fortarbeit ist)rdquo (HUSSERL 1992 p 175 1976 p 365)
51
compotildeem o mundo-da-vida a Lebenswelt sendo descartado qualquer
ldquorelativismo absolutordquo (JOSGRILBERG 2001)
Ora lembremo-nos de que jaacute no prefaacutecio da Pheacutenomeacutenologie de
la perception indagando-se sobre o sentido do movimento fenomenoloacutegico
Merleau-Ponty se aproximava dos temas basilares de Husserl a ldquoreduccedilatildeordquo e
a ldquointencionalidade da consciecircnciardquo com uma atitude interrogativa Nesse
texto ao propor um retorno agrave experiecircncia perceptiva Merleau-Ponty
encarava a reduccedilatildeo como um meio de fugir de uma filosofia da consciecircncia
indicando os estaacutegios da reflexatildeo desde a sua camada preacute-reflexiva Assim
sendo ele rejeitava a reduccedilatildeo entendida a partir do que considerava ser uma
atitude idealista pois ldquoum idealismo transcendental consequente despoja o
mundo de sua opacidade e de sua transparecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1945
p VI) embora a intenccedilatildeo husserliana direcionada para o Cogito fosse
encontrar um pensamento radical que a partir da noccedilatildeo de Sinngebung
(operaccedilatildeo ativa de significaccedilatildeo) fosse orientada a um cogitatum Sentindo a
enigmaticidade da reduccedilatildeo Merleau-Ponty dizia que
Sem duacutevida natildeo existe questatildeo em relaccedilatildeo agrave qual Husserl tenha despendido mais tempo em compreender-se a si mesmo ndash tambeacutem natildeo existe questatildeo agrave qual ele tenha mais frequentemente retornado jaacute que a ldquoproblemaacutetica da reduccedilatildeordquo ocupa nos ineacuteditos um lugar importante Durante muito tempo e ateacute em textos recentes a reduccedilatildeo era apresentada como o retorno a uma consciecircncia transcendental diante da qual o mundo se desdobra em uma transparecircncia absoluta animado do comeccedilo ao fim por uma seacuterie de apercepccedilotildees que caberia ao filoacutesofo reconstituir a partir de seu resultado (MERLEAU-PONTY 1945 p V)
A primeira versatildeo da epocheacute husserliana caracterizava-se por ser
uma suspensatildeo do ldquomundo naturalrdquo Todavia vale salientar que nesta
primeira versatildeo jaacute encontraacutevamos duas reduccedilotildees a ldquoreduccedilatildeo eideacuteticardquo
presente em seus primeiros trabalhos e a ldquoreduccedilatildeo transcendentalrdquo
especialmente a partir de suas Ideen zu einer reinen Phaumlnomenologie und
phaumlnomenologischen Philosophie [Ideias relativas a uma Fenomenologia pura
e uma Filosofia fenomenoloacutegica] aleacutem dos estudos reunidos em Erste
Philosophie [Filosofia Primeira] Em linhas gerais a ldquoreduccedilatildeo eideacuteticardquo eacute
marcada pelo ensejo de encontrar a essecircncia do fenocircmeno Ela tem iniacutecio
52
com a ldquocolocaccedilatildeo entre parecircntesisrdquo de todas as concepccedilotildees que se tem acerca
do mundo diferenciando-se da suspensatildeo cartesiana por se tratar tatildeo-
somente de uma suspensatildeo do juiacutezo A seguir por meio da ldquovariaccedilatildeo
eideacuteticardquo busca-se todas as perspectivas possiacuteveis de serem referendadas ao
fenocircmeno ateacute encontrar aquela que lhe seria constante a saber a proacutepria
essecircncia do fenocircmeno O problema que se procurava resolver eacute de que modo
sendo agora relativa agrave consciecircncia poderia o ser do fenocircmeno manter a sua
unidade Em outras palavras como superar Platatildeo sem retroceder a Leibniz
e por fim cumprir a tarefa de superar o psicologismo Ao retomar esta
questatildeo nas Ideen Husserl procurava descrever as essecircncias como
pertencentes diferentemente de Platatildeo agrave proacutepria consciecircncia logo estando
elas estruturadas em uma vivecircncia intencional intersubjetivamente possiacutevel
de ser experienciada Eacute a busca unicamente das essecircncias e natildeo dos fatos
em sua individualidade concreta Nesta perspectiva abre-se pois a via de
acesso a um mundo de essecircncias no qual a anaacutelise do eidos marcaria a
diferenccedila entre aspectos tanto particulares como contingentes da experiecircncia
e suas estruturas permanentes o que viria a se constituir como objeto da
intuiccedilatildeo intencional
Em contrapartida procurando ser radical Husserl contudo
inseria tambeacutem a ldquoreduccedilatildeo transcendentalrdquo na qual se visaria natildeo soacute deixar
em suspenso o mundo natural mas aleacutem disso ldquodirigir-serdquo agrave subjetividade
transcendental Por conseguinte ldquo[] o mundo das essecircncias que a primeira
reduccedilatildeo abria se fecha e a ontologia permanece uma simples virtualidade da
fenomenologiardquo (JORLAND 1981 p 30) Esta reduccedilatildeo esperava por fim
revelar a origem das formas de experiecircncia na atividade egoica de uma
subjetividade pura Apesar de seu valor onde estaria o problema desta
reduccedilatildeo Na tese metafiacutesica que lhe acompanhava naquilo que o sect49 das
Ideen (HUSSERL 1950 p 160) resumia bem ldquoo ser imanente eacute um ser
absoluto e o mundo das coisas transcendentes se refere inteiramente a uma
consciecircncia atualrdquo (HUSSERL 1950 p 160) Logo se eacute certo que natildeo haacute
mundo sem consciecircncia eacute certo tambeacutem que natildeo haacute consciecircncia sem
mundo Por conseguinte na segunda reduccedilatildeo proposta por Husserl a
Fenomenologia seria sobretudo uma ldquofenomenologia de essecircnciasrdquo
53
(HUSSERL 1950 p 160) E qual a razatildeo A este respeito Jorland parece
nos dar a resposta
Ao nos transportar para o interior dos fenocircmenos para intuicionar sua essecircncia ao ordenar o pensamento que visa (conceito) e o pensamento que vecirc (intuiccedilatildeo) este meacutetodo autoriza o estudo das conexotildees essenciais entre os fenocircmenos (Wesenzusammenhaumlnge) e suas leis (Wesensgesetze) Os estados de coisas (Sachverhalt) sobre os quais todo juiacutezo se funda (por exemplo o ser vermelho da rosa que torna possiacutevel o juiacutezo ldquoa rosa eacute vermelha) satildeo tais conexotildees essenciais e satildeo por conseguinte conhecidos a priori se bem que o a priori fenomenoloacutegico natildeo eacute unicamente epistemoloacutegico mas antes de tudo ontoloacutegico Satildeo conexotildees essenciais conhecidas a priori que fazem pensar no realismo platocircnico O fato de que elas natildeo se realizam nunca perfeitamente no mundo sensiacutevel natildeo impede que existam e que continuem a existir mesmo quando nenhum sujeito pensa nelas (JORLAND 1981 p 30)
Este processo poreacutem para o proacuteprio Husserl natildeo seria uma
negaccedilatildeo deste mundo mas o retorno a uma experiecircncia vivida Em
contrapartida negando a princiacutepio a existecircncia como um predicado do
sujeito e inclusive acreditando na possibilidade de se duvidar dela segundo
Merleau-Ponty Husserl ainda permanecia sob bases racionalistas Seria
apenas a partir de uma reduccedilatildeo aquela na qual natildeo haacute mais
transcendecircncia que se obteacutem um dado absoluto (Gegebenheit) Existindo ou
natildeo o mundo por meio de uma epocheacute livre o sujeito e sua vida
permanecem intocados De modo adverso poreacutem Merleau-Ponty acredita
que ldquoa melhor foacutermula da reduccedilatildeo eacute sem duacutevida aquela que lhe dava Eugen
Fink o assistente de Husserl quando falava de uma lsquoadmiraccedilatildeorsquo diante do
mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII) Com isso ldquoa reflexatildeo natildeo se retira
do mundo em direccedilatildeo agrave unidade da consciecircncia enquanto fundamento do
mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII) pois ldquoela toma distacircncia para ver
brotar as transcendecircncias ela distende os fios intencionais que nos ligam ao
mundo para fazecirc-los aparecer ela soacute eacute consciecircncia do mundo porque o
revela como estranho e paradoxalrdquo Neste sentido conclui que ldquotodo o mal-
entendido de Husserl com seus inteacuterpretes com os lsquodissidentesrsquo
existencialistas e finalmente consigo mesmo proveacutem do fato de que
justamente para ver o mundo e apreendecirc-lo como paradoxo eacute preciso
romper nossa familiaridade com ele e porque essa ruptura soacute pode ensinar-
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nos o brotamento imotivado do mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII)
Assim ldquoo maior ensinamento da reduccedilatildeo eacute a impossibilidade de uma
reduccedilatildeo completa () Longe de ser como se acreditou a foacutermula de uma
filosofia idealista a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute a foacutermula de uma filosofia
existencial () (MERLEAU-PONTY 1999 p IX) Esta concepccedilatildeo merleau-
pontiana natildeo se encontra tatildeo distante da ideia de reduccedilatildeo tal como eacute
esboccedilada nas paacuteginas da Krisis Nesta obra ela passa a ser vista conforme
jaacute indicamos como um ldquoquestionamento retroativordquo no qual a subjetividade
humana eacute encarada como capaz de dar ldquogecircneserdquo ao mundo Tendo iniacutecio no
delineamento histoacuterico de tudo o que faz parte de nossas experiecircncias
ldquodoacutexicasrdquo este ldquoquestionamento retroativordquo deve nos conduzir a uma
recuperaccedilatildeo das condiccedilotildees histoacutericas deste mesmo mundo por meio de um
diaacutelogo criacutetico com ele Assim apoacutes haver dialogado com ele eacute possiacutevel
efetivar a epocheacute ou seja a anaacutelise das camadas que estatildeo latentes no que
foi criticamente mostrado no que haacute de evidecircncia no mundo-da-vida
(JOSGRILBERG 2001)
Em outros termos por conseguinte podemos dizer que no
tocante ao direcionamento husserliano a uma Ruumlckfrage o que se visa eacute ao
mesmo tempo tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo intermitente O que significa entatildeo buscar
uma origem ou entender a presenccedila de certa instacircncia ou de certo momento
na gecircnese de uma concepccedilatildeo de mundo Parece-nos que se trata em
Husserl da busca pelo sentido ou melhor do pocircr em questatildeo o sentido pelo
qual algo se institui ldquoentra na histoacuteria pela primeira vezrdquo e isso quando
ldquonada se sabe de seus primeiros criadores ou nada se indaga a respeito
delesrdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)32 Logo pensando por
exemplo em uma ldquoorigem da geometriardquo como Husserl mesmo nos salienta
A partir do que sabemos a partir de nossa geometria isto eacute de suas formas antigas e transmitidas (tal qual a geometria euclidiana) uma
questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] eacute possiacutevel sobre os comeccedilos originaacuterios e englobados pela geometria tais como devem
32ldquowir fragen nach jenem Sinn in dem sie erstmalig in der Geschicht aufgetreten ist ndash aufgetreten sein muszligte obschon wir von den ersten Schoumlpfern nichts wissen und auch gar nicht danach fragenrdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)
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necessariamente ter sido enquanto ldquoproto-fundadoresrdquo Esta questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] vincula-se inevitavelmente a generalidades
mas isto se manifestaraacute antes satildeo generalidades suscetiacuteveis de uma explicitaccedilatildeo fecunda e com as quais satildeo prescritas as possibilidades
de advir a questotildees singulares e a tiacutetulo de respostas a determinaccedilotildees evidentes A geometria inteiramente pronta por assim
dizer a partir da qual procede a questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] eacute uma tradiccedilatildeo Eacute no meio de um nuacutemero infinito de tradiccedilotildees que se
move nossa existecircncia humana Eacute enquanto oriundo da tradiccedilatildeo que o mundo da cultura estaacute aiacute em sua totalidade e em todas as suas
formas Enquanto tais estas formas natildeo foram engendradas de modo puramente causal e sabemos sempre que a tradiccedilatildeo eacute
precisamente tradiccedilatildeo engendrada em nosso espaccedilo de humanidade a partir de uma atividade humana portanto em uma gecircnese
espiritual ndash mesmo se em geral nada ou pouco se saiba da proveniecircncia determinada e da espiritualidade que de fato opera-se
aqui (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)33
Ora se pensamos no naturalismo das ciecircncias quais seriam as
consequecircncias deste ldquoquestionamento retroativordquo Para Husserl
especialmente em seus uacuteltimos trabalhos compreendemos melhor estas
consequecircncias quando procuramos elucidar os limites do que seria a
Natureza segundo os cientistas quando assumimos a tarefa de demonstrar
as contradiccedilotildees de uma esfera de ldquopuras coisasrdquo (blosse Sachen) tal como
tivera sua gecircnese no pensamento cartesiano Contudo para Merleau-Ponty
eacute possiacutevel encontrar em Husserl duas posiccedilotildees em relaccedilatildeo agrave Natureza A
primeira esboccedilada nas Ideen I ainda presa em uma filosofia reflexiva
considera-a contingente em relaccedilatildeo agrave consciecircncia compreendida como
necessaacuteria A Natureza em meio a um processo de reduccedilatildeo fenomenoloacutegica
33 ldquoVon dem was wir wissen von userer Geometrie bzw von den tradierten aumllteren Gestalten aus (wie der Euklidischen Geometrie) gibt es eine Ruumlckfrage nach den versunkenen urspuumlnglichen Anfaumlngen der Geometrie wie sie als bdquourstiftendeldquo notwendig gewesen sein muszligten Diese Ruumlckfrage haumllt sich unvermeidlich in Allgemeinheiten aber wie es sich bald zeigt sind es reichlich auslegbare Allgemeinheiten mit vorgezeichneten Moumlglichkeiten Sonderfragen und evidente Feststellungen als Antworten gewinnen zu koumlnnen Die sozusagen fertige Geometrie von der die Ruumlckfrage ausgeht ist eine Tradition In einer Unzahl von Traditionen bewegt sich unser menschliches Dasein Die gesamte Kulturwelt ist nach allen ihren Gestalten aus Tradition da Als da sind sie nicht nur kausal wir wissen auch immer schon daszlig Tradition eben Tradition ist in unseren Menschheitsraume aus menshlichter Aktivitaumlt also geistig geworden ndash wenn wir auch im allgemeinen von der bestimmten Herkunt und der faktisch hierbei zustandebringenden Geistigkeit nichts oder so gut wie nichts wissen rdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)
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seria vista como um dos componentes da correlaccedilatildeo noese-noema Qual
seria a razatildeo da contingecircncia da Natureza Dado o simples fato de que ela
natildeo poderia ser pensada por si mesma haveria neste caso a necessidade
do espiacuterito do ldquoeu fenomenoloacutegicordquo Contudo nas Ideen II Husserl romperia
com esta perspectiva levando-nos a uma outra concepccedilatildeo de Natureza
aquela que nos apontaria para uma experiecircncia preacute-reflexiva ou seja
anterior agrave consciecircncia teacutetica e ateacute mesmo agrave atitude natural A princiacutepio o
retorno agrave atitude natural se dava no intuito de tecer uma criacutetica ao
esquecimento das razotildees que nos leva a crer no mundo cabendo agrave reduccedilatildeo
romper com esse viacutenculo equivocado Nesta postura a fenomenologia natildeo
estaria distante do idealismo transcendental compartilhando com ele o
ensejo de reabilitar a Natureza ldquono acircmbito de uma filosofia reflexivardquo o que
justificaria o fato de que em seu curso Merleau-Ponty tenha colocado
Husserl na sequecircncia de suas discussotildees sobre o romantismo alematildeo em
especial a filosofia de Schelling No entanto apesar da manifesta criacutetica do
filoacutesofo ao que considerava uma espeacutecie de incursatildeo idealista presente em
Husserl principalmente quando se tratava das ideias de constituiccedilatildeo e dos
ldquoatos intencionaisrdquo Merleau-Ponty toma nota de que se nos aproximamos
com rigor da filosofia husserliana sabemos que as coisas natildeo satildeo tatildeo
simples assim o que nos exige reconsiderar o que Husserl entendia por
constituiccedilatildeo e qual o sentido de seu aparente idealismo
Segundo o filoacutesofo o que justificaria a presenccedila de uma espeacutecie
de ldquoestrabismordquo em Husserl seria sobretudo o modo como iraacute lidar com a
atitude natural afinal ldquose a filosofia comeccedila pela atitude natural nunca
sairaacute dela e se por ventura sai por que razatildeo sairdquo (MERLEAU-PONTY
2000a p 130) A princiacutepio a postura husserliana seraacute a de tentar se
desvencilhar dela em negaacute-la por compartilhar daquilo que viria
fundamentar o naturalismo das ciecircncias Nesta perspectiva a Natureza se
apresenta como um correlato das ldquopuras coisasrdquo [blosse Sachen] furtando-se
a todo e qualquer predicado de valor arrogando-se uma objetividade tal qual
eacute possiacutevel quando se trata do reino do em-si enfim seguindo nisso um
preceito cartesiano Esta compreensatildeo se estende a todo o Universo agrave
Weltall ela natildeo tem limites A compreensatildeo das ldquopuras coisasrdquo se
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confundiria com a explicitaccedilatildeo de uma ldquores extensardquo desvencilhada dos
equiacutevocos gerados pelas ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo seria a compreensatildeo do
mundo visto em um horizonte matematizado conduzindo-nos a uma
postura reflexiva na qual o mundo seria em todo caso purificado pelo olhar
atento de um sujeito imparcial Eacute evidente que a intenccedilatildeo de Husserl eacute negar
essa postura eacute desconstruiacute-la e eacute justamente esse movimento que Merleau-
Ponty esperava explicitar a tentativa husserliana em negar a atitude
cartesiana poreacutem a partir da reduccedilatildeo da correlaccedilatildeo noese-noema a partir
de um ponto de vista superior A aproximaccedilatildeo da atitude natural se daria no
intuito de fazer dela como diraacute Merleau-Ponty um ldquotrampolimrdquo para a
consciecircncia Em contrapartida e nisto estaria a razatildeo do ldquoestrabismordquo a
partir de seus uacuteltimos trabalhos Husserl mais do que apenas criticar a
ldquoatitude naturalrdquo tomaria a iniciativa de tentar reabilitaacute-la fazendo com que
o superior se apresentasse agora como ldquouma tese sobre um fundordquo
(MERLEAU-PONTY 2000a p 118) Consciente desses dois movimentos
Husserl ao contraacuterio segundo Merleau-Ponty considerava-a uma ldquoexigecircncia
plenardquo O que isso significa
Sabemos que se trata em primeiro lugar de uma negaccedilatildeo do
naturalismo das ciecircncias O primeiro movimento seria consciente de que haacute
justamente uma verdade do naturalismo que eacute preciso recuperar descobrir
a vida intencional que se encontra presente nele O ser objetivo natildeo seria
neste caso um privileacutegio das ciecircncias mas tudo estaria presente nele natildeo
escapando ateacute mesmo a vida da consciecircncia Se haacute algo que uniria tanto o
cientista como o filoacutesofo seria o fato de serem homens e como tal
pertencerem agrave Natureza possuiacuterem um corpo estarem inseridos em um
universum realitatis Dizer com Husserl que ldquoquando um filoacutesofo viaja leva
suas ideias consigordquo ou melhor que ldquoos homens e natildeo somente os corpos
humanos viajam em um automoacutevelrdquo (HUSSERL 1952 p 32) significa
lembrar que natildeo haacute uma dissociaccedilatildeo entre o sujeito pensante e o sujeito
empiacuterico haacute ldquouma natureza coextensiva agrave totalidade dos seresrdquo que
acompanha o habitante do mundo (TILLIETTE 2000 p 219) Todavia isto
natildeo significa negar e nisto estaacute a criacutetica de Husserl as referecircncias
intencionais presentes neste modo como o naturalismo nos abarca natildeo
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significa admitir o aprisionamento da consciecircncia no universo das blosse
Sachen Pelo contraacuterio haveria uma vida da consciecircncia que precederia o
universo da ciecircncia fazendo com que inclusive este universo fosse a
construccedilatildeo de um sujeito puro do sujeito fenomenoloacutegico Aqui ainda natildeo se
pensa a abstraccedilatildeo cientiacutefica como fruto de um processo histoacuterico mas
oriunda de uma estrutura da percepccedilatildeo humana A partir de uma
purificaccedilatildeo de nossa experiecircncia em uma atitude reduzida fazendo-nos de
noacutes mesmos um sujeito teoacuterico deparamo-nos com ldquocoisas purasrdquo olhamos
a cadeira e vemos sua materialidade olhamos os animais e vemos sua
animalidade A nosso ver nisto encontramos algo comum agrave leitura que
Merleau-Ponty faz de Husserl Ora o vislumbra no quadro de uma filosofia
reflexiva permeada por um ldquoestrabismordquo ora percebe em seu pensamento
uma via de superaccedilatildeo dessa mesma filosofia reflexiva Ao comentar as Ideen
II Merleau-Ponty situa Husserl no difiacutecil paradoxo presente nos
posicionamentos contraditoacuterios que toma a respeito de uma ldquoconstituiccedilatildeo da
Naturezardquo em escolher por um lado entre a passagem da doxa [doca] agrave
ἐπιστήmicroη [episteacuteme] e por outro lado entre a passagem da doxa a uma Ur-
doxa a uma doxa originaacuteria Para Merleau-Ponty nas Ideen II ainda
encontramos de forma esquemaacutetica a tentativa husserliana de descrever a
gecircnese do Kosmotheacuteoros do sujeito imparcial do Ego puro das ciecircncias
aleacutem disso isto era contrariado ldquo[] a cada instante pela tese da
irrelatividade da consciecircnciardquo o que iria adquirir outro colorido nos
trabalhos do uacuteltimo periacuteodo como o que se contrapunha ao mundo
copernicano (MERLEAU-PONTY 1969 p 90)34 Todavia deixando de lado as
anotaccedilotildees de seus cursos sobre Husserl levando em conta um texto como Le
philosophe et son ombre ainda publicado em vida e com as letras do proacuteprio
filoacutesofo esta ambiguidade em relaccedilatildeo agraves Ideen II natildeo se torna tatildeo expliacutecita o
movimento seraacute o de identificar ali uma ruptura com as Ideen I O que
assinala Merleau-Ponty eacute o movimento pelo qual Husserl se aproxima da
34 Deste modo conforme mostraremos a seguir apesar de ter encontrado nas Ideen II uma possiacutevel via de superaccedilatildeo do enamoramento husserliano com o idealismo Merleau-Ponty iraacute considerar que tal ruptura toma uma maior proporccedilatildeo no texto husserliano A Terra como arque-originaacuteria natildeo se move (HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo)
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ldquoatitude naturalrdquo para demonstrar contra o naturalismo das ciecircncias o seu
caraacuteter histoacuterico e sua pertenccedila a um solo fundamental agrave Lebenswelt a um
ldquoloacutegos do mundo esteacuteticordquo Como diraacute Merleau-Ponty
De um lado entatildeo a reduccedilatildeo ultrapassa a atitude natural Natildeo eacute ldquode naturezardquo (natural) ou seja o pensamento reduzido jaacute natildeo diz respeito agrave Natureza tratada pelas ciecircncias da Natureza mas de um certo modo ldquoao contraacuterio da Naturezardquo isto eacute agrave Natureza como ldquosentido dos atos que compotildeem a atitude naturalrdquo ndash agrave Natureza que voltou a ser o nome que sempre fora reintegrada na consciecircncia que sempre a constituiu de ponta a ponta Em ldquoregime de reduccedilatildeordquo haacute apenas a consciecircncia seus atos e o objeto intencional destes uacuteltimos permitindo a Husserl escrever que haacute uma relatividade da Natureza ao espiacuterito o absoluto [] [Por outro lado] ao dizer que a reduccedilatildeo ultrapassa a atitude natural Husserl logo acrescenta que este ultrapassamento conserva ldquointeiro o mundo da atitude naturalrdquo A proacutepria transcendecircncia desse mundo deve conservar um sentido aos olhos da consciecircncia ldquoreduzidardquo e a imanecircncia transcendental natildeo pode ser sua simples antiacutetese (MERLEAU-PONTY 1975b p 213)
Quando lemos as Ideen II a nosso ver acreditamos que eacute
preciso sobretudo desvencilhar aquilo que constitui a criacutetica de Husserl e o
que se apresenta como uma proposta fenomenoloacutegica frente a essa situaccedilatildeo
e em diversos momentos Merleau-Ponty parece dar-se conta e nos dizer
justamente isso Daiacute o filoacutesofo ter encontrado neste livro a definiccedilatildeo de uma
Natureza que eacute ldquo[] aquilo com que tenho uma relaccedilatildeo de caraacuteter original e
primordial []rdquo(MERLEAU-PONTY 2000a p 129) que eacute ldquo[] a esfera de
todos os lsquoobjetos que podem ser apresentaacuteveis originariamente e que pelo
fato de que satildeo apresentaacuteveis originariamente a um determinado sujeito o
satildeo tambeacutem a todos os outros []rdquo(MERLEAU-PONTY 2000a p 129) o que
significa dizer que ldquoa Natureza eacute a totalidade dos objetos possiacuteveis
apresentaacuteveis originariamente os quais para todos os sujeitos
originariamente comunicantes constituem um domiacutenio de presenccedila
originaacuteria comumrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 129) Logo ldquoeacute a natureza
material espaccedilo-temporal o uacutenico mundo para todo o mundordquo (MERLEAU-
PONTY 2000a p 129) Por conseguinte se lermos atentamente as paacuteginas
deste texto eacute possiacutevel concluir que o grande ensejo husserliano eacute contrapor-
se a uma ldquoatitude naturalistardquo ao apresentaacute-la como natural e tatildeo natural
como a atitude do sujeito fenomenoloacutegico o que ele nomeia ldquoatitude
60
personalistardquo Logo natildeo eacute possiacutevel haver uma atitude de identidade entre a
atitude naturalista das ciecircncias da natureza e a ldquonova atitude naturalrdquo do
sujeito fenomenoloacutegico Eacute certo que ambos conduzem a um sujeito puro
poreacutem nisto Husserl eacute bastante enfaacutetico quando se trata da reduccedilatildeo
fenomenoloacutegica trata-se de uma espeacutecie de suspensatildeo na qual o proacuteprio
sujeito empiacuterico natildeo deixa de se colocar no interior dos parecircnteses haja
vista que ldquoo sujeito uacuteltimo o sujeito fenomenoloacutegico que natildeo eacute suscetiacutevel de
ser posto fora de cena [mise hors-circuit] e que eacute ele mesmo o sujeito de toda
investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica eideacutetica eacute o sujeito purordquo (HUSSERL 1952 p
175 2004 p 248) O que Husserl espera eacute mostrar que suas conclusotildees
partem sobretudo de uma experiecircncia fenomenoloacutegica e nisto natildeo segue a
metodologia das ciecircncias da natureza mais do que isso ele procura
demonstrar como equivocada a ideia de que a experiecircncia fiacutesica sirva de
fundamento especialmente na psicologia ao que seria posteriormente a
experiecircncia do corpo proacuteprio a experiecircncia de uma constituiccedilatildeo de
animalidade e humanidade que faria do ego sujeito uma instacircncia englobada
pelo ser psiacutequico Quanto a isto parece-nos que Merleau-Ponty
compreendeu bem inclusive La Structure du comportement seria um bom
exemplo de um trabalho inspirado na criacutetica husserliana ao naturalismo das
ciecircncias ao ensejo em romper com uma compreensatildeo de um homem
dividido em comportamentos superiores e em comportamentos elementares
ou reflexos embora natildeo tenha sido do interesse husserliano35
diferentemente de Merleau-Ponty mergulhar diretamente nos discursos
cientiacuteficos visto que como salientaria a Krisis ldquoas uacuteltimas pressuposiccedilotildees
da possibilidade do conhecimento objetivo natildeo podem ser conhecidos
objetivamenterdquo (HUSSERL 1954 p 254) Nas Ideen II Husserl deixa claro o
modo como espera se aproximar destas questotildees o que significa um retorno
agrave experiecircncia fenomenoloacutegica que se faz presente em uma ldquoatitude
personalistardquo Logo o direcionamento agrave ideia de uma Natureza que seja um
35 Jaacute nas Logische Untersuchungen encontraacutevamos uma indicaccedilatildeo disto ldquoE se de fato a ciecircncia constroacutei teorias para a soluccedilatildeo sistemaacutetica de problemas o filoacutesofo por sua vez pergunta o que eacute a essecircncia da teoria o que torna possiacutevel uma teoria em geral (HUSSERL 1975 p 254)
61
universo que seja uma Weltall faz com que nos demos conta de que na
verdade esse universo nos remete a um outro mais originaacuterio e bem mais
antigo a um mundo que ao inveacutes de ser construiacutedo se nos apresenta
Leibhaft ou seja em carne e osso Neste momento sobretudo
compreendemos as razotildees por que mais do que uma filosofia construtiva a
fenomenologia se apresenta como uma ldquoarqueologiardquo uma ldquogenealogiardquo no
caso do naturalismo das ciecircncias da natureza uma ldquoarqueologiardquo das blosse
Sachen O que isto significa
O que Husserl nos mostra em seus uacuteltimos trabalhos eacute que uma
anaacutelise intencional ao inveacutes de nos conduzir a uma reabilitaccedilatildeo do
idealismo ou mesmo subjetivisar ou psicologisar o mundo percebido revela-
nos uma arqueologia na qual antes encontramos um conjunto de quase-
objetos do que o sistema riacutegido das blosse Sachen Diraacute Merleau-Ponty ldquoas
blosse Sachen aparecem como idealizaccedilotildees satildeo conjuntos ulteriores
construiacutedos sobre a solidez do percebidordquo (MERLEAU-PONTY 1994 p 105-
6) A arqueologia husserliana ou se preferir a transfiguraccedilatildeo da anaacutelise
intencional em uma ldquointencionalidade retrospectivardquo em uma Ruumlckdeutung
leva-nos a um niacutevel preacutevio que cumpre o papel de relativizar aquilo que em
um horizonte cartesiano era tido como absoluto Abaixo das ldquocoisas purasrdquo
do universo da extensatildeo o filoacutesofo nos mostra o solo originaacuterio das ldquocoisas
preacute-teoreacuteticasrdquo o mundo vor aller Thesis traz agrave luz a ldquovida da consciecircnciardquo
que antecede o mundo construiacutedo pelo sujeito puro do naturalismo Neste
sentido a tarefa do objetivismo filosoacutefico natildeo seraacute o de demonstrar as
propriedades ou estruturas de um primado do em-si mas tornar manifestas
as motivaccedilotildees que fazem com que seja esse reino apenas uma camada
dentre tantas outras que constituem a Lebenswelt que compotildeem o mundo-
da-vida Por conseguinte naquilo que o cartesianismo considerava ser uma
descriccedilatildeo objetiva da realidade o que existe eacute um processo sedimentado
uma histoacuteria da consciecircncia que se cristalizou Quais as consequecircncias
disso Que conclusotildees podem ser tiradas quando a partir de um movimento
arqueoloacutegico assumimos a tarefa de cavar seus conceitos mais
fundamentais A uma visatildeo cientificista modelada na cisatildeo cartesiana entre
o reino da extensatildeo e o reino da consciecircncia o desmoronamento de seus
62
alicerces eacute inevitaacutevel ldquoo universo da ciecircncia natildeo repousa sobre si mesmordquo
(MERLEAU-PONTY 2000b p 220) Pelo contraacuterio ele nos remete a uma
esfera de experiecircncia na qual a proacutepria ciecircncia mesmo natildeo se dando conta
disso encontra-se assente ele nos remete em primeiro lugar ao ldquosujeito
encarnadordquo como diria Husserl ao Subjektleib ao corpo-sujeito em sua
condiccedilatildeo de ldquooacutergatildeo do Ich kann do Eu possordquo36
A experiecircncia do mundo se daacute em uma primeira instacircncia a
partir de um sujeito encarnado Mais do que um ato do espiacuterito toda
percepccedilatildeo supotildee ldquoa consciecircncia de meu corpo como oacutergatildeo de um poder
motor de um lsquoeu possorsquo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1968 MERLEAU-PONTY
1969 p 80) o que significa dizer que a percepccedilatildeo de um objeto implica a
consciecircncia das possibilidades motoras que nela se encontram implicadas
Isto explica o fato de que a experiecircncia do corpo proacuteprio natildeo siga as leis da
fiacutesica natildeo faz com que seus movimentos sejam situados no quadro de um
saber objetivo pois ele se manifesta antes como ldquo[] uma potecircncia indivisa e
sistemaacutetica de organizar certos desenvolvimentos de aparecircncia perceptiva O
meu corpo eacute aquele que eacute capaz de passar de tal aparecircncia para tal
aparecircncia como organizador de uma lsquosiacutentese de transiccedilatildeorsquordquo (MERLEAU-
PONTY 2000a p 122) Aqui Husserl se afasta da ideia de um Eu puro que
faria do corpo um objeto capaz de se relacionar com outros objetos Pelo
contraacuterio o corpo eacute capaz de compreender o mundo de habitaacute-lo logo a
ldquocoisa me aparece assim como um momento da unidade carnal de meu
corpo como encravada em seu funcionamento O corpo aparece natildeo soacute como
o acompanhante exterior das coisas mas como o campo onde se localizam
minhas sensaccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 122) O corpo se torna
nesta perspectiva um ldquocampo de localizaccedilatildeordquo no qual as sensaccedilotildees se
efetuam torna-se um corpo sentiente cumprindo ao mesmo tempo o papel
de sujeito e de objeto Encontramos aqui uma ruptura com a fisiologia
36 Deste modo podemos entender o que nos diz Merleau-Ponty ao tomar essas consideraccedilotildees como referecircncia a uma ontologia selvagem ldquoEsboccedilo de uma ontologia projetada como ontologia do ser bruto ndash e do loacutegos Configurar o Ser Selvagem prolongando meu artigo sobre Husserl Mas o desvelamento desse mundo desse Ser permanece mudo enquanto natildeo desenraizarmos a filosofia objetiva (Husserl)rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 164)
63
claacutessica segundo a qual a afirmaccedilatildeo de um corpo excitaacutevel significa
compreendecirc-lo como uma espeacutecie de projetor e lugar de eventos objetivos
mensuraacuteveis e acompanhados pela consciecircncia por um sujeito situado em
uma instacircncia superior Nas Ideen III tentando elucidar esta ruptura
Husserl faz uso da metaacutefora da locomotiva (HUSSERL 1980 p 104-105)37
37 ldquoSe considerarmos o organismo animado e a psique em suas reais relaccedilotildees reciacuteprocas e se nos colocarmos no solo da natureza encaixando as coisas materiais bem como os organismos animados e com eles as psiques na natureza o organismo animado e a psique se mostram em seguida estar conectados Mas a conexatildeo eacute acidental somente por um lado A realidade psiacutequica estaacute fundada na mateacuteria do organismo mas esta natildeo estaacute inversamente fundada na psique De modo mais geral podemos dizer o mundo material eacute no mundo Objetivo que chamamos natureza um mundo fechado em si mesmo natildeo precisando de ajuda de outras realidades Por outro lado a existecircncia de realidades mentais de um mundo real mental estaacute vinculado agrave existecircncia de uma natureza no primeiro sentido ou seja de uma natureza material e isso natildeo por razotildees acidentais mas por razotildees fundamentais Enquanto a res extensa se inquirimos a sua essecircncia natildeo conteacutem nada de um universo mental [mentalness] e nada que exigiria aleacutem de si mesma uma conexatildeo com um universo mental real [real mentalness] encontramos que inversalmente este universo mental real [real mentalness] essencialmente apenas pode ser em conexatildeo com a materialidade como mente real de um organismo animado Em tudo isso o termo lsquoorganismo animadorsquo significa natildeo apenas uma coisa material em geral que ndash de qualquer maneira ndash permanece em um complexo de dependecircncia funcional com uma segunda realidade chamada psique ou mesmo apenas com fenocircmenos de consciecircncia de um fluxo de consciecircncia Imaginemos uma consciecircncia (quer algo psiquicamente real lhe pertenccedila ou natildeo) a minha consciecircncia digamos que se posiciona em relaccedilatildeo a uma locomotiva de modo que se a locomotiva for abastecida com aacutegua essa consciecircncia teria a agradaacutevel sensaccedilatildeo que chamamos de saciedade se a locomotiva for aquecida teria a sensaccedilatildeo de calor etc Obviamente a locomotiva natildeo se tornaria em razatildeo da composiccedilatildeo de tais relaccedilotildees um lsquoorganismo animadorsquo para essa consciecircncia Se ao inveacutes daquilo que no momento eu chamo meu organismo animado a locomotiva estivesse em minha consciecircncia como campo de meu Ego puro entatildeo eu natildeo poderia tambeacutem chamaacute-lo de organismo animado pois simplesmente ele natildeo seria um organismo animado [] O organismo animado eacute digamos muitas vezes o portador de sensaccedilotildees e eacute sempre lsquoestimulaacutevelrsquo de novo Ele carrega sensaccedilotildees muacuteltiplas sensaccedilotildees como sensaccedilotildees de toque sensaccedilotildees cinesteacutesicas temperatura ndash cheiro ndash gosto ndash as sensaccedilotildees estatildeo lsquolocalizadasrsquo sobre ele e nele elas formam um estrato existencial situado sobre ele e nele Todas as outras sensaccedilotildees que natildeo estatildeo localizadas dessa maneira obtecircm apreensotildees de modo mediato e natildeo acidental em virtude de quais apreensotildees elas adquirem uma relaccedilatildeo com o organismo animado e seus vaacuterios lsquooacutergatildeos dos sentidosrsquo que ainda pressupotildeem sensaccedilotildees localizadas e portanto geralmente ldquopertencemrdquo igualmente ao organismo animado de modo essencialmente diferente do que aquelas sensaccedilotildees dependentes do exemplo acima da locomotivardquo Texto em inglecircs ldquoIf we consider animate organism and psyche in their real relationship to one another and if we put ourselves on the ground of nature fitting material things as well as animate organisms and with them the psyches into nature then animate organism and psyche show themselves to be connected But the connection is an accidental one only from one side The psychic reality is founded in organismal matter but this is not conversely founded in the psyche More generally we can say the material world is within the total Objective world that we call nature a closed world of its own needing no help from other realities On the other hand the existence of mental realities of a real mental world is bound to the existence of a nature in the first sense namely that of material nature and
64
O filoacutesofo pedindo para que imaginemos uma consciecircncia que em relaccedilatildeo
com uma locomotiva abastecida de carvatildeo pudesse nos dar uma sensaccedilatildeo
de calor ou estando com o reservatoacuterio cheio pudesse nos dar uma
sensaccedilatildeo de saciedade conclui que nem por isso esta mesma locomotiva
poderia ser o corpo desta consciecircncia dado ser um corpo puramente fiacutesico
sendo pois esta percepccedilatildeo impossiacutevel O sentir se daacute no corpo eacute o corpo
que sente eacute ele o campo de nossas sensaccedilotildees A famosa metaacutefora das matildeos
que se tocam citada por Merleau-Ponty tambeacutem servem de fundamento a
este argumento
Quando toco minha esquerda com minha matildeo direita minha matildeo tocante apreende minha matildeo tocada como uma coisa Mas de
suacutebito dou-me conta de que minha matildeo esquerda comeccedila a sentir As relaccedilotildees se invertem Fazemos a experiecircncia de um recobrimento
entre a contribuiccedilatildeo da matildeo esquerda e a da matildeo direita e de uma inversatildeo de suas respectivas funccedilotildees Essa variaccedilatildeo mostra que se
trata sempre da mesma matildeo Como coisa fiacutesica ela continua sendo sempre o que eacute e no entanto eacute diferente segundo for tocada ou
tocante (MERLEAU-PONTY 2000a p 123 1980 p 117)
Desta experiecircncia Merleau-Ponty conclui a existecircncia no corpo
de uma espeacutecie de reflexatildeo [eine Art von Reflexion] que ateacute entatildeo era
this not for accidental but for fundamental reasons While the res extensa if we inquire of its essence contains nothing of mentalness and nothing that would demand beyond itself a connection with real mentalness we find conversely that real mentalness essentially can be only in connection to materiality as real mind of an animate organism In all this the term ldquoanimate organismrdquo means not merely a material thing in general which ndash in whatever way ndash stands in a complex of functional dependence with a second reality called psyche or even only with phenomena of consciousness of a stream of consciousness Let us imagine a consciousness (whether something psychically real belongs to it or not) my consciousness say which would stand in relation to a locomotive so that if the locomotive were fed water this consciousness would have the pleasant feeling that we call satiety if the locomotive were heated if would have the feeling of warmth etc Obviously the locomotive would not because of the make-up of such relationships become ldquoanimate organismrdquo for this consciousness If instead of the thing that I at the time call my animate organism the locomotive stood in my consciousness as the field of my pure Ego then I could not call it animate organism also for it simply would not be an animate organism [] The animate organism is we say often the carrier of sensations and is always lsquostimulablersquo anew It carries sensations manifold sensations like touch sensations kinaesthetic sensations temperature- smell ndash taste ndash sensations are lsquolocalizedrsquo on it and in it they form an existential stratum lying on it and in it All other sensations that are not localized in this manner obtain apprehensions mediately and not accidentally by virtue of which apprehensions they acquire a relationship to the animate organism and to its various lsquosense organsrsquo which further presuppose localized sensations and therefore all in all likewise lsquobelongrsquo to the animate organism in essentially different manner than do those dependent sensations of the above example of the locomotiverdquo (HUSSERL 1980 p 104-105)
65
reportada apenas ao Cogito Por um lado ao tocar o corpo torna-se sujeito
ele sente a si mesmo por outro ao ser tocado ele se faz objeto leva-nos a
crer no universo das blosse Sachen Haacute pois uma reversibilidade presente
no corpo que natildeo nos permite nos esquecer de que haacute pois nas proacuteprias
coisas uma densidade presente na ldquopreacute-constituiccedilatildeordquo corporal que faz existir
entre o corpo e o mundo uma relaccedilatildeo de co-presenccedila Entre a matildeo que toca
e a matildeo tocada entre o corpo que sente e o corpo que eacute sentido haacute aquilo
que Husserl iraacute chamar de Deckung uma espeacutecie de recobrimento de
relaccedilotildees e na liacutengua de Merleau-Ponty receberaacute o nome de ldquoempiegravetementrdquo
tal como iraacute definir ldquo[a Deckung eacute] uma coincidecircncia sempre ultrapassada
ou sempre futura [que] natildeo eacute por conseguinte coincidecircncia fusatildeo real
como dois termos positivos ou dois elementos de uma mistura mas
recobrimento como de um oco [creux] e de um relevo que permanecem
distintosrdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 163-4) Quanto a isto quanto a esta
espeacutecie de simetria e ao mesmo tempo de reversibilidade corporal no que
diz respeito agraves relaccedilotildees entre sujeito e objeto a dificuldade torna-se entatildeo
de tentar descobrir o modo como tais perspectivas se reconciliam ou
melhor o modo como o subjetivo e o objetivo o cientiacutefico e o primordial
possam dialogar Qual o caminho de reconciliaccedilatildeo
Lembra-nos Merleau-Ponty e nisto encontramos em Husserl
uma via de superaccedilatildeo ldquoo meu corpo eacute uma coisa-origem uma medida-
padratildeo [eacutetalon] o grau zero de orientaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p
223) Haacute um modo que lhe eacute particular de se relacionar com as coisas
fazendo dele um modelo o grau zero de todos os outros lugares Mesmo
quando pensamos nas formas ldquootimaisrdquo por exemplo na experiecircncia de ver
um objeto com uma luneta ou com um microscoacutepio eacute a ldquoestranha teleologia
do olhordquo que possibilita esta relaccedilatildeo que define a sua forma que instaura
uma norma que possibilita um ldquofundamento de direitordquo [Rechtgrund] a partir
do qual todo conhecimento seraacute possiacutevel (MERLEAU-PONTY 2000a p 124)
Por conseguinte por meio do corpo funda-se um absoluto que se daacute no
relativo funda-se a possibilidade da ciecircncia Contudo natildeo seria isto uma
absolutizaccedilatildeo do corpo em sua individuaccedilatildeo O funcionamento de meu
corpo isolado eacute suficiente para superar o em-si cartesiano Sou conduzido
66
ao mundo e agraves coisas por meu corpo eacute verdade poreacutem para que eu possa
tomar consciecircncia dele para que possa encontrar um novo modo de
ldquoobjetivaacute-lordquo de compreendecirc-lo eacute preciso que o solipsismo corporal seja
superado eacute preciso que eu me compreenda como um corpo entre todos os
outros corpos humanos eacute preciso que mais do que um olho diria Husserl
eu tambeacutem tenha um espelho uma vez que como salienta Merleau-Ponty
A coisa percebida solipsista soacute pode tornar-se coisa pura se meu corpo entra em relaccedilotildees sistemaacuteticas com outros corpos animados A
experiecircncia que tenho do meu corpo como campo de localizaccedilatildeo de
uma experiecircncia e a que tenho dos outros corpos enquanto se
comportam diante de mim vatildeo ao encontro uma da outra e passam de uma agrave outra A percepccedilatildeo que tenho de meu corpo como
residecircncia de uma ldquovisatildeordquo de um ldquotatordquo e (posto que os sentidos
entranhem em meu corpo ateacute a consciecircncia impalpaacutevel a que
competem) de um Eu penso assim como a percepccedilatildeo que neste mundo tenho de outro corpo ldquoexcitaacutevelrdquo ldquosensiacutevelrdquo e (posto que tudo
isto natildeo possa prescindir de um Eu penso) portador de outro Eu penso estas duas percepccedilotildees digo se iluminam mutuamente e se
consomem juntas Daiacute que natildeo termine eu de ser o monstro incomparaacutevel do solipsismo Eu me vejo Subtraio de minha
experiecircncia aquilo que estaacute ligado a minhas singularidades
corporais Estou diante de uma coisa que verdadeiramente eacute coisa
para todos As blosse Sachen satildeo possiacuteveis como correlato de uma comunidade ideal de sujeitos encarnados de uma Intercorporeidade
(MERLEAU-PONTY 1969 p 90)
Conforme Husserl se as blosse Sachen satildeo possiacuteveis isso se daacute
apenas na condiccedilatildeo de correlato de ldquouma comunidade ideal de sujeitos
encarnadosrdquo38 No entender de Merleau-Ponty esta revisatildeo das ldquocoisas
purasrdquo se torna manifesta no texto sobre o mundo preacute-copernicano Para o
filoacutesofo como jaacute indicamos ali Husserl recomeccedila o trabalho de gecircnese do
Kosmotheacuteoros trabalho que seguia esquemaacutetico nas Ideen II mas rompe
com esta perspectiva ao descrever ldquoabaixo da Natureza cartesiana que a
atividade teoacuterica terminaraacute por construirrdquo a emergecircncia de ldquouma camada
anterior que nunca eacute suprimida e que exigiraacute justificaccedilatildeo quando o
desenvolvimento do saber revelar as lacunas da ciecircncia cartesianardquo
38 Encontramos aqui a experiecircncia da Einfuumlhlung poreacutem com a textura do que traz consigo a experiecircncia de um sujeito encarnado
67
(MERLEAU-PONTY 1969 p 90-1) No retorno husserliano ao mundo preacute-
copernicano encontramos a nosso ver o sentido de sua arqueologia o
sentido do que a Krisis nomeia de Ruumlckfrage o movimento de uma pensar
retroativo de uma ldquoquestatildeo em retornordquo que nos conduz a um mundo
originaacuterio O que significa esta incursatildeo husserliana Em contraposiccedilatildeo agrave
ideia de ldquopura coisardquo especialmente nas Ideen II e nas Ideen III a
arqueologia husserliana nos levaria de encontro especialmente a um ldquosujeito
encarnadordquo [Subjektleib] aliaacutes a uma comunidade de ldquosujeitos encarnadosrdquo
Contudo no texto em que nos remete a um mundo preacute-copernicano
pressupondo uma Umwelt preacutevia apoacutes tratar do corpo proacuteprio e da
intercorporeidade da Einfuumlhlung Husserl nos potildee em presenccedila natildeo soacute de
um sujeito-objeto mas tambeacutem de ldquoquase-objetosrdquo ele nos revela um
mundo originaacuterio primordial e inclusive fundador das blosse Sachen
Sendo um ldquoquase-objetordquo constituindo-se a raiz de nossa histoacuteria e uma
nova camada do ser este movimento de retorno a Ruumlckdeutung a retro-
referecircncia husserliana rompe radicalmente com o psicologismo pois o que se
visa satildeo ldquotermos noemaacuteticosrdquo eacute uma ldquocamada mais profunda que as blosse
Sachenrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 229) Dizer que a Terra eacute um ldquoquase-
objetordquo implica dizer que ldquoela possui um modo de ser anterior agrave idealizaccedilatildeo
ela eacute o solo o niacutevel primeiro que em seguida converteu-se em objetordquo
(MERLEAU-PONTY 2000b p 230) Em outros termos a anaacutelise se
concentra agora na explicitaccedilatildeo da correlaccedilatildeo existente entre ldquosujeitos-
objetosrdquo e ldquoquase-objetosrdquo aqueles que natildeo seriam inteiramente coisas eacute a
esta correlaccedilatildeo que agora a arqueologia husserliana nos conduz O que
Husserl nos diz neste texto O que seria este mundo preacute-copernicano Qual
a sua relaccedilatildeo com o mundo da ciecircncia
Neste texto o objetivo husserliano apesar do sentimento de que
possivelmente alguns complementos sejam necessaacuterios seraacute o de esboccedilar
uma ldquodoutrina fenomenoloacutegica da origem da espacialidade da corporeidade
da natureza no sentido das ciecircncias da natureza e por conseguinte para
uma teoria transcendental do conhecimento das ciecircncias da naturezardquo
(HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo) O que se busca eacute uma
compreensatildeo de como a Terra nos eacute constituiacuteda de como se daacute a gecircnese de
68
sua representaccedilatildeo a fim de contrapor o modo como a fenomenologia iraacute
compreendecirc-la Mais uma vez como jaacute indicamos trata-se da denuacutencia de
que o mundo cientiacutefico natildeo eacute uacutenico mas haacute um outro que lhe eacute originaacuterio
No que diz respeito agrave Terra onde se encontra o problema Em considerar a
concepccedilatildeo copernicana como uma verdade absoluta Diraacute Husserl ldquonoacutes
copernicanos noacutes homens dos tempos modernos noacutes dizemos A Terra natildeo
eacute a lsquonatureza inteirarsquo ela eacute uma das estrelas do espaccedilo infinito do mundordquo
(HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo) Para Merleau-Ponty esta
seraacute tambeacutem a definiccedilatildeo cartesiana A Terra eacute vista apenas como objeto de
uma pesquisa cientiacutefica como um corpo [Koumlrper] dentre outros logo regido
por leis preso a uma cadeia de causalidade Deste modo Contudo assinala
Husserl se procuramos compreendecirc-la no campo de nossa percepccedilatildeo
sabemos que natildeo podemos vecirc-la de uma soacute vez a experiecircncia que fazemos
dela nasce de uma ldquosiacutentese primordialrdquo de uma unidade de ldquoexperiecircncias
individuais unidas umas agraves outrasrdquo (HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em
anexo) O que significa esta incursatildeo husserliana Como Merleau-Ponty iraacute
encaraacute-la Vejamos
Como nos adverte Merleau-Ponty Husserl nos direciona a uma
experiecircncia preacute-cientiacutefica do mundo a um mundo preacute-copernicano O que
isto significa Ele nos conduz a uma vivecircncia da Terra natildeo mais
compreendida como Koumlrper como um corpo material dentre outros um
planeta a mais entre outros planetas mas uma terra como nosso horizonte
de experiecircncia nosso Boden nosso solo Em uma experiecircncia originaacuteria a
Terra natildeo se encontra nem em movimento nem em repouso natildeo eacute regida
por princiacutepios matemaacuteticos e fiacutesicos natildeo eacute o objeto de estudo da astronomia
dentre tantas outras ciecircncias mas encontra-se ldquoaqueacutemrdquo ldquoeacute algo inicial uma
possibilidade de realidade [Moumlglichkeit an Wirklichkeit] a terra como fato
puro o berccedilo a base e o solo de toda experiecircnciardquo (MERLEAU-PONTY
2000b p 227) Em substituiccedilatildeo agrave Terra como nosso horizonte de
experiecircncia a ciecircncia nos ofereceu uma realidade infinita transformando-a
em um ldquomundo objetivo e homogecircneordquo Esta criacutetica e o eco deste ineacutedito de
Husserl jaacute encontraacutevamos tambeacutem na Pheacutenomeacutenologie de la perception
quando apoacutes tratar da temporalidade Merleau-Ponty fazia uma espeacutecie de
69
revisatildeo e retomada do caminho que havia trilhado ateacute ali vinculando nesse
momento o projeto deste livro com aqueles jaacute desenvolvidos em La Structure
du comportement A questatildeo era compreender como se datildeo as relaccedilotildees entre
consciecircncia e Natureza entre o interior e o exterior entre as visadas do
idealismo e os resultados do realismo entre o sens e o non-sens entre as
diferentes visadas presentes na compreensatildeo do homem O que possibilita
no mundo a criaccedilatildeo de sentido Enquanto o realismo procurava inserir as
consciecircncias em um uacutenico ldquotecido do mundo objetivordquo ldquoo proacuteprio do
idealismo eacute admitir que toda significaccedilatildeo eacute centriacutefuga eacute um ato de
significaccedilatildeo ou de Sinn-gebung [expressatildeo ainda presente nas Ideen I] e que
natildeo existe signo naturalrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 574) A percepccedilatildeo
compreendida a partir da fenomenologia havia justamente mostrado que a
coisa mais do que sua ldquosignificaccedilatildeordquo era a presenccedila em noacutes do proacuteprio
mundo Diante de uma compreensatildeo ek-staacutetica do sujeito mais do que uma
ldquointencionalidade de atordquo do que um ato de significaccedilatildeo o que se
manifestava era um ldquoLoacutegos do mundo esteacuteticordquo uma ldquoarte escondida nas
profundezas da alma humanardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 575) Se haacute
pois uma diferenccedila entre estrutura e significaccedilatildeo eacute que ldquoa segunda eacute
reconhecida por um entendimento que a engendrardquo ao passo que a primeira
ldquopor um sujeito familiar ao seu mundo e capaz de compreendecirc-la como uma
modulaccedilatildeo deste mundo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 575) Se algo tem
sentido para mim eacute porque sou capaz de olhaacute-lo de experienciaacute-lo e isto a
partir de um determinado ponto de vista Por conseguinte
No mundo em si todas as direccedilotildees assim como todos os movimentos satildeo relativos o que significa dizer que ali eles natildeo existem Natildeo haveria movimento efetivo e eu natildeo teria a noccedilatildeo do movimento se na percepccedilatildeo eu natildeo deixasse a terra enquanto ldquosolordquo de todos os repousos e de todos os movimentos aqueacutem do movimento e do repouso porque eu a habito e da mesma maneira natildeo haveria direccedilatildeo sem um ser que habite o mundo e que por seu olhar trace ali a primeira direccedilatildeo-referecircncia [] Com o mundo enquanto berccedilo das significaccedilotildees e solo de todos os pensamentos noacutes descobriacuteamos o meio de ultrapassar a alternativa entre realismo e idealismo acaso e razatildeo absoluta non-sens e sens O mundo tal como tentamos mostraacute-lo enquanto unidade primordial de todas as nossas experiecircncias no horizonte de nossa vida e termo uacutenico de todos os nossos projetos natildeo eacute mais o desenvolvimento visiacutevel de um Pensamento constituinte nem uma reuniatildeo fortuita de partes nem bem entendido a operaccedilatildeo de um pensamento diretriz sobre uma
70
mateacuteria indiferente mas a paacutetria de toda racionalidade (MERLEAU-PONTY 1999 p 575-576)
Ora eacute interessante como de certo modo este trecho nos lembra
a ceacutelebre abertura de LrsquoOEil et lrsquoEsprit ldquoa ciecircncia manipula as coisas e
renuncia a habitaacute-las Fabrica para si modelos internos delas e operando
sobre esses iacutendices ou variaacuteveis as transformaccedilotildees por sua definiccedilatildeo soacute de
longe em longe (se) defronta com o mundo atualrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b
p 85 o grifo eacute nosso) Para Merleau-Ponty o que a fenomenologia nos
ensina sobretudo eacute o retorno a uma experiecircncia originaacuteria do mundo a ldquo[]
este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e
em relaccedilatildeo ao qual toda determinaccedilatildeo cientiacutefica eacute abstrata significativa e
dependente []rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 4) agrave Terra como ldquopaacutetria de
toda racionalidaderdquo ou como diraacute Husserl o retorno a um solo e a uma
camada originaacuteria ao berccedilo de toda significaccedilatildeo Trata-se por conseguinte
de uma criacutetica a uma ciecircncia que recusando-se a ldquohabitarrdquo o mundo
esqueceu-se de seu nascimento fazendo para si um mundo artificial e
crendo ser ele o mundo verdadeiro pois ldquoo mundo eacute natildeo aquilo que eu
penso mas aquilo que eu vivo eu estou aberto ao mundo comunico-me
indubitavelmente com ele mas natildeo o possuo ele eacute inesgotaacutevelrdquo (MERLEAU-
PONTY 1999 p 14) Por conseguinte com a compreensatildeo da Terra como
ldquoarqui-originaacuteriardquo ao contraacuterio de um universo de ldquopuras coisasrdquo Husserl
introduz um sistema de experiecircncia fundado na vivecircncia dos ldquoquase-
objetosrdquo Ao falar em uma Terra como morada de uma ldquoespacialidaderdquo e
ldquotemporalidaderdquo preacute-objetivas preacute-teoreacuteticas Husserl a tornou o solo e a
historicidade de um sujeito encarnado transtornando inclusive a nossa
concepccedilatildeo da verdade uma vez que ldquo[] antes de ser lsquoobjetivarsquo ela habita a
ordem secreta dos sujeitos encarnadosrdquo (MERLEAU-PONTY 1969 p 91) Se
a Natureza cartesiana nos insere em universo de ldquopuras coisasrdquo a arqui-
originaacuteria Terra nos mergulha em um campo de presenccedila no domiacutenio de
uma Urpraumlsenz de uma presenccedila originaacuteria A relaccedilatildeo existente entre o
sujeito e a ldquocoisa material objetivardquo natildeo eacute mais dada pelas normas do meacutetodo
e da representaccedilatildeo mas se torna uma espeacutecie de nervura dado que ldquoentre
71
os movimentos do meu corpo e as lsquopropriedadesrsquo da coisa revelada por eles
emerge uma relaccedilatildeo do lsquoeu possorsquo com as maravilhas que tem o poder de
suscitarrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 247)
Por fim procuramos mostrar o modo como Husserl esboccedila uma
ldquocrise da Razatildeordquo e como a relaciona a um projeto claacutessico de matematizaccedilatildeo
da Natureza Como personagem principal encontramos Galileu Contudo de
que modo Merleau-Ponty assumiria estas reflexotildees A este respeito parece-
nos que a presenccedila de Descartes torna-se fundamental pois seraacute nele que o
filoacutesofo iraacute encontrar as trilhas que o conduziratildeo a uma compreensatildeo
etioloacutegica das peripeacutecias do cientificismo ou antes do naturalismo das
ciecircncias e portanto de uma situaccedilatildeo de ldquocriserdquo Eacute pensando nisso que no
proacuteximo capiacutetulo tentaremos apresentar primeiro o que Merleau-Ponty
entende por ldquomundo claacutessicordquo elucidando os embaraccedilos da concepccedilatildeo
cartesiana de ldquorepresentaccedilatildeordquo Por uacuteltimo apoacutes estes delineamentos iremos
nos centrar no modo como isso se articula segundo o filoacutesofo em uma ldquocrise
nas nossas relaccedilotildees com a Naturezardquo
72
CAPIacuteTULO II OS LIMITES DO MUNDO CLAacuteSSICO E O TEATRO CARTESIANO
O PROBLEMA DA REPRESENTACcedilAtildeO
21 Um ponto de partida o mundo claacutessico e o mundo moderno
Para Merleau-Ponty se fosse o caso de datar o pensamento
moderno ele se manifesta no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX eacute
assim que em suas Causeries de 1948 diz entender por arte e pensamento
modernos os que se apresentavam no cenaacuterio filosoacutefico de seu tempo haacute uns
50 ou 70 anos (MERLEAU-PONTY 2002d p 21) Anterior a isto o que
encontramos tendo sua gecircnese no seacuteculo XVII eacute o pensamento claacutessico o
mesmo que iria fincar raiacutezes e servir de modelo apesar de algumas
transformaccedilotildees para o ideaacuterio cientificista do iniacutecio do seacuteculo XIX Contudo
como podemos entender o pensamento moderno ou como diraacute o filoacutesofo o
ldquomundo modernordquo Tendo em vista o modo como fora recebido certamente
natildeo passaria de um ldquopensamento bizantinordquo aquele mesmo que ldquonatildeo tendo
nada para dizerrdquo acabava substituindo a ldquoarte pela sutilezardquo (MERLEAU-
PONTY 2002d p 27) Para o filoacutesofo contudo tal juiacutezo se dava pela
dificuldade em compreender que na verdade o que norteava tal pensamento
era sobretudo um retorno agrave experiecircncia pois se encontramos dificuldades
nele se o consideramos radicalmente oposto ao senso comum eacute justamente
ldquo() porque tem a preocupaccedilatildeo da verdade e porque a experiecircncia jaacute natildeo lhe
permite honestamente ater-se a ideias claras ou simples agraves quais o senso
comum estaacute ligado porque lhe datildeo a tranquilidaderdquo (MERLEAU-PONTY
2002d p 27) Natildeo tendo mais a ilusatildeo de esgotar a verdade do mundo resta
aos modernos tatildeo-somente se enveredar pelos misteacuterios que este mesmo
mundo lhes revela Neste sentido o que gera a impressatildeo de decliacutenio ou de
decadecircncia na verdade eacute o que lhe impulsiona eacute o reconhecimento de um
pensamento marcado ao mesmo tempo pelo inacabamento e pela
ambiguidade Se outrora Descartes julgava ldquo() poder deduzir de uma vez
por todas dos atributos de Deus as leis da queda dos corposrdquo (MERLEAU-
73
PONTY 2002d p 64) a ciecircncia moderna natildeo cultiva a mesma pretensatildeo
suas constataccedilotildees se apresentam sempre ora como ldquoprovisoacuteriasrdquo ora como
ldquoaproximadasrdquo ocorrendo o mesmo na arte que ao contraacuterio de obras
completas parece nos oferecer antes simples ldquoesboccedilosrdquo Daiacute a conclusatildeo de
Merleau-Ponty
O coraccedilatildeo dos modernos eacute pois um coraccedilatildeo intermitente e que natildeo chega a conhecer-se Nos modernos natildeo soacute as obras satildeo inacabadas mas o proacuteprio mundo tal como elas o expressam eacute como que uma obra sem conclusatildeo e acerca da qual natildeo se sabe se alguma vez teraacute uma Desde que natildeo se trate unicamente da natureza mas do homem o inacabamento redobra-se com um inacabamento de princiacutepio [] (MERLEAU-PONTY 2002d p 65)
O ldquocoraccedilatildeo intermitente dos modernosrdquo como diraacute o filoacutesofo
esboccedila pois a proacutepria ambiguidade do pensamento ambiguidade que os
claacutessicos especialmente no Pequeno Racionalismo munidos pela eficaacutecia do
meacutetodo pensavam ter expurgado de vez do universo da filosofia e das
ciecircncias Ora o que seria este Pequeno Racionalismo Para acompanhar a
percepccedilatildeo de Merleau-Ponty sobre a histoacuteria do pensamento ao inveacutes de um
conceito uniacutevoco precisamos compreender o mundo claacutessico desdobrado em
dois racionalismos o Grande Racionalismo do seacuteculo XVII e o Pequeno
Racionalismo ldquo[] aquele professado ou discursado por volta de 1900 e que
consistia na explicaccedilatildeo do Ser pela ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1960 p
179) O que ocorre na passagem de um para outro No Pequeno
Racionalismo perde-se a ldquoambiguidaderdquo que movia o seacuteculo XVII perde-se o
sentimento presente na ciecircncia daquele tempo de uma ldquoopacidade do
mundordquo Seria pois o caso de se buscar o ldquocomeccedilo perdidordquo O que
percebemos ocorrer no mundo claacutessico Para Merleau-Ponty neste
momento deparamo-nos com o que viria a ser um dos limites do Pequeno
Racionalismo a saber o engendramento das bifurcaccedilotildees conceituais que satildeo
por ele engendradas e cristalizadas por um lado e por outro a valorizaccedilatildeo
de uma espeacutecie de lekton [leacutekton]39 de uma entidade incorpoacuterea de cunho
39 A critica a um universo em si do leacutekton surge especialmente nas Notas de Trabalho ldquoReacuteflexion = ideacutee drsquoune coiumlncidence avec constituant drsquoun retour ideacutee drsquoun Sinnesquelle Le faitest que nous avons cette ideacutee ndash Mais solidaire de lrsquoideacutee de Wesen ou Wesheit cad de
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loacutegico-racional que serviria de orientaccedilatildeo para todo o arcabouccedilo teoacuterico que
institui O que isto quer dizer
Se haacute algo que nos ensina o mundo moderno para Merleau-
Ponty eacute que filosofar natildeo significa comeccedilar seja pela Natureza seja por
Deus seja pelo homem nem muito menos substituir a experiecircncia vivida do
mundo por um arcabouccedilo de significados pela ordem loacutegica das
significaccedilotildees40 Ao privilegiar um determinado ente as ciecircncias a filosofia e
a arte claacutessicas acabaram por se situar no interior de um labirinto uma vez
que cada objeto tornado uma espeacutecie de modelo arquetiacutepico no mesmo
instante em que de uma tendecircncia filosoacutefica (assim como o Naturalismo o
Teiacutesmo o Humanismo) tornaram-se originantes tambeacutem
consequentemente de seacuterios estrabismos ou jogos epistemoloacutegicos nos
quais por exemplo um humanismo naturalista pode ao mesmo tempo
compartilhar de um naturalismo humanista e assim por diante41 Em outros
termos para Merleau-Ponty a definiccedilatildeo de um pensamento em relaccedilatildeo a
lrsquounivers du lekton ndash la reacuteflexion derniegravere ne peut ecirctre celle-lagrave il faut que ce soit preacuteciseacutement non la Wortbedeutung mais sa confrontation avec expeacuterience muette ie ne preacutesupposant pas la Wesheit fondant le langagerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [125]) Para Merleau-Ponty trata-se sobretudo de uma criacutetica a um absolutismo do ldquouniverso da significaccedilatildeordquo A seu ver para que haja uma ldquoontologia radicalrdquo eacute preciso saber apreciar o valor de noccedilotildees tais como ldquoessecircncia existecircncia sujeito objeto espiacuterito mateacuteria possiacutevel atualrdquo como ldquomaneiras de serrdquo ao inveacutes de tomar uma dessas noccedilotildees como fundamento de todas as outras Eacute preciso compreender de que modo ldquotodas essas maneiras de ser tecircm em comum sua pertenccedila a um mesmo mundordquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [147]) Neste sentido o problema da loacutegica estaria em entender o mundo como ldquoum caso particular de algo em geralrdquo fazendo deste ldquoalgo em geralrdquo objeto de seu estudo Logo a loacutegica torna-se um estudo de um modo de ser apenas ou seja o leacutekton natildeo podendo a ontologia lhe ser submissa Pelo contraacuterio a questatildeo natildeo estaacute em pensar em ldquosubmissatildeordquo mas em ldquointeraccedilatildeordquo quer dizer em compreender ldquocomo se articulam as maneiras de ser no interior do serrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [147]) Para o filoacutesofo a existecircncia de um universo em si do leacutekton o positivismo da Wortbedeutung significa a negaccedilatildeo do ldquomundo brutordquo Em 212 retomaremos estas questotildees 40 ldquoMon plan 1 le visible 2la Nature 3le logos doit ecirctre preacutesenteacute sans aucun compromis avec lrsquohumanisme ni drsquoailleurs avec le naturalisme ni enfin avec la theacuteologie ndash Il srsquoagit preacuteciseacutement de montrer que la philosophie ne peut plus penser suivant ce clivage Dieu lrsquohomme les creacuteatures - qui eacutetait le clivage de Spinozardquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 322) 41 Referimo-nos aqui especialmente agrave leitura merleau-pontiana de Marx para o qual ldquolrsquohumanisme est antihumanisme degraves lors que le neacutegatif est dans lrsquoecirctre mecircmerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VI [2]) ldquoLrsquohumanisme Un humanisme [anthropologiste] est deacutenonceacute avec raison comme une forme de naturalisme Mais alors qursquoest-ce que le vrai humanisme Le vrai humanisme renferme un anti-humanisme ndash Heidegger Sartre Deacutebut du question avec Marx le vrai naturalisme est humanisme et le vrai humanisme est naturalisme rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF vol VI [7] B)
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certos seres seraacute uma das razotildees das ruiacutenas ou confusatildeo que viriam a ser
desdobradas pelo mundo claacutessico pois ldquoacreditava-se que a filosofia
consistia em investigar se estes seres satildeo ou natildeo e se um pode lsquoexplicarrsquo e
lsquofundarrsquo o resto a partir de sirdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) No
entanto pensando na tarefa da filosofia em uma de suas notas a postura
de Merleau-Ponty eacute contundente ldquoPartir de um ser definir a filosofia como
partindo de eacute jaacute abandonar a filosofiardquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4]
(2)) Nisto se explicam as anotaccedilotildees feitas nas margens desta mesma nota
Pois a filosofia busca o que faz com que um ser seja e esteja em conexatildeo com os outros Seu ponto de partida eacute provisoacuterio ele seraacute transformado pela sequecircncia Ele eacute a notaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de partida que ela mesma deve ser [recolocada] em uma [unidade] totalidade Desenvolvimento circular ndash Eacute a diferenccedila com os pontos de vista ou as sagesses ndash Ela natildeo pode se contentar com o ponto de vista do homem ou de Deus ou da Natureza nem ver todas as coisas do ponto de vista de um dos seres (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))
Contra um pensamento articulado por categorias42 o filoacutesofo
nota antes especialmente partindo do mundo moderno a existecircncia de uma
ldquomisturardquo entre elas entre estas instacircncias uma ldquomisturardquo entre o ldquoser
naturalrdquo e o ldquoser humanordquo a existecircncia de uma ldquocoesatildeo do ser que faz com
que natildeo seja possiacutevel verdadeiramente lsquocomeccedilarrsquo pelas criaturasrdquo
(MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) O mesmo se daria com a afirmaccedilatildeo de
um Deus todo ldquopositivordquo do qual o homem seria consequecircncia e que
acabaria por se tornar todo ldquonegativordquo no instante em que a reflexatildeo se vecirc
obrigada a postular um irrefletido posto que o homem que eacute consequecircncia
de Deus eacute precisamente o mesmo que assumiria a tarefa de pensaacute-lo logo
ldquopartir de Deus natildeo eacute partir de Deus (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))
Da mesma forma o comeccedilo pelo homem conduzira a embaraccedilos como o
problema da autoposiccedilatildeo da consciecircncia frente a uma Natureza ndash que
perdera todo o seu sentido ao ser entendida unicamente como a negaccedilatildeo do
espiacuterito ndash e frente ao outro ndash que perdera a sua autonomia em meio agraves
42 Pensamos aqui por exemplo nas relaccedilotildees essecircncia existecircncia possiacutevel atual causalidadefinalidade mateacuteria forma
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visadas de uma subjetividade absoluta O que este quadro nos revela Diraacute o
filoacutesofo ldquo[] o acabamento da Filosofia concebida como Erklaumlrung ou
Begruumlndung instalaccedilatildeo em um ser e construccedilatildeo de todo o resto a partir
deste ser []rdquo(MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) Para Merleau-Ponty
nesta aparente decadecircncia e decliacutenio encontramos justamente a
necessidade de um ldquorecomeccedilordquo O que podemos aprender disto
Eacute preciso que seja entendido que o comeccedilo eacute apenas comeccedilo de fato que natildeo determina a sequecircncia de maneira linear onde encontrariacuteamos um comeccedilo que conteacutem tudo (mesmo se fosse Deus ndash eu ao menos como distinto dele ele natildeo me conteacutem) Eacute preciso que seja entendido que a filosofia eacute circularidade Natildeo a falsa circularidade hegeliana ciacuterculo no qual eu natildeo sou tomado [] (contra a filosofia da certeza ou criacutetica e Filosofia da [razatildeo] que parte da [circularidade] de um pensamento que lhe atinge e que todavia natildeo dispotildee de nenhuma verdade concreta [separada] de minha certeza de pensar em geral) Isto quer dizer tambeacutem eacute preciso que seja [entendido] que noacutes natildeo sabemos o que eacute a Natureza o cogito ou o pensamento nem Deus e que temos inteiramente que redefinir estes seres a partir de um problema do ser que ignora essas bifurcaccedilotildees essecircnciaexistecircncia fimcausa espiacuteritocorpo sujeitoobjeto finitoinfinito e que natildeo compartilha mais dos [pressupostos] das ciecircncias os quais satildeo da Filosofia Quando se retorna mais aqueacutem procura-se o sentido do Ser que natildeo seja ser da Natureza ser do homem ser de Deus mas que seja o estofo no qual tudo isto estaacute talhado no qual tudo isso foi talhado o visiacutevel o invisiacutevel e o invisiacutevel em segundo potecircncia isto eacute Deus (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))43
Como podemos notar se para Merleau-Ponty haacute uma
circularidade ou seja a ideia de que ldquohaacute um mundo antes de mim (natildeo
43 ldquoLeccedilon agrave tirer de tout cela il faut qursquoil soit entendu que le commencement nrsquoest que commencement de fait qursquoil ne deacutetermine pas la suite de maniegravere lineacuteaire ougrave trouverait-on un commencement qui contienne tout (mecircme si crsquoest Dieu ndash moi du moins comme distinct de lui il ne me contient pas) Il faut qursquoil soit entendu que la PH est circulariteacute Non pas la fausse circulariteacute heacutegeacutelienne cercle ougrave je ne suis pas pris ndash Mais la circulariteacute qui tient agrave ce que je suis deacutejagrave apporteacute quand je pense et je ne mrsquoapporte pas moi-mecircme] (contre PH de la certitude ou critique et PH de la[raison] qui part de la [circulariteacute] drsquoune penseacutee qui y atteint et qui cependant ne dispose drsquoaucune veacuteriteacute concregravete [seacutepareacutee] de ma certitude de penser en geacuteneacuteral) Ceci veut dire aussi il faut qursquoil soit [entendu] que nous ne savons pas ce que crsquoest que la Nature le cogito ou la penseacutee ni Dieu et que nous avons entiegraverement agrave redeacutefinir ces ecirctres agrave partir drsquoune probleacutematique de lrsquoEtre qui ignore toutes les bifurcations essence existence fin cause esprit corps sujet objet fini infini et qui ne partage pas non plus les [preacutesupposeacutes] de la science lesquels sont de la PH Quand on revient en deccedilagrave on cherche sens de lrsquoEtre qui ne soit pas ecirctre de la Nature ecirctre de lrsquohomme ecirctre de Dieu mais qui soit lrsquoeacutetoffe dans laquelle tout cela a eacuteteacute tailleacute le visible lrsquoinvisible et lrsquoinvisible agrave la seconde puissance ie Dieurdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))
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somente fiacutesico mas de cultura histoacuteria) a linguagem e a cultura estatildeo
[nele]rdquo44 natildeo haacute sentido em falar apenas de ldquocomeccedilordquo que seja tido por sua
vez como absoluto tal como encontramos no mundo claacutessico o mesmo
ensejo que encontrariacuteamos dentre as ruiacutenas de um pensamento estraacutebico
aquele fruto de uma diplopia instaurada conforme veremos adiante pelo
pensamento cartesiano Eacute assim que o Pequeno Racionalismo perdendo o
horizonte que movia o seacuteculo XVII fez de seus anseios um projeto
cristalizado preso aos equiacutevocos que sua ausecircncia mesma de movimento
que suas idealizaccedilotildees ou esquecimento da ldquopluralidade de relaccedilotildeesrdquo vieram
instituir Eacute assim que a ambiguidade e o inacabamento do mundo moderno
mesmo tendo-se em vista ser fruto de uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo que se
tornara instituiccedilatildeo ndash aquela que levara o Pequeno Racionalismo a cristalizar
as tensotildees filosoacuteficas do Grande Racionalismo ndash em contrapartida agraves
acusaccedilotildees de natildeo passar de um pensamento difiacutecil ou bizantino cumpre a
tarefa de nos mostrar os equiacutevocos do mundo claacutessico Nisto encontramos
talvez as razotildees pelas quais Merleau-Ponty vislumbrara entre a ciecircncia
claacutessica e a ciecircncia moderna uma diferenccedila de natureza as razotildees pelas
quais tomando a identificaccedilatildeo dos prejulgamentos do mundo claacutessico como
tarefa ele desejara romper com uma visatildeo que ainda se fazia presente natildeo
soacute na filosofia mas tambeacutem na arte na literatura na psicologia na ciecircncia e
na cultura Por conseguinte para o filoacutesofo
natildeo eacute uma decadecircncia que nos separa do seacuteculo XVII mas um progresso de consciecircncia e de experiecircncia Os seacuteculos seguintes aprenderam que o acordo de nossos pensamentos evidentes com o mundo existente natildeo eacute tatildeo imediato que nunca estaacute sem apelo que nossas evidecircncias nunca podem vangloriar-se de regular na sequecircncia todo o desenvolvimento do saber que as consequecircncias refluem sobre os ldquoprinciacutepiosrdquo que precisamos nos preparar ateacute para refundir as noccedilotildees que acreditaacutevamos ldquoprimeirasrdquo que a verdade natildeo eacute obtida por composiccedilatildeo indo do simples ao complexo e da essecircncia agraves propriedades que natildeo podemos nem podemos instalar-nos no centro dos seres fiacutesicos e mesmo matemaacuteticos que eacute preciso inspecionaacute-los tateando de fora abordaacute-los com procedimentos
44 Na margem ldquocirculariteacute qui veut dire il y a un monde avant moi (non seulement physique mais de culture histoire) le langage et lrsquohistoire [en] [y] sontrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))
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obliacutequos interrogaacute-los como pessoas (MERLEAU-PONTY 1975b p 229-230)45
Contudo para Merleau-Ponty algo mais ocorre na passagem do
Grande para o Pequeno Racionalismo fazendo com que ocorra nas relaccedilotildees
entre filosofia e ciecircncia uma mudanccedila radical Quais as razotildees De acordo
com o filoacutesofo a noccedilatildeo de ldquoinfinito positivordquo ou ldquoinfinitamente Positivordquo46 que
servia de fundamento comum agraves filosofias do seacuteculo XVII conforme veremos
mais adiante fazia desta eacutepoca um ldquomomento privilegiadordquo capaz de
estabelecer uma certa harmonia entre ldquoo conhecimento da naturezardquo e a
ldquometafiacutesicardquo uma espeacutecie de acordo entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo
(MERLEAU-PONTY 1975b p 227) Filosofia e ciecircncia participariam de um
mesmo interior que natildeo seria de modo algum asfixiado por uma pura
exterioridade Sendo assim eacute que podemos notar de que modo o mundo
claacutessico pocircde reconhecer uma espeacutecie de ser que apesar de encontrar-se em
uma cadeia de relaccedilotildees causais natildeo romperia com ela47 Este ser reenviava
justamente agrave ideia que possibilitou de modo paradoxal segundo Merleau-
Ponty o sucesso do Grande Racionalismo e que se manteria soacute enquanto ela
permanecesse48 Todavia tendo perdido esta unidade filosofia e ciecircncia
passariam a se encontrar em lados opostos Mesmo havendo jaacute no Grande
45 Assim como continua o filoacutesofo ldquoEra preciso entatildeo voltar aos princiacutepios recolocaacute-los no plano das lsquoidealizaccedilotildeesrsquo justificadas enquanto anima a investigaccedilatildeo desqualificadas quando a paralisam aprender a medir nosso pensamento com a existecircncia que como iria dizer Kant natildeo eacute um predicado regressar agrave origens do cartesianismo para ultrapassaacute-lo reencontrar a liccedilatildeo desse ato criador que instituiacutera um longo periacuteodo de pensamento fecundo mas cuja virtude se esgotara no pseudocartesianismo dos epiacutegonos e exigia doravante ser recomeccedilado Foi preciso aprender a historicidade do saber estranho movimento onde o pensamento abandona e salva suas foacutermulas antigas integrando-as como casos particulares e privilegiados em um pensamento mais compreensivo e geral que natildeo pode decretar-se exaustivo Esse ar de improviso e provisoacuterio esse jeito meio desvairado das investigaccedilotildees modernas tanto em ciecircncia como em filosofia na literatura ou nas artes eacute o preccedilo que se paga para adquirir uma consciecircncia mais madura de nossas relaccedilotildees com o serrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 229-230) 46 A este respeito provavelmente seguindo nisto a tese de Koyreacute (KOYREacute 1988) 47 Especialmente pensadores como Descartes Espinosa Leibniz e Malebranche 48 Haacute nisso inclusive um elogio de Merleau-Ponty ao ldquoGrande Racionalismordquo fazendo com que veja ali de certa forma algo comum com o seu projeto filosoacutefico Eacute assim que confessaraacute ao se referir a este periacuteodo que ldquocomo ele procuramos natildeo restringir ou desacreditar as iniciativas da ciecircncia mas situaacute-la como sistema intencional no campo total de nossas relaccedilotildees com o Ser e se a passagem ao infinitamente infinito natildeo nos parece ser a soluccedilatildeo eacute somente porque retomamos mais radicalmente a tarefa que aquele seacuteculo intreacutepido acreditara ter cumprido para semprerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 231)
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Racionalismo uma cisatildeo entre racionalismo e empirismo faltava poreacutem
uma radicalidade o que jaacute natildeo iria ocorrer no Pequeno Racionalismo
principalmente quando essa cisatildeo passara a apresentar novas antinomias ndash
tais como vemos nas disputas entre ldquomecanicismordquo e ldquovitalismordquo ndash cujos
antagonismos diferentemente do seacuteculo XVII natildeo iriam mais se tratar de
uma simples ldquoopccedilatildeo filosoacuteficardquo49 o que nos leva a verificar portanto uma
ruptura no interior disto que o proacuteprio Merleau-Ponty apelidara unicamente
de ldquomundo claacutessicordquo Por que entatildeo dada a diferenccedila entre estes dois
racionalismos natildeo buscar uma outra denominaccedilatildeo Eacute que para o filoacutesofo
em meio a essa ruptura o Pequeno Racionalismo natildeo deixara de ser na
verdade uma espeacutecie de ldquofoacutessilrdquo do Grande Racionalismo um ldquofoacutessilrdquo que
por conseguinte iraacute se desdobrar em uma ldquometafiacutesica cientificistardquo cuja
pretensatildeo paradoxalmente era romper o seu parentesco com a filosofia e
suas abstraccedilotildees Encontramo-nos pois em um cenaacuterio no qual ldquo() em
toda parte onde um condicionamento era revelado pensava-se ter silenciado
toda questatildeo resolvido o problema da essecircncia com o da origem
restabelecido o fato sob a obediecircncia de sua causardquo (MERLEAU-PONTY
1975b p 227) Logo
a questatildeo entre ciecircncia e metafiacutesica reduzia-se somente a saber se o mundo era um soacute e grande processo submetido ao mesmo ldquoaxioma geradorrdquo cuja foacutermula miacutestica seria a uacutenica coisa que restaria para ser repetida no fim dos tempos ou se havia por exemplo no ponto em que a vida surge lacunas descontinuidades onde se pudesse alojar a potecircncia antagocircnica do espiacuterito Cada conquista do determinismo era uma derrota do sentido metafiacutesico cuja vitoacuteria exigia a ldquofalecircncia da ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 227)
Apesar disso poreacutem o que a ciecircncia do Pequeno Racionalismo
natildeo podia negar era a presenccedila em seus fundamentos de um ldquonaturalismordquo
que tivera sua gecircnese no seacuteculo XVII Basta notar nos discursos cientiacuteficos
49 Deste modo Merleau-Ponty refere-se ao seacuteculo XVII como ldquo[] um tempo em que o universo mental natildeo estava dilacerado e onde um mesmo homem podia sem concessatildeo ou artifiacutecio dedicar-se agrave filosofia agrave ciecircncia (e se o desejasse agrave teologia) Natildeo obstante essa paz essa indivisatildeo soacute poderiam durar enquanto se permanecesse na entrada dos trecircs caminhosrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 229) Qual a razatildeo dessa possibilidade Continua o filoacutesofo estaacute no fato de que ldquoo seacuteculo XVII acreditou no acordo imediato da ciecircncia com a metafiacutesica e ademais com a religiatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 230)
80
a constante presenccedila de ideias marcadamente cartesianas como ldquogeraccedilatildeo
continuadardquo ldquoaccedilatildeo produtorardquo ldquorepresentaccedilatildeordquo ldquocausalidaderdquo dentre
outras valendo o mesmo para o ldquohumanismordquo o ldquoteiacutesmordquo ou mesmo o
ldquoneopositivismo loacutegicordquo Eacute assim que em meio a estes parentescos e desvios
percebemos emergir ao mesmo tempo um primado da exterioridade e o
compromisso com as consequecircncias de uma ideia cujos princiacutepios se
perderam atitude esta que podemos nomear de ldquomitordquo segundo Merleau-
Ponty seja ele o das ldquoleis naturaisrdquo ou da ldquoexplicaccedilatildeo cientiacuteficardquo seja ele por
exemplo o da ldquoexplicitaccedilatildeordquo do ldquonadardquo que encontrariacuteamos apoacutes a vida tal
como se estivesse se tratando de um ldquodestino supra-sensiacutevelrdquo (MERLEAU-
PONTY 1975b p 277) Em outros termos mantendo em seus fundamentos
as consequecircncias do seacuteculo XVII sem repensar os seus princiacutepios por
conseguinte nutrindo em suas bases uma clivagem configurada em anaacutelises
fiacutesico-matemaacuteticas a ciecircncia claacutessica de um modo geral via-se jaacute em seus
alicerces envolta em muitos embaraccedilos Nisto estaacute a razatildeo pela qual
mergulhado em uma metafiacutesica realista campo dos embates entre vitalismo
e mecanicismo o pensamento bioloacutegico ainda permanecia claacutessico era ainda
a expressatildeo de uma ldquoontologia do objetordquo sendo que ldquoa imagem do
organismo eacute em sua grande parte aquela de uma massa material partes
extra partesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 29) Do mesmo modo no que diz
respeito agrave psicologia ldquono iniacutecio do seacuteculo o materialismo fazia do lsquopsiacutequicorsquo
um setor particular do mundo real dentre os acontecimentos em si alguns
no ceacuterebro tinham a propriedade de existir tambeacutem por sirdquo (MERLEAU-
PONTY 2006 p 29) jaacute que tendo-se em conta o pensamento criticista natildeo
lhe restava outro recurso senatildeo o de ser ldquo() por um lado uma lsquopsicologia
analiacuteticarsquo que paralelamente agrave geometria analiacutetica reencontraria o juiacutezo
sempre presente e por outro lado um estudo de certos mecanismos
corporaisrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 30) Todavia para Merleau-Ponty eacute
preciso que se abandone a concepccedilatildeo da Natureza como uma maacutequina
regida pelas leis de uma ldquofiacutesica matematizadardquo que tanto marcaria tambeacutem o
Grande Racionalismo e as ciecircncias que tentassem se modelar em suas
consequecircncias Daiacute o fato de que suas criacuteticas dirigidas por exemplo agrave
psicologia e agrave fisiologia claacutessicas datildeo-se justamente no intuito de levaacute-las a
81
natildeo mais reduzir o homem a uma maacutequina psiacutequica ou a um organismo
determinado por leis naturais necessaacuterias e universais
Todavia em contrapartida de acordo com Merleau-Ponty a
fiacutesica de sua eacutepoca parecia neutra ante o embate entre filosofia e ciecircncia
Aparentemente aquela abordagem fiacutesica mesmo que no campo cientiacutefico
natildeo apresentava grandes problemas ao pensamento criticista Para o fiacutesico
moderno neste sentido a metafiacutesica natildeo passaria de uma mera ldquoquestatildeo de
estilordquo Em Einstein et la crise de la raison eacute interessante assinalar o modo
como segundo Merleau-Ponty Einstein ilustraria bem esta crise na qual o
fiacutesico ainda utilizava a mesma linguagem da metafiacutesica claacutessica embora
suas descobertas ironicamente rompessem radicalmente com esta mesma
metafiacutesica Contudo embora o fiacutesico moderno se sinta um sujeito absoluto
ante seu objeto o fato eacute que suas descobertas transcendem a linguagem na
qual ainda se encontrava cativo Sendo assim mais do que neutra ante o
Pequeno Racionalismo tanto do cientista (Realismo Mecanicismo) quanto do
filoacutesofo (Espiritualismo Vitalismo) e mais do que promover por meio de sua
neutralidade a legitimaccedilatildeo do pensamento criacutetico o fato eacute que a fiacutesica
moderna romperia com estas clivagens do pensamento
No mundo moderno a ldquonova ciecircnciardquo natildeo se prende mais a
um discurso alicerccedilado em antagonismos50 Natildeo se trata mais de um
discurso fundamentado apenas no sujeito ou de um discurso fundamentado
apenas no objeto Neste contexto a anaacutelise cartesiana da cera por exemplo
o despojamento das qualidades ao qual o objeto se sujeitava na fiacutesica
claacutessica em sua ldquoobsessatildeo matemaacuteticardquo apresenta-se como um contra-
senso Contudo em linhas gerais como podemos diferenciar ldquofiacutesica
modernardquo e ldquofiacutesica claacutessicardquo A fiacutesica claacutessica aquela promulgada pelo
Grande Racionalismo e tatildeo bem expressa em Laplace afirmava-se no dizer
de Merleau-Ponty ou por um causalismo ou por uma concepccedilatildeo analiacutetica
do Ser ou ateacute mesmo por uma concepccedilatildeo espacial do ser natural na qual
os seres teriam uma existecircncia meramente extensiva Deste modo citando
50 A este respeito poderiam atestar os estudos de Le Roy Poincareacute e Duhem
82
Bachelard Merleau-Ponty ressaltava que ldquoos seres laplacianos natildeo satildeo
simples substancializaccedilotildees da funccedilatildeo ser situadordquo (BACHELARD 1951 p
294) ldquoo que exclui a ideia de um ser em devirrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p
143)
Desta afirmaccedilatildeo bachelardiana ele concluiraacute que ldquoa diferenccedila
entre esse classicismo e o pensamento cientiacutefico moderno eacute que um pensa
que se deve compreender o Ser antes de compreender o seu comportamento
ao passo que o outro soacute apreende seu ser apreendendo seu comportamentordquo
(MERLEAU-PONTY 2000a p 143) Neste sentido vale-nos a suspeita de
Bachelard segundo o qual a negaccedilatildeo laplaciana de Deus natildeo seria nada
menos do que uma troca de hipoacutetese51 No fundo o espiacuterito do cientista
assumiria o papel do espectador universal do Kosmotheacuteoros ateacute entatildeo
ocupado por Deus52 Deste modo na fiacutesica moderna por estar abalizada
mais em ldquorelaccedilotildeesrdquo as instacircncias do sujeito e do objeto se encontram
embaralhadas mesmo que no caso de Einstein ainda haja um ideal
claacutessico pois ldquonatildeo eacute reclamando para a ciecircncia um gecircnero de verdade
metafiacutesica ou absoluta que protegeremos os valores da razatildeo que a ciecircncia
claacutessica nos ensinourdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 219) O problema estaacute
que como salienta ironicamente Merleau-Ponty ldquoo mundo aleacutem dos
neuroacuteticos conta com um bom nuacutemero de lsquoracionalistasrsquo que satildeo um perigo
para a razatildeo vivardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 29) Para Merleau-Ponty
ldquopelo contraacuterio o vigor da razatildeo estaacute ligado ao renascimento de um sentido
filosoacutefico que certamente justifica a expressatildeo cientiacutefica do mundo poreacutem
em sua ordem em seu lugar no todo do mundo humanordquo (MERLEAU-
51 Bachelard nos lembra do encontro que Laplace tivera com Napoleatildeo Nesta ocasiatildeo ao ser indagado por Napoleatildeo sobre a ausecircncia de Deus em seu discurso Laplace simplesmente responde que natildeo precisara desta ldquohipoacuteteserdquo para fundamentar suas ideias 52 Esta suspeita torna-se bastante evidente a Merleau-Ponty nas seguintes palavras de Laplace proferidas no Essai philosophique sur les probabiliteacutes ldquoDevemos portanto considerar o estado presente do universo como o efeito de seu estado anterior e como a causa daquele que se seguiraacute Uma inteligecircncia que num instante dado conhecesse todas as forccedilas de que a Natureza estaacute afirmada e a situaccedilatildeo respectiva dos seres que a compotildeem se por outro lado ela fosse suficientemente vasta para submeter todos esses dados agrave anaacutelise englobaria na mesma foacutermula os movimentos dos maiores corpos do universo e aqueles do mais leve aacutetomo nada seria incerto para tal inteligecircncia e o futuro tanto quanto o passado estaria presente a seus olhosrdquo (LAPLACE Apud MERLEAU-PONTY 2000a p 142)
83
PONTY 2006 p 219) Nisto encontra-se o elogio de Merleau-Ponty agrave
mecacircnica quacircntica que ainda mais do que o proacuteprio Einstein subvertera
categorias fundamentais e se rebelara contra a antiga ontologia (MERLEAU-
PONTY 2000a p 143)
Eacute neste sentido que podemos compreender em Lrsquoœil et
lrsquoesprit a criacutetica que Merleau-Ponty faria a uma espeacutecie de ldquooperacionalismordquo
que ainda se fazia presente em algumas abordagens cientiacuteficas de seu
tempo Como ele mesmo diraacute ldquoa ciecircncia manipula as coisas e renuncia a
habitaacute-las Para si estabelece modelos internos das coisas ()rdquo visto que
ldquo() operando sobre estes iacutendices e variaacuteveis as transformaccedilotildees permitidas
pela sua definiccedilatildeo soacute se confronta de quando em quando com o mundo
atualrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 13) Prosseguindo estas ideias o
filoacutesofo chega agrave constataccedilatildeo de que
Haacute hoje em dia ndash natildeo na ciecircncia mas numa filosofia das ciecircncias assaz divulgada ndash isto de completamente novo a saber que a praacutetica construtiva se considera e se estabelece como autocircnoma e que o pensamento se reduz deliberadamente ao conjunto das teacutecnicas de apreensatildeo ou de captaccedilatildeo por si inventadas Pensar eacute experimentar operar transformar com a uacutenica reserva de uma verificaccedilatildeo experimental na qual natildeo interveacutem senatildeo fenocircmenos altamente ldquotrabalhadosrdquo e que os nossos aparelhos mais que registram produzem (MERLEAU-PONTY 1975b p 14)
Nestas palavras contudo natildeo podemos simplesmente
reconhecer uma negaccedilatildeo radical da ciecircncia Se pensarmos em Cavallier natildeo
podemos deixar que a celebridade destas linhas a primeiras de Lrsquoœil et
lrsquoesprit atrapalhe a compreensatildeo que possamos ter do projeto filosoacutefico de
Merleau-Ponty Ao inveacutes de se negar a ciecircncia em geral o que encontramos eacute
a explicitaccedilatildeo e recusa de um determinado modelo de ciecircncia de um dito
saber cientiacutefico que nos afasta de nossa vivecircncia do mundo e
consequentemente rompe o viacutenculo ontoloacutegico pelo qual nos encontramos
unidos a este mesmo mundo Por conseguinte mais do que uma recusa da
ciecircncia o que se visa eacute sobretudo uma determinada ldquofilosofia das ciecircnciasrdquo
84
seja aquela fundada somente no criticismo53 seja aquela resultada dos
desdobramentos de uma ldquofilosofia analiacuteticardquo54 No que diz respeito a esta
uacuteltima para o filoacutesofo ldquodizer que o mundo eacute por definiccedilatildeo o objeto X das
nossas operaccedilotildees eacute tornar absoluta a situaccedilatildeo de conhecimento do saacutebio [do
cientista] como se tudo aquilo que foi ou eacute soacute o fosse para entrar no
laboratoacuteriordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 15) Por conseguinte ldquoo
pensamento lsquooperatoacuteriorsquo converte-se em uma espeacutecie de artificialismo
absoluto ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 15) Como equiacutevoco o filoacutesofo
encontra nestas ideias o desejo de analisar o ser da ciecircncia apenas por
procedimentos de verificaccedilatildeo e de experimentaccedilatildeo esquecendo-se tambeacutem
de que ele pode se apresentar a partir de princiacutepios preacutevios Neste sentido
Merleau-Ponty lembra-se da afirmaccedilatildeo bachelardiana segundo a qual em
Le nouvel esprit scientifique a ldquoexperiecircncia adere agrave definiccedilatildeo do Ser Toda
definiccedilatildeo eacute uma experiecircnciardquo pois ldquodiz-me como te investigar e te direi quem
eacutesrdquo (BACHELARD 1973 p 49)55 Disto Merleau-Ponty concluiraacute que
() se natildeo se introduz nenhum princiacutepio anterior agrave operaccedilatildeo ao trabalho da ciecircncia natildeo se pode presumir essa operaccedilatildeo concluiacuteda Eacute preciso aceitaacute-la em sua obscuridade em sua espessura com todas as motivaccedilotildees que nela estatildeo implicadas que nela ldquofuncionamrdquo (muitas vezes preacute-cientificamente) ndash Senatildeo o operacionalismo eacute apenas retorno ao idealismo e agrave imanecircncia () Esse operacionalismo sabe de antematildeo o que encontraraacute somente encontraraacute relaccedilotildees fiacutesico-matemaacuteticas restringe o Ser ao que eacute manipulaacutevel por ele a objetos de conhecimento cientiacutefico ndash seja o que for que a ciecircncia nos mostre seratildeo sempre os objetos de nosso conhecimento (MERLEAU-PONTY 2000a p 328)
53 Trata-se aqui especialmente da ldquofilosofia das ciecircnciasrdquo de Brunschvicg um dos alvos da criacutetica de Merleau-Ponty conforme veremos melhor no proacuteximo capiacutetulo 54 Neste caso ao se pensar em uma ciecircncia na qual o mundo se tornara longe do ldquosentimento de opacidaderdquo dos claacutessicos tatildeo-somente um ldquoobjetordquo de nossas reflexotildees tal como se torna expliacutecito em um curso dado no Collegravege de France contemporacircneo a Lrsquoœil et lrsquoesprit acreditamos que se trata de uma referecircncia ao ldquooperacionalismordquo de Bridgman Em The Logic of Modern Physics o operacionalismo eacute introduzido como o referencial de uma metodologia na qual natildeo haveria o risco da interferecircncia de nenhum juiacutezo de valor Mergulhado em uma filosofia analiacutetica o conceito de operacionalizaccedilatildeo se daacute justamente na procura de um elemento capaz de unir diferentes concepccedilotildees metodoloacutegicas na descriccedilatildeo analiacutetica da accedilatildeo do cientista em seu campo de observaccedilatildeo Disto resulta a identificaccedilatildeo de sentenccedilas elementares conforme os intuitos filosoacuteficos do ldquoAtomismo Loacutegicordquo Deste modo para Bridgman um certo conceito natildeo apresentaraacute sua verdadeira definiccedilatildeo referindo-se a suas propriedades mas a suas ldquooperaccedilotildees efetivasrdquo 55 Este trecho eacute citado por Merleau-Ponty (2000a p 328)
85
A criacutetica dirigida pelo filoacutesofo ao operacionalismo no fundo
indica tambeacutem uma criacutetica ao ldquoPositivismo loacutegicordquo como um dos uacuteltimos
rebentos do Pequeno Racionalismo e seu consequente esquecimento da
unidade viva que mantemos com o nosso mundo Mas natildeo haveria tambeacutem
em Descartes notadamente na Dioptrique uma espeacutecie de
ldquooperacionalismordquo Em que poderiacuteamos diferenciar o operacionalismo das
ciecircncias e o operacionalismo cartesiano Qual seria seu grau de parentesco
o mesmo que serviria para nos mostrar a diferenccedila de natureza que se
estabelece entre o Grande e o Pequeno Racionalismo Como diraacute Merleau-
Ponty
Nossa ciecircncia rejeitou tanto as justificaccedilotildees como as restriccedilotildees de campo que Descartes lhe impunha Os modelos que inventa ela natildeo pretende mais deduzi-los dos atributos de Deus A profundidade do mundo existente e a do Deus insondaacutevel jaacute natildeo vecircm forrar a vulgaridade do pensamento ldquotecnicizadordquo O desvio pela metafiacutesica que apesar de tudo Descartes fizera uma vez em sua vida a ciecircncia dispensa-se dele ela parte daquilo que foi o seu ponto de chegada O pensamento operacional reivindica sob o nome de psicologia o domiacutenio de contato consigo mesmo e com o mundo existente que Descartes reservava a uma experiecircncia cega mas irredutiacutevel Ele eacute fundamentalmente hostil agrave filosofia como pensamento de contato e se lhe reencontrar o sentido seraacute pelo proacuteprio excesso da sua desenvoltura quando tendo introduzido toda sorte de noccedilotildees que para Descartes dependeriam do pensamento confuso ndash qualidade estrutura escalar solidariedade entre o observador e o observado ndash ele [de] suacutebito atinar com que natildeo se pode sumariamente falar de todos esses seres como de constructa (MERLEAU-PONTY 1975b p 100)
A partir destas consideraccedilotildees como concluiraacute Merleau-Ponty
podemos dizer que ldquonossa ciecircncia e nossa filosofia satildeo duas consequecircncias
fieis e infieacuteis do cartesianismo dois monstros nascidos do desmembramento
delerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 100) Pensando assim como poderiacuteamos
compreender o modo pelo qual especialmente a partir de Descartes a
ciecircncia claacutessica funda seus alicerces Como se daria essa relaccedilatildeo de
ldquofidelidaderdquo e de ldquoinfidelidaderdquo ao cartesianismo ou antes agrave ldquo[] dimensatildeo
do composto de alma e de corpo do mundo existente do Ser abismal a qual
Descartes abriu e logo fechourdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 100) A seguir
tentaremos responder a estas questotildees refletindo primeiramente o problema
da representaccedilatildeo em Descartes
86
22 Descartes e o problema da ldquorepresentaccedilatildeordquo o operacionalismo de Descartes e a intuitus mentis
De modo especial Merleau-Ponty reflete sobre a concepccedilatildeo
cartesiana de representaccedilatildeo ao tratar da Dioptrique Eacute difiacutecil natildeo reconhecer
a importacircncia que este livro tivera para o filoacutesofo uma vez que ele estaacute
presente seja nos primeiros trabalhos como em La Structure du
comportement seja nos uacuteltimos como em Lrsquoœil et lrsquoesprit nas Notes du cours
ou nas Notes du travail Partindo deste livro Merleau-Ponty procura esboccedilar
uma leitura de Descartes que natildeo se esmere como veremos no quarto
capiacutetulo segundo uma ldquoordem das razotildeesrdquo do mesmo modo que natildeo se trata
de uma simples criacutetica mas da procura do que seria tanto o ldquoimpensadordquo de
Descartes como tambeacutem o modo como o projeto cartesiano estaacute presente
nas ldquoruiacutenas de pensamentordquo em que sentia encontrar as relaccedilotildees
estabelecidas entre filosofia e ciecircncia entendidas como suas consequecircncias
ldquofieisrdquo e ldquoinfieacuteisrdquo Ora o que Merleau-Ponty vira na Dioptrique Se pensamos
em Lrsquoœil et lrsquoesprit encontrariacuteamos ali em primeiro lugar ldquo[] o breviaacuterio de
um pensamento que natildeo mais quer assediar o visiacutevel e decide reconstruiacute-lo
segundo o modelo que dele se proporcionardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p
94) O que isto significa Para Merleau-Ponty o objetivo principal da
Dioptrique eacute o de fabricar ldquooacutergatildeos artificiaisrdquo de desenvolver uma teacutecnica
mediante o pensamento pela qual seja possiacutevel manipular a luz logo o que
se espera eacute conhecer o funcionamento da visatildeo a fim de aperfeiccediloaacute-la Assim
sendo eacute interessante notar o modo como se daacute o tratamento da luz
deixando de ser o meio que podemos habitar para se tornar unicamente uma
accedilatildeo que se efetiva mediante o contato Descartes natildeo interroga a luz natildeo se
preocupa em saber ldquode que modo a luz esclarece iluminardquo natildeo se preocupa
com este fenocircmeno natildeo se preocupa com uma experiecircncia entendida como
Erfahrung (MERLEAU-PONTY 1996 p 176) lembrando-nos
irresistivelmente os hozontes abertos pela obra Erfahrung und Urteil um dos
livros de Husserl fundamentais para Merleau-Ponty
87
221 O operacionalismo cartesiano e a identificaccedilatildeo de lux e lumen
A nosso ver Merleau-Ponty nota no pensamento cartesiano a
presenccedila de uma espeacutecie de operacionalismo que contudo estaria limitado
pelas ldquocondiccedilotildees da intuitus mentisrdquo Aqui o filoacutesofo se refere ao
procedimento cartesiano de pensar por ldquomodelosrdquo em se limitar ao explicar
a luz em se servir de algumas comparaccedilotildees tal como seraacute o exemplo do
cego do recipiente cheio de uvas ou da bola cuja reflexatildeo de seus
movimentos iraacute depender da superfiacutecie onde for lanccedilada Eacute assim que a
intuitus mentis cartesiana reduz o fenocircmeno da luz ao operar uma
identificaccedilatildeo entre lux e lumen Contudo para entendermos a mudanccedila feita
por Descartes precisamos compreender qual seria a diferenccedila apontada por
Merleau-Ponty existente entre estes dois termos Primeiramente no que diz
respeito ao aspecto etimoloacutegico vale lembrar que em latim talvez originado
do grego antigo leukov lux indica a luz na condiccedilatildeo de ser uma forccedila em
atividade daiacute a luz do dia o amanhecer daiacute significar tambeacutem brilho
resplendor Se pensarmos que lux seja proveniente do verbo lūcĕŏ neste
caso indica tambeacutem o que se torna visiacutevel ldquoatraveacutes derdquo o que se deixa ver o
que rompe a escuridatildeo ou seja a proacutepria luz Em contrapartida lumen
indica um meio pelo qual algo se torna luminoso natildeo eacute propriamente a luz
mas uma fonte de luz daiacute durante a noite indicar a candeia ou a lacircmpada
que ilumina na pintura expressar a luz a claridade no discurso o
ornamento presente em um estilo que esclarece a fala em um edifiacutecio a
perspectiva que possibilita uma vista mais liacutempida em nosso corpo o olhar
a luz dos olhos Diacronicamente torna-se notoacuterio o fato de que lux seja a
forma mais arcaica mais antiga do que lumen aleacutem do fato de que na
vulgata o que encontramos eacute ldquoFiat luxrdquo ldquofaccedila-se a luzrdquo e natildeo ldquoFiat lumenrdquo
Em resumo etimologicamente lux seria especiacutefica e originariamente a luz
do dia ao passo que lumen poderia ser qualquer outra luz Todavia seria
esta a concepccedilatildeo presente na Idade Meacutedia a mesma que seria modificada
por Descartes
88
No que diz respeito ao imaginaacuterio medieval mesmo que natildeo haja
uma referecircncia a isto em Merleau-Ponty a nosso ver seraacute nos trabalhos de
Bernardino de Sena que encontraremos melhor explicitada a compreensatildeo
que se tinha destes termos latinos confirmando de certa forma o que nos
diz a etimologia Em alguns de seus sermotildees em sua Opera Omnia
encontramos algumas referecircncias a isto Bernardino de Sena apresenta
Cristo como uma ldquofonte de luzrdquo sendo seu corpo comparado ao ldquobrilho do
Solrdquo Assim de modo miacutestico encontramos em Cristo a nossa salvaccedilatildeo
[salutatio] iluminaccedilatildeo [illuminatio] prazer ou beatitude [jucundatio] os quais
podem ser reduzidos a ldquotrecircs atos hieraacuterquicosrdquo a saber expiaccedilatildeo [purgatio]
iluminaccedilatildeo [illuminatio] e perfeiccedilatildeo [perfectio] Por sua vez tais atos segundo
Bernardino podem ser equiparados aos seguintes atributos divinos
potecircncia [potentia] sapiecircncia [sapientia] e bondade [bonitas] Contudo eacute
mediante a lumen de Cristo que tais atos alcanccedilam a sua plenitude Ele eacute
uma lumen para a revelaccedilatildeo para a iluminaccedilatildeo dos povos56 Em que
sentido poreacutem podemos dizer que Cristo eacute luz para os povos que andavam
nas trevas Eacute neste momento que Bernardino sente a necessitade de
estabelecer a diferenccedila que procuramos explicitar
Disse-se poreacutem lumen no intuito de indicar a pessoa de Cristo Posto que haja uma diferenccedila entre lumen e lux lux estaacute propriamente na fonte do corpo glorioso ao passo que lumen estaacute na transparecircncia diaacutefana da claridade da lumen que assim como o ar eacute receptiva Por conseguinte a divindade eacute lux em sua substacircncia Ele revela as profundezas e os segredos ele conhece o que estaacute nas trevas e junto dele habita a luz [Ipse revelat profunda O abscondita novit in tenebra constituta O lux cum eo est] (Dn 2 22) Lumen pois estaacute na natureza humana acerca da qual diz o Profeta Em tua luz
56 ldquoIn quo myſtitice demonſtratur quod ab ipſo amp in ipſo amp per ipſum eſt noſtra ſalutatio illuminatio jucundatio ſeu beatitudo amp poſſunt haeligc reduci ad trs actus Jerarchicos qui ſunt purgatio illuminatio amp perfectio vel ad tria Deo attributa ſcilicet potentiam ſapientiam amp bonitatem Comparat etiam eum ſecundum tria praeligfata nomina ad totam univerſitatem humani generis ſic tamen quod ut oſtendat ibi eſſe unitatem cum diſtinctionem primo ponit unite totam univerſitatem hominum cui quantum eſt ex parte Chriſti eſt generalis ſua ſalus ſeu ſalutifera gratia amp Judaeligos amp hoc cum quadam diſtincta correſpondentia ſecundi amp tertii nominis Christi ſcilicet luminis amp gloriaelig appropians gentibus lumen amp gloriam Iſraeli Ut autem haeligc diſtinctio ab unitate Chriſti non recedat duos effectus ſeu duas derivationes amp partipationes adſcribit lumini ſcilicet illuminationem amp gloriam ſeu glorificationem Unde dicit Christum eſſe lumen ad revelationem id est ad illuminationem gentium O gloriam id eſt glorificationem plebis ſuaelig Iſraelrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)
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veremos a luz [In lumine tuo videbimus lumen] (Sl 3610) e em outro lugar Lacircmpada para os meus peacutes eacute a tua palavra [Lucerna pedibus meis verbum tuum] (Sl 119 105) isto eacute teu filho (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)57
Pelo que notamos na figura de Cristo a luz adquire uma dupla
face Na condiccedilatildeo de divindade a luz apresenta-se como lux ou seja a
divindade tal como eacute em sua substantia Jaacute em sua encarnaccedilatildeo o que vemos
eacute sua condiccedilatildeo de lumen posto que se trata neste caso da divindade que se
revestira da natureza humana Haacute o jogo pelo qual como Deus Cristo eacute lux
eacute uma fonte de luz e como homem eacute lumen eacute um meio pelo qual a luz
manifesta o seu brilho A partir disto eacute interessante notar o que se pensa
acerca do humano Como vimos anteriormente a identificaccedilatildeo dos ldquoatos
hieraacuterquicosrdquo presentes no gecircnero humano com os atributos de Deus nos
revelava na verdade os seguintes pares intrinsicamente equivalentes
potentia-purgatio sapientia-illuminatio bonitas-perfectio Haacute pois uma
equiparaccedilatildeo de sabedoria e iluminaccedilatildeo o que nos manifesta tambeacutem sobre
a natureza humana aquilo que se torna uma das teses de Bernardino talis
enim illustratio proprie revelatio nominatur ou seja ldquotal ilustraccedilatildeo poreacutem
nomeia-se propriamente revelaccedilatildeordquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)
Eacute mediante a lumen de Cristo em sua revelaccedilatildeo que podemos alcanccedilar a
nossa lumen a luz da sapiecircncia e portanto a iluminaccedilatildeo Sem esta lumen
que eacute reflexo da lux divina temos uma visatildeo in aelignigmate uma visatildeo
confusa58 A revelaccedilatildeo cumpre a tarefa de uma vez convertida a nossa
57 ldquoDicitur autem lumen ut incarnata perſona denotetur Differentia quippe eſt inter lucem amp lumen lux proprie eſt in fonte corporis gloriſi lumen vero eſt claritatis in perſpicuo diaphano luminis receptivo ut aeligre Divinitas ergo eſt lux in ſubſtantia ſua Dan 2 cap Ipſe revelat profunda O abſcondita novit in tenebris conſtituta O lux cum eo eſt Lumen vero eſt in humana natura de quo Propheta inquit Pſ 118 In lumine tuo videbimus lumen amp alibi Lucerna pedibus meis verbum tuum id eſt filius tuusrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116) 58 ldquoProinde 2 Cor 13 cap loquens gentibus jam cretendibus Apoſt ait Nos vero omnes revelata facie gloriam Domini ſpeculantes in eandem imaginem transformamur a claritate in claritatem tanquam a Dei ſpiritu quaſi dicat Judaeligi adhuc velamen ſuper oculos habent nos vero credentes revelata facie id eſt expedita mente remoto velamine Dei gloriam ſpeculantes intraſitive id eſt Deum glorioſum ſpeculantes quia videmus nunc per ſpeculum in aelignigmate ut dicitur I Cor 13 in eadem imaginem ſcilicet divinam quam ſpeculamur id eſt Dei conformitatem transformamur ſcilicet a forma ignorante in formam lucidam veritatis Nos dico euntes in claritatem juſtificationis a claritate Moyſi in claritatem
90
imagem da divindade sermos capazes de uma transformaccedilatildeo que parta da
claridade (lumen) em direccedilatildeo agrave claridade (lux) uma transformaccedilatildeo que parta
de uma forma ignorante para uma forma luacutecida da verdade a forma
ignorante in formam lucidam veritatis
Todavia trata-se de um movimento que natildeo depende apenas de
nossa natureza como diraacute Bernardino pois tal eacute proferido ldquopara que se
mostre que [esta iluminaccedilatildeo] natildeo parte da natureza [ex natura] nem da
diacutevida [ex debito] nem das coisas naturais [de naturalibus] mas do
sobrenatural [ex supernaturali] e das coisas sobrenaturais [ex
supernaturalibus]rdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116-117)59 E
o que acontece neste processo Justamente a explicitaccedilatildeo de que sem a
revelaccedilatildeo ldquoos povos natildeo soacute eram natildeo videntes desta lumen mas tambeacutem
eram natildeo vistos ou desconhecidosrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745
p 116-117) Por conseguinte este processo de iluminaccedilatildeo faz com que
sejamos iluminados e logo capazes de ver como tambeacutem capazes de nos
ver de sermos vistos (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 117)60 o
que nos reforccedila ainda mais aquilo que seria a sua teoria da luz fundada na
distinccedilatildeo entre lux e lumen
Daiacute que segundo Avicena no livro seis acerca das coisas naturais lux color e lumen sejam coisas distintas A cor com efeito delimita a coisa vista e natildeo se encontra encerrada em nenhum corpo Jaacute a lux estaacute no Sol e a lumen no meio como algo transparente e esta claridade parece ser suficiente porque mais se deleita os sentidos do homem na bela cor do corpo humano do que no corpo luminoso daiacute mais naturalmente se deleita vendo a face humana muito bem colorida do que o Sol (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 298)61
Chriſti tanquam a Dei ſpiritu ſcilicet ductirdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116) 59 ldquoAdvertendum eſt etiam quod iluminationem gentium vocat revelationem eorum Et hoc ex triplici cauſſa Primo ſcilicet ut innuat quod non ex naturali eſt neque ex debito neque de naturalibus ſed ex ſupernaturali amp ſupernaturalibusrdquo 60 ldquo[] gentes non ſolum erant non videntes hoc lumen ſed etiam erant invisaelig ſeu incognitaelig Dei notitiaelig amativaeligReputabantur enim ut nihil nec a Deo amp ſuis cognoſci poterant ut populus Dei aut exiſtens in numero fidelium ejus Et ideo revelandi erant id eſt de tenebroſo amp carnali ſtatu in lucem adducendi Et ſic illuminarentur non ſolum ad videre ſed etiam ad viderirdquo 61 ldquoUnde ſecundum Avicennam 6 naturalium iſta tria diſtincta ſunt lux color amp lumen Color enim terminat viſum amp nunquam niſi in corpore terminato lux eſt in ſole amp nunquam in medio ut in perſpicuo amp iſta claritas ſufficere videtur quia magis delectant ſenſus viſus
91
Em razatildeo disto Bernardino vecirc uma relaccedilatildeo entre a claridade da
beatitude da alma e o que seria a claridade do ldquocorpo gloriosordquo dos bem-
aventurados A alma poderia ser comparada pois agraves estrelas ou agrave lua que
natildeo tendo lux em si mesmas refletiriam a luz do Sol Do mesmo modo a
alma refletiria a lux de Cristo e a refletiria mediante a sua lumen (SANCTI
BERNARDINI SENENSIS 1745 p 303)62 Nisto encontramos pois uma
concepccedilatildeo da natureza humana mediante a metaacutefora da luz mediante os
jogos de lux e lumen Haacute portanto nesta natureza uma transparecircncia que
possibilita nela a repercussatildeo da lux Por sua vez sendo a cor densa e
consequentemente possiacutevel apenas em um corpo finito o ldquocorpo gloriosordquo
dos bem-aventurados diferemente da divindade eacute visto como ldquoluacutecidordquo e
ldquocoloridordquo ao inveacutes de ldquoluacutecidordquo e ldquoluminosordquo portanto detentores de lumen e
color e natildeo de lumen e lux Mas o que nos interessa nestas ideias o que nos
levou a esta digressatildeo A nosso ver a explicitaccedilatildeo de um certo modo de
pensar que a partir do mundo claacutessico tem sua configuraccedilatildeo transformada
E eacute justamente esta mudanccedila que nos parece ser o que nos diz Merleau-
Ponty ao notar em Descartes a partir de uma intuitus mentis ndash que acaba
sendo tambeacutem uma espeacutecie de visatildeo ndash o que seria uma reduccedilatildeo do
fenocircmeno da luz o esquecimento de uma luz que tambeacutem habitamos que
espera de noacutes uma abertura e pela qual a coisa se faz ver logo a reduccedilatildeo agrave
sua simultaneidade instantaneidade e capacidade de ser assimilada pelo
soacutelido Em outras palavras a conversatildeo da lumen em lux contiacutenua sem
transcendecircncia e despojada de sua distacircncia Vejamos o que nos diz a
Dioptrique a este respeito
hominis in colore pulchro humani corporis quam in corpore luminoſo unde amplius naturaliter delectatur in videndo faciem humanam optime coloratam quando ſolemrdquo 62 ldquoErit claritas corporum differens ſecundum differentiam gloriaelig animarum Quod quidem rationabile eſt nam ex claritate beatitudines animaelig in corpus claritas redundabit ſicut jam dictum eſt Propterea ſecundum proportionem qua beatitudo Animaelig Christi excedit cujuslibet Animaelig alterius beatitudinem ſic amp lux Corporis Chriſti claritati futuram in quocunque Sancto ſuperat amp excedit Unde in praeligdicto Apoſtoli verbo claritas Corporis Chriſti claritati ſolari aſſimilatur juxta illum Malach 4 Vobis timentibus nomen meum orietur Sol juſstitiaelig id est Christus Claritas vero Virginis glorioſaelig ſecundum quoſdam comparatur lunaelig Compari etiam poteſt ipſi lunaelig claritas puerorum qui poſt baptiſmum moriuntur antequam perviniant ad annos diſcretionis Nam ſicut luna a ſeipſa non habet lumen ſed ab ipſo ſole ſic amp iſti gloriam minime habent ex propriis meritis ſed ex meacuterito Christi Baptiſmus enim in quo ipſi abluti ſunt ex Christi paſſione efficiam habetrdquo
92
Ora natildeo tendo aqui outra ocasiatildeo de falar da luz [luce vel lumine] senatildeo para explicar como seus raios entram no olho e como eles podem ser desviados pelos diversos corpos que eles encontram natildeo eacute preciso que eu tente dizer qual eacute verdadeiramente a sua natureza e eu acredito que seraacute suficiente que eu me sirva de duas ou trecircs comparaccedilotildees que ajudam a conceber no modo que me parece mais cocircmodo para explicar todas as de suas propriedades que a experiecircncia nos fez conhecer e para deduzir em seguida todas as outras que natildeo podem tatildeo facilmente ser notadas Imitando nisto os astrocircnomos que embora suas suposiccedilotildees sejam quase todas falsas ou incertas entretanto porque elas se referem a diversas observaccedilotildees que satildeo feitas natildeo deixam de tirar delas vaacuterias consequecircncias muito verdadeiras e muito asseguradas (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83)63
Para Descartes falar da lux eacute o mesmo que falar da lumen natildeo
haacute distinccedilatildeo afinal eacute suficiente conceber a natureza da luz tendo por
referecircncia as suas propriedades inteligiacuteveis assimiladas pelo intelecto64
Como diraacute Merleau-Ponty (1996 p 40) ldquoa Dioptrique [eacute] pensada por
modelos construiacutedos e natildeo por docilidade aos fenocircmenos por exemplo a luz
[eacute] definida por contato ndash Eacute o verdadeiro e o falso para noacutes que importamrdquo
logo o que unicamente importa eacute a transmissatildeo do movimento pois nada haacute
de mais sensiacutevel (nihil magis sensibile) (MERLEAU-PONTY 1996 p 40) Eacute a
partir disso que se desenharaacute o itineraacuterio que o filoacutesofo se propotildee neste
texto ldquoexplicar a luz e seus raiosrdquo ldquodizer como funciona a visatildeo a partir de
uma breve descriccedilatildeo das partes do olhordquo ldquodescrever as invenccedilotildees que satildeo
capazes de aperfeiccediloar a visatildeordquo e por fim ldquoensinar como eacute possiacutevel ampliar a
visatildeo por meio do uso destas mesmas invenccedilotildeesrdquo65 Abandonando tanto a
experiecircncia vivida da luz como se manifesta e se expressa de modo notoacuterio
63 ldquoHicircc autem de luce vel lumine loquendi cugravem aliam causam non habeam quagravem ut explicem quo pacto ejus radii oculos intrent et occursu variorum corporum flecti possint non necesse erit inquirere quaelignam genuina sit ejus natura sed duas aut tres comparationes hicircc afferam quas sufficere arbitror ut juvent ad illam concipiendam eo modo qui omnium commodissimus est ad ejus pro- | prietates quas jam experientia docuit explicandas et ex consequenti etiam ad alias omnes quaelig non ita facilegrave usu notantur detegendas Non aliter quam in Astronomia ex hypothesibus etiam falsis et incertis modograve iis omnibus quaelig in coelo observantur accurategrave congruant multaelig conclusiones circa ea quaelig non observata sunt verissimaelig et certissimaelig deduci solentrdquo 64 ldquoSufficere naturam luminis concipere ad omnes ejus proprietates intelligendumrdquo (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83) 65 ldquoQuapropter exordiar agrave lucis ejusque radiorum explicatione postea partibus oculi breviter descriptis qua ratione visio fiat accurategrave exponam tandemque notatis iis omnibus quaelig ad illam perficiendam licet optare quibus artificiis ea ipsa possint praestari docebordquo (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83)
93
na explicaccedilatildeo religiosa de Bernardino Descartes se fundamenta em
primeiro lugar no que que haacute de evidente segundo a razatildeo na observaccedilatildeo
do experimentum Daiacute encontrarmos no pensamento cartesiano como
modelo da visatildeo o tato uma vez que a luz encontraria o olhar assim como a
bengala do cego toca as coisas que encontra pelo caminho sendo a essecircncia
da visatildeo equiparada e reduzida ao que ele poderia apreender com sua
bengala Por conseguinte encontramos a desaprovaccedilatildeo de Merleau-Ponty
pois compreender a visatildeo por essa via equivaleria a eliminaacute-la Assim em
Descartes constata o filoacutesofo ldquodas coisas aos olhos e dos olhos agrave visatildeo nada
ocorre para aleacutem do que vai das coisas agraves matildeos do cego e das suas matildeos ao
seu pensamentordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ora ldquoa visatildeo natildeo eacute a
metamorfose das coisas mesmas na sua visatildeo [vista] a dupla pertenccedila das
coisas ao grande mundo [koinov kosmov] e a um pequeno mundo privado [i1diov
kosmov]rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ouccedilamos a Dioptrique
Provavelmente jaacute lhe aconteceu alguma vez andando durante a noite sem uma tocha por lugares um pouco difiacuteceis ser necessaacuterio usar um bastatildeo para conduzi-lo e deu-se conta entatildeo de que sentia por meio deste bastatildeo os diversos objetos que se encontravam ao seu redor e inclusive vocecirc pocircde distinguir se havia aacutervores ou pedras ou areia ou aacutegua ou erva ou madeira ou qualquer outra coisa semelhante Eacute verdade que este tipo de sentimento eacute um pouco confuso e obscuro naqueles que natildeo fizeram um longo uso dele mas considere-o naqueles que sendo cegos de nascenccedila serviram-se dele a vida toda e vocecirc o encontraraacute tatildeo perfeito e tatildeo exato nele que se poderia dizer que eles vecircem por meio das matildeos ou que o seu bastatildeo eacute o oacutergatildeo de algum sexto sentido que lhes foi dado na falta da visatildeo E para tirar uma comparaccedilatildeo disso eu gostaria que vocecirc pensasse que a luz natildeo eacute outra coisa nos corpos que se chamam luminosos senatildeo um certo movimento ou uma accedilatildeo muita raacutepida e muita viva que passa para os nossos olhos por intermeacutedio do ar e de outros corpos transparentes do mesmo modo que o movimento ou a resistecircncia dos corpos que aquele cego encontra passa para a sua matildeo por intermeacutedio de seu bastatildeo (DESCARTES 2007 p 154-155 1996ap 83-84)66
66 ldquoNemo nostrum est cui non evenerit aliquando ambulanti noctu sine funali per loca spera et impedita ut baculo usus sit ad regenda vestigia et tunc notare potuimus | per baculum intermedium nos diversa corpora sentire quaelig circumcirca occurrebant Itidem nos dignoscere num adesset arbor vel lapis vel arena vel aqua vel herba vel lutum vel simile quiddam Fatendum quidem hoc sentiendi genus obscurum et satis confusum esse in iis qui non longo usu edocti sunt sed consideremus illud in iis qui cugravem caeligci nati sint toto vitaelig tempore debuerunt eo uti et adeograve perfectum consummatumque inveniemus ut dicere possimus illos quodammodo manibus cernere aut scipionem tanquam sexti cujuspiam sensus organum iis datum ad defectum visus supplendumrdquo
94
Descartes potildee a visatildeo fora de si mesma ateacute parecer anulaacute-la
Ante a questatildeo de saber de que maneira as imagens formadas em nosso
ceacuterebro podem dar meio agrave alma para sentir as diversas qualidades dos
objetos com os quais se relacionam e natildeo o ponto que tecircm em si de
semelhanccedila a experiecircncia do cego fornece a resposta Qual a razatildeo O que
leva o cego a se tornar o modelo cartesiano da visatildeo Segundo Quinet
compreendemos melhor o modelo cartesiano de visatildeo com a compreensatildeo
que se estabelece especialmente a partir de Kepler do olho como um
dispositivo oacutetico e portanto ldquo[] conforme o princiacutepio dos aparelhos
fotograacuteficos uma cacircmera escura com uma abertura a pupila um diafragma
a iacuteris uma objetiva convergente o cristalino e a tela onde se forma a
imagem a retinardquo (QUINET 2002 p 27) Natildeo haacute mais um olho que vecirc mas
o que se torna o foco do interesse eacute a garantia dada pelas condiccedilotildees
geomeacutetricas que possitibilitam na retina a formaccedilatildeo de uma imagem uma
vez que ldquocom o surgimento da ciecircncia da luz e o impeacuterio da evidecircncia
inaugurado por Descartes o misteacuterio do olho desaparece para dar lugar agrave
fiacutesica da visatildeo que cria um espaccedilo matemaacutetico feito para quem natildeo vecircrdquo
(Ibidem) Para Quinet a Dioptrique seria justamente conduzida por estas
questotildees Nela o que encontramos eacute sobretudo um ldquoolharrdquo construiacutedo que
assim como o telescoacutepio precisa romper com os equiacutevocos da experiecircncia e
nos mostrar o mundo em sua transparecircncia Deste modo natildeo podemos nos
enganar com o modo elogioso com que Descartes inicia o seu primeiro
discurso ao falar que ldquotoda a conduta de nossa vida depende de nossos
sentidosrdquo (Totius vitaelig nostraelig regimen agrave sensibus pendet) ldquosendo o sentido
da visatildeo o mais nobre e mais universal (quorum cugravem visus sit nobilissimus et
latissimegrave patens) (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 81) Logo a seguir o
seu desmerecimento eacute manifesto no entanto ldquonatildeo haacute duacutevida de que as
invenccedilotildees que servem para aumentar o seu poder sejam as mais uacuteteis que
possam existirrdquo (non dubium est quin utilissima sint inventa quaelig vim illius
augere queunt) Eacute assim que a luneta o perspicillium torna-se para o
filoacutesofo o modelo da visatildeo
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E eacute difiacutecil encontrar alguma que a aumente mais do que a destas maravilhosas lunetas que estando em uso apenas haacute pouco tempo jaacute nos descobriu novos astros no ceacuteu e outros novos objetos sobre a terra em maior nuacutemero do que satildeo os que antes tiacutenhamos visto ali de modo que levam nossa visatildeo muito mais longe do que tinha o costume de ir a imaginaccedilatildeo de nossos pais elas parecem nos ter aberto o caminho para chegar a um conhecimento da Natureza
muito maior e mais perfeito do que eles tiveram (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 81)67
O direcionamento cartesiano agrave invenccedilatildeo da luneta se justifica
de modo especial na relaccedilatildeo que estabelece Quinet entre existecircncia e visatildeo
ao nos dizer que ldquopor intermeacutedio das descobertas cientiacuteficas novos objetos
se tornam existentes porque passam a ser visiacuteveis A capacidade da visatildeo se
amplia sua extensatildeo quase jaacute natildeo conhece mais limites O olho nu eacute mais
nada em comparaccedilatildeo com essas maravilhosas lentesrdquo (QUINET 2002 p 29)
Deste modo ldquo[] o olho natildeo possui mais a accedilatildeo do ato de ver porque lsquoesses
objetos devem ser luminosos ou iluminados para serem vistos e natildeo
precisam de nossos olhos para vecirc-losrsquo A accedilatildeo natildeo eacute mais do olho e sim da
luzrdquo (QUINET 2002 p 29) Eacute neste sentido que a nosso ver Merleau-Ponty
entende o exemplo do cego principalmente tendo em vista a intenccedilatildeo
cartesiana em legitimar a tese da propagaccedilatildeo instantacircnea da luz Em outros
termos para Merleau-Ponty invocar a experiecircncia do cego permite
simultaneamente a Descartes despachar a visatildeo efetiva e fazer a economia
de uma demonstraccedilatildeo pois eacute no interior que nos convida a fazer a prova
Deste modo a cor natildeo eacute outra coisa ldquo[] nos corpos que chamamos
coloridos senatildeo os diversos modos com os quais estes corpos a recebem e a
remetem contra nossos olhosrdquo (DESCARTES 2007 p 154-155 1996a p
83-84) Eacute assim que a cor ao contraacuterio do que encontramos em Avicena e
Bernardino uma vez ocorrida a identificaccedilatildeo entre lumen e lux perde o seu
status torna-se meramente um reflexo semelhante a que o cego nota por
meio de seu bastatildeo sendo as diferenccedilas entre as cores semelhante aos
67 ldquoEt quidem difficile est ullum excogitare quod magis juvet quagravem miranda illa specilla quaelig brevi tempore quo cognita sunt jam in coelo nova sidera et in terra nova alia corpora numerosiora iis quaelig antea visa fuerant detexere Adeograve ut promota luminis nostri acie ultra terminos quibus imaginatio majorum sistebatur viam simul nobis videantur peruisse ad majorem et magis absolutam naturaelig cognitionemrdquo
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diversos modos como este mesmo bastatildeo pode se mover A cor se torna
como em Galileu uma qualidade secundaacuteria e no caso do pensamento
cartesiano enganosa visto que ldquo[] no que diz respeito agrave imaginar a
distacircncia pelo tamanho ou pela forma ou pela cor ou pela luz aiacute estatildeo os
quadros em perspectiva para mostrar como eacute faacutecil se enganarrdquo (DESCARTES
1996a p 229) atitude que conforme veremos mais adiante seraacute criticada
por Merleau-Ponty Quanto agrave luz por sua vez vale lembrar o modo como
Descartes inicia o seu Traiteacute de la Lumiegravere
Propondo-me aqui a tratar da luz quero adverti-los em primeiro lugar que pode existir alguma diferenccedila entre o sentimento que temos dela ndash quer dizer a ideia que se forma em nossa imaginaccedilatildeo pela mediaccedilatildeo de nossos olhos ndash e o que existe nos objetos que produz em noacutes este sentimento ndash quer dizer o que haacute na chama ou no sol que se diz com o nome da luz [lumen] ndash Com efeito ainda que cada um normalmente se persuada de que as ideias que temos em nosso pensamento sejam inteiramente semelhantes aos objetos de que procedem natildeo vejo nenhuma razatildeo que nos assegure que seja assim mas pelo contraacuterio observo muitas experiecircncias que devem nos fazer duvidar disto (DESCARTES 1824b p 265 1824c p 14)68
No entanto teriam tais consideraccedilotildees sido resultado da
descoberta das lunetas Se pensarmos em Merleau-Ponty especialmente
como leitor de Koyreacute parece-nos que natildeo Ao menos eacute o que nos insinua o
filoacutesofo ao tratar da Natureza ldquonatildeo foram as descobertas cientiacuteficas que
provocaram a mudanccedila da ideia de Natureza Foi a mudanccedila da ideia de
Natureza que permitiu essas descobertasrdquo (M Merleau-Ponty 2000a p 10)
Ora se pensamos no olhar e no modelo do cego o que justificaria o
procedimento cartesiano Quanto a isto parece-nos que Lebrun nos daacute
algumas pistas No que diz respeito agrave figura do cego ou conforme Lebrun o
ldquomito do cegordquo podemos compreendecirc-la melhor quando a contrapomos com
68 ldquoCum in animum induxerim hic de Lumine agere in anteceſſum monitum velim differentiam obſervari poſſe inter perceptionem ſenſus quaelig in nobis datur hoc eſt inter ideam quaelig intervenientibus oculis in noſtracirc imaginatione formatur amp inter id quod eſt in objecto hanc ſenſus perceptionem in nobis efficiente ſive quod in flamma aut Sole Lumen dici ſolet Quamvis enim unusquisque ſibi vulgo perſuadeat quas in mente noſtra habemus ideas per omnia eſſe ſimles objectis agrave quibus proveniunt nullam tamen omnino rationem viacutedeo quaelig veritatem ejus evincat ſed multa e contrario experimenta occurrunt quaelig nos hac de re duacutebios redduntrdquo
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o modo pelo qual o seacuteculo XVIII iraacute entendecirc-la Para Lebrun este mito
assim como visto por este seacuteculo poderia se inserir dentre os diversos
direcionamentos para o que constitui a figura do ldquooutrordquo ou melhor ldquoa visatildeo
pelos olhos do outrordquo (LEBRUN 2006b p 53)69 Deste modo ldquo[] a
confrontaccedilatildeo com o Outro tem o efeito de me fazer duvidar do ponto de vista
universal em que me instalarardquo (LEBRUN 2006b p 54) No que se refere ao
cego
Por conseguinte natildeo se trata mais da desconfianccedila em relaccedilatildeo aos sentidos tema favorito dos autores do seacuteculo XVII Trata-se ao contraacuterio de saber em que medida podemos criticar em nome da Razatildeo as ilusotildees da visatildeo Sabemos somente ateacute onde elas se estendem mas seraacute que natildeo nos tornamos seus prisioneiros inconscientes justamente no momento em que as denunciamos Temos consciecircncia disso mas seraacute que podemos medir em sua amplitude a importacircncia de tal fato Haveria apenas um meio de responder com certeza a essa pergunta ndash interromper totalmente nosso comeacutercio com o visiacutevel tornando-nos cegos de nascenccedila Como essa experiecircncia eacute impossiacutevel pediremos ao cego de nascenccedila que nos descreva essa noite que para ele natildeo eacute uma noite que acima de tudo nos diga como imagina o visiacutevel que nos responda agrave pergunta ldquoO que eacute ver Como se pode verrdquo (LEBRUN 2006b p 55-56)
Eacute assim que para Lebrun natildeo haveria na Lettres sur les
aveugles de Diderot o ldquoanuacutencio da psicologia cientiacuteficardquo mas ldquoa
fenomenologia da percepccedilatildeordquo ldquoaquele meacutetodo que consiste em recuar o
maacuteximo em relaccedilatildeo ao ato perceptivo em atribuir ao mundo cotidiano o
maacuteximo de estranheza para por meio dessa desrealizaccedilatildeo fictiacutecia tornar a
apreender a essecircncia da coisa percebida enquanto percebidardquo (LEBRUN
2006b p 57)70 Na Dioptrique encontramos pois um anuacutencio da psicologia
69 ldquoHaacute na literatura francesa e inglesa do seacuteculo XVIII um tema constante que se poderia chamar lsquoa visatildeo pelos olhos do outrorsquo Nas Cartas persas Montesquieu nos mostra a sociedade da Regecircncia pelos olhos de um persa e agrave pergunta friacutevola dos parisienses lsquoComo se pode ser persarsquo opotildee a pergunta lsquoComo se pode ser parisiensersquo Mais tarde eacute Voltaire quem leva um iroquecircs fictiacutecio para passear na corte de Versalhes fazendo-o descrever ingenuamente cerimocircnias que para ele natildeo tecircm sentido algum como por exemplo uma missa que se reduz a gestos mecacircnicos Eacute que sob os olhos do lsquobom selvagemrsquo nossas instituiccedilotildees se transformam em ritos burlescosrdquo 70 Deste modo para Lebrun ldquoantes de ser para Hegel o mundo destituiacutedo a filosofia foi para a Aufklaumlrung uma maneira de se tornar cego olhando o mundo visiacutevelrdquo (2006b p 61) Deste modo ldquoo mito do cego permitiu ao filoacutesofo reduzir nosso mundo a uma tecircnue aparecircncia mas dessa aparecircncia ele natildeo conseguiu se afastar tatildeo radicalmente como lhe recomendava o
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cientiacutefica e seus princiacutepios os mesmos que no seacuteculo XVIII no caso de
Diderot seraacute posto em questatildeo haja vista que caso fosse operado ao se
iniciar em um novo campo sensorial o cego jaacute traria consigo a experiecircncia
do tato bastando-lhe ldquo[] uma inspeccedilatildeo refletida para fazer com que os
testemunhos dos dois sentidos correspondessem um ao outrordquo (LEBRUN
2006b p 58) pois
A questatildeo por conseguinte natildeo eacute de modo algum a de saber como o cego vai traduzir o mundo visiacutevel tanto para o receacutem-nascido como para o cego operado o espaccedilo jamais eacute o resultado de uma traduccedilatildeo ndash mesmo na infacircncia da visatildeo ver eacute uma coisa muito diferente de consultar um leacutexico Natildeo se tem o direito de fazer do cego operado o modelo do aprendiz da visatildeo de procurar no niacutevel do patoloacutegico a verdade da percepccedilatildeo visual o cego soacute veraacute realmente quando deixar de relacionar o espaccedilo a suas coordenadas musculares e taacuteteis quando esquecendo que foi cego puder mover-se com desembaraccedilo e sem espanto no vazio movediccedilo que se cava a sua volta (LEBRUN 2006b p 59-60)
Pensando nestas questotildees encontramos em Lebrun a indicaccedilatildeo
da inversatildeo que procuraacutevamos na mudanccedila que iraacute se estabelecer na
compreensatildeo que o seacuteculo XVII teraacute da visatildeo seja em relaccedilatildeo ao mundo
medieval seja em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII No que diz respeito ao ldquocego da
Aufklaumlrungrdquo ldquochegar a ver eacute portanto passar da noite do saber conceptual
ao pleno dia da ilusatildeo refazer em sentido inverso o caminho platocircnico da
caverna ao Sol inteligiacutevelrdquo (LEBRUN 2006b p 62) Se for antes uma
mudanccedila de concepccedilatildeo que possibilita o experimento cientiacutefico e natildeo o
contraacuterio que mudanccedila ocorrera no seacuteculo XVII que levaria a fazer da luneta
uma referecircncia para a visatildeo De acordo com Lebrun no que se refere agrave
visatildeo encontramos o engendramento de duas questotildees distintas pois
Natildeo eacute por acaso que o seacuteculo XVIII indaga ldquoComo aprendemos a ver Como deixamos de ser cegosrdquo quando o leitmotiv das Meditaccedilotildees de Descartes era ldquoComo desaprender a ver Como deixar de sentir-se ofuscadordquo [] Entre a denuacutencia pura e simples da ilusatildeo da vista efetuada pelo racionalismo nesse breve momento em que diante dos olhos entreabertos de um jovem cego se esboccedila um novo mundo a
racionalismo do seacuteculo anterior O ponto de vista do cego eacute o despojado olhar do entendimento ndash ou mesmo o equivalente dessa ascese artificial que os gestatilstas denominaratildeo visatildeo reduzida e que consiste por exemplo em olhar um objeto sombreado fora de seu contexto lumino de sorte que ele nos pareccedila objetivamente escurordquo (LEBRUN 2006b p 65)
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psicologia nasce e o estudo da visatildeo humana desliga-se da oacutetica a que a havia relegado a Dioacuteptrica de Descartes Daiacute em diante a filosofia natildeo mais se contentaraacute em diluir a aparecircncia na subjetividade e na desrazatildeo (LEBRUN 2006b p 62)
Ora o que gera pois o direcionamento ao que o cego e as
lunetas podem nos ensinar sobre a visatildeo no seacuteculo XVII eacute o ensejo de
romper com o que se consideraria o ofuscamento do olhar gerado pelos
sentidos Eacute por esta razatildeo que ldquocom o surgimento do cogito cartesiano o
olho da razatildeo adquire a certeza As ideias constituiacutedas como matemas satildeo
acessiacuteveis ao homem bem-pensante a partir de sua razatildeordquo (QUINET 2002 p
27) Assim sendo pelo que podemos notar natildeo se tem mais como vimos em
Bernardino de Sena a ideia de um Deus-Sol de uma lux divina que
cumpriria a tarefa de iluminar a razatildeo humana semelhante ao que era em
Platatildeo o Bem-Sol Pelo contraacuterio seraacute a proacutepria razatildeo que cumpriraacute a tarefa
de iluminar as ideias Eacute assim que ganha sentido a articulaccedilatildeo de uma
ciecircncia da visatildeo principalmente quando se tem em vista o caraacuteter enganador
dos sentidos A compreensatildeo do olhar natildeo se daacute mais mediante uma
vivecircncia do mundo mas nos limites do saber cientiacutefico nos horizontes de
uma ldquofisiologia da visatildeordquo e de uma ldquoteoria fiacutesico-matemaacuteticardquo Sem deixar
contudo de estar associado ao saber ldquoo olho seraacute entatildeo ligado a res cogitans
onde o eu do cogito cartesiano eacute doravante instrumentalizado porque possui
uma visatildeo instrumentalizadardquo (QUINET 2002 p 28) Poreacutem o mais curioso
eacute notar que apesar disso em razatildeo do Cogito paradoxalmente o olhar deixa
de pertencer ao campo visual
Por um lado a percepccedilatildeo visual seraacute dividida em trecircs ordens fiacutesica (a partir do oacutetico) neuroloacutegica (a transmissatildeo nervosa da retina para o ceacuterebro) e mental (a representaccedilatildeo do objeto que provoca o fenocircmeno da visatildeo) O espaccedilo apesar de descrito em funccedilatildeo da vista natildeo eacute visual propriamente dito Trata-se do espaccedilo geomeacutetrico que um cego pode ldquoverrdquo Por outro lado em suas meditaccedilotildees o homem que seguir as regras da direccedilatildeo do espiacuterito alcanccedilaraacute a certeza das coisas como Descartes com as suas E assim teraacute necessidade de ver pelo contraacuterio pois a visatildeo engana A ordem do visiacutevel eacute excluiacuteda e ao mesmo tempo tudo se torna ldquovisiacutevelrdquo pela razatildeo O pensamento eacute cego e no entanto ldquovecircrdquo Na nova divisatildeo entre subjetivo e objetivo do sujeito e do objeto da res cogitans e da res extensa natildeo haacute lugar para o olhar (QUINET 2002 p 28)
100
Logo ldquoesclarecerrdquo [lux] conforme o seacuteculo XVII natildeo eacute o mesmo
que ldquoser iluminadordquo [lumen] ao menos como se entendia na Idade Meacutedia Por
conseguinte ao identificar lux e lumen Descartes parte de uma concepccedilatildeo
diferenciada da luz que o permite ao mesmo tempo trataacute-la mediante a
fiacutesica [Traiteacute de la Lumiegravere] ndash e uma fiacutesica pautada pelos ditames da
geometria ndash como tambeacutem situaacute-la no centro de sua metafiacutesica [La
Recherche de la veacuteriteacute par la lumiegravere naturelle]
222 A intuitus mentis e o positivismo da visatildeo
Tendo por referecircncia uma cuidadosa leitura das Regulaelig
Merleau-Ponty iraacute notar o que seria o modo pelo qual Descartes a partir de
um ldquopositivismo da visatildeordquo iraacute modificar a concepccedilatildeo que ateacute entatildeo se tinha
de ldquointuiccedilatildeordquo deixando de ser como no mundo medieval uma ldquovisatildeo
beatiacuteficardquo para se tornar o instrumento da razatildeo a intuitus mentis A
novidade de Descartes da qual ele era consciente estaria justamente em
fazer essa passagem daiacute a sua advertecircncia para que o novo uso da palavra
intuiccedilatildeo natildeo deixasse ningueacutem chocado [Caeligterum ne qui moveantur vocis
intuitus novo uso] (DESCARTES 1996k p 39)71 Todavia segundo
Merleau-Ponty tendo por referecircncia a Regula IX eacute preciso se ter em conta
portanto que esta intuitus mentis ou melhor esta ldquovisatildeo do espiacuteritordquo
articula-se no pensamento cartesiano nos movimentos de uma
metamorfose do olhar da visatildeo dos olhos pois de acordo com Descartes
A maneira pela qual nos servimos de nossos olhos eacute suficiente para nos ensinar o uso da intuiccedilatildeo O que quer abraccedilar muitas coisas de uma soacute vez e com um olhar natildeo vecirc nada distintamente do mesmo modo o que por um soacute ato do pensamento quer atingir vaacuterios objetos ao mesmo tempo tem o espiacuterito confuso Ao contraacuterio os artesatildeos que se ocupam de obras delicadas e que tem o costume de dirigir atentamente o seu olhar sobre cada ponto em particular
71 ldquoCaeligterum ne qui fortegrave moveantur vocis intuitus novo uſu aliarumque quas eodem modo in ſequentibus cogar a vulgari ſignificatione removere hicircc generaliter admoneo me no plane cogitare quomodo quaeligque vocabula his vltimis temporibus fuerint in ſcholis uſurpada quia difficillium foret ijſdem nominibus vti amp penitus diverſsa ſentire ſed me tantugravem advertere quid ſingula verba Latinegrave ſignificent vt quoties propria defunt illa transferam ad meum ſenſum quaelig mihi videntur aptiſſimardquo
101
adquirem pelo uso a facilidade de ver as coisas mais iacutenfimas e mais sutis Do mesmo modo os que nunca dissipam o seu pensamento entre mil objetos diversos mas que o ocupam por completo na consideraccedilatildeo das coisas mais simples e mais faacuteceis adquirem uma grande perspicaacutecia (DESCARTES 1824d p 249)
Como nos assinala Merleau-Ponty (1996 p 228) sobre esta
incursatildeo de Descartes ldquodeliberadamente expressamente ele controacutei a
intuitus mentis sobre a visatildeo dos olhos [] eacute preciso como os artesatildeos
dirigir o olhar sobre singula puncta [cada ponto]rdquo Eacute assim que seraacute ldquo[]
clara aquela [percepccedilatildeo] que estaacute presente e manifesta a um espiacuterito atento
de modo que digamos ver claramente os objetos quando estando presentes
agem muito forte que nossos olhos estatildeo dispostos a olhaacute-losrdquo
(DESCARTES 1996i p 22)72 Mediante a intuiccedilatildeo articula-se pois a
conversatildeo do mundo visiacutevel em um mundo em si podendo assim lanccedilar
sobre ele a luz do olhar mas uma luz capaz de recortaacute-lo de fragmentaacute-lo O
que isto significa Natildeo haacute em Descartes no dizer de Merleau-Ponty uma
preocupccedilatildeo pelo fundo que envolve a figura o invoacutelucro que se encontra ao
redor do ponto recortado o que faz com que seja eliminada uma relaccedilatildeo de
envolvimento de figura e fundo capaz de trazer consigo em nossa abertura
ao mundo um ldquovisiacutevel vor aller Thesisrdquo O que isto significa
Partindo da distinccedilatildeo Descartes se volta para um ser que eacute ldquode
tal modo preciso e diferente de todos os outrosrdquo que faz com que a percepccedilatildeo
ldquoapenas compreenda em si o que aparece manifestamente agravequele que a
considera como eacute precisordquo (DESCARTES 1996i p 22)73 Por conseguinte
natildeo eacute suficiente que o ser se apresente tal como os singula puncto de modo
particularizado recortado mas eacute preciso tambeacutem que ele seja claro estando
a clareza justamente na distinccedilatildeo que nos leve a natildeo confundi-lo que nos
possibilite distingui-lo de outro ser Ao ser compreendida na condiccedilatildeo de
intuitus mentis a luz natural deve seguir o mesmo procedimento da visatildeo
dos olhos pois ldquodo mesmo modo que na visatildeo haacute mais perfeiccedilatildeo em
72 ldquoClaram voco illam quaelig menti attendenti praeligsens et aperta est sicut e aclare a nobis videri dicimus oacuteculo intuenti praeligsentia satis fortiter et aperte illum moventrdquo 73 ldquoDistinctam autem illam quaelig cum clara sit ab omnibus aliis ita sejuncta est et praeligcisa ut nihil plane aliud quam quod clarum est in se contineatrdquo
102
distinguir com cuidado uma por uma as partes de um objeto do que vecirc-los
todos juntos como uma uacutenica parterdquo (1996b p 434-435)74 A positividade
da visatildeo estaria justamente nesta capacidade de ver cada coisa por vez
sendo a ldquofaculdade positiva verdadeiramente produtorardquo como assinala
Merleau-Ponty a de ldquoconceber duas coisas completamentamente a parte
uma da outrardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 230) A intuitus mentis funda-se
pois em uma exclusatildeo tornando absoluto aquilo que a visatildeo dos olhos
comporta de modo relativo Qual a razatildeo De acordo com Merleau-Ponty
Haacute uma acies mentis [mente aguda] que se volta para as coisas [] um olhar do espiacuterito que como o olhar vai ser luz recortante isolante e vai chegar sem duacutevida natildeo a elementos que seriam adequadamente conhecidos mas a ldquocoisasrdquo [elementos] das quais estamos seguros que mesmo sendo pouco conhecidas elas o satildeo por completo portanto natildeo satildeo complexas ndash dir-se-aacute que satildeo ldquoconhecidas de sirdquo natildeo aprendemos a vecirc-las noacutes as vemos ou natildeo as vemos o trabalho eacute apenas de ldquoseparaacute-lasrdquo e ao fixar a atenccedilatildeo ter sua intuiccedilatildeo em cada uma isoladamente [singulis seorsim defixa mentis acie intuendisrdquo] (MERLEAU-PONTY 1996 p 230-231)
Deste modo opera-se no pensamento cartesiano uma reduccedilatildeo
do ldquoser visiacutevelrdquo a um ldquoconhecimento do visiacutevelrdquo estando nesta reduccedilatildeo ldquoa
definiccedilatildeo da visatildeo do espiacuteritordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 229) haja vista
que sempre haveraacute no ver uma mesma operaccedilatildeo e isto porque ldquoa luz que
opera aqui eacute a mesma para todas as naturezas como a do sol eacute a mesma
para todos os objetosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 231) Daiacute que o lugar o
espaccedilo e o movimento para Descartes natildeo chegam a constituir problema
pois o olhar retirando da relaccedilatildeo visatildeo-coisa apenas o primado da coisa em
si converte-se tatildeo-somente em uma operaccedilatildeo do espiacuterito Em outros termos
a visatildeo ldquo[] natildeo pode ser senatildeo desencarnada pura referecircncia a algo
posiccedilatildeo de um ser em tudo ou nada que eacute ou natildeo eacute para mim sem meio
um gratildeo do ser a Natureza simplesrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 233) uma
vez que se retira dela o fundo que a envolve o seu invoacutelucro fazendo com
que ela se manifeste ldquonuardquo ou antes ldquopurardquo Em suma pensando nestas
consideraccedilotildees retomando o que dissemos ateacute aqui sobre a compreensatildeo
74 ldquoUt etiam in visu major perfectio est cum singulas objecti particulas accurate distinguit quam cum omnes simul instar unius tantum advertitrdquo
103
cartesiana da visatildeo parece-nos haver nas seguintes palavras de Quinet
uma siacutentese
Trata-se da synopsis um uacutenico olhar ndash aquele que domina apenas com um golpe de vista o conjunto das ideias Para Descartes com a intuiccedilatildeo natildeo se vecirc o conjunto mas cada elemento isolado em sua simplicidade utilizando as duas principais faculdades de nosso espiacuterito a perspicaacutecia (distinccedilatildeo entre uma coisa e outra) e a sagacidade (deduccedilatildeo de uma coisa a partir da outra) O modelo de apreensatildeo da coisa que se torna ldquovisiacutevelrdquo ao espiacuterito com a operaccedilatildeo da intuiccedilatildeo eacute justamente a vista natural O olho cartesiano perspicax eacute o dos especialistas como os dos artesatildeos acostumados a dirigir atentamente seu olhar para cada ponto Com Descartes inaugura-se uma nova relaccedilatildeo sujeito-objeto ver-visto determinando uma outra concepccedilatildeo do visiacutevel e a partir daiacute como nos diz Merleau-Ponty ldquonada mais resta do mundo da analogiardquo (QUINET 2002 p 32)
E o que teria levado Descartes a este positivismo da visatildeo agrave
transfiguraccedilatildeo da visatildeo dos olhos na intuitus mentis Teraacute sido justamente o
ensejo de romper com o ldquoofuscamento da visatildeordquo tal como se justifica
tambeacutem no seacuteculo XVII o direcionamento agrave experiecircncia do cego Voltemo-
nos agrave Dioptrique Como se efetivaria na experiecircncia esta ldquoinspeccedilatildeo do
espiacuteritordquo da qual falamos Como se articularia a nossa experiecircncia do mundo
quando para poder vecirc-lo natildeo mais bastam os nossos olhos de ldquocarnerdquo A
nosso ver eacute tendo em vista estas questotildees que como salienta Quinet ldquoa
lsquocavernarsquo de Descartes eacute o proacuteprio olho Ele o compara a uma cacircmara escura
com uma uacutenica abertura diante da qual foi colocada uma lente e a uma
certa distacircncia foi estendido um lenccedilol branco sobre o qual satildeo formadas
as imagens dos objetos que estatildeo do lado de forardquo (QUINET 2002 p 30)
Por conseguinte lembrando as palavras da Dioptrique no Quinto Discurso
ldquoessa cacircmara representa o olho a abertura a pupila esta lente o cristalino
ou melhor todas as partes do olho que provocam qualquer refraccedilatildeo e esse
lenccedilol a pele interna composta pelas extremidades do nervo oacuteticordquo (QUINET
2002 p 30)
223 A similitude e o arbiacutetrio cartesiano do signo
Ora pensando talvez nestas clivagens do pensamento
cartesiano em Lrsquoœil et lrsquoesprit Merleau-Ponty nota que em Descartes natildeo
haveria uma diferenccedila radical entre conceber o conhecimento a partir da
104
imagem ou antes a partir do signo75 Fazendo assim Descartes pocircde
identificar no quadro pintado a representaccedilatildeo comparando-o ao signo
linguiacutestico Deste modo poderia caber ao Espiacuterito e somente a ele a
responsabilidade de estabelecer a semelhanccedila76 necessaacuteria uma vez
tambeacutem que por exemplo pensando na pintura ldquoeacute para Descartes uma
evidecircncia que natildeo se possam pintar senatildeo coisas existentes que a sua
existecircncia consista em serem extensas e que o desenho torne possiacutevel a
pintura tornando viaacutevel a representaccedilatildeo da extensatildeordquo (MERLEAU-PONTY
1975b p 38) Nas Meditaccedilotildees tambeacutem encontramos algumas referecircncias ao
modelo pictoacuterico Jaacute na Primeira Meditaccedilatildeo Descartes declarava
primeiramente que ldquoas coisas que nos satildeo representadas durante o sonho
satildeo quadros e pinturas que natildeo podem ser formados agrave semelhanccedila de algo
real e verdadeirordquo (DESCARTES 1973 p 168) Para ele ldquoos pintores mesmo
quando se empenham com o maior artifiacutecio em representar sereias e saacutetiros
por formas estranhas e extraordinaacuterias natildeo lhes podem todavia atribuir
formas e naturezas inteiramente novas []rdquo (DESCARTES 1973 p 168) Na
Terceira Meditaccedilatildeo encontramos uma referecircncia ao axioma da luz natural
pois ela ldquome faz conhecer evidentemente que as ideias satildeo em mim como
quadros ou imagens que podem na verdade facilmente natildeo conservar a
perfeiccedilatildeo das coisas de onde foram tiradas mas que jamais podem conter
algo de maior ou mais perfeitordquo (DESCARTES 1973 p 187)
Deste modo eacute assim que na Dioptrique seguindo o Meacutetodo
Descartes natildeo concorda com aqueles que recorrem agraves ldquoespeacutecies
intencionaisrdquo Para ele estas ideias ldquoque trabalham tanto a imaginaccedilatildeo dos
75 Conforme Descartes nas palavras de Merleau-Ponty ldquovendo que nosso pensamento pode ser facilmente excitado por um quadro ao conceber o objeto que ali estaacute pintado parece que deveria secirc-lo da mesma maneira ao conceber aqueles que tocam nossos sentidos por alguns pequenos quadros que formassem em nossa cabeccedila lugar que devemos considerar que haacute muitas outras aleacutem das imagens que podem excitar nosso pensamento como por exemplo os signos e as palavras que natildeo se assemelham em nada agraves coisas que significamrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 168) 76 Considerando que Descartes tenha abandonado a ideia de semelhanccedila poderiacuteamos nos perguntar a partir da quarta Meditaccedilatildeo acerca da consideraccedilatildeo de que fomos feitos agrave imagem e semelhanccedila de Deus Parece haver uma certa mudanccedila no pensamento cartesiano posto que a semelhanccedila apresenta-se portanto como a marca do artiacutefice impressa sobre sua obra sendo a obra o proacuteprio sinal do artiacutefice
105
Filoacutesofosrdquo (DESCARTES 1996a p 85) impediriam a existecircncia de um ponto
de distinccedilatildeo entre o objeto e sua imagem dado que o pensamento entendido
como esse intentionale seria apenas uma imagem da coisa por sua vez
entendida como esse naturale Conforme Lebrun nisto encontrariacuteamos ldquo[]
um argumento polecircmico contra a teoria escolaacutestica que explicava a visatildeo
pela impressatildeo no corpo de imagens emanadas das coisas sensiacuteveisrdquo
(LEBRUN 2006a p 63) Em particular pensamos se tratar aqui da
definiccedilatildeo de Eustache de Saint-Paul que compreendia por ldquoespeacutecie
intencionalrdquo ldquoum signo formal da coisa oposta (objectaelig) ao sentido ou uma
qualidade que remetida pelo objeto e recebida no sentido tem a potecircncia de
representar o proacuteprio objeto mesmo se ela proacutepria fosse muito pouco
perceptiacutevel pelo sentidordquo (GILSON 1913 p 98 ndash Texto 169) recebendo o
nome de ldquointencionalrdquo dado que ldquo[] o sentido tende atraveacutes dela em direccedilatildeo
ao objetordquo (GILSON 1913 p 98 ndash Texto 169) O problema desta ideia estaria
em seus desdobramentos quer dizer na certeza de que os sentidos seriam
capazes de abstrair e receber das coisas reais ldquopequenos quadrosrdquo os
mesmos que assumiriam a tarefa de excitar a alma e assim tornar possiacutevel
a percepccedilatildeo Daiacute a ideia das ldquoespeacutecies intencionaisrdquo ou mesmo os
ldquosimulacrosrdquo de Epicuro ou como diraacute Descartes ldquotodas essas pequenas
imagens que volteiam com o arrdquo (DESCARTES 1824a p 39-40) Essas
imagens que como nos explica Merleau-Ponty trariam ldquo[] para o corpo o
aspecto sensiacutevel das coisas [pois] nada mais fazem do que transferir em
termos de explicaccedilatildeo causal e de operaccedilotildees reais a presenccedila ideal da coisa
para o sujeito perceptivo que []rdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 295) por sua
vez ldquo[] eacute uma evidecircncia para a consciecircncia ingecircnuardquo (MERLEAU-PONTY
2006 p 295) Dado natildeo haver uma identidade numeacuterica entre o percebido e
o real encontrariacuteamos pois uma espeacutecie de ldquomitologia explicativardquo segundo
a qual aqueacutem de uma identidade especiacutefica haveria um movimento pelo
qual o percebido retiraria das proacuteprias coisas ldquocaracteres distintivosrdquo pelo
qual a percepccedilatildeo seria vista tatildeo-somente como um ato de ldquo[] imitaccedilatildeo ou
um desdobramento das coisas sensiacuteveis em noacutes ou como a atualizaccedilatildeo na
alma de alguma coisa que estava em potecircncia num sensiacutevel exteriorrdquo
(MERLEAU-PONTY 2006 p 295) Deste modo podemos entender o
106
direcionamento cartesiano ao que nos ensina o cego e sua bengala diante
dos objetos vendo nisto o modo como a luz eacute capaz de transmitir suas
propriedades pois como nos assinala Lebrun
O cego natildeo acredita que haja uma semelhanccedila entre as sensaccedilotildees que experimenta e os estiacutemulos fiacutesicos que as provocam Sabe que sua percepccedilatildeo limita-se a traduzir movimentos em sentimentos desfazendo dessa maneira sem dificuldade a armadilha da imaginaccedilatildeo na qual o ldquoclarividenterdquo se deixa apanhar A Dioacuteptrica de Descartes inaugura a psicofisiologia mecanicista anunciando que a clarividecircncia do entendimento estaacute na razatildeo inversa da clarividecircncia sensiacutevel (LEBRUN 2006b p 63)
A nosso ver tendo em vista estas questotildees Merleau-Ponty nota
em Descartes um abandono agrave semelhanccedila e agrave analogia77 uma vez que
ldquoestamos dispensados de compreender como eacute que a pintura das coisas no
corpo as poderia fazer sentir a alma tarefa impossiacutevel pois tendo por sua
vez a semelhanccedila desta pintura com as coisas necessidade de ser vistardquo
consequentemente ldquoser-nos-iam necessaacuterios lsquooutros olhos no ceacuterebro com
os quais pudeacutessemos aperceberrsquo e o problema da visatildeo manteacutem-se intacto
quando se estabelecem estes simulacros errantes entre as coisas e noacutesrdquo
(MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Retomando a temaacutetica da representaccedilatildeo
pictoacuterica Descartes interpreta o deslizamento da semelhanccedila da imagem
pelo arbiacutetrio do signo pois natildeo poderia aceitar a ideia de que a alma receba
passivamente as imagens mas pelo contraacuterio a partir das impressotildees ela
assumiria a tarefa de formaacute-las e interpretaacute-las Natildeo agindo por semelhanccedila
77 Para os claacutessicos a ideia de semelhanccedila conteria em si uma fonte de erros e seria incapaz de alcanccedilar as essecircncias das coisas O conhecimento se daacute por meio da compreensatildeo das causas o que significa afirmar que a razatildeo torna-se capaz de discernir a identidade e a diferenccedila no que concerne agrave essecircncia invisiacutevel das coisas por meio da ordem e da medida Conhecer eacute relacionar estabelecer um nexo causal por meio de um meacutetodo que aspira a uma universalidade A medida e a ordem satildeo os alicerces desse meacutetodo Enquanto a medida seria suficiente para determinar as identidades e as diferenccedilas a ordem estabelece-se como a responsaacutevel em apresentar o encadeamento interno e necessaacuterio entre os termos que foram medidos apoacutes uma devida divisatildeo em partes Reconhecendo este procedimento em Descartes Merleau-Ponty afirma que ldquoa semelhanccedila da coisa e da sua imagem especular natildeo eacute para ambas mais que uma denominaccedilatildeo exterior pertencente ao pensamento A relaccedilatildeo ambiacutegua de semelhanccedila eacute nas coisas uma clara relaccedilatildeo de projeccedilatildeo Um cartesiano natildeo se vecirc ao espelho ele vecirc um manequim um lsquoexteriorrsquo sobre o qual tem todas as razotildees para pensar que eacute visto pelos outros da mesma maneira mas que nem para si nem para os outros eacute uma carne A sua lsquoimagemrsquo no espelho eacute um efeito da mecacircnica das coisas se aiacute se reconhece se a acha lsquoparecidarsquo eacute o seu pensamento que tece esta ligaccedilatildeo a imagem especular nada tem delerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 34)
107
as gravuras por exemplo ldquoexcitam o nosso pensamento a conceber como o
fazem os signos e as palavras que natildeo se parecem de maneira nenhuma
com as coisas que significamrdquo (DESCARTES 1996a p 112) A dificuldade
estaria no entanto em compreender como a coisa sensiacutevel eacute capaz de
suscitar no corpo e depois no pensamento um ldquoduplordquo ou uma ldquoimitaccedilatildeo do
realrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 294) Deste modo haacute na Dioacuteptrica como
nota Merleau-Ponty um abandono deste ldquorealismo do sensiacutevelrdquo Natildeo haacute uma
relaccedilatildeo transitiva mediante a qual as coisas sensiacuteveis seriam capazes de
imprimir sua imagem no corpo sendo a alma apenas responsaacutevel por
encontrar no final deste processo duplos sensiacuteveis semelhantes agraves coisas
reais Natildeo eacute suficiente inclusive pensa Descartes que haja uma semelhanccedila
entre os objetos percebidos e os fenocircmenos corporais uma vez que
conforme citaccedilatildeo da Dioptrique ilustrada tambeacutem por Merleau-Ponty em
Lrsquoœil et lrsquoesprit
[] Ainda que esta pintura passando assim bem no interior de nossa cabeccedila retenha sempre alguma coisa da semelhanccedila com os objetos dos quais procede natildeo devemos contudo nos persuadir [] que seja por meio dessa semelhanccedila que ela faz que os sintamos como se houvesse outros olhos em nosso ceacuterebro com os quais pudeacutessemos percebecirc-la mas que satildeo antes os movimentos pelos quais ela eacute composta que agindo imediatamente em nossa alma agrave medida que esta eacute unida ao nosso corpo satildeo escolhidos pela natureza para lhe fazer ter esses sentimentos (DESCARTES 1824a p 54 ndash Sexto Discurso)
Ora para Merleau-Ponty Descartes teria razatildeo em sua criacutetica
contra os ei1dwla contra as ldquopequenas imagensrdquo pelas quais a visatildeo seria a
entrada do koinov kosmov no i1diov kosmov e a razatildeo estaria em considerar
como ldquo[] secundaacuteria a semelhanccedila da imagem retiniana com a coisardquo
(MERLEAU-PONTY 1996 p 179) Contudo onde estaria o problema Diraacute o
filoacutesofo o problema estaria em conceber as imagens ldquo[] como Em Si em
relaccedilatildeo de causalidade conoscordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 179) uma vez
que
a) ainda seriam necessaacuterios outros olhos no ceacuterebro para vecirc-las ndash Natildeo se avanccedila um passo no problema da visatildeo dando-se duplos objetivos que natildeo satildeo [uma] abertura agrave coisa b) a semelhanccedila aliaacutes natildeo eacute realizada no quadro [A] figuraccedilatildeo eacute um caso muito particular d[a] Darstellung do ser Aqui onde ela existe natildeo eacute ela que faz a
108
abertura do quadro ao Ser Mas se natildeo haacute semelhanccedila exterior quadro-coisa natildeo haacute muito menos diferenccedila como redondo e oval quadrado e losango quer dizer [o] quadro natildeo eacute outra coisa coisa substituiacuteda signalmente da coisa A diferenccedila eacute muito mais profunda (MERLEAU-PONTY 1996 p 179)
No entanto a ldquofraquezardquo de Descartes estaria em considerar o
signo como uma ocasiatildeo adequada para se pensar o significado (MERLEAU-
PONTY 1996 p 179) Daiacute a identidade que se estabelece ao se entender
ldquopercepccedilatildeordquo e ldquovisatildeordquo do quadro como ldquopensamentordquo sendo o signo o que
suficientemente eacute capaz de ldquodiscriminarrdquo logo ldquo[] permitindo-nos
lsquorepresentarrsquo [as] coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 179) Eacute o mesmo que
parece observar Merleau-Ponty ao dizer que ldquoa magia das espeacutecies
intencionais a velha ideia da semelhanccedila eficaz imposta pelos espelhos e
pelos quadros perde o seu uacuteltimo argumento se todo o poder do quadro eacute o
de um texto proposto agrave nossa leitura sem nenhuma promiscuidade entre o
vidente e o visiacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ora o que isto
significa A este respeito vejamos o que nos diz Lebrun
ldquoEntre meus pensamentosrdquo escreve Descartes ldquoalguns satildeo como a imagem das coisas (tanquam rerum imagines) e apenas a esses conveacutem propriamente o nome de ideiardquo E o proacuteprio Descartes natildeo se poupou de lembrar que essa comparaccedilatildeo natildeo deve ser tomada muito ao peacute da letra Contudo a palavra ldquoimagemrdquo designa uma semelhanccedila que deve sempre imiscuir-se entre a ideia e a coisa Ora o que entender por similitude O sentido pode ser bastante lato como indica Descartes a Burman Por que perguntava este uacuteltimo eu deveria assemelhar-me a Deus enquanto meu criador Resposta o que eacute criado por Deus deve ser ad minimum ens et substantiam et sic saltem Deo simile esse et ejus imaginem referre Uma pedra entatildeo seraacute dita imagem de Deus Resposta ldquoNatildeo tomo aqui a palavra imagem no sentido vulgar isto eacute como retrato ou pintura de uma coisa (id quod effigiam est et depictum) mas num sentido mais amplo o que possui semelhanccedila com outra coisa (id quod similitudinem cum alio habet) (LEBRUN 2006a p 434-5)
De acordo com Lebrun o que Descartes pretende eacute justamente
estabelecer uma diferenccedila ao conceber o pensamento na condiccedilatildeo de
imagem entre ideia e ldquoimagem sensiacutevelrdquo Deste modo assim como no
exemplo do cego o que se espera eacute esclarecer como se daacute a passagem de
uma semelhanccedila a um receptor questatildeo esta que a bengala do cego cumpre
bem a tarefa de responder uma vez que haveria uma proporccedilatildeo entre as
109
qualidades presentes na superfiacutecie que o cego toca com sua bengala e os
movimentos desta mesma bengala ou melhor as ldquovariedadesrdquo presentes
neste movimento Natildeo haveria pois na correspondecircncia destas etapas a
transmissatildeo de um ser real E o que ocorre De modo diverso ldquohaacute somente
codificaccedilatildeo dessa diversidade enquanto distinta de todas as outras Em
suma o movimento natildeo transmite nada daquilo que estaacute na causa ndash e eacute por
isso que ele natildeo garante nenhuma semelhanccedila ele apenas permite a uma
diversidade ser assinaladardquo (LEBRUN 2006a p 435) Logo constituindo-se
como uma ldquofiltragem diferencial das qualidades do objeto a sinalizaccedilatildeo natildeo
imprime nenhuma espeacutecie de imagem Portanto ela natildeo fornece para falar
claramente nenhum conhecimentordquo (LEBRUN 2006a p 435)
Sendo assim no intuito de combater a tendecircncia do senso
comum em converter esta codificaccedilatildeo em representaccedilatildeo para Descartes
ldquo[] pode ser uacutetil comparar o conhecimento a um quadro apenas para
distingui-lo de forma mais clara da informaccedilatildeo fornecida pelo signordquo
(LEBRUN 2006a p 435) Em consequecircncia disto ldquoa ideia como imago
mesmo que carente em relaccedilatildeo ao modelo natildeo deixa de ser lsquoa proacutepria coisa
enquanto estaacute no espiacuteritorsquo natildeo deixa de ser o contraacuterio de um signordquo
(LEBRUN 2006a p 436) Daiacute a importacircncia de natildeo nos equivocarmos com
aquilo que pretende Descartes ao fazer uso da ldquometaacutefora pictoacutericardquo uma vez
que ldquoenquanto o signo me indica simplesmente a presenccedila de uma diferenccedila
e me informa que estou lidando com um conteuacutedo = X a ideia por seu lado
mostra-me positivamente uma natureza mostra-me que ela eacute relativa a este
conteuacutedo e natildeo agravequele outrordquo (LEBRUN 2006a p 436) Daiacute que ela seja
ldquo[] ldquoquadrordquo pois nela posso ver por que ela eacute ideia desse conteuacutedo []
(LEBRUN 2006a p 436)
Ora onde estariam os limites desse modo cartesiano de
compreender a similitude Primeiramente como nos indicaraacute Leibniz o seu
erro estaria na oposiccedilatildeo que estabelece entre a ldquoinformaccedilatildeo psicofisioloacutegicardquo
e a ldquoinformaccedilatildeo teoacutericardquo entre o ldquosignordquo e o ldquoquadrordquo haja vista que ldquo[] o
senso comum ao contraacuterio tem razatildeo quando atribui uma funccedilatildeo teoacuterica agrave
sensaccedilatildeo e natildeo reduz as lsquoqualidades secundaacuteriasrsquo a sinais que nada nos
informariam sobre a natureza do emissorrdquo (LEBRUN 2006a p 437) Logo
110
no cartesianismo o problema estaria em ter subtraiacutedo a regra pela qual ldquo[]
soacute aparentemente as ideias sensiacuteveis lsquodiferemrsquo do movimento que elas
exprimem []rdquo(LEBRUN 2006a p 442) reduzindo-se agrave antinomia entre a
ldquoideia-quadrordquo e a sinalizaccedilatildeo fazendo com que se abandone a ldquosimilituderdquo
tatildeo-somente por natildeo ter visto a relaccedilatildeo presente nesta aparente disjunccedilatildeo
Por conseguinte o equiacutevoco cartesiano estaria tambeacutem em ter tomado como
referecircncia especialmente na Dioptrique a ldquodeformaccedilatildeo perceptivardquo que nos
impossibilitaria de mantermos uma fidelidade agrave coisa representada
concluindo disto a impossibilidade de que permaneccedila algo na passagem do
inteligiacutevel ao sensiacutevel Daiacute a censura de Merleau-Ponty (MERLEAU-PONTY
1996 p 179-180)
Haacute o verdadeiro em si (ciacuterculo) e o signo para noacutes (oval) e o pensamento reconstitui o em si a partir do signo para noacutes Mas ndash como ele explica aliaacutes ndash os signos natildeo nos satildeo dados Desloca-se a atenccedilatildeo d[a] dimensatildeo do corpo agrave [das] coisas em seu prolongamento d[a] percepccedilatildeo da matildeo agrave percepccedilatildeo da coisa encerrada nela ndash A percepccedilatildeo do corpo eacute percepccedilatildeo do mundo ndash O espaccedilo do corpo eacute matriz de todo espaccedilo ndash Ora este espaccedilo do corpo natildeo eacute pensamento a alma natildeo eacute um piloto pensando seu navio mas habitante do corpo portanto do mundo A anaacutelise em termos de pensamento [eacute] anaacutelise em parte dupla eacute como se nosso corpo tivesse sido instituiacutedo por um tal Pensamento ndash O que haacute eacute [a] causalidade ndash que produz [uma] aparecircncia maacutegica de adaptaccedilatildeo por fora porque o corpo foi disposto assim pel[o] Pensamento do Todo ndash Visatildeo disjunta em Pensamento e Causalidade (MERLEAU-PONTY 1996 p 179-180)
Para Merleau-Ponty o problema estaacute em dispor o ldquoquadrordquo
diante do pensamento de Deus ou antes a transposiccedilatildeo para Deus de uma
dualidade que existe em noacutes a saber entendimento e vontade78 Daiacute a
78 Deste modo mutatis mutandis a criacutetica de Merleau-Ponty se aproxima daquela feita por Leibniz ldquoNatildeo eacute necessaacuterio que aquilo que concebemos das coisas fora de noacutes seja semelhante a elas mas que as exprima como uma elipse exprime o ciacuterculo visto de traacutes O criteacuterio da lsquosimilitudersquo eacute pois deslocado natildeo mais reside na fidelidade a um original mas no retorno de um invariante Trata-se entatildeo efetivamente do mesmo conceito A questatildeo se coloca Comparemos por exemplo o ciacuterculo a suas projeccedilotildees elipse paraacutebola hipeacuterbole Nada parece tatildeo diferente nem tatildeo dessemelhante quanto essas figuras e no entanto haacute uma relaccedilatildeo exata de cada ponto a cada ponto Mas essa relaccedilatildeo natildeo tem mais nada que ver com aquela da coacutepia ao original enquanto o original eacute conteuacutedo que precede e domina a coacutepia o invariante por sua vez soacute aparece no encadeamento das variaccedilotildees e somente atraveacutes delas As variaccedilotildees natildeo o repetem propriamente falando ele natildeo eacute uma espeacutecie de modelo primitivo cujo vestiacutegio pode ser sempre encontrado Falando dessa forma nos
111
negaccedilatildeo em suma de natildeo se entender o olhar como uma ldquoabertura ao
visiacutevelrdquo ao ldquoser do visiacutevelrdquo como se expressa na citaccedilatildeo que o filoacutesofo faz do
Traiteacute de lrsquoHomme
Os objetos exteriores que soacute por sua presenccedila agem contra os oacutergatildeos dos seus sentidos e que assim determinam a maacutequina a se mover de diversas maneiras conforme a disposiccedilatildeo das partes de seu ceacuterebro satildeo como estranhos que entrando em algumas dessas fontes causam inconscientemente os movimentos que nela se fazem em sua presenccedila pois natildeo podem caminhar aiacute a natildeo ser sobre alguns canteiros de tal maneira dispostos que por exemplo se eles se aproximam de uma Diana que se banha eles a faratildeo esconder-se em algum caniccedilo se passarem mais adiante para persegui-la faratildeo vir contra si um Netuno que os ameaccedilaraacute com seu tridente ou se forem para algum outro lado faratildeo sair um monstro marinho que lhes vomitaraacute aacutegua contra o rosto ou coisas semelhantes conforme o capricho dos engenheiros que a fabricaram (DESCARTES 1996m p 131 ndash IIa Obj)
Figura-se aqui a imagem do autocircmato cujas respostas de seus
sentidos se datildeo em consonacircncia com uma determinada situaccedilatildeo natildeo sendo
esta relaccedilatildeo pensada por eles tarefa que seraacute cumprida por um
ldquoengenheirordquo Nisto Merleau-Ponty encontra uma comparaccedilatildeo com a
compreensatildeo cartesiana da visatildeo pois ldquodo mesmo modo [as] coisas que
agem sobre meus sentidos suscitam [uma] visatildeo na relaccedilatildeo dos sentidos com
elasrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 182) Natildeo haveria no entanto uma
relaccedilatildeo operante sendo nosso corpo uma consequecircncia do pensamento de
Deus sendo possiacutevel pois agrave ldquoinclinaccedilatildeo naturalrdquo perder-se no labirinto das
ilusotildees Igualmente ao se considerar uma homogeneidade entre uma
ldquopercepccedilatildeo verdadeirardquo e a ldquoilusatildeordquo natildeo haveria uma visatildeo do mundo sendo
a ldquomagia naturalrdquo da Perpectiva na verdade o Grande Enganador
confinando-nos consequentemente agrave solidatildeo ldquoeu estou confinado em
minha natureza e unicamente por Deus em acordo com o mundo A magia
perceptiva [eacute] reduzida agrave identidade em Deus de identidade e vontade
corpo alma lsquofinalizadarsquordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 182)
livramos das metaacuteforas intuitivas Ora o invariante designa justamente uma correspondecircncia tatildeo ampla ndash entre dois conteuacutedos entre duas seacuteries ndash que uma simples inspeccedilatildeo das imagens natildeo poderia deixaacute-la suporrdquo (LEBRUN 2006b p 440)
112
Da sua parte mais proacuteximo da filosofia de Merleau-Ponty o
intento de Leibniz ao natildeo identificar ldquoimitaccedilatildeordquo e ldquosemelhanccedilardquo
diferentemente de Descartes seria o de ldquo[] reabilitar a lsquofilosofia ordinaacuteria
que ensina a semelhanccedila de nossas sensaccedilotildees com os traccedilos dos objetosrsquordquo
(LEBRUN 2006b p 437) demonstrando ter sido um dos ldquograndes delitosrdquo
do pensamento ldquoclaro e distintordquo a ldquo[] propensatildeo que ele nos incute a
resignarmo-nos prematuramente com a ideia de uma codificaccedilatildeo sem que
se averiguacutee se o representante natildeo seria muito mais do que um signo de
reconhecimento cocircmodordquo (LEBRUN 2006b p 442) Como diraacute Lebrun a
partir da criacutetica de Leibniz a Descartes
Se o sensiacutevel eacute da mesma natureza que o inteligiacutevel eacute porque nenhum signo no limite eacute signo de instituiccedilatildeo ou melhor eacute porque desaparece a fronteira entre signos naturais e signos de instituiccedilatildeo substitutos que mostram e substitutos que dissimulam a razatildeo de sua relaccedilatildeo com a coisa Onde quer que seja toda representaccedilatildeo eacute fundada em razatildeo E vai-se contra essa universalidade do princiacutepio de razatildeo sempre que se considera como um substituto da coisa aquilo que eacute a proacutepria coisa sob um outro aspecto ndash sempre que se imagina tratar-se de um iacutendice aquilo que eacute ainda e sempre somente um dos perfis da coisa Ora eacute esse erro que a percepccedilatildeo irresistivelmente nos induz a cometer escondendo de noacutes os recursos da fina ldquosemelhanccedilardquo da verdadeira ldquosemelhanccedilardquo (LEBRUN 2006b p 444)79
Assim sendo natildeo haveria sentido a generalizaccedilatildeo equivocada
segundo a qual ldquoestar representadordquo seria o mesmo que ldquoestar expostordquo quer
seja diante da vista quer seja diante do entendimento o que excluiria a
compreensatildeo de uma representaccedilatildeo que signifique antes um outro modo de
estar presente A nosso ver estas consideraccedilotildees de Leibniz mutatis
mutandis como jaacute indicamos se harmonizam com o pensamento de
Merleau-Ponty Deste modo natildeo eacute gratuita em suas Notes de cours a criacutetica
79 Notamos tambeacutem em La Prose du Monde ao tratar da linguagem uma certa aproximaccedilatildeo de Merleau-Ponty desta criacutetica leibniziana mediante no entanto ao que ele iraacute denominar na ldquorelaccedilatildeo viva dos sujeitos falantesrdquo os limites e equiacutevocos de uma uma supremacia do ldquoenunciadordquo e do ldquoindicativordquo ldquoo que mascara a relaccedilatildeo viva dos sujeitos falantes eacute que se toma sempre por modelo da fala o enunciado ou o indicativo e faz-se isso porque se acredita que fora dos enunciados natildeo haacute senatildeo balbucios desrazatildeo Eacute esquecer tudo o que haacute de taacutecito de natildeo formulado de natildeo tematizado nos enunciados da ciecircncia que contribui para determinar seu sentido e que justamente oferece agrave ciecircncia de amanhatilde seu campo de investigaccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 2002a)
113
a uma compreensatildeo da figuraccedilatildeo que se decirc como um caso particular da
Darstellung pois ao se legitimar o que seria uma espeacutecie de ocasionalismo
presente em Descartes o que temos eacute uma representaccedilatildeo entendida como
uma ldquoclasse restritivardquo da exhibitio ou seja da Darstellung o que nos leva
forccedilosamente ldquo[] a distinguir duas regiotildees o que eacute apresentaccedilatildeo da proacutepria
coisa e o que eacute indicaccedilatildeo por substituiccedilatildeo Essa reparticcedilatildeo entatildeo parece
impor-se ao naturalismordquo (LEBRUN 2006b p 445) pouco nos importando no
caso de Descartes que esta exhibitio ldquoseja confiada agrave ideia clara e distintardquo
(LEBRUN 2006b p 445) pois a imago acabaria sendo justamente a medida
do saber Em contraposiccedilatildeo como nos diz Lebrun quando natildeo mais
reduzimos a ldquosimilituderdquo ao ldquomodelo da semelhanccedila imaginativardquo
[] a palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo adquire toda a sua forccedila se por ldquoquadrordquo se decide entender aquilo que Merleau-Ponty entende na qualidade de neoleibniziano ldquoUm conjunto organizado que eacute fechado mas que estranhamente eacute representativo de todo o resto possui seus siacutembolos seus equivalentes para tudo o que ele natildeo eacute A pintura para o espaccedilo por exemplordquo Nesse ponto o que ainda pode significar verdadeiramente representaccedilatildeo [] Natildeo tanto um a priori do conhecimento como a certeza de que estaremos sempre em terras conhecidas Entendamos por isso ao mesmo tempo um lugar de onde esteja excluiacuteda a expatriaccedilatildeo ndash um lugar onde todo signo exprima por assim dizer a natureza daquilo que eacute sinalizado (LEBRUN 2006b p 447 448-9)
224 Caminhos de desconstruccedilatildeo a reabilitaccedilatildeo do sensiacutevel e o enigma do olhar 2241 A descorberta da afetividade das cores
Ao procurar romper com o modo cartesiano de encarar o
ldquosensiacutevelrdquo o que nos diria Merleau-Ponty da relativizaccedilatildeo da cor como
qualidade secundaacuteria em vista do desenho e da forma dos objetos contida
nas gravuras tal como se faz na Dioptrique O que o filoacutesofo nos diria do
gosto cartesiano pelos talhos-doces Ora em Lrsquoœil et lrsquoesprit encontramos
algumas respostas
Mas o que agrada Descartes nos talhos-doces eacute conservarem estes a forma dos objetos ou pelo menos nos oferecerem dela sinais suficientes Eles nos datildeo uma apresentaccedilatildeo do objeto pelo seu exterior ou envoltoacuterio Se houvesse examinado esta outra e mais profunda abertura agraves coisas que as qualidades segundas nos
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proporcionam notadamente a cor como natildeo haacute relaccedilatildeo regulada ou projetiva entre elas e as propriedades verdadeiras das coisas e como no entanto a mensagem delas eacute compreendida por noacutes Descartes ter-se-ia achado diante do problema de uma universalidade e de uma abertura-agraves-coisas sem conceito ter-se-ia visto obrigado a indagar como o murmuacuterio indeciso das cores pode apresentar-nos coisas florestas tempestades enfim o mundo e talvez a integrar a perspectiva como caso particular num poder ontoloacutegico mais amplo Mas para ele eacute fora de duacutevida que a cor eacute ornamento coloraccedilatildeo que todo o poder da pintura assenta no poder do desenho e o poder do desenho na relaccedilatildeo regulada que existe entre ele e o espaccedilo em si tal como o ensina a projeccedilatildeo em perspectiva (MERLEAU-PONTY 1975b p 96)
Destas consideraccedilotildees notamos que o desmerecimento
cartesiano da cor se daacute justamente pela recusa em compreender a visatildeo
como uma abertura ao mundo Lembremo-nos de que jaacute na Pheacutenomeacutenologie
de la perception ao falar do sentir Merleau-Ponty inclusive nos salientava
dos ldquovalores motrizesrdquo presentes na experiecircncia da cor levando-nos deste
modo a pensar juntamente com este trecho de Lrsquoœil et lrsquoesprit naquilo que
segundo Villela-Petit seria a explicitaccedilatildeo presente no filoacutesofo de uma
ldquoafetividade das coresrdquo e isto ldquono momento originaacuterio da experiecircncia em que
o que se daacute nela eacute em primeiro lugar aquilo que em meio ao afluxo
incessante do mundo vem assenta em mim e me afeta tenta responder e
lhe corresponder a atividade picturalrdquo (VILLELA-PETIT 1995 p 197) No
texto de 1945 especialmente a partir dos trabalhos de Goldstein e
Rosenthal o filoacutesofo jaacute demonstrava a busca pelo que em seu uacuteltimo texto
publicado mediante sua criacutetica agrave ontologia cartesiana teria sido a
contribuiccedilatildeo da ciecircncia moderna ao lado dos trabalhos de Kandinsky a um
ldquoalcance ontoloacutegico da corrdquo ao menos podendo ser ela ldquo[] tomada como
remetendo agrave solidariedade essencial do sentir e do se mover []rdquo (VILLELA-
PETIT 1995 p 201) Como nos dizia o filoacutesofo
Soacute se compreende a significaccedilatildeo motora das cores se elas deixam de ser estados fechados sobre si mesmos ou qualidades indescritiacuteveis oferecidas agrave constataccedilatildeo de um sujeito pensante se elas atingem em mim uma certa montagem geral pela qual sou adaptado ao mundo se elas me convidam a uma nova maneira do avaliar e se por outro lado a motricidade deixa de ser a simples consciecircncia de minhas mudanccedilas de lugar presentes ou futuras para tornar-se a funccedilatildeo que a cada momento estabelece meus padrotildees de grandeza a amplitude variaacutevel de meu ser no mundo O azul eacute aquilo que solicita de mim certa maneira de olhar aquilo que se deixa apalpar por um
115
movimento definido de meu olhar Ele eacute um certo campo ou uma certa atmosfera oferecida agrave potecircncia de meus olhos e de todo meu corpo (MERLEAU-PONTY 1999 p 284)
Dirigindo-se agrave ciecircncia Merleau-Ponty jaacute tinha concluiacutedo que ao
contraacuterio de ser um espetaacuteculo objetivo ldquo[] a qualidade deixa-se
reconhecer por um tipo de comportamento que a visa em sua essecircncia e eacute
por isso que a partir do momento em que meu corpo adota a atitude do
azul eu obtenho uma quase presenccedilardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 285)
Por conseguinte ldquoo sujeito da sensaccedilatildeo natildeo eacute nem um pensador que nota
uma qualidade nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela
eacute uma potecircncia que co-nasce em um certo meio de existecircncia ou se
sincroniza com elerdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 285) Ao falar da cor na
Pheacutenomeacutenologie de la perception o filoacutesofo tem em vista de modo especial
defender a ideia de que ldquotoda sensaccedilatildeo pertence a um certo campordquo
(MERLEAU-PONTY 1999 p 292) sendo pois a visatildeo ldquo[] um pensamento
sujeito a um certo campo e eacute isso que chamamos de um sentidordquo (MERLEAU-
PONTY 1999 p 292) haja vista que
Quando digo que tenho sentidos e que eles me fazem ter acesso ao mundo natildeo sou viacutetima de uma confusatildeo natildeo misturo o pensamento causal e a reflexatildeo apenas exprimo esta verdade que se impotildee a uma reflexatildeo integral que sou capaz por conaturalidade de encontrar um sentido para certos aspectos do ser sem que eu mesmo o tenha dado a eles por uma operaccedilatildeo constituinte (MERLEAU-PONTY 1999 p 292)
A compreensatildeo merleau-pontiana da cor por sua vez desde os
primeiros trabalhos encontra-se simetricamente oposta ao modo como
Descartes iraacute encaraacute-la Eacute assim que especialmente em Le Visible et
lrsquoInvisible torna-se possiacutevel entrever no tratamento da cor o que seria uma
espeacutecie de ldquotopologia do sensiacutevelrdquo que a nosso ver explicita tambeacutem uma
espeacutecie de ldquotopologia do imaginaacuteriordquo (VILLELA-PETIT 1995 p 209) uma vez
que ldquoa cor eacute aliaacutes variante em uma outra dimensatildeo de variaccedilatildeo a de suas
relaccedilotildees com a vizinhanccedila []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129) Daiacute a
compreensatildeo do vermelho que eacute comparado por Claudel ao azul do mar ao
dizer que ldquocerto azul do mar eacute tatildeo azul que somente o sangue eacute mais
116
vermelhordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129) Para o filoacutesofo ldquoeste vermelho eacute
o que se liga do seu lugar com outros vermelhos em volta dele com os
quais forma uma constelaccedilatildeo ou com outras cores que domina ou que o
dominam que atrai ou que o atraem que afasta ou que o afastamrdquo
(MERLEAU-PONTY 1992 p 129) sendo em suma ldquo[] uma espeacutecie de noacute
na trama do simultacircneo e do sucessivordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129)
ou antes ldquouma concreccedilatildeo de visibilidade natildeo um aacutetomordquo (MERLEAU-
PONTY 1992 p 129) Por conseguinte segundo Merleau-Ponty
Com mais razatildeo a roupa vermelha liga-se com todas as suas fibras ao tecido do visiacutevel e por ele a um tecido de ser invisiacutevel Pontuaccedilatildeo no campo das coisas vermelhas que compreende as telhas dos tetos a bandeirola dos guardas das estradas de ferro a bandeira da Revoluccedilatildeo alguns terrenos perto de Aix ou de Madagascar ela tambeacutem o eacute no campo das roupas vermelhas que compreende aleacutem dos vestidos das mulheres as becas dos professores e dos advogados-gerais os mantos dos bispos como tambeacutem no dos adornos e dos uniformes E seu vermelho natildeo eacute precisamente o mesmo conforme apareccedila numa constelaccedilatildeo ou noutra conforme nela participa a pura essecircncia da Revoluccedilatildeo de 1917 ou a do eterno feminino ou do promotor puacuteblico ou das ciganas vestidas agrave hussarda que haacute vinte e cinco anos reinavam num restaurante dos Campos Eliacutesios Certo vermelho tambeacutem eacute um foacutessil retirado do fundo de mundos imaginaacuterios (MERLEAU-PONTY 1992 p 129)
Para o filoacutesofo natildeo eacute possiacutevel perceber uma ldquocor nuardquo tal como
se pretende a visatildeo cartesiana entendida como transmissatildeo de movimento
(MERLEAU-PONTY 1996 p 237) vista como ldquoqualidade secundaacuteriardquo
mesmo se a procuraacutessemos tal como se mostra em cada uma de suas
exibiccedilotildees dado ela natildeo ser assim como todo visiacutevel em geral ldquo[] um
pedaccedilo duro indivisiacutevel oferecido inteiramente nu a uma visatildeo que soacute
poderia ser total ou nula []rdquo Pelo contraacuterio o que se daacute eacute uma espeacutecie de
estreitamento de horizontes sempre abertos tanto exteriores como
interiores ou antes
[] algo que vem tocar docemente fazendo ressoar agrave distacircncia diversas regiotildees do mundo colorido ou visiacutevel certa diferenciaccedilatildeo uma modulaccedilatildeo efecircmera desse mundo sendo portanto menos cor ou coisa do que diferenccedila entre as coisas e as cores cristalizaccedilatildeo momentacircnea do ser colorido ou da visibilidade Entre as cores e os pretensos visiacuteveis encontra-se o tecido que os duplica sustenta alimenta e que natildeo eacute coisa mas possibilidade latecircncia e carne das coisas (MERLEAU-PONTY 1992 p 129-130)
117
Pensando nestas questotildees Merleau-Ponty procura nos advertir
de que ldquoo que haacute de indefiniacutevel no quale na cor nada mais eacute que uma
maneira breve peremptoacuteria de produzir num uacutenico tom de ser visotildees
passadas visotildees vindouras e aos cachosrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 132)
Deste modo a cor eacute natildeo soacute sentida mas habitada pelo olhar fazendo com
que aquele que a sente e a habita seja capaz de sentir ldquo[] tudo o que de
fora se assemelha de sorte que preso no tecido das coisas o atrai
inteiramente o incorpora e pelo mesmo movimento comunica agraves coisas
sobre as quais se fecha []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 132) portanto
ldquo[] essa identidade sem superposiccedilatildeo essa diferenccedila sem contradiccedilatildeo essa
distacircncia do interior e do exterior que constituem seu segredo natalrdquo
(MERLEAU-PONTY 1992 p 132) Natildeo haacute pois uma cor absoluta tal como
jaacute ensinava a Pheacutenomeacutenologie de la perception ao falar de um vermelho que
ldquo[] natildeo seria literalmente o mesmo se natildeo fosse o lsquovermelho lanosorsquo de um
tapeterdquo posto que a ldquoanaacutelise descobre portanto em cada ponto
significaccedilotildees que a habitamrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 25 o grifo eacute
nosso) O que isto significa Como iraacute acentuar Le visible et lrsquoinvisible
proacuteximo ao texto de 1945 a impossibilidade de se crer que as cores sejam os
ldquorelevos taacuteteisrdquo de um outro ser Talvez tal compreensatildeo se efetue quando
partimos do ensejo de obter uma ldquoideiardquo uma ldquoimagemrdquo ou uma
ldquorepresentaccedilatildeordquo mas quando o que se tenciona eacute uma ldquoexperiecircncia
eminenterdquo diraacute o filoacutesofo ldquo[] basta que eu contemple uma paisagem que
fale dela com algueacutem entatildeo graccedilas agrave operaccedilatildeo concordante de seu corpo
com o meu o que vejo passa para ele este verde individual da pradaria sob
meus olhos invade-lhe a visatildeo sem abandonar a minhardquo (MERLEAU-PONTY
1992 p 138) Deste modo ldquoreconheccedilo em meu verde o seu verde como de
repente o guarda alfandegaacuterio reconhece no passageiro o homem cujos
sinais lhe foram fornecidosrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 138) Merleau-
Ponty nos apresenta a cor especialmente em seus uacuteltimos trabalhos a
partir do que seria uma ldquodimensionalidaderdquo do Ser Daiacute sua criacutetica a
Descartes pois cada cor diraacute uma de suas Notes seria semelhante a uma
nota musical que embora sendo a mesma possa ser tocada no ldquocampo de
outro tomrdquo ou seja a ldquomesmardquo ldquo[] tornada aquela no tom da qual estaacute
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escrita uma melodiardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 202) Natildeo compreender
isso eacute o mesmo que se esquecer de que como diria Claudel (MERLEAU-
PONTY 1992 p 202) nas palavras de Merleau-Ponty ldquoo universal natildeo existe
acima mas abaixordquo logo
Cada ldquosentidordquo eacute um ldquomundordquo i e absolutamente incomunicaacutevel para os outros sentidos e no entanto constroacutei um algo que pela sua estrutura de imediato se abre para o mundo dos outros sentidos e com eles constitui um uacutenico Ser A sensorialidade por ex uma cor o amarelo ultrapassa-se a si mesma desde que se torna uma cor tem por conseguinte de per si uma funccedilatildeo ontoloacutegica torna-se apta a representar todas as coisas (como as gravuras de talhe-doce IV Discurso da Dioptrique) Num uacutenico movimento impotildee-se como particular e cessa de ser visiacutevel como particular O ldquoMundordquo eacute este conjunto onde cada ldquoparterdquo quando a tomamos por si mesma abre de repente dimensotildees ilimitadas ndash torna-se parte total (MERLEAU-PONTY 1992 p 202)
Ao contrapor-se ao modo pelo qual Descartes se aproxima da cor
como tambeacutem ao nos insinuar uma ldquoafetividade das coresrdquo e uma ldquotopologia
do sensiacutevelrdquo entrelaccedilada a uma espeacutecie de ldquotopologia do imaginaacuteriordquo o que
Merleau-Ponty tem em vista eacute a desconstruccedilatildeo da pretensatildeo cartesiana em
tentar diluir e resolver de uma vez por todas o enigma da visatildeo Para
Merleau-Ponty ldquoo enigma da visatildeo natildeo foi eliminado ele foi remetido do
lsquopensamento de verrsquo para a visatildeo em atordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 45)
Ao seguir o modelo do tato Descartes esquece-se da luz80 que natildeo agindo
sobre os nossos olhos segundo leis da fiacutesica vemos diante de noacutes Eacute o que
encontramos na Dioptrique quando reduzindo a luz aos seus movimentos
Descartes toma como modelo os movimentos de uma bola que passando
pelo ar ldquoencontra corpos moles duros ou liacutequidosrdquo capazes
consequentemente de paraacute-la amortececirc-la ou remetecirc-la para um outro lado
(DESCARTES 1996a p 90) Para Descartes os movimentos da luz
80 Para Descartes o cego ignorando o fenocircmeno puramente subjetivo da cor encontrar-se-ia liberado para receber a verdade da luz Assim procurando defender a ideia da identidade da luz que vemos e do bastatildeo do cego Descartes nos diz que ldquoo que pode levar-nos no iniacutecio a considerar estranho que esta luz pudesse estender seus raios em um instante desde o Sol ateacute noacutes eacute o fato de que vocecirc sabe que a accedilatildeo da qual percebe-se uma finalidade no bastatildeo passa assim em um instante de um a outro e que deveria passar do mesmo jeito mesmo que haja uma distacircncia maior que haacute de fato desde a terra ateacute os ceacuteusrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 45)
119
seguiriam estas mesmas leis pois ldquoconsidere enfim que os raios se
desviam tambeacutem do mesmo modo do que foi dito de uma bola quando
encontram obliquamente a superfiacutecie de um corpo transparente pelo qual
eles penetram mais ou menos facilmente do que aquele de onde vieram e
este modo de se desviar se chama neles refraccedilatildeordquo (DESCARTES 1996a p
92)
Ora se a luz se reduz agrave refraccedilatildeo de seus raios eacute o que parece
perguntar Merleau-Ponty ldquopor que continuar a sonhar a propoacutesito dos
reflexos a propoacutesito dos espelhos Estes duplos irreais satildeo uma variedade
das coisas satildeo efeitos reais como o ricochete de uma balardquo (MERLEAU-
PONTY 1975b p 43) Assim ldquose o reflexo se parece com a coisa mesma tal
acontece porque ele age sobre os olhos aproximadamente como o faria uma
coisa O reflexo engana o olho engendra uma percepccedilatildeo sem objeto mas
que natildeo afeta a nossa ideia do mundordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 43)
pois ldquono mundo haacute a coisa mesma e fora dela haacute essa outra coisa que eacute
um raio refletido dando-se o caso de ter com a primeira uma
correspondecircncia regrada dois indiviacuteduos portanto ligados pela
causalidaderdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 43)
2242 Os limites da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva
Do mesmo modo poderiacuteamos encontrar a criacutetica de Merleau-
Ponty ao elogio cartesiano da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva81 como salienta
a Dioptrique tal como era entendida pelo mundo renascentista Na
Renascenccedila as leis da perspectiva eram compreendidas como a vitoacuteria da
racionalidade humana e da objetividade cientiacutefica sobre a visatildeo natural que
era vista como primitiva Sendo originaacuteria do latim (perspicere olhar atraveacutes
de ver bem ver perfeitamente) a perspectiva daacute uma ilusatildeo tridimensional
a imagem de um mundo perfeitamente bem medido e formado por espaccedilos
81 Na pintura contemporacircnea em contrapartida especialmente com Ceacutezanne a perspectiva ganha outro perfil sendo encarada como estranha e paradoxal Por fim com uma arte abstrata a ldquoteacutecnica sagradardquo da Renascenccedila cedeu lugar agraves invenccedilotildees e agraves criaccedilotildees proacuteprias de cada artista
120
equidistantes Daiacute o elogio de Descartes uma vez que na pespectiva haveria
uma visatildeo mais apurada que romperia com as confusotildees da percepccedilatildeo
natural constituindo-se pois como uma correta interpretaccedilatildeo tal como
faria uma visatildeo do espiacuterito uma intuitus mentis
[] De acordo com as regras da perspectiva frequentemente elas representam melhor ciacuterculos por ovais que por outros ciacuterculos e quadrados por losangos que por outros quadrados e assim todas as outras figuras de modo que frequentemente para serem mais perfeitas em qualidade de imagens e melhor representar um objeto natildeo devem se lhe assemelhar (DESCARTES 2007 p 172 1996a p 114)82
Ora segundo a teoria claacutessica a profundidade apresentava-se
como uma largura considerada de perfil desprovida de qualquer
originalidade pois se aceitava a ideia de que ela se manifestava pela nossa
capacidade de decifrar a grandeza aparente dos objetos e por nossos olhos
seguir uma lei de convergecircncia que se efetivava quando lhes dirigiacuteamos a
nossa atenccedilatildeo Todavia para que seja possiacutevel pensar a profundidade como
largura teriacuteamos que aceitar a ideia de uma certa ubiquidade da visatildeo o
que se tornaria problemaacutetico tanto para o pensamento reflexivo como para o
empirismo Neste sentido segundo Merleau-Ponty a temaacutetica da
profundidade nos convida a abandonar os nossos preacutejugeacutes acerca do mundo
e a retornar agrave nossa experiecircncia Eacute assim que podemos encontrar na
profundidade uma dimensatildeo existencial O que isto significa Para o
filoacutesofo a profundidade apresenta um laccedilo indissoluacutevel entre o vidente e o
visiacutevel Buscando uma profundidade ainda natildeo objetivada portanto natildeo
fundada na concepccedilatildeo renascentista de perspectiva Merleau-Ponty desejava
ultrapassar as relaccedilotildees estabelecidas entre sujeito e objeto Para ele a ideia
de que o mundo seja um espelho diante do qual o nosso corpo se encontra
fazendo com que a imagem que se forma no corpo-tela seja como no
82 ldquoAtque etiam hanc similitudinem valde esse imperfectam cugravem in superficie plana corpora diversimodegrave surgentia aut subsidentia exhibeant et secundugravem regulas scenographiaelig meliugraves saepe circulos repraeligsentent per alios ellipses quagravem per alios circulos et quadrata per rhombos quagravem per alia quadrata et ita de caeteris adeograve ut saeligpius ad absolutam imaginis perfectionem et adumbrationem objecti accuratam dissimilitudo in imagine requiraturrdquo
121
espelho proporcional ao espaccedilo vazio entre o corpo e o objeto apresentava-
se confusa Pensando no modo como isto se articula na pintura por
exemplo o filoacutesofo nos diz o seguinte
O quadro todo estaacute no passado no modo do remoto e da eternidade tudo ganha um ar de dececircncia e de discriccedilatildeo as coisas natildeo me interpelam e natildeo estou comprometido por elas E se acrescento a esse artifiacutecio da perspectiva geomeacutetrica a perspectiva aeacuterea como o fazem particularmente tantos quadros venezianos sente-se a que ponto aquele que pinta a paisagem e aquele que olha o quadro satildeo superiores ao mundo como o dominam como o abarcam pelo olhar A perspectiva eacute muito mais do que um segredo teacutecnico para representar uma realidade que se daria dessa maneira a todos os homens ela eacute a proacutepria realizaccedilatildeo e a invenccedilatildeo de um mundo dominado possuiacutedo de ponta a ponta num sistema instantacircneo do qual o olhar espontacircneo nos oferece apenas um esboccedilo quando tenta em vatildeo conservar juntas todas as coisas cada qual existindo por inteiro A perspectiva geomeacutetrica natildeo eacute mais a uacutenica maneira de ver o mundo sensiacutevel tanto quanto o retrato claacutessico natildeo eacute a uacutenica maneira de ver o homem (MERLEAU-PONTY 1975b p 75)
Pelo que notamos a perspectiva mais do que uma teacutecnica
oculta a celebraccedilatildeo de um sonho um desejo de dominaccedilatildeo teoacuterica da
Natureza a busca de uma geometrizaccedilatildeo do mundo a ldquorealizaccedilatildeordquo e a
ldquoinvenccedilatildeordquo de um mundo dominado Ora ao se pensar em uma ldquocrise da
Razatildeordquo natildeo seria este mundo que se vecirc em ruiacutena Eacute pensando nisto que o
filoacutesofo iraacute vislumbrar como contra-senso a intenccedilatildeo de inserir o nosso
corpo e o exterior em um mesmo espaccedilo objetivo Assim compreendendo a
nossa percepccedilatildeo do mundo como anterior a qualquer visada de consciecircncia e
objetivaccedilatildeo da Natureza de que modo buscar sua fundamentaccedilatildeo em
relaccedilotildees objetivas distantes da proacutepria experiecircncia O estabelecimento da
proporcionalidade inversa entre a distacircncia aparente e o tamanho aparente
pela Renascenccedila apresenta-se como uma perspectiva artificial que exagera
as diferenccedilas de tamanho entre os objetos proacuteximos e distantes Por outro
lado tambeacutem reduz os aspectos expressivos e emocionais que a perspectiva
natural vivida pode nos permitir Na perspectiva vivida concluiacutemos que
tanto o vertical quanto o horizontal o proacuteximo como o longiacutenquo satildeo
dimensotildees abstratas que se referem a um uacutenico ser que se encontra em
situaccedilatildeo visto que ldquoa profundidade assim compreendida eacute antes a
experiecircncia da reversibilidade das dimensotildees de uma lsquolocalidadersquo global
122
onde tudo eacute ao mesmo tempo da qual a altura largura e distacircncia satildeo
abstraiacutedas ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 54) Por conseguinte natildeo se
trata de uma visatildeo absoluta de uma Wesenschau83 promovida por um
sujeito transcendental nem muito menos por um Kosmotheacuteoros por um
observador universal A relaccedilatildeo natildeo se daacute mais por cima a partir de um ver
nobre e puro mas de um olhar encarnado que se aproxima das coisas com
uma postura interrogativa Deste modo em contrapartida ao sujeito
universal e constituinte encontramos uma subjetividade encarnada
mergulhada no mundo e detentora de um certo estilo Merleau-Ponty sente
pois a necessidade de uma mudanccedila de enfoque tal como sua filosofia
tentaraacute promover a passagem de um Uninteressirter Zuschauer de um
espectador desinterassado para o vidente para um sujeito encarnado
Assim ocorre o abandono de uma luminosidade ofuscante aprisionada pelo
sujeito e pelas essecircncias para o direcionamento ao lusco-fusco no qual as
palavras e os corpos podem vir agrave luz
2243 O enigma do olhar e os impasses da representaccedilatildeo
Para Merleau-Ponty a vida representativa da consciecircncia natildeo eacute
primeira nem uacutenica natildeo pode fundar nem definir o que seja a consciecircncia e
o mundo O subjetivismo inerente agrave reflexatildeo filosoacutefica faz com que as coisas
exteriores se convertam em realidades cada vez menos reais na medida em
que natildeo passariam de representaccedilotildees e ideias de uma consciecircncia
constituinte O ldquopensamento de sobrevocircordquo na filosofia converte o ldquomundordquo em
representaccedilatildeo do mundo presente na mente do sujeito cognoscente e o ldquoverrdquo
num pensamento de ver Eacute assim que desviando a visatildeo fora de si mesma e
ignorando a proacutepria experiecircncia Descartes recusa o aprofundamento
83 ldquoSeria tempo de rejeitar os mitos da indutividade e da Wensenshau transmitidos como pontos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo No entanto estaacute claro que nem mesmo Husserl obteve uma uacutenica Wesenschau que natildeo tenha em seguida retomado e retrabalhado natildeo para desmenti-la mas para obrigaacute-la a dizer o que ela de iniacutecio natildeo dissera inteiramente de sorte que seria ingecircnuo procurar a solidez num ceacuteu de ideias ou num fundo de sentido ela natildeo estaacute nem acima nem abaixo das aparecircncias mas na sua juntura sendo o elo que liga secretamente uma experiecircncia agraves suas variantes Estaacute claro tambeacutem que a indutividade pura eacute um mitordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 114)
123
daquilo que constitui o enigma o misteacuterio Obrigado a ldquoclarificar a visatildeordquo a
dispersa para tentar com uma estrateacutegia artificial explicar ldquocomo ela se
realizardquo Em uma palavra renuncia a aprofundar o que constitui o enigma
Natildeo estou seguro de que ali exista um cinzeiro ou um cachimbo mas estou seguro de que penso ver um cinzeiro ou um cachimbo Seria tatildeo faacutecil quanto se acredita dissociar essas duas afirmaccedilotildees e manter fora de qualquer juiacutezo concernente agrave coisa vista a evidecircncia de meu ldquopensamento de verrdquo Ao contraacuterio isso eacute impossiacutevel A percepccedilatildeo eacute justamente este gecircnero em que natildeo se poderia tratar de colocar agrave parte o proacuteprio ato e o termo sobre o qual ele versa A percepccedilatildeo e o percebido tecircm necessariamente a mesma modalidade existencial jaacute que natildeo se poderia separar da percepccedilatildeo a consciecircncia que ela tem ou antes que ela eacute de atingir a coisa mesma (MERLEAU-PONTY 1999 p 500)
Ao contraacuterio de uma operaccedilatildeo do pensamento de uma decisatildeo
do espiacuterito guiado por representaccedilotildees o olhar seria para Merleau-Ponty um
aproximar-se do mundo e o movimento ldquoa sequecircncia natural e a maturaccedilatildeo
de uma visatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 20) Natildeo teria sentido como
pretendia o empirismo a ideia de um duplo enfraquecido nem muito menos
como o intelectualismo aspirava uma ideia perfeita O que nos ensina a
corporeidade o poder vidente do corpo caracteriza-se por ser uma
subjetividade que vecirc tanto a si quanto os outros seres por ldquoconfusatildeo
narcisismo inerecircncia daquele que vecirc em relaccedilatildeo aquilo que vecirc daquele que
toca em relaccedilatildeo agravequilo que toca do que sente ao que eacute sentidordquo (MERLEAU-
PONTY 1975b p 21) Como acontece quando olho um quadro o que vejo natildeo
se encontra simplesmente em uma parede ou em meu imaginaacuterio pois ldquoo
meu olhar passeia nele como nos nimbos do Ser e eu vejo segundo ele ou
com ele mais do que vejordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 23) Eacute neste
sentido que para Merleau-Ponty
O imaginaacuterio estaacute muito mais proacuteximo e muito mais distante do atual mais proacuteximo pois ele eacute o diagrama da sua vida no meu corpo a sua polpa ou o seu reverso carnal expostos aos olhares pela primeira vez e que neste sentido como o diz energicamente Giacometti ldquoo que me interessa em todas as pinturas eacute a semelhanccedila o que me faz descobrir um pouco o mundo exteriorrdquo Muito mais distante pois o quadro soacute eacute um anaacutelogo segundo o corpo ele natildeo oferece ao espiacuterito a ocasiatildeo de repensar as relaccedilotildees constitutivas das coisas mas ao olhar para que ele os despose os traccedilos da visatildeo do interior agrave visatildeo o que a reveste interiormente a textura imaginaacuteria do real (MERLEAU-PONTY 1975b p 24)
124
A partir destas conclusotildees Merleau-Ponty nos fala de uma
interioridade que natildeo se reduz agrave imanecircncia do sujeito pensante e que eacute
refrataacuteria a uma explicaccedilatildeo baseada em fenocircmenos fiacutesico-fisioloacutegicos Deste
modo seraacute o que considera ser o ldquoimpensado de Husserlrdquo ldquo[] marginalia de
algumas paacuteginas antigasrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 242) que o filoacutesofo
iraacute invocar Eacute assim que a partir de Le Philosophe et son Ombre Merleau-
Ponty nos apresenta a ldquocarnerdquo como uma ldquodimensatildeordquo na qual nem o espiacuterito
nem a Natureza seriam fundantes mas estando abaixo deles seria capaz de
constituiacute-los Aleacutem disto a nosso ver a noccedilatildeo de ldquocarnerdquo seraacute um dos
uacuteltimos recursos de Merleau-Ponty contra os desdobramentos da ciecircncia
claacutessica e do mundo cartesiano Ora o que Merleau-Ponty entende por
carne
A carne natildeo eacute mateacuteria natildeo eacute espiacuterito natildeo eacute substacircncia Seria
preciso para designaacute-la o velho termo ldquoelementordquo no sentido em que era empregado para se falar da aacutegua do ar da terra e do fogo
isto eacute no sentido de uma coisa geral meio caminho entre o
indiviacuteduo espaacutecio-temporal e a ideia a espeacutecie de princiacutepio
encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua Neste sentido a carne eacute um elemento do
ser () Pois se haacute carne isto eacute se a face escondida do cubo irradia
em algum lugar tatildeo bem como a que tenho sob os olhos e coexiste com ela e se eu que vejo o cubo tambeacutem participo do visiacutevel sou
visiacutevel de alhures se ele e eu juntos estamos presos num mesmo ldquoelementordquo ndash deve-se dizer do vidente ou do visiacutevel ndash essa coesatildeo
essa visibilidade de princiacutepio prevalece sobre toda discordacircncia momentacircnea (MERLEAU-PONTY 1992 p 136)
Por conseguinte encontrando-se na base de um campo
fenomenoloacutegico a noccedilatildeo de carne eacute o ponto de partida para um ldquocampo
transcendentalrdquo mediante o qual poderiacuteamos chegar ao mundo vivido um
criteacuterio pelo qual o ser mesmo se manifesta Em outras palavras ela
possibilita-nos dar uma fisionomia concreta agrave ldquocoisa mesmardquo uma inerecircncia
histoacuterica agrave subjetividade e um estado nascente agrave unidade vivente entre noacutes
mesmos e o mundo Deste modo natildeo sendo simplesmente um pensamento
a ldquocarnerdquo tambeacutem natildeo eacute mateacuteria nem tampouco substacircncia mas o
desdobrar-se do visiacutevel em um corpo vidente Assim sendo uma textura
uma presenccedila entrelaccedilada de corpo e coisa em um mesmo tecido
125
intencional ela possui por principal estrutura a sua reversibilidade Esta
estrutura ao contraacuterio de uma ldquodialeacutetica embalsamadardquo natildeo estaacute sujeita agrave
siacutentese pois seu logoj [loacutegos]84 eacute o proacuteprio mundo da experiecircncia comum eacute
a adesatildeo total ao Ser e o ponto de partida de toda possiacutevel reflexatildeo Como
diraacute Le Visible et LrsquoInvisible
Basta-nos apenas constatar que quem vecirc natildeo pode possuir o visiacutevel a natildeo ser que seja por ele possuiacutedo que seja dele que por princiacutepio conforme o que prescreve a articulaccedilatildeo do olhar e das coisas seja um dos visiacuteveis capaz graccedilas a uma reviravolta singular de vecirc-los ele que eacute uno Compreende-se entatildeo por que ao mesmo tempo vemos as proacuteprias coisas no lugar em que estatildeo segundo o ser delas que eacute bem mais do que o ser-percebido e estamos afastados delas por toda a espessura do olhar e do corpo eacute que essa distacircncia natildeo eacute o contraacuterio dessa proximidade mas estaacute profundamente de acordo com ela eacute sinocircnima dela Eacute que a espessura da carne entre o vidente e a coisa eacute constitutiva de sua visibilidade para ela como de sua corporeidade para ele natildeo eacute um obstaacuteculo entre ambos mas o meio de se comunicarem (MERLEAU-PONTY 1992 p 131-2)
Como notamos haacute segundo Merleau-Ponty a carne do corpo e a
carne do mundo Observando a reflexibilidade do nosso corpo o filoacutesofo
descobre que ele sempre apresentou aquilo que caracteriza a consciecircncia
Poreacutem observando tambeacutem a sua visibilidade percebe que ele conteacutem em si
o que sempre foi particularidade do objeto Portanto o corpo eacute o vidente que
se vecirc o tocado que se toca um sentido que se sente Corpo e mundo
transformam-se em campos de presenccedila onde emergem todas as relaccedilotildees da
vida perceptiva e do mundo sensiacutevel Contudo mais que o estabelecimento
de uma relatividade absoluta de uma indefiniccedilatildeo permanente no interior do
corpo proacuteprio haacute definitivamente uma unidade e uma reversibilidade entre
ldquosujeitordquo e ldquoobjetordquo conforme ilustra-nos como jaacute ilustramos no primeiro
capiacutetulo o exemplo jaacute claacutessico das matildeos que se tocam
84 Segundo Merleau-Ponty em nossa relaccedilatildeo com o mundo encontramos a presenccedila de um Loacutegos do mundo esteacutetico ou seja do mundo percebido que expressa uma unidade indivisa do corpo e das coisas uma unidade que natildeo permite as rupturas proacuteprias da reflexatildeo entre sujeitoobjeto Esse loacutegos do mundo esteacutetico torna possiacutevel a intersubjetividade como intercoporeidade fazendo com que atraveacutes da manifestaccedilatildeo corporal na linguagem surja o Logos cultural ndash o mundo humano da cultura e da histoacuteria
126
Quando minha matildeo direita toca a esquerda sinto-a como uma ldquocoisa fiacutesicardquo mas no mesmo instante se eu quiser um
acontecimento extraordinaacuterio se produz eis que minha matildeo esquerda tambeacutem se potildee a sentir a matildeo direita es wird Leib es empfindet A coisa fiacutesica se anima ou mais exatamente permanece como era o acontecimento natildeo a enriquece e entretanto uma
potecircncia exploradora vem pousar sobre ela ou habitaacute-la Assim porque eu me toco tocando meu corpo realiza ldquouma espeacutecie de
reflexatildeordquo Nele e por ele natildeo haacute somente um relacionamento em sentido uacutenico daquele que sente com aquilo que ele sente haacute uma
reviravolta na relaccedilatildeo a matildeo tocada torna-se tocante obrigando-me a dizer que o tato estaacute espalhado pelo corpo que o corpo eacute ldquocoisa
sentienterdquo ldquosujeito-objetordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 247)
Neste contexto a ldquocarnerdquo significa entrelaccedilamento e
reversibilidade coincidindo com a ideia de abertura e pertenccedila a um mesmo
mundo A sua existecircncia implica uma superaccedilatildeo das distacircncias entre o eu e
o outro entre o interno e o externo Nesta perspectiva consolida-se uma
relaccedilatildeo sem fronteiras entre meu corpo e as coisas semelhante a uma
espeacutecie de desdobramento de ambas as instacircncias e ao inverso e reverso de
uma folha Para Merleau-Ponty natildeo haacute limites fixos entre o orgacircnico e o
inorgacircnico entre o psiacutequico e o fiacutesico mas uma imbricaccedilatildeo tal como a
existente entre significante e significado aderecircncia e reversibilidade de um a
outro Assim sendo as coisas visiacuteveis satildeo dobras secretas do nosso corpo e
haacute uma mescla de pensamento e mateacuteria pois
Ao falarmos de carne do visiacutevel natildeo pretendemos fazer antropologia descrever um mundo recoberto por todas as nossas projeccedilotildees salvo que possa estar sob a maacutescara humana Queremos dizer ao contraacuterio que o ser carnal como ser das profundezas em vaacuterias camadas ou de vaacuterias faces ser de latecircncia e apresentaccedilatildeo de certa ausecircncia eacute um protoacutetipo do Ser de que nosso corpo o sensiacutevel sentiente eacute uma variante extraordinaacuteria cujo paradoxo constitutivo poreacutem jaacute estaacute em todo visiacutevel [] (MERLEAU-PONTY 1992 p 133)
A concepccedilatildeo merleau-pontiana de carne apresenta-nos uma
realidade submetida a uma espeacutecie de entrelaccedilamento entre o visiacutevel e o
invisiacutevel natildeo sendo contraditoacuteria a afirmaccedilatildeo de que o visiacutevel eacute invisiacutevel de
que o visiacutevel sempre se daacute sobre um fundo invisiacutevel Deste modo invisiacutevel eacute o
que sendo relativo ao visiacutevel natildeo poderia ser visto como coisa mas talvez
como condiccedilatildeo de possibilidade de toda presenccedila O sentido eacute invisiacutevel mas
o invisiacutevel natildeo eacute o oposto natildeo estaacute numa relaccedilatildeo de contradiccedilatildeo com o
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visiacutevel pois constitui com o visiacutevel uma textura O que eacute visiacutevel para mim
pode agraves vezes ser invisiacutevel para outro Contudo natildeo devemos admitir que o
invisiacutevel seja outro visiacutevel possiacutevel ou algo que seja simplesmente visiacutevel para
outro pois o invisiacutevel estaacute aleacutem sem ser objeto
Trata-se pois de superar as dicotomias mediante o
estabelecimento de uma ldquofeacute perceptivardquo que nos situe aleacutem das condiccedilotildees
fiacutesicas e filosoacuteficas Com isto impede-se a reduccedilatildeo da realidade concreta a
uma relaccedilatildeo orgacircnica do mundo com as ideias claras e distintas do
pensamento Esta ldquofeacute perceptivardquo eacute uma experiecircncia original sem
pressupostos Ela eacute adesatildeo agrave experiecircncia vivida ao que eacute num sentido
primordial Natildeo se trata meramente de uma relaccedilatildeo entre ego e mundus
mas de uma inserccedilatildeo no mundo Ao enunciarmos que o mundo eacute o conjunto
das coisas que vemos estamos proclamando esta ldquofeacute perceptivardquo que nos
mostra a existecircncia incontestaacutevel de algo que nos escapa que se daacute
portanto como uma figura sobre um fundo inesgotaacutevel
Neste sentido quando Merleau-Ponty nos diz que a percepccedilatildeo eacute
inacabada que todo visiacutevel traz consigo um invisiacutevel que a consciecircncia tem
seu ponto cego que ver eacute sempre mais do que um ver isto implica que eacute
inerente agrave visibilidade uma certa natildeo visibilidade O visiacutevel enquanto visiacutevel eacute
presenccedila e como tal se oferece com caraacuteter primordial O invisiacutevel natildeo eacute
simplesmente o que se encontra oculto ausente em estado de silecircncio mas
sobretudo uma possibilidade verdadeira na medida em que se vincula a
uma visibilidade Se todo visiacutevel remete-nos a um invisiacutevel isto indica que a
percepccedilatildeo natildeo pode ser concebida em termos pontuais senatildeo que possui o
caraacuteter de uma funccedilatildeo privilegiada a partir da qual eacute possiacutevel tentar
compreender os fenocircmenos ou seja a presenccedila originaacuteria do mundo Em
uma de suas Notes du Travail datada de 1960 afirma que
eacute atraveacutes da carne do mundo que se pode enfim compreender o proacuteprio corpo ndash A carne do mundo eacute Ser-visto ie Ser que eacute eminentemente percipi e eacute atraveacutes dela que se pode compreender o percipere o percebido que se chama meu corpo aplicando-se ao resto do percebido ie encarando-se a si proacutepria como um percebido para si e portanto como percebedor tudo isso soacute eacute afinal possiacutevel e soacute quer dizer alguma coisa porque haacute o Ser natildeo o Ser em si idecircntico a si na noite mas o Ser que conteacutem tambeacutem sua negaccedilatildeo o seu percipi () (MERLEAU-PONTY 1992 p 227)
128
Por fim conforme nos diz Merleau-Ponty ldquoa carne (a do mundo
ou a minha) natildeo eacute contingecircncia caos mas textura que regressa a si e
conveacutem a si mesmardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 142) Assim o que ele
denomina carne ldquoessa massa interiormente trabalhada natildeo tem portanto
nome em filosofia alguma Meio formador do objeto e do sujeito natildeo eacute o
aacutetomo de ser o em si duro que reside num lugar e num momento uacutenicordquo
(MERLEAU-PONTY 1992 p 142) Eacute preciso pensaacute-la ldquonatildeo a partir das
substacircncias corpo e espiacuterito pois seria entatildeo a uniatildeo dos contraditoacuterios
mas diziacuteamos como elemento emblema concreto de uma reversibilidade do
vidente e do visiacutevel do tacto de uma reversibilidade sempre iminente e
nunca realizada de fatordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 143) Diante disto
podemos compreender o direcionamento de Merleau-Ponty a uma ontologia
indireta a um Ser Bruto e Selvagem a um Loacutegos do mundo esteacutetico Natildeo
significa um retorno agrave metafiacutesica mas a descoberta de um ldquoser de abismordquo
que natildeo se permite aprisionar em meros conceitos Enfim eacute a indicaccedilatildeo de
que ldquoeste mundo barroco natildeo eacute uma concessatildeo do espiacuterito agrave Natureza pois
se em toda parte o sentido estaacute figurado eacute sempre de sentido que se tratardquo
(MERLEAU-PONTY 1975b p 260) Logo
essa renascenccedila do mundo eacute tambeacutem renascenccedila do espiacuterito redescoberta do espiacuterito bruto que natildeo estaacute aprisionado por nenhuma das culturas e ao qual se pede que crie novamente a cultura O irrelativo doravante natildeo eacute a natureza em si nem o sistema das apreensotildees da consciecircncia absoluta nem muito menos o homem mas essa ldquoteleologiardquo de que fala Husserl ndash que se escreve e se pensa entre aspas ndash juntura e membrana do Ser que se cumpre atraveacutes do homem (MERLEAU-PONTY 1975b p 260)
Neste momento encontramos a uacuteltima tentativa de
desconstruccedilatildeo do que seria uma consciecircncia constituinte e seus domiacutenios
Poreacutem em contrapartida este estatuto natildeo cabe ao mundo ou agraves coisas A
experiecircncia sensiacutevel eacute entendida como anterior agrave clivagem sujeito-objeto ou
consciecircncia-mundo Ela natildeo eacute o atributo nem de um sujeito nem de um
objeto sem ser contudo siacutentese entre ambos ou ateacute mesmo oriunda de uma
entidade fundadora que as precederia O corpo natildeo eacute sujeito mas nem por
isso eacute um objeto diluiacutedo no mundo O mundo natildeo eacute objeto mas nem por
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isso transforma-se no constituinte de nossa experiecircncia sensiacutevel Muito pelo
contraacuterio mundo e corpo satildeo simultaneamente sujeito e objeto sem deixa
de ser entretanto mundo e corpo Deste modo como entender o projeto
cartesiano de expatriar o mundo sensiacutevel O que levaria Descartes a romper
nossa pertenccedila ao mundo e transformaacute-la em um ldquopensamento de
sobrevocircordquo Para Merleau-Ponty a ldquoespiritualizaccedilatildeo cartesianardquo que se faz
presente por exemplo na identificaccedilatildeo de espaccedilo e espiacuterito parte na
verdade de um ldquopostulado ingecircnuordquo Eacute o que leva a crer que a distacircncia natildeo
pertenceria aos proacuteprios objetos mas seria antes a ldquopresenccedila imediata do
espiacuteritordquo Esta ideia para Merleau-Ponty teria sido sugerida pelo proacuteprio
mundo pois a sua ldquoaparente evidecircnciardquo funda-se no proacuteprio deslocamento
do olhar em sua capacidade de se ldquoreportarrdquo de si mesmo ao que o
condiciona Em outros termos nasceria da ldquoconvicccedilatildeo maciccedila tirada da
experiecircncia exterior onde tenho com efeito a seguranccedila de que as coisas
sob meus olhos permanecem as mesmas enquanto delas me aproximo para
inspecionaacute-las melhor []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 45) No entanto o
que permanece esquecido eacute que isso se daacute ldquo[] porque o funcionamento de
meu corpo como possibilidade de mudar de acircngulo de visatildeo ldquoaparelho de
verrdquo ou ciecircncia sedimentada do ldquoacircngulo de visatildeordquo me assegura que me
aproximo da proacutepria coisa que haacute pouco eu via de longerdquo (MERLEAU-PONTY
1992 p 46) Por conseguinte
[] Tendo pois aprendido pela experiecircncia perceptiva o que eacute ldquover bemrdquo a coisa e o que eacute preciso e possiacutevel para o conseguirmos dela nos aproximarmos sendo os novos dados assim adquiridos determinaccedilotildees da proacutepria coisa transportamos para o interior essa certeza recorremos agrave ficccedilatildeo de um ldquohomenzinho dentro do homemrdquo e assim chegamos a pensar que refletir sobre a percepccedilatildeo eacute permanecendo a coisa percebida e a percepccedilatildeo o que eram desvendar o verdadeiro sujeito que as habita e que sempre as habitou Na realidade eu deveria dizer que havia uma coisa percebida e uma abertura para essa coisa que a reflexatildeo neutralizou transformou em percepccedilatildeo-reflexiva e em coisa-percebida-numa-percepccedilatildeo-reflexiva e que o funcionamento refletido como o do corpo explorador usa de poderes obscuros para mim transpassa o ciclo de duraccedilatildeo que separa a percepccedilatildeo bruta do exame reflexionante e soacute manteacutem durante esse tempo a permanecircncia do percebido e da percepccedilatildeo sob o olhar do espiacuterito porque minha inspeccedilatildeo mental e minhas atitudes de espiacuterito prolongam o ldquoeu possordquo de minha exploraccedilatildeo sensorial e corporal (MERLEAU-PONTY 1992 p 46)
130
Em contrapartida constituindo-se como uma quase-presenccedila a
imagem do que foi visto deve ter o seu valor recuperado pois natildeo eacute uma
mera coacutepia em nosso bazar privado nem se reduziria ao modo como
Descartes tentara lidar com o problema da similitude no ensejo de romper
com a escolaacutestica85 Todavia para Merleau-Ponty ldquoeacute necessaacuterio tomar agrave letra
o que nos ensina a visatildeo que atraveacutes dela atingimos o Sol as estrelas
estamos ao mesmo tempo em todo lado tatildeo proacuteximos das distantes como
das proacuteximas ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 66) Fazendo uso de uma
linguagem poeacutetica o filoacutesofo nos afirma que o mundo semelhante aos carris
de uma estrada de ferro ldquoeacute segundo a minha perspectiva para ser
independente de mim que eacute para mim a fim de ser sem mim de ser mundordquo
(MERLEAU-PONTY 1975b p 67) Assim ldquoqualquer coisa visual por muito
indiviacuteduo que seja funciona tambeacutem como dimensatildeo porque se oferece
como resultado de uma deiscecircncia do Serrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 67)
Essa realidade indica ao filoacutesofo que ldquoeacute proacuteprio do visiacutevel ter uma dobragem
invisiacutevel em sentido estrito que ele torna presente como uma certa
ausecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 67) uma vez que a imposiccedilatildeo de
que o ldquorealrdquo e o ldquoimaginaacuteriordquo sejam como diraacute Merleau-Ponty duas ldquoordensrdquo
dois ldquopalcosrdquo ou ldquoteatrosrdquo a saber ldquoo do espaccedilo e o dos fantasmasrdquo
ldquomontados em noacutes antes dos atos de discriminaccedilatildeo que apenas intervecircm
nos casos equiacutevocos e onde o que vivemos vem instalar-se por si fora de
todo controle critereoloacutegicordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 47) proveacutem tanto
do ldquo[]simples fato amiuacutede observado que a imaginaccedilatildeo mais verossiacutemil
mais conforme ao contexto da expressatildeo natildeo nos faz avanccedilar um passo na
direccedilatildeo da ldquorealidaderdquo sendo imediatamente posta por noacutes do lado do
85 Vale lembrar que se tratava tambeacutem de se negar a noccedilatildeo de semelhanccedila tal como era entendida pelos renascentistas negando-se a ideia de que o fundamento do conhecimento encontrava-se sobretudo em uma operaccedilatildeo descritiva e interpretativa Como observa Foucault por meio da noccedilatildeo de Semelhanccedila encontramos conceitos como por exemplo empatia e antipatia serem empregados por ciecircncias tais como a medicina a astronomia a teologia nas doenccedilas e nos movimentos dos astros a utilizaccedilatildeo de noccedilotildees tais como a imitaccedilatildeo e a emulaccedilatildeo sendo empregadas para indicar relaccedilotildees entre os seres humanos entre as coisas vivas entre os homens e as coisas Por fim na semelhanccedila encontrava uma espeacutecie de saber e de poder (FOUCAULT 1999)
131
imaginaacuterio []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 47) como tambeacutem de modo
inverso do simples fato de que ldquo[] tal barulho absolutamente inesperado e
imprevisiacutevel eacute de imediato percebido como real por fracas que sejam suas
ligaccedilotildees com o contextordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 48) No entanto
Que algumas vezes os controles se tornem necessaacuterios e terminem em juiacutezos de realidade que retificam a experiecircncia ingecircnua isso natildeo prova que juiacutezos dessa espeacutecie estejam na ordem dessa distinccedilatildeo ou a constituam natildeo nos dispensando por conseguinte de compreendecirc-la por si proacutepria Se o fizermos natildeo seraacute preciso definir o real por sua coerecircncia e o imaginaacuterio por sua incoerecircncia ou suas lacunas o real eacute coerente e provaacutevel por ser real e natildeo o real por ser coerente o imaginaacuterio eacute incoerente ou improvaacutevel porque eacute imaginaacuterio e natildeo imaginaacuterio porque eacute incoerente A menor parcela do percebido o incorpora de imediato ao ldquopercebidordquo o fantasma mais verossiacutemil escorrega na superfiacutecie do mundo eacute esta presenccedila do mundo inteiro num reflexo sua ausecircncia irremediaacutevel nos deliacuterios mais ricos e mais sistemaacuteticos que devemos compreender e essa diferenccedila natildeo eacute do mais ao menos (MERLEAU-PONTY 1992 p 48)
Eacute que nos parece mostrar por exemplo a experiecircncia da pintura
pois mesmo que um cartesiano possa ldquoacreditar que o mundo existente natildeo
eacute visiacutevel que soacute existe a luz do espiacuterito que toda visatildeo se faz em Deusrdquo
(MERLEAU-PONTY 1992 p 65) o pintor de modo contraacuterio ldquonatildeo pode
consentir que a nossa abertura ao mundo seja ilusoacuteria ou indireta que
aquilo que noacutes vemos natildeo seja o mundo mesmo que o espiacuterito soacute tenha algo
a ver com os seus pensamentos ou outro espiacuteritordquo (MERLEAU-PONTY 1992
p 65) Aceitando o mito das janelas da alma ele sabe ldquoque aquilo que eacute sem
lugar esteja adstrito a um corpordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 66) embora
reconheccedila tambeacutem que ldquoseja iniciado por ele em todos os outros e na
naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 66)86 Por isso
86 Eacute neste sentido que a falar da representaccedilatildeo artiacutestica por exemplo Merleau-Ponty nos diz que a filosofia precisa reconhecer que o que eacute celebrado pela pintura natildeo eacute outra coisa senatildeo o fato de ldquo[] que a mesma coisa estaacute ali no coraccedilatildeo do mundo e aqui no coraccedilatildeo da visatildeo a mesma ou se fizer questatildeo uma coisa semelhante mas segundo uma similitude eficaz que eacute analogia gecircnese metamorfose do ser na sua visatildeo (MERLEAU-PONTY 1992 p 65) Em outras palavras ldquoeacute a proacutepria montanha que dali se daacute a ver ao pintor eacute a ela que ele interroga com o olharrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 65) Para Merleau-Ponty pensando no olhar ldquoa visatildeo eacute o encontro como numa encruzilhada de todos os aspectos do Serrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 109) pois eacute ldquoo proacuteprio Ser mundo que vem a manifestar seu proacuteprio sentidordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 109)
132
Eacute preciso compreender o olho como a ldquojanela da almardquo ldquoO olho pelo qual a beleza do universo eacute revelada agrave nossa contemplaccedilatildeo eacute de uma tal excelecircncia que quem se resignasse agrave sua perda privar-se-ia de conhecer todas as obras da natureza com as quais a vida faz permanecer a alma contente na prisatildeo do corpo graccedilas aos olhos que lhe emprestam a infinita variedade da Criaccedilatildeo quem os perde abandona esta alma numa obscura prisatildeo onde cessa toda esperanccedila de rever o sol luz do universordquo O olho realiza o prodiacutegio de abrir agrave alma o que natildeo eacute alma o bem aventurado domiacutenio das coisas e o seu Deus o Sol (MERLEAU-PONTY 1992 p 65)
Por conseguinte pensando nestas consideraccedilotildees no abandono
de uma possiacutevel ldquoexpatriaccedilatildeordquo que ldquorelaccedilatildeordquo encontramos entre o visiacutevel e o
in-visiacutevel Em uma nota de trabalho datada de novembro de 1959 Merleau-
Ponty nos diz que ldquoo sentido eacute invisiacutevel mas o invisiacutevel natildeo eacute contraditoacuterio do
visiacutevel o visiacutevel possui ele proacuteprio uma membrura de invisiacutevel e o in-visiacutevel
eacute a contraparte secreta do visiacutevel natildeo aparece senatildeo nele ()rdquo (MERLEAU-
PONTY 1992 p 200) Deste modo se todo visiacutevel tem uma armaccedilatildeo de
invisiacutevel eacute preciso supor que a visibilidade mesma aponta uma natildeo
visibilidade Segundo o filoacutesofo natildeo haacute mais essecircncias acima de noacutes
direcionadas a um olho espiritual mas uma essecircncia sob noacutes nervura
comum do significante e do significado Por sua vez o sujeito cognoscente
estaacute no meio da Lebenswelt e eacute incapaz de uma visatildeo direta das essecircncias
visto que fatos e essecircncias satildeo puras abstraccedilotildees pois
no que respeita agrave essecircncia como ao fato basta que nos coloquemos no ser de que se trata em vez de olhaacute-lo de fora ou ainda o que vem a ser a mesma coisa cabe recolocaacute-lo no tecido de nossa vida assistir por dentro agrave deiscecircncia anaacuteloga agrave de meu corpo que o abre para si mesmo e nos abre para ele e que tratando-se da essecircncia eacute a do falar e a do pensar Como meu corpo que eacute um dos visiacuteveis vecirc-se tambeacutem a si mesmo e por isso torna-se luz natural abrindo para o visiacutevel seu interior a fim de que venha a ser paisagem minha realizando como se diz a miraculosa promoccedilatildeo do Ser agrave ldquoconsciecircnciardquo ou como dizemos de preferecircncia a segregaccedilatildeo do ldquointeriorrdquo e do ldquoexteriorrdquo ndash do mesmo modo a fala sustentada pelas mil relaccedilotildees ideais da liacutengua e que para a ciecircncia como linguagem constituiacuteda eacute pois certa regiatildeo no universo das significaccedilotildees eacute tambeacutem oacutergatildeo amplificador de todas as demais e por conseguinte co-extensiva ao pensaacutevel (MERLEAU-PONTY 1992 p 115)
Nisto notamos nos uacuteltimos trabalhos de Merleau-Ponty tanto
em sua oposiccedilatildeo aos desdobramentos da ontologia cartesiana como em sua
aproximaccedilatildeo da filosofia leibniziana o seu direcionamento ao que segundo
133
Chauiacute seria uma ldquoharmonia na diferenciaccedilatildeordquo haja vista que por meio dela
o filoacutesofo ldquotrabalha simultaneamente com a individuaccedilatildeo como segregaccedilatildeo
de campos na massa compacta e diaacutefana do sensiacutevel e com a comunicaccedilatildeo
ou o parentesco ontoloacutegicos desses campos isto eacute carne como lsquoconveniecircncia
a si mesmarsquordquo (CHAUIacute 1983 p 248) Esta harmonia da qual fala Merleau-
Ponty diferentemente da proposta cartesiana eacute o que o levaraacute a entender e
isto jaacute em seus primeiros trabalhos ldquo[] a percepccedilatildeo como exploraccedilatildeo
concordante essa feacute perceptiva que nos faz crer com forccedila inabalaacutevel que a
sexta face de um cubo aquela que nunca vimos e jamais veremos natildeo eacute um
olho maleacutefico nem um riso perverso mas serenamente a sexta face de um
cubordquo (CHAUIacute 1983 p 248) Do mesmo modo seria ela que o levaria a
compreender ldquo[] por que a ilusatildeo permite a desilusatildeo menos como
passagem do ldquofalsordquo ao ldquoverdadeirordquo e mais como correccedilatildeo da evidecircnciardquo
(CHAUIacute 1983 p 248) Ora esta ldquoharmoniardquo muito proacutexima da ldquoharmonia
preestabecidardquo de Leibniz seria o que em sua linguagem Merleau-Ponty
denomina quiasma termo que tambeacutem cumpriria a tarefa de indicar a
reflexibilidade e a reversibilidade da carne Eacute o que nos parece dizer o
filoacutesofo em uma nota de trabalho datada de 1 de novembro de 1959
A clivagem natildeo consiste essencialmente em para Si para Outro (sujeito-objeto) eacute mais exatamente a de algueacutem que se dirige ao mundo e que do exterior pareccedila permanecer no seu lsquosonhorsquo Quiasma atraveacutes do qual o que se anuncia a mim como o ser parece aos olhos dos olhos natildeo ser mais do que lsquoestados de consciecircnciarsquo ndash Mas como o quiasma dos olhos esse eacute tambeacutem o que faz com que pertenccedilamos ao mesmo mundo ndash um mundo que natildeo eacute projetivo mas que realiza a sua unidade atraveacutes das incompossibilidades tais como a de meu mundo e do mundo do outro ndash Essa mediaccedilatildeo pela ruiacutena este quiasma fazem com que natildeo haja simplesmente antiacutetese para-Si para-Outro que haja o Ser como contendo tudo isso de iniacutecio como Ser sensiacutevel e em seguida como Ser sem restriccedilatildeo ndash O quiasma em lugar do Para Outro isso quer dizer que natildeo haacute apenas rivalidade eu-outrem mas co-funcionamento Funcionamos como um uacutenico corpo (MERLEAU-PONTY 1992 p 199)
Melhor que a expressatildeo leibniziana de ldquoharmonia
preestabelecidardquo o quiasma parece sugerir ao filoacutesofo uma medida que
melhor expressa esta ligaccedilatildeo existente entre um avesso e um direito como
conjuntos antecipadamente unificados e em vias de diferenciaccedilatildeo Portanto
para Merleau-Ponty este conceito como indica Chauiacute ldquo[] natildeo soacute eacute o
134
equivalante para o caacutelculo dos possiacuteveis do melhor dos mundos87 mas ainda
eacute lsquopregnacircncia dos possiacuteveisrsquo infinito que natildeo eacute positivo nem negativo mas
simultaneidade da conveniecircncia a si mesma e da transcendecircnciardquo (CHAUIacute Da
Realidade sem Misteacuterio ao Misteacuterio do Mundo Espinosa Voltaire Merleau-Ponty p
249) Deste modo ldquosobretudo o quiasma isto eacute a reversibilidade do direito e
do avesso cruzamento do interior e do exterior por dentro natildeo exige um
lsquoespectador que esteja dos dois ladosrsquordquo (CHAUIacute Da Realidade sem Misteacuterio ao
Misteacuterio do Mundo Espinosa Voltaire Merleau-Ponty p 249) Pensando nestas
consideraccedilotildees podemos entender porque apoacutes ter observado a
reversibilidade presente no corpo e a reversibilidade existente no mundo o
filoacutesofo chega agrave conclusatildeo de que a principal questatildeo estaacute na pergunta pelo
ldquoonderdquo do limite existente entre o nosso corpo e o mundo pois ldquocabe-nos
rejeitar os preconceitos seculares que colocam o corpo no mundo e o vidente
no corpo ou inversamente o mundo e o corpo do vidente como numa caixardquo
(MERLEAU-PONTY 1992 p 134) Afinal como perguntaraacute Merleau-Ponty
Onde colocar o limite do corpo e do mundo jaacute que o mundo eacute carne Onde colocar no corpo o vidente jaacute que evidentemente no corpo haacute apenas ldquotrevas repletas de oacutergatildeosrdquo isto eacute ainda o visiacutevel O mundo visto natildeo estaacute ldquoemrdquo meu corpo e meu corpo natildeo estaacute ldquonordquo mundo visiacutevel em uacuteltima instacircncia carne aplicada a outra carne o mundo natildeo a envolve nem eacute por ela envolvido Participaccedilatildeo aparentamento no visiacutevel a visatildeo natildeo o envolve nem eacute nele envolvida definitivamente A peliacutecula superficial do visiacutevel eacute apenas para minha visatildeo e para meu corpo Mas a profundidade sob essa superfiacutecie
87 Neste sentido ldquoem que a percepccedilatildeo altera o alcance da ideia de expressatildeo posta por Leibniz Em primeiro lugar porque a percepccedilatildeo (e aqui a Pheacutenomeacutenologie de la Perception tambeacutem eacute atingida) natildeo eacute relaccedilatildeo expressiva entre esquemas corporais e esquemas espaccedilo-temporais graccedilas a siacutenteses (corporais linguumliacutesticas conscientes) natildeo eacute preparaccedilatildeo ou primeiro momento confuso da apercepccedilatildeo mas trabalho de uma diferenciaccedilatildeo inesgotaacutevel que efetua a experiecircncia do mesmo sem jamais chegar ao idecircntico Em segundo lugar porque natildeo eacute relaccedilatildeo de expressatildeo reciacuteproca entre perspectivas tomadas sobre o mundo das quais o absoluto seria autor Natildeo tanto porque haveria um sujeito infinito no centro do mundo mas sobretudo porque as perspectivas em Leibniz emanam dele como pensamentos de modo que natildeo haacute ontologicamente percepccedilatildeo Por isso a mocircnada natildeo precisa de portas nem janelas Nossa alma diz Merleau-Ponty natildeo tem janelas porque jaacute estaacute inteiramente aberta Eis porque o quiasma eacute a lsquoverdade da harmonia preestabelecida bem mais exata do que elarsquo O corpo natildeo eacute mens momentanea mas guardiatildeo do passado indestrutiacutevel e o espiacuterito como dizia Proust eacute voluacutevel Em terceiro lugar porque a comunicaccedilatildeo corpo-espiacuterito e espiacuterito-espiacuterito natildeo eacute transposiccedilatildeo da Weltilichkeit da natureza como em Leibniz onde as pequenas percepccedilotildees e Deus como geometral vecircm restabelecer do lado do espiacuterito uma continuidade simeacutetrica agrave da Natureza Essa continuidade escreve Merleau-Ponty natildeo existe na Natureza e a fortiori natildeo pode existir na dimensatildeo do espiacuteritordquo (CHAUIacute 1983 p 250-1)
135
conteacutem meu corpo e por conseguinte conteacutem minha visatildeo Meu corpo como coisa visiacutevel estaacute contido no grande espetaacuteculo Mas meu corpo vidente subtende esse corpo visiacutevel e todos os visiacuteveis com ele Haacute reciacuteproca inserccedilatildeo e entrelaccedilamento de um no outro Ou melhor se renunciarmos como eacute preciso ainda uma vez ao pensamento por planos de perspectivas haacute dois ciacuterculos dois turbilhotildees ou duas esferas concecircntricas quando vivo ingenuamente e desde que me interrogue levemente descentrados um em relaccedilatildeo ao outro (MERLEAU-PONTY 1992 p 134)
Assim diferentemente da concepccedilatildeo cartesiana de visatildeo em
Merleau-Ponty o olhar indaga a partir do visto e aleacutem dele elaborando uma
configuraccedilatildeo do mundo em que dimensotildees como tangibilidade e visibilidade
se unem constituem um quiasma um entrelaccedilamento entre o tangiacutevel e o
visiacutevel pois ldquoeacute preciso que nos habituemos a pensar que todo visiacutevel eacute
moldado no sensiacutevel todo ser taacutectil estaacute votado de alguma maneira agrave
visibilidade havendo assim imbricaccedilatildeo e cruzamento natildeo apenas entre o
que eacute tocado e quem toca mas tambeacutem entre o tangiacutevel e o visiacutevel ()rdquo
(MERLEAU-PONTY 1992 p131) Deste modo ldquohaacute visatildeo tato quando certo
visiacutevel certo tangiacutevel se volta sobre todo o visiacutevel todo o tangiacutevel de que faz
parte ou quando de repente se encontra por ele envolvido ou quando entre
ele e eles e por seu intercacircmbio se forma uma Visibilidade uma
Tangibilidade em sirdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135) pois natildeo
pertenceriam propriamente ldquonem ao corpo como fato nem ao mundo como
fatordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135)88
Merleau-Ponty observa portanto uma reversibilidade existente
no corpo a apalpaccedilatildeo das coisas promovida pelo olhar e a visatildeo delas
promovidas pelo tato Da mesma forma no mundo encontramos tambeacutem
uma reversibilidade como a de um vermelho nos reenviando a um mundo
colorido que tambeacutem eacute taacutetil pois ldquose nos voltarmos para o vidente
88 ldquoEacute a essa Visibilidade a essa generalidade do Sensiacutevel em si a esse anonimato inato do Eu-mesmo que haacute pouco chamaacutevamos carne e sabemos que natildeo haacute nome na filosofia tradicional para designaacute-lo A carne natildeo eacute mateacuteria no sentido de corpuacutesculos de ser que se adicionariam ou se continuariam para formar os seres O visiacutevel (as coisas e meu corpo) tambeacutem natildeo eacute natildeo sei que material lsquopsiacutequicorsquo que seria soacute Deus sabe como levado ao ser por coisas que existem como fato e agem sobre meu corpo de fato De modo geral ele natildeo eacute fato nem soma de fatos lsquomateriaisrsquo ou lsquoespirituaisrsquo Natildeo eacute tampouco representaccedilatildeo para um espiacuterito um espiacuterito natildeo poderia ser captado por suas representaccedilotildees recusaria essa inserccedilatildeo no visiacutevel que eacute essencial para o videnterdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135)
136
constataremos que este natildeo eacute analogia ou vaga comparaccedilatildeo devendo ser
aceito ao peacute da letra O olhar diziacuteamos envolve apalpa esposa as coisas
visiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 130) Assim ldquocomo se estivesse com
elas numa relaccedilatildeo de harmonia preestabelecida como se as soubesse antes
de sabecirc-las move-se agrave sua maneira em seu estilo sincopado e imperiosordquo
(MERLEAU-PONTY 1992 p 130) Contudo ldquoas vistas tomadas natildeo satildeo
quaisquer natildeo olho um caos mas coisas de sorte que natildeo se pode dizer
enfim se eacute ele ou se satildeo elas quem comandardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p
130) Notamos deste modo que entre o vidente-visiacutevel e o visiacutevel-invisiacutevel
natildeo existem delimitaccedilotildees natildeo existem mais fronteiras Pensando assim
como se daria a visatildeo do outro Conforme Merleau-Ponty
uma vez que vemos outros videntes natildeo temos apenas diante de noacutes o olhar sem pupila espelho sem estanho das coisas este paacutelido reflexo fantasma de noacutes mesmos que elas evocam ao designar um lugar entre elas de onde as vemos doravante somos plenamente visiacuteveis para noacutes mesmos graccedilas a outros olhos Essa lacuna onde se encontram nossos olhos nosso dorso eacute de fato preenchida mas preenchida por um visiacutevel de que natildeo somos titulares por certo para acreditarmos numa visatildeo que natildeo eacute a nossa para a levarmos em conta eacute sempre inevitaacutevel e unicamente ao tesouro da nossa visatildeo que recorremos e portanto tudo quanto a experiecircncia nos pode ensinar jaacute estaacute nela previamente esboccedilado Mas eacute proacuteprio do visiacutevel diziacuteamos ser a superfiacutecie de uma profundidade inesgotaacutevel eacute o que torna possiacutevel sua abertura a outras visotildees aleacutem da minha (MERLEAU-PONTY 1992 p 139)
Para Merleau-Ponty no momento em que outras visotildees aleacutem da
nossa realizam-se ldquoacusam os limites de nossa visatildeo de fato salientam a
ilusatildeo solipsista que acredita que toda superaccedilatildeo eacute auto-superaccedilatildeo Pela
primeira vez o vidente que sou me eacute verdadeiramente visiacutevelrdquo (MERLEAU-
PONTY 1992 p 139) pois ldquooutrem natildeo eacute tanto uma liberdade vista de fora
como destino e fatalidade um sujeito rival de outro sujeito mas um
prisioneiro no circuito que o liga ao mundo como noacutes proacuteprios e assim
tambeacutem no circuito que o liga a noacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 241)
sendo este mundo comum um verdadeiro intermundo Portanto natildeo
podemos separar um i1diov kosmov nosso mundo privado de um koinov
kosmov o mundo comum pois eles se encontram interligados Contudo o
ldquoque aconteceria se eu contasse natildeo somente com minhas visotildees de mim
137
mesmo mas tambeacutem com as que outrem teria de si e de mim Meu corpo
como encenador da minha percepccedilatildeo jaacute destruiu a ilusatildeo de uma
coincidecircncia de minha percepccedilatildeo com as proacuteprias coisasrdquo (MERLEAU-
PONTY 1992 p 20) Assim ldquoentre mim e elas haacute doravante poderes
ocultos toda essa vegetaccedilatildeo de fantasmas possiacuteveis que ele soacute consegue
dominar no ato fraacutegil de olharrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 20)
Antes de ser submetido agraves suas condiccedilotildees de possibilidade e
reconstruiacutedo agrave sua imagem o outro deve apresentar-se como participante de
uma uacutenica Visatildeo da qual ele tambeacutem participa Mesmo natildeo vivendo a vida
dela sob uma certa ausecircncia e longa distacircncia o sujeito que percebe torna-
se tatildeo proacuteximo ldquoassim que se reencontra o ser do sensiacutevel pois o sensiacutevel eacute
precisamente aquilo que sem sair de seu lugar pode assediar mais de um
corpordquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 15) O olhar toca manifesta este enigma
do nosso corpo vidente-visiacutevel que se encontra mergulhado em uma textura
de invisibilidade Quando um dos meus visiacuteveis se faz vidente assisto ao
milagre de uma metamorfose que faz com que ldquodoravante ele deixa de ser
uma das coisas estaacute em circuito com elas ou interpotildee-se entre elas Quando
o olho meu olhar jaacute natildeo se deteacutem jaacute natildeo termina nele como se deteacutem e
termina nas coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 15) O olhar temporaliza
pre-sentifica tem o poder de da mesma forma que a fala autecircntica em
relaccedilatildeo agrave fala secundaacuteria dar um sentido novo de mudar de sentido com
todas as possibilidades que esta palavra ndash sentido ndash possa expressar
225 A transformaccedilatildeo da luz natural e a releitura do Cogito
Nestas consideraccedilotildees encontramos pois a criacutetica de Merleau-
Ponty especialmente nos uacuteltimos trabalhos ao pensamento cartesiano em
seu modo de lidar com a representaccedilatildeo com a similitude fazendo do mundo
uma mero ldquoespetaacuteculordquo para o sujeito No entanto apesar de tudo isto
mediante seu modo de encarar a histoacuteria da filosofia conforme veremos no
proacuteximo capiacutetulo Merleau-Ponty tambeacutem encontra em Descartes algumas
vias de superaccedilatildeo ou ao menos o reconhecimento dos embaraccedilos para os
quais a intuitus mentis o havia conduzido Eacute neste sentido que para
138
Merleau-Ponty haveria tambeacutem no pensamento cartesiano uma retomada
da ldquoluz naturalrdquo e a transformaccedilatildeo da compreensatildeo que se tinha dela
estando o problema justamente no fato de que talvez volens nolens a
intuitus mentis natildeo deixaria de ser tributaacuteria de uma ldquovisatildeo dos olhosrdquo Por
conseguinte para Merleau-Ponty entre as Meacuteditations e a Regulaelig o que
encontrariacuteamos seria antes um descompasso Conforme diraacute em um de seus
cursos ldquoa foacutermula das Meacuteditations natildeo eacute cogito ergo sum ndash mas eu sou eu
existo ndash o que sou eurdquo pois
A primeira verdade natildeo eacute senatildeo o reverso da duacutevida (texto da Recherche de la veacuteriteacute) ela eacute um estofo fino tecido de negaccedilatildeo eu sou presenccedila a si da negaccedilatildeo mesma e indeclinaacutevel negaccedilatildeo da negaccedilatildeo natildeo como puro e simples restabelecimento de um positivo o positivo eacute envolvido pela duacutevida e para sempre Mas o natildeo que a excluiacutea aparece como uma nova maneira de ser que subentende todos os juiacutezos negativos e atraveacutes deles todas as verdades da simples visatildeo Qual eacute esta maneira de ser eu sou mas qual eacute meu ser Eacute o ser de apariccedilatildeo um ser 1) do aparecer-se 2) do aparecer (MERLEAU-PONTY 1996 p 257-8)
No cartesianismo apesar de toda evidecircncia da intuitus mentis a
verdade passa a ter ldquofios de natildeo-serrdquo a ldquoluz naturalrdquo se purifica e a uacutenica
certeza que se tem eacute de natildeo ter certezas (MERLEAU-PONTY 1996 257-8)
tal como nas Regulaelig acenava Descartes ao falar da duacutevida socraacutetica Logo
na compreensatildeo cartesiana do Cogito como res extensa para Merleau-Ponty
natildeo haveria necessariamente um puro substancialismo uma vez que ldquoa
lsquonatureza pensantersquo que eu apercebo e desenrolo reflexivamente natildeo eacute
ativamente pensante senatildeo porque ela eacute minha porque ela eacute tomada em
estado nascente porque eu sou ou ela eacute em mimrdquo (MERLEAU-PONTY 1996
p 259) Haveria pois um Cogito antes do Cogito uma Cogitatio entendida
como centro de uma abertura a ser preenchida pelo pensamento de algo
dado que se eu duvido eu duvido de alguma coisa Por conseguinte como
iraacute acentuar Merleau-Ponty apresentando sua tese a partir de uma ruptura
com a ldquoordem das razotildeesrdquo ldquohaacute o cogito operante ou eu sou e o cogito reflexivo
ou enunciado cogito vertical que funda o horizontal e que natildeo eacute simplicidade
de uma natureza pura (todo o resto natildeo eacute menos lsquoinseparaacutevelrsquo de mim)rdquo
(MERLEAU-PONTY 1996 p 244) Como diraacute Descartes
139
Vocecirc mal me mostrou a fraca certeza que temos da existecircncia de coisas das quais o conhecimento natildeo nos adveacutem senatildeo pelos sentidos que eu jaacute comecei a duvidar delas e isto foi suficiente para me fazer aparecer ao mesmo tempo minha duacutevida e a certeza desta duacutevida de tal modo que eu posso afirmar que comecei a me conhecer com certeza no momento mesmo em que comecei a duvidar Mas minha duacutevida e minha certeza natildeo se relacionariam com os mesmos objetos Com efeito minha duacutevida se aplicava unicamente agraves coisas que estatildeo fora de mim ao passo que minha certeza diria respeito agrave minha duacutevida e a mim mesmo O que diz Eudoxo eacute portanto verdadeiro que haacute coisas que natildeo podemos aprender senatildeo as vendo (DESCARTES 1996j p 525)89
Logo a conclusatildeo de Merleau-Ponty de que ldquoo ego existo ego
sum eacute um estreitamento de duacutevida e de certeza natildeo eacute pura constataccedilatildeo
positiva reestabelecimento de um ser-objetordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p
245) Daiacute que o sentido da visatildeo tenha mudado passando a ser a visatildeo de
minha duacutevida logo a visatildeo de um invisiacutevel A existecircncia do sujeito natildeo
permanece mais um ldquopedaccedilo de existecircncia comumrdquo ou mesmo um mero
ldquoser-objetordquo sendo em contrapartida ldquo[] a presenccedila a lsquosirsquo de toda visatildeo
enquanto unicamente minha de toda negaccedilatildeo enquanto modo de ser ou de
aparecer tambeacutem enquanto nada negaccedilatildeo da negaccedilatildeo mas que natildeo eacute
como em aacutelgebra resultado positivordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 247)
Ora o que nos indica Merleau-Ponty ao falar neste Cogito operante O
filoacutesofo nos diz em primeiro lugar que na articulaccedilatildeo cartesiana de um
ldquoCogito verticalrdquo o que encontramos eacute o esboccedilo de uma fenomenologia
Sendo assim no que Merleau-Ponty denomina uma ldquomudanccedila de sentido da
luz naturalrdquo o que perde o seu sentido eacute justamente o seu caraacuteter
recortante fragmentador aprisionado pela tatildeo-somente apreensatildeo das
figuras Ora o que podemos ganhar com este outro Cogito Para Merleau-
Ponty o fato de se diferenciar das verdades matemaacuteticas deixando de ser a
89 ldquoVixdum mihi exiguam illam quam habemus de rerum quarum cognitio non nisi sensuum auxilio ad nos pervenit exsistentia certitudinem ostenderas cum de iis dubitare incepit idque simul ad mihi meam dubitationem ejusdemque certitudinem commonstrandum suffecit ita ut possim adfirmare simulac dubitare sum adgressus etiam cum certitudine me cognoscere occepisse Sed non ad eadem objecta mea dubitatio meaque certitudo referebantur Quippe mea dubitatio circa eas tantum versabatur res quaelig extra me exsistebant certitudo vero meam dubitationem meque ipsum spectabat Verum itaque est quos Eudoxus dicit dari quaeligdam quaelig nisi ea videmus discere non possumusrdquo (DESCARTES 1996j p 525)
140
ldquocerteza do que eacute visto como distintordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 266)
ldquoseparaacutevelrdquo ldquoeideacuteticordquo ldquoresiacuteduo invariante do fatordquo passasando a ser antes
[] a certeza da apresentaccedilatildeo da apariccedilatildeo a do testemunho interior do ldquoconhecimento interiorrdquo natildeo teacutetico da natildeo-dissimulaccedilatildeo de mim a mim e de todas as coisas a mim e esta accedilatildeo de mostrar porque ela renuncia a ser imediatamente verdade (distinccedilatildeo) por que ela acolhe tudo (sono sonho sentir imaginar) sem nada recalcar em nome da distinccedilatildeo natildeo eacute mais somente minha natureza como fato contigente mas minha natureza como testemunho uacuteltimo [] apoacutes
o qual natildeo haacute nada (MERLEAU-PONTY 1996 p 267)
Aleacutem disso para Merleau-Ponty ganhamos tambeacutem pelo fato de
que a luz natural fora purificada ldquonatildeo eacute mais somente minha constituiccedilatildeo
psiacutequica tal qual evidecircncia psicoloacutegicardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p267)
Mas o que possibilitou isto Para o filoacutesofo tatildeo-somente graccedilas agrave mediaccedilatildeo
de ldquouma e0poxh [epocheacute] que renuncia agrave distinccedilatildeo imediata do verdadeiro e do
falso e que a tiacutetulo de cogitationes aceita tudordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p
267) Por conseguinte nesta transformaccedilatildeo o que temos eacute uma certa
purificaccedilatildeo da luz natural que ao contraacuterio de fundar um abismo entre o
verdadeiro e o falso torna-se capaz de ldquoesclarecer ao mesmo tempo a
mistura dela mesma e da obscuridaderdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 267)
Certamente podemos notar esta conversatildeo na concepccedilatildeo cartesiana de
Natureza estando na variaccedilatildeo de duas atitudes simetricamente opostas a
razatildeo tambeacutem do que Merleau-Ponty iraacute considerar a sua ldquodiplopiardquo Eacute o que
a seguir tentaremos tratar
23 A gecircnese da Crise nas relaccedilotildees com a Natureza Em suas Notes de Cours Merleau-Ponty fala de uma ldquocrise da
racionalidade nas relaccedilotildees com a Naturezardquo Neste contexto o filoacutesofo faz
referecircncia aos perigos de um ldquoultranaturalismordquo que na verdade oculta um
ldquoultra-artificialismordquo Eacute uma criacutetica ao que seria o ldquocaraacuteter teacutecnico da fiacutesica
modernardquo ldquoa teacutecnica natildeo eacute mais unicamente a aplicaccedilatildeo da ciecircncia mas
condiccedilatildeo da ciecircncia O espiacuterito (artificialista) da teacutecnica jaacute estava presente
intencionalmente desde o iniacutecio da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica ndash universo de
objetos em princiacutepio transparentes para o sujeitordquo (MERLEAU-PONTY 1996
141
p 42) Pelo que notamos Merleau-Ponty se aproxima aqui da Krisis eacute assim
que iraacute compreender a ciecircncia moderna no quadro da etiologia husserliana
nos horizontes de um projeto de matematizaccedilatildeo que nos remete ao mundo
claacutessico Contudo se o ldquoespiacuterito artificialistardquo da ciecircncia jaacute estava presente
em seu comeccedilo como o encontramos agora Teria ele permanecido Para o
filoacutesofo ldquo[] agora [o que encontramos eacute o] envolvimento visiacutevel da ciecircncia
na teacutecnica de onde um novo prometeiacutesmo O universo eacute universo de
constructa O universo todo humano e todo inumanordquo (MERLEAU-PONTY
1996 p 42) Deste modo seraacute no ensejo de uma dominaccedilatildeo da Natureza
mediante uma ldquoreconciliaccedilatildeo do homem com o homemrdquo que justamente
encontraremos este ldquonovo prometeiacutesmordquo
Constituindo-se como um ldquoverdadeiro complexo do pensamento
contemporacircneordquo Merleau-Ponty considera este pensamento duplamente
falso ldquotanto em sua afirmaccedilatildeo da Natureza como em sua negaccedilatildeo da
Naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43) Daiacute os problemas que o filoacutesofo
vislumbra no paradoxo presente jaacute na gecircnese do saber cientiacutefico moderno
[claacutessico] que se desenrola a partir da ideia de uma ldquoNatureza em sirdquo e de
uma ldquoNatureza construiacuteda na histoacuteria humanardquo Por conseguinte ldquoa
estupidez de querer compreender o acontecimento mesmo da ciecircncia fato
atual como fato da Natureza (em si) no sentido que a ciecircncia daacute a esta
palavrardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43) Se no mundo claacutessico os
paradoxos desta oposiccedilatildeo natildeo se tornaram problemaacuteticos conforme nos diz
o filoacutesofo eacute justamente por terem sido durante muito tempo mascarados
pela mediaccedilatildeo de uma Razatildeo divina Mas poderia a ciecircncia de hoje fazer uso
deste mesmo subterfuacutegio ou de um subterfuacutegio similar Para Merleau-Ponty
Ao contraacuterio a ciecircncia de hoje natildeo pode pretender a um tal fundamento ela eacute manifestamente humana e entatildeo o ciacuterculo homem-natureza eacute evidente Mas isto que eacute a situaccedilatildeo de crise para nosso pensamento poderia ser ponto de partida de um aprofundamento as energias que saem do quadro do mundo constituiacutedo desvelam a contingecircncia Mas esta tomada de consciecircncia de um Boden de uma sedimentaccedilatildeo poderia ser redescoberta da Natureza (com a condiccedilatildeo de que natildeo se conceba esta Natureza como a descreve a ciecircncia objetivista e como causa universal em si) redescoberta de uma Natureza-para-noacutes como solo de toda a nossa cultura e onde se enraiacuteza em particular nossa atividade criadora que natildeo eacute portanto incondicionada que tem de
142
manter [a] cultura em contato com o ser bruto no confronto com ele Eacute a loacutegica do mundo da teacutecnica que reduz o ser agrave alternativa e agrave antinomia do em si puro objeto e do artefato (MERLEAU-PONTY 1996 p 43-44 O grifo eacute nosso)
Trata-se pois da recusa do que seria na verdade o conceito
cartesiano de Natureza vendo nele a genecircse dos conflitos presentes na
ciecircncia moderna em seu direcionamento a um artificilismo incapaz de um
diaacutelogo com uma concepccedilatildeo da Natureza que natildeo esteja previamente
condenada a um objetivismo absoluto Eacute assim que o filoacutesofo procura
elaborar seus cursos sobre o conceito de Natureza indagando-se sobre os
elementos histoacutericos presentes no pensamento moderno buscando neles
uma relaccedilatildeo com os ldquosintomas de uma nova tomada de consciecircncia da
Naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43-44) Todavia adverte Merleau-
Ponty sua finalidade natildeo consiste em elaborar a ldquohistoacuteria de um conceitordquo
daiacute a sua opccedilatildeo em ldquo[] tomar como referecircncia uma concepccedilatildeo lsquocartesianarsquo
que com razatildeo ou sem ela ainda hoje domina a nossas ideias sobre a
Natureza mas com a condiccedilatildeo de trazer agrave superfiacutecie ao discuti-la os temas
preacute-cartesianos que natildeo deixam de ressurgir depois de Descartesrdquo
(MERLEAU-PONTY 1968 p 97) Daiacute a justificativa do filoacutesofo
Ao dar por tema uacutenico aos cursos deste ano ndash e ateacute aos do proacuteximo ano ndash o conceito de Natureza pareceria que insistimos em um tema inatual Mas o abandono em que caiu a filosofia da Natureza abarca certa concepccedilatildeo do espiacuterito da histoacuteria e do homem Tal eacute a permissatildeo que nos concedemos de fazecirc-los aparecer como pura negatividade De modo inverso ao retornar agrave filosofia da Natureza natildeo nos desviamos senatildeo em aparecircncia destes problemas preponderantes pois tratamos de preparar uma soluccedilatildeo que natildeo seja imaterialista Deixando agrave parte todo naturalismo uma ontologia que omite a Natureza se encerra no incorporal e daacute justamente por esta razatildeo uma imagem fantaacutestica do homem do espiacuterito e da histoacuteria Se insistimos no problema da Natureza eacute com a dupla convicccedilatildeo de que ela natildeo eacute por si soacute uma soluccedilatildeo do problema ontoloacutegico e de que muito menos eacute um elemento subalterno ou secundaacuterio de tal soluccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 1968 p 91-92)
Esta justificativa a nosso ver se harmoniza com o que o filoacutesofo
procura refletir em suas Notes du Travail quando tenta responder agrave
pergunta que ele mesmo se formulara ldquoPor que a Naturezardquo Merleau-Ponty
reconhece que a tentativa de tratar todos os ldquogecircneros do serrdquo como variantes
143
do ldquoser naturalrdquo estaacute fadada ao descreacutedito e com a devida razatildeo
principalmente se levarmos em conta existir tatildeo-somente uma experiecircncia
humana e isto de tal modo a fazer com que se torne absurdo o ensejo de
empreender uma transcriccedilatildeo dessa experiecircncia que se expressa por
siacutembolos em realidades ldquonaturaisrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)
Contudo o problema ainda persistiria se nos esquececircssemos de que ldquoestes
siacutembolos natildeo existem sem relaccedilotildees com os que fazem o tecido de nossa
histoacuteria A lsquonaturezarsquo natildeo eacute pois somente o artefato de uma consciecircncia
cientiacutefica [] ela eacute um mito no qual as subjetividades histoacutericas projetam e
ocultam a cada momento os seus conflitosrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25]
vol VI) Por conseguinte ldquofalar dela como de um objeto de reflexatildeo separaacutevel
do homem ou da histoacuteria seria de fato subordinar de antematildeo o ser do
homem a um princiacutepio exterior e desconhecido seria se tornar cego agrave
negaccedilatildeo da natureza que o faz homem e capaz de conceber ou de sonhar
uma naturezardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)
Diante destas consideraccedilotildees encontramos os motivos pelos
quais se torna necessaacuterio fazer uma oposiccedilatildeo a uma compreensatildeo da
Natureza que se decirc como omnitudo realitatis No entanto acentua Merleau-
Ponty natildeo pode haver nisto uma justificativa e um ultimato para se ldquoremeter
o conceito de natureza a um capiacutetulo de antropologiardquo (MERLEAU-PONTY
NBNF [25] vol VI) capaz de natildeo soacute deixar escapar o problema em questatildeo
mas a proacutepria filosofia visto que tal humanismo preso em uma visatildeo moral
ao impedir o proacuteprio exerciacutecio da interrogaccedilatildeo acabaria por dissolver ldquocom
os falsos problemas os verdadeirosrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)
Esta eacute a razatildeo pela qual o humanismo natildeo se permite perguntar sobre a
Natureza a recomendaccedilatildeo para que natildeo a ldquotomemos ao peacute da letrardquo dado
que ldquo[] cada propriedade que ela avanccedila deve ser tida por uma operaccedilatildeo do
sujeito traduzida diante do tribunal da filosofia ou da filosofia da histoacuteria e
finalmente apreciada sob este vieacutesrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)
Encontrariacuteamos aqui pois a negaccedilatildeo da relaccedilatildeo que se estabelece entre
Natureza e Histoacuteria Pelo contraacuterio natildeo se trata da negaccedilatildeo de que haja
entre elas e o conceito de homem uma espeacutecie de ldquonovelordquo o que se recusa eacute
a ideia de que a Natureza seja tratada apenas como um ldquodetalhe da histoacuteria
144
humanardquo Diante disto o esforccedilo de Merleau-Ponty passa a ser o de tentar
restitui-la encontrar em meio agraves ideologias nas quais ela se vecirc inserida o
que seriam os ldquotraccedilos verdadeiros do lsquoidolo veladorsquordquo (MERLEAU-PONTY
NBNF [25] vol VI) tendo-se em conta que ldquotoda posiccedilatildeo de uma natureza
implica uma subjetividade e mesmo uma intersubjetividade histoacutericardquo
(MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI) Natildeo estaria nisto a recusa do
filoacutesofo mas o que se pretende mostrar eacute que tal afirmaccedilatildeo natildeo faz com que
ldquoo sentido do ser natural seja esgotado pelas transcriccedilotildees simboacutelicas com
que natildeo haja nada a pensar antes delasrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25]
vol VI) mas em contrapartida ldquo[] mostra somente que o ser da natureza
estaacute por ser buscado aqueacutem de seu ser postordquo (MERLEAU-PONTY NBNF
[25] vol VI) Por conseguinte
Se eacute permitido a uma filosofia reflexiva tratar toda filosofia da natureza como uma filosofia do espiacuterito ou do homem disfarccedilada e de julgaacute-la em nome das condiccedilotildees de todo objeto possiacutevel para um espiacuterito ou para um homem esta suspeita generalizada que eacute a reflexatildeo natildeo poderia se exceptuar da busca eacute preciso que se volte contra ela mesma e que depois de ter mensurado o que se arrisca perder ao comeccedilar pela natureza se faccedila a conta do que se perdeu seguramente ao comeccedilar pela subjetividade o ser primordial contra o qual toda reflexatildeo se institui e sem o qual natildeo haacute mais filosofia na ausecircncia de um fora ao qual ela deve ser medida (MERLEAU-PONTY NBNF [25-26] (3) )
Para Merleau-Ponty ao se perguntar sobre o porquecirc de um
direcionamento ao conceito de Natureza o problema natildeo estaacute em tentar
compreendecirc-la mediante a subjetividade ou mesmo a partir do problema da
liberdade mas em mostrar que tomando estas questotildees especialmente
como ponto de partida a consequecircncia seraacute a estagnaccedilatildeo e o recalque do
que realmente se espera elucidar visto que alimentariam ainda o equiacutevoco
em se entender todo ser na condiccedilatildeo de ser-objeto Daiacute a legitimidade em se
crer que um comeccedilo pela Natureza natildeo seja uma restriccedilatildeo Ao fazer isso o
que espera Merleau-Ponty eacute que
[] se leve em consideraccedilatildeo natildeo somente o ser que eacute objeto de nosso olhar e de nossa escolha mas o que nos precede circunda-nos sustenta-nos que nos traz misturados com os outros homens e eacute acessiacutevel atraveacutes de mais de uma perspectiva que jaacute estaacute ali diante delas precede-as funda-as faz a junccedilatildeo de uma a outra e no interior de cada uma que ldquomanteacutemrdquo por si mesma manteacutem todas as coisas juntas e natildeo se reduz ao que cada um de nos deve ser Isto
145
natildeo quer dizer que se faccedila do ser natural a causa do ser visiacutevel nem da filosofia da natureza a filosofia primeira Na verdade natildeo haacute filosofia primeira em si nem secunda tudo eacute primeiro tudo eacute segundo em filosofia cada tema filosoacutefico eacute um disfarce de todos os outros Justamente se levarmos a seacuterio esta ideia natildeo podemos mais reduzir a filosofia da natureza agrave filosofia da histoacuteria do que a filosofia da histoacuteria agrave filosofia da natureza Eacute preciso somente seguir uma ordem que eacute indicada pelo sentido mesmo de nossa experiecircncia Se a natureza eacute positividade e o homem negaccedilatildeo se eacute preciso dizer ao menos em primeira aproximaccedilatildeo que o ser eacute e que o nada natildeo eacute ou que o nada precisa do ser para vir ao mundo entatildeo haacute mais razotildees de ir do ser ao nada do que de ir do nada ao ser a perspectiva da filosofia natildeo pode ser somente centriacutefuga nem a definiccedilatildeo do ser reduzida a do ser objeto (MERLEAU-PONTY NBNF [27] (6))
O que o filoacutesofo pretende dizer com estas palavras eacute justamente
que natildeo podemos nos esquecer de compreender o homem como um
ldquoacontecimentordquo que natildeo podemos nos olvidar de seu nascimento do que
constitui a vivecircncia de sua passividade e de sua existecircncia Logo o que se
espera de uma ldquoontologia da naturezardquo eacute que nos ensine os ldquomodos de
conexatildeordquo um ldquosentido dos sentidosrdquo que estaacute presente na origem de ldquotoda
histoacuteria humanardquo daiacute que o direcionamento agraves premissas do subjetivismo
ou de uma filosofia da liberdade natildeo seja suficiente Por conseguinte
A natureza natildeo nos interessa pois nem por si mesma nem como princiacutepio universal de objetividade mas como iacutendex do que nas coisas resiste agrave operaccedilatildeo da subjetividade livre e como acesso concreto ao problema ontoloacutegico Se recusaacutessemos todo sentido filosoacutefico agrave ideia de natureza e se refletiacutessemos diretamente sobre o ser correriacuteamos o risco de nos situar de imediato no niacutevel da correlaccedilatildeo sujeito-objeto que eacute elaborada e segunda e de deixar escapar um componente essencial do ser o ser bruto ou selvagem que natildeo foi convertido ainda em objeto de visatildeo ou de escolha (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))
Tendo em vista estas consideraccedilotildees compreendemos o que
levaraacute Merleau-Ponty a se concentrar no conceito cartesiano de Natureza
principalmente por haver ali a pretensatildeo de reduzir o ser da Natureza tanto
agrave extensatildeo como tambeacutem agrave exterioridade Mas o que justificaria a
centralidade do pensamento cartesiano Em que sentido estaria ele na
gecircnese do naturalismo cientificista Primeiramente vale lembrar a mudanccedila
que sofre em relaccedilatildeo aos antigos a concepccedilatildeo de Natureza no mundo
claacutessico Em Aristoacuteteles por exemplo o Cosmos eacute em primeiro lugar
146
qualitativo Eacute neste sentido que o De Cœlo natildeo ousa ultrapassar no
movimento dos corpos o viacutenculo que se estabelecia entre o ldquoleverdquo e o
ldquopesadordquo E qual a razatildeo A Natureza ainda permanecia estreita ela ainda
seguia a ldquomedida do homemrdquo Pensando nisso pois entendemos o interesse
de Merleau-Ponty por Descartes eacute que a partir dele notamos a formulaccedilatildeo
de uma nova ideia de Natureza Eacute assim que Descartes encontra um
conceito que nasce tanto da recepccedilatildeo da compreensatildeo galileana dos
fenocircmenos fiacutesicos como da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde mediante sua
sublimaccedilatildeo em Deus da finalidade aristoteacutelica estando nisto justamente
na ideia de ldquoinfinitordquo o elemento novo da nova concepccedilatildeo de natureza que
viria a ser delineada Por conseguinte a Natureza natildeo seraacute mais vista
mediante sua divisatildeo em ldquoregiotildees qualitativamente distintasrdquo mas a partir
de sua simultacircnea cisatildeo em uma natureza naturante (natura naturans) e
uma natureza naturada (natura naturata) ou seja entre uma natureza
capaz de subsistir por si mesma e uma natureza criada e produzida sendo
portanto a natureza naturada um produto da natureza naturante Todavia
mais do que assimilar a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Descartes opera uma
mudanccedila Enquanto Tomaacutes de Aquino mantinha o termo Natureza no intuito
de estabelecer um viacutenculo com a noccedilatildeo grega em Descartes o que temos eacute
uma radical cisatildeo Do mesmo modo enquanto na tradiccedilatildeo judaico-crista se
falava que a razatildeo de haver duas naturezas estava sempre na distinccedilatildeo entre
um ldquoestado de naturezardquo anterior ao pecado e outro posterior no
pensamento cartesiano o que encontramos eacute a oscilaccedilatildeo entre uma
natureza que nos conduz a uma ldquoontologia do objetordquo e outra natureza que
nos leva a uma ldquoontologia do existenterdquo Ora quais as razotildees desta oscilaccedilatildeo
A primeira oscilaccedilatildeo centrada em uma ldquoontologia do objetordquo
funda-se principalmente no modo como Descartes iraacute entender o conceito
de ldquofinalidaderdquo ao vinculaacute-lo a um Deus pensado como ldquoinfinitordquo Uma vez
que na infinitude divina os efeitos e as causas satildeo dados de modo
simultacircneo natildeo havendo uma dissociaccedilatildeo entre os fins e os meios
(MERLEAU-PONTY 2000a p 11) mas manifestamente um acordo o mundo
criado por Deus natildeo poderia lhe ser imprevisiacutevel Natildeo haveria pois uma
anterioridade do todo em relaccedilatildeo agraves partes Por conseguinte o que temos eacute
147
uma Natureza despojada de sua interioridade Se ela eacute feita agrave imagem de
Deus logo seraacute ldquose natildeo infinita ao menos indefinidardquo visto ser ldquo[] a
realizaccedilatildeo exterior de uma racionalidade que estaacute em Deus Finalidade e
causalidade jaacute natildeo se distinguem e essa indistinccedilatildeo exprime-se na imagem
da lsquomaacutequinarsquo a qual mistura um mecanismo e um artificialismo Eacute preciso
um artesatildeo nesse sentido tal ideia eacute antropomoacuterficardquo (MERLEAU-PONTY
2000a p 12) Natildeo possuindo interioridade a Natureza passa a ser um em
si existindo como uma maacutequina regida por leis seguindo um
ldquofuncionamento automaacuteticordquo Sendo criada por um Deus infinito natildeo
haveria razatildeo em compreender a finalidade do ser natural como a luta de
uma forccedila que pondo-se contrariamente agrave ldquocontingecircncia das coisasrdquo
tentaria reconduzi-las agrave ordem (MERLEAU-PONTY 2000a p 12) o que
justifica a ideia de que havendo as mesmas leituras mesmo Deus tendo
criado um outro mundo o resultado natildeo seria diferente Como entatildeo
compreender nessa primeira concepccedilatildeo de Natureza a ldquofinalidaderdquo Ao
compreender a ordem como uma noccedilatildeo de iure a finalidade natildeo eacute outra
coisa senatildeo o proacuteprio ldquoexerciacutecio do pensamento infinito de Deusrdquo daiacute que
A Natureza eacute como Deus um ser que eacute tudo aquilo que pode ser possibilidade absoluta ela eacute mesmo essecircncia senatildeo natildeo teria podido ser A experiecircncia soacute tem um papel auxiliar em fiacutesica ela nos ajuda a natildeo nos perdermos pelo caminho mas jamais serve de prova Quando se opotildeem a Descartes argumentos experimentais ele responde que eacute como se quiseacutessemos mostrar com um esquadro defeituoso que os acircngulos de um triacircngulo natildeo satildeo iguais a dois retos sua fiacutesica eacute deduzida tal como sua geometria A natureza exterior seria por conseguinte sinocircnimo da natureza simples de que falam as Regulaelig e da qual elas parecem apresentar todas as caracteriacutesticas [] A realidade possui um certo quid a partir do qual tudo o que lhe pertence pode ser extraiacutedo (MERLEAU-PONTY 2000a p 17)
Por conseguinte para Descartes segundo Merleau-Ponty ldquoseja
qual for a ruptura entre a existecircncia de Deus e a do mundo eacute preciso dizer
que este mundo tal como eacute eacute uma consequecircncia desse aparecimento
ilimitado que eacute Deusrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 206) Esta ontologia se
apresenta pois como ldquoretrospectivardquo haja vista que como salientaraacute
Merleau-Ponty ldquoo nervo desse pensamento eacute a ideia segundo a qual de uma
certa maneira tudo estaacute dado que atraacutes de noacutes haacute a plenitude que conteacutem
148
tudo aquilo que pode aparecerrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 206) O que
isto significa Que relaccedilatildeo haveria com a concepccedilatildeo de um Deus ldquoinfinitordquo
Como dissera Descartes em uma carta endereccedilada a Clerselier
Digo que a noccedilatildeo que tenho do infinito estaacute em mim antes que a do finito porque disto unicamente que concebo o ser ou o que eacute sem pensar se eacute finito ou infinito eacute o ser infinito que eu concebo mas a fim de que eu possa conceber um ser finito eacute preciso que eu subtraia algo desta noccedilatildeo geral do ser a qual por conseguinte deve preceder (DESCARTES 1996c p 356)
Para Merleau-Ponty ao conceber assim o infinito o que se
atesta eacute que ldquo[] a intuiccedilatildeo do ser eacute de imediato a do ser diante de uma
liberdade ou para uma liberdaderdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7) ) Em
outros termos ldquo[] noacutes tiramos de nossa ideia de liberdade a ideia do
infinito e a lsquotransferimosrsquo daiacute agrave naturezardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))
Tal procedimento eacute o mesmo que encontramos tambeacutem na tradiccedilatildeo judaico-
cristatilde O que o ldquoinfinitordquo nos diz pois desta ldquoprimeira concepccedilatildeo de
naturezardquo Em sua nota diraacute Merleau-Ponty
A absoluta plenitude e densidade do ser que Descartes exprime de modo ingecircnuo ao dizer que eacute de si infinito e que quando falamos sem outra precisatildeo do ser visamos espontaneamente um ser sem restriccedilotildees eacute o impacto sobre os fenocircmenos de uma liberdade indiferente em relaccedilatildeo a eles que ela os contempla ou os assume eacute o correlato de uma pura visatildeo distante ou de um fazer em uacuteltima anaacutelise imotivado Que o ser deva ser assim definido no halo de uma liberdade que o encontra como ser absoluto porque ela mesma natildeo eacute nada isto natildeo eacute evidente mas esquecemos que esta maneira de interrogaacute-lo tem sua data histoacuterica e natildeo se impotildee a toda filosofia possiacutevel [] A concepccedilatildeo cartesiana de natureza eacute solidaacuteria de todo um complexo ontoloacutegico no qual as noccedilotildees de infinito de possiacutevel e de atual de corpo em particular estatildeo implicadas e que noacutes precisamos desfazer se queremos recolocar o problema do ser (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))
Frente a isto eacute que o filoacutesofo nota a necessidade de encontrar
uma ldquofilosofia mais satisfatoacuteriardquo de nos desfazer portanto desta ontologia
Mas de que modo se para isto seria preciso natildeo participar dela Eacute aqui que
Merleau-Ponty situa a concepccedilatildeo cartesiana de Natureza e de infinito no seio
de uma mesma histoacuteria da qual fazemos parte logo a dificuldade em nos
desfazer dessa ontologia segundo o filoacutesofo estaacute no fato de que em noacutes ela
jaacute se tornou uma instituiccedilatildeo Daiacute que para ele a histoacuteria da filosofia
149
conforme veremos no quarto capiacutetulo natildeo deve se construir sem um diaacutelogo
que situe um pensamento em confronto com a tradiccedilatildeo nascida de seus
proacuteprios desdobramentos logo a constataccedilatildeo do viacutenculo que une o
complexo ontoloacutegico no qual nos encontramos ao pensamento cartesiano
natildeo sendo pois um non-sens lecirc-lo fora das ldquoordens da razatildeordquo mas a partir
de uma histoacuteria viva e vertical Qual o caminho
Noacutes seremos verdadeiramente conscientes disso apenas se fingirmos nada saber das noccedilotildees das quais falamos tatildeo frequentemente que perdemos de vista a instituiccedilatildeo ontoloacutegica que elas pressupotildeem e se noacutes considerarmos os pensamentos de Descartes como o etnoacutelogo encontra os costumes sobre a terra Nossa primeira tarefa eacute aqui sendo bem entendido que a histoacuteria da filosofia apenas interveacutem aqui para explicitar e elucidar uma [histoacuteria] do pensamento conexotildees habituais e prontas que estatildeo em obra em noacutes como o meio de uma criacutetica de noacutes mesmos Pode-se tanto menos se dispensar deste exame que a ontologia de Descartes foi apenas em filosofia decadecircncia e regressatildeo Pode ser que a identificaccedilatildeo do ser com o infinito e a concepccedilatildeo que resulta disso tenha feito esquecer certos elementos da filosofia antiga que precisamos reencontrar mas isto natildeo eacute um impasse eacute um caminho pelo qual seria preciso passar para reencontraacute-los em movimento em seu sentido futuro (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7) [29] (9) )
Merleau-Ponty se aproxima do pensamento cartesiano
diferentemente do modo como a tradiccedilatildeo procurou fazer assumindo a tarefa
de um etnoacutelogo O que isto significa Como entender a partir disto a noccedilatildeo
de infinito Certamente o direcionamento aos antigos como encontramos
em Heidegger eacute uma tarefa importante poreacutem para Merleau-Ponty natildeo
compreenderemos melhor o infinito cartesiano apenas retrocedendo ao que
se pensava antes dele e isto mesmo se partiacutessemos do pressuposto de que a
Natureza pensada em si mesma tal como fora compreendida em sua
gecircnese natildeo se deixasse deduzir da noccedilatildeo de infinito Do mesmo modo
mesmo que a ldquoa finitude a qual se pode voltar hoje natildeo eacute aquela de onde a
filosofia partiurdquo caso queiramos compreender bem ldquoo gecircnero de ser que
pertence agrave naturezardquo ldquoseria preciso o desenvolvimento intreacutepido da ideia de
infinitordquo pois ldquouma concepccedilatildeo moderna e diferente da natureza natildeo se
encontra senatildeo no fim desta experiecircnciardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7)
[29] (9)) Eacute por isso que como nos acentua o filoacutesofo
150
[] o movimento cartesiano em direccedilatildeo ao infinito tem um duplo sentido por um lado noacutes vamos vecirc-lo ele encerra o conceito da natureza ele a faz aparecer em sua existecircncia e no ser tal como o que eacute evidente sem alternativa a consequecircncia inevitaacutevel de um ser infinito que ele mesmo natildeo poderia ser Neste sentido aqui ele [forja] e mascara a natureza Mas aleacutem disso e sempre porque ela eacute pensada no fundo do infinito ela eacute uma concreccedilatildeo muito particular do ser sem restriccedilatildeo da qual ela natildeo esgota as possibilidades ele a sustenta com toda sua potecircncia mas a potecircncia pela qual ele a faz existir natildeo eacute solicitada por ela como por um destino ele a cria entatildeo e natildeo precisa dela para ser ele mesmo Neste horizonte ela eacute ela mesma ao menos indefinida (MERLEAU-PONTY NBNF [29] (9) (10) )
Mediante isto em consequecircncia da noccedilatildeo de infinito o que
significa dizer que a natureza seria ldquoao menos indefinidardquo Ao se tornar um
mero produto a natureza deixa de ser consequentemente o nosso meio
natal deixa de ser a ldquoganga da vida humanardquo Merleau-Ponty utiliza aqui o
termo ganga comparando a natureza ao invoacutelucro que envolve um mineacuterio
ou mesmo o meio no qual um elemento anatocircmico ou um oacutergatildeo se encontra
mergulhado Eacute justamente por se oferecer a um interminaacutevel esforccedilo de
objetivaccedilatildeo o mesmo que congrega o infinito e o finito que a natureza deixa
de ser nossa paacutetria ou como diria Husserl a Terra se torna tatildeo-somente um
objeto de investigaccedilatildeo Aqui a nosso ver o filoacutesofo se aproxima da
concepccedilatildeo husserliana de Natureza em sua criacutetica ao mundo claacutessico ao
menos tal como se esboccedila no texto que versa sobre o mundo preacute-
copernicano Eacute o que notamos nas seguintes consideraccedilotildees de Merleau-
Ponty
Dado que na raiz da natureza existente haacute um surgimento de ser ilimitado todas as suas partes envolvidas nele satildeo homogecircneas e comparaacuteveis os astros natildeo satildeo mais divinos o sol tem tarefas um campo infinito de objetos se abre agrave investigaccedilatildeo [natildeo contemplamos mais uma hierarquia dada gostariacuteamos de seguir as accedilotildees e as reaccedilotildees que as suas divisoacuterias e a gecircnese que tirou da produtividade infinita a variedade concreta dos seres e a figura deste mundo (MERLEAU-PONTY NBNF (10) )
Conforme jaacute dissemos antes do mundo claacutessico o que
encontramos eacute apenas o estabelecimento de relaccedilotildees qualitativas imperando
ainda o Cosmos aristoteacutelico logo um Cosmos qualitativo Eacute por isso que
como nota Merleau-Ponty recordando-se certamente de Koyreacute haacute em Kepler
a impossibilidade de articular a lei da gravitaccedilatildeo universal Qual a razatildeo
151
Diraacute o filoacutesofo em uma nota muito similar a um de seus cursos sobre La
Nature ldquo[] a fim de que e antes que esta lei tenha podido ser formulada foi
preciso que uma concepccedilatildeo fosse substituiacuteda por uma outra segundo a qual
o ser material eacute por toda parte perfeitamente e absolutamente homogecircneordquo
(MERLEAU-PONTY NBNF (10)) posto que ldquoencontramos vemos os fatos
porque uma nova ontologia preparou o mundo para ser conhecidordquo
(MERLEAU-PONTY NBNF (10)) Mas seria vaacutelido este argumento Natildeo deveria
a filosofia antes se preocupar com uma compreensatildeo do ser do que partir do
ldquodesenvolvimento de consequecircncias empiacutericasrdquo Segundo Merleau-Ponty ldquoas
operaccedilotildees realizadas pela ciecircncia do seacuteculo XVII tecircm sua verdade ao menos
relativa e parcial e cabe agrave ontologia mostrar de que modo elas foram
possiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [30] (11) ) haja vista que para instituir
uma ontologia natildeo seriam suficientes o que eacute descoberto pela ciecircncia mas
tendo em vista que tais descobertas foram motivadas pela ontologia a tarefa
que se assume eacute encontrar entre a ontologia e as descobertas cientiacuteficas
uma unidade Daiacute a conclusatildeo do filoacutesofo
A teoria [ciecircncia] faz parte do homem natildeo eacute depois de tudo senatildeo uma seacuterie de operaccedilotildees humanas e natildeo vemos de que modo a filosofia poderia compreender entre outras coisas como uma das possibilidades do homem mesmo se isto natildeo eacute a uacutenica nem a mais profunda A ontologia do infinito que de um lado encerrava a Natureza abria aleacutem disso os seus horizontes ela era dispensaacutevel para que pudesse ser reconhecida a facticidade da Natureza e os horizontes que ela desvelava Ela tinha somente o erro de povoar de objetos em si e de um infinito objetivo Haacute neste empreendimento uma verdade a guardar A noacutes de dissipar o equiacutevoco e desfazer o complexo Natildeo se trata para a filosofia de ignoraacute-lo faz parte de sua proacutepria histoacuteria e ainda estaacute no coraccedilatildeo da nossa (MERLEAU-PONTY NBNF [30] (11))
Ora segundo Merleau-Ponty este modo de conceber a natureza
seria aquele conduzido pela ldquoluz naturalrdquo em sua configuraccedilatildeo de intuitus
mentis de entendimento puro logo a partir de uma ldquoontologia do objetordquo No
entanto lembremo-nos de que segundo Merleau-Ponty tambeacutem
encontramos no pensamento cartesiano uma outra concepccedilatildeo de natureza
aquela nascida no horizonte de uma ldquoontologia do existenterdquo tal como
procuramos esboccedilar a partir do que o filoacutesofo considera ser especialmente
nas Meacuteditations uma transformaccedilatildeo da ldquoluz naturalrdquo O que mudaria com
152
isso A passagem de uma natura lato sensu entendida em seu sentido
amplo e uma natura stricto sensu entendida em seu sentido estrito Assim
como vimos ao falar em um Cogito vertical haacute nesta concepccedilatildeo de natureza
uma certa resistecircncia a um mundo totalmente idealizado algo que resista ao
ldquoentendimento purordquo Deste meodo como era de se esperar
consequentemente haacute um modo diferenciado de encontrar a separaccedilatildeo que
se estabeleceu entre res cogitans e res extensa uma vez que o sensiacutevel como
privaccedilatildeo considerado negativo para a inteligecircncia converte-se em uma
negaccedilatildeo da negaccedilatildeo ou seja torna-se ldquopositivordquo quando confrontado com a
vida Eacute neste contexto e de acordo com esta clivagem que se daacute no
pensamento cartesiano a compreensatildeo da natureza humana postulando-se
por um lado no entendimento puro e seus objetos uma natura lato sensu e
por outro lado no composto corpo-alma uma natura stricto sensu
Para Merleau-Ponty podemos ver melhor esta clivagem nas
Meacuteditations uma vez que ldquonas Meditaccedilotildees I a III Descartes toma a luz
natural como termo de referecircncia nas Meditaccedilotildees III a VI eacute a inclinaccedilatildeo
natural que nos impele a crer na existecircncia do mundo exterior de meu
corpordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 22) Ora seria o caso de reconhecer no
pensamento cartesiano uma cisatildeo capaz de dividir sua filosofia em partes
antagocircnicas pois ldquocomo em nome da evidecircncia conferir um valor ao que eacute
obscuro sem cair numa contradiccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 23)
Para Gueacuteroult natildeo haveria nisto nenhuma dificuldade pois vendo uma
ldquoordem das razotildeesrdquo que atravessa todo o sistema cartesiano bastava que
consideraacutessemos o que fugisse ao entendimento puro como seu simples
excedente tomando como base para isto a carta de Descartes a Chanut
Para dizer que uma coisa eacute infinita deve-se ter alguma razatildeo que a faccedila conhecer como tal o que podemos ter somente de Deus mas para dizer que ela eacute indefinida basta natildeo ter razatildeo nenhuma pela qual se possa provar que ela tem limites Natildeo tendo portanto nenhuma razatildeo para provar e mesmo natildeo podendo conceber que o mundo tenha limites eu o denomino indefinido Mas isso natildeo me permite negar que talvez existam alguns limites que satildeo conhecidos de Deus embora me sejam incompreensiacuteveis eacute por isso que natildeo digo absolutamente que ele eacute infinito (DESCARTES apud MERLEAU-PONTY 2000a p 23)
153
Ao inveacutes de notar em Descartes uma ambiguidade latente pela
qual surgiriam os frutos de um Cogito vertical operante o que se passa
antes nas Meacuteditations para Gueacuteroult eacute uma mudanccedila de ordem haja vista
que haveria no mundo a mesma evidecircncia presente em Deus mesmo que o
conhecimento da substacircncia extensa soacute se desse mediante a substacircncia
divina O mundo por sua vez natildeo poderia ser visto fora da mesma cadeia de
razotildees na qual o infinito se encontrava fazendo com que a verdade se
dispusesse em razatildeo disto tanto na zona do ldquoverdadeiro absolutordquo como na
zona do que por natildeo ser falso poderia ser afirmado como verdadeiro pois
de acordo com Gueacuteroult ldquoao positivismo sucede uma negaccedilatildeo da negaccedilatildeo
Mas graccedilas agrave garantia divina Descartes obedece agrave ordem das razotildeesrdquo
(MERLEAU-PONTY 2000a p 24) Eacute neste horizonte que deveriacuteamos
entender a ideia cartesiana de infinito haja vista que
O resultado desta posiccedilatildeo do infinito e do perfeito como princiacutepio uacuteltimo tanto de meu conhecimento (Cogito) quanto de meu ser finito (eu pensante que tem a ideia de Deus) eacute de conferir ao Cogito na 3a Meditaccedilatildeo uma caracteriacutestica oposta agrave que apresentava na segunda o de uma posiccedilatildeo inacabada insuficiente por ela mesma pois natildeo se pode conceber nem subsistir caso o destaque do infinito uacutenico concreto completo ou subsistente capaz de se conceber ou de se explicar inteiramente por si O eu finito natildeo podendo ser destacado dele senatildeo por uma abstraccedilatildeo a qual torne confusa minha ideia o Cogito pode ser claramente e distintamente conhecido apenas pela intuiccedilatildeo da ideia de perfeito Por isto esboccedila-se a distinccedilatildeo entre duas ordens de substancialidade uma absoluta e positiva a outra relativa e negativa (GUEacuteROULT 1968 p 231-2 v1)
Em contrapartida rompendo com a ordem das razotildees Merleau-
Ponty natildeo vecirc sentido na justificativa gueroultiana de que o postulado
cartesiano de ldquoduas zonas da verdaderdquo se efetivasse tatildeo-somente em razatildeo de
sua busca pela clareza A partir de uma outra concepccedilatildeo da histoacuteria da
filosofia segundo Merleau-Ponty haveria na ldquoluz naturalrdquo ora mediada pela
intuitus mentis ora manifesta como ldquoatitude naturalrdquo em primeiro lugar
uma transformaccedilatildeo uma passagem o que nos impediria de considerar estes
dois momentos da obra cartesiano em um mesmo domiacutenio Por conseguinte
o direcionamento de Descartes a uma ldquoontologia do existenterdquo nos revela
sobretudo uma mudanccedila na noccedilatildeo de infinito mudanccedila esta que natildeo fora
explicitada por Gueacuteroult O que teria mudado Natildeo seraacute mais da ideia de
154
Deus que se origina o infinito mas antes da liberdade humana do proacuteprio
homem E o que faria a diferenccedila Para Merleau-Ponty o simples fato de
que partindo do homem o infinito natildeo se fundamenta mais em nossa
submissatildeo a um Ser que nos eacute antecedente logo natildeo nos remete mais a
uma liberdade que fosse tributaacuteria da divindade cujo ldquosimrdquo fosse tatildeo
somente o ldquosim absoluto de Deusrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 207) pois
ldquoessa ideia da liberdade eacute apreendida com a ajuda de um meacutetodo muito
diferente da elucidaccedilatildeo essencialista O lsquoque eu soursquo eacute enunciado antes de lsquoo
que eacute que eu soursquordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 207) O que isto nos diz
Ao contraacuterio de uma ldquoordem das razotildeesrdquo o que temos eacute uma
mudanccedila de meacutetodo daiacute que no lugar da finalidade a partir da ideia de que
a alma foi feita para o corpo o que encontramos eacute uma ideia que ateacute entatildeo
encontrava-se inoperante a saber a ideia de ldquocausardquo90 Eacute assim que
mediante uma ldquoontologia do existenterdquo torna-se possiacutevel falar em Descartes
de uma extensatildeo como ldquoindefinidardquo de um ldquojuiacutezo naturalrdquo que natildeo se
assemelha mais ao que sob o ditame da intuitus mentis era tido como
ldquojuiacutezordquo O mundo tal como se encontra no presente eacute produzido por Deus
tatildeo-somente mediante as leis da natureza uma vez que ldquoa nossa extensatildeo
natildeo eacute uma essecircncia ela tem uma certa existecircncia de direito deve estar
ancorada em cada instante daiacute a criaccedilatildeo continuadardquo (MERLEAU-PONTY
2000a p 209) Daiacute tambeacutem que pensando em um mundo ldquo() que se
caminha para a totalidade e corresponde a uma visatildeo de Deus sobre as
coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 209) natildeo seja contraditoacuterio pensar em
sua ldquopreacute-ordenaccedilatildeordquo Pelo que notamos a partir desta ldquomudanccedila de
meacutetodordquo natildeo seraacute o essencialismo que nortearaacute a nossa compreensatildeo da
Natureza o que nos leva a encontrar em Descartes por um lado uma
concepccedilatildeo fundada em uma ldquoontologia do objetordquo retrospectiva e
essencialista e por outro lado mas ao mesmo tempo uma ldquoontologia do
90 Disto talvez se segue segundo Gueacuteroult que o racionalismo de Descarte embora rigoroso natildeo eacute absoluto ldquonatildeo enquanto absoluto ou seja enquanto reduziria os elementos irracionais ao racional os quais entatildeo natildeo seriam mais que sua aparecircncia mas na medida em que ele determina inteiramente pela razatildeo os elementos irracionais que se crecirc poder descobrir na obra de Deus (erro sentimento) e no proacuteprio Deus (incompreensibilidade)rdquo (GUEacuteROULT 1968 v 2 p 299)
155
existenterdquo projetiva e presa na obscuridade do mundo Ora natildeo haveria
nisto uma contradiccedilatildeo Como pensar uma natureza que se fundamenta na
exterioridade e ao mesmo tempo uma natureza que traz uma extensatildeo que
obscura e aberta esquiva-se ao olhar do espiacuterito
Afastando-se de Gueacuteroult Merleau-Ponty percebe nas
consideraccedilotildees de Laporte um modo de tentar compreender estas questotildees
Por conseguinte a presenccedila de duas naturezas em Descartes que nos
levaria ao mesmo tempo tanto a um mundo mecacircnico como a um mundo
preordenado por Deus pois ldquo() mais aleacutem de uma filosofia finalista e de
uma filosofia do entendimentordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 209) na qual
se engendraria uma contradiccedilatildeo revela-nos antes a apresentaccedilatildeo de um
pensamento que se encontra em funccedilatildeo de categorias humanas uma vez
que o equiacutevoco na verdade manifesta-se segundo a ordem do homem No
niacutevel de Deus tanto uma ldquoontologia retrospectivardquo como uma ldquoontologia
projetivardquo seriam superadas por Descartes O problema justamente surge
segundo Laporte no momento em que o pensamento cartesiano busca a
soluccedilatildeo de seus impasses a partir da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Estaria
inclusive em Tomaacutes de Aquino a ideia de que em Deus finalidade e
causalidade perdem a sua operabilidade Neste retorno de Descartes ao
pensamento monoteiacutesta a dificuldade se potencializa principalmente
porque natildeo se tem mais a ideia aristoteacutelica de que a divindade seja apenas
atributo de uma classe de seres O que isto quer dizer De acordo com a
tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Deus eacute verdadeiramente o Ser que natildeo pertencendo
mais a uma classe de seres exclui todo predicado tendo-se em vista a sua
infinitude Incompreensiacutevel por estar aleacutem de todo predicado este conceito
de Deus possui um excesso de positividade que paradoxalmente conduz-
nos a um perigo de negaccedilatildeo do proacuteprio mundo uma vez que como salienta
Gilson ldquoa partir do momento em que se diz que Deus eacute o Ser eacute claro que
num certo sentido soacute Deus existerdquo (GILSON 1932 p 48) Eacute por isso que
impossibilitado de negar quer seja o ontologismo quer seja o essencialismo
por exemplo Tomaacutes de Aquino encontra-se em um ldquovaiveacutemrdquo entre essecircncias
e existecircncias com o qual Descartes compartilha Eacute o que nos confirma
Merleau-Ponty
156
Para Descartes Deus eacute causa sui daiacute sua infinidade e daiacute o fato de que em essecircncia ele eacute tudo aquilo que o mundo poderaacute ser Mas haacute natildeo obstante uma distinccedilatildeo entre dois planos de realizaccedilatildeo Em face do mundo existente eacute necessaacuterio um ato absolutamente novo que natildeo deva nada agrave substacircncia de Deus em face do mundo existente tudo estaacute por recomeccedilar Aleacutem disso em Descartes Deus soacute eacute apresentado como causa sui com reservas sem o que se corre o risco de panteiacutesmo Descartes utiliza um subterfuacutegio A esse propoacutesito soacute podemos exprimir-nos negativamente Deus natildeo pode ter causa exterior a si mesmo donde se segue que eacute preciso admitir algo entre a causa sui e a causa exterior mas natildeo sabemos exatamente o quecirc (MERLEAU-PONTY 2000a p 217)
Ora eacute justamente nesta alternacircncia existente entre um
ldquoessencialismo condicionalrdquo e um ldquoexistencialismo subordinadordquo originada
pela tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e herdada por Descartes que se estabelece no
dizer de Blondel tal como nos assinala Merleau-Ponty uma espeacutecie de
ldquodiplopia ontoloacutegicardquo presente na contradiccedilatildeo de um mundo criado por
Deus o uacutenico Ser no qual ldquonatildeo haacute mais ser no plural mas tampouco haacute ser
no singularrdquo (BLONDEL Apud MERLEAU-PONTY 2000a p 218) O impasse
do cartesianismo estaria deste modo no fato de comungar desta ideia daiacute a
sua constante oscilaccedilatildeo entre uma ldquoontologia do objetordquo e uma ldquoontologia do
existenterdquo fazendo da ideia de um Ser infinito e naturante o centro de sua
filosofia Mais do que isto segundo Merleau-Ponty seria esta uma ideia
fundamental para o seacuteculo XVII pois ldquosejam quais forem as diferenccedilas os
cartesianos seratildeo unacircnimes neste pontordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p
229) Quais as consequecircncias disto Por um lado a Natureza decorreria das
propriedades da res infinita do Deus infinito e por outro viria a ser
inoperante a rejeiccedilatildeo da teleologia haja vista que no final o proacuteprio homem
seria uma finalidade Por conseguinte o objeto cientiacutefico seria apenas um
dos graus do ser e natildeo o seu cacircnone pois na relaccedilatildeo entre filosofia e
ciecircncia seria esta compreensatildeo do infinito e da natureza apesar da tensatildeo
constante que se estabelecia entre interioridade e exterioridade que
garantiria a possibilidade de um acordo Deste modo
o Ser natildeo estaacute inteiramente vergado ou achatado sobre o plano do Ser exterior Haacute tambeacutem o ser do sujeito ou da alma e o ser de suas ideias e o das relaccedilotildees reciacuteprocas entre elas a relaccedilatildeo interna de verdade e este universo eacute tatildeo vasto quanto o outro ou melhor engloba-o visto que por mais estreito que seja o viacutenculo dos fatos
157
exteriores nenhum deles daacute a razatildeo uacuteltima do outro ndash juntos participam de um ldquointeriorrdquo manifestado por suas ligaccedilotildees (MERLEAU-PONTY 1975b p 228)
Por fim pelo que pudemos notar a partir da ideia de ldquoinfinitordquo
ou ldquoinfinitamente infinitordquo o Grande Racionalismo procurou estabelecer
especialmente em Descartes ao menos em um certo Descartes a sua ideia
de verdade Por meio dela os sentidos teriam a sua confusatildeo dissipada Daiacute
que esta noccedilatildeo tenha marcado uma eacutepoca na qual como diraacute Merleau-
Ponty o ldquouniverso mentalrdquo natildeo se achava dilacerado pois encontrava uma
unidade que permeava as suas investigaccedilotildees Todavia a ruptura com essa
unidade natildeo indica uma mera ldquodecadecircnciardquo mas marca antes uma mudanccedila
do proacuteprio olhar Eacute assim que o Pequeno Racionalismo na passagem do
simples ao complexo natildeo encontraraacute mais o suporte e a garantia que o
Grande Racionalismo dava agrave ideia de infinito Daiacute que mediante o medo de
um retorno agrave escolaacutestica o que encontramos eacute a negaccedilatildeo de um saber que
tem sua origem no interior da experiecircncia cuja medida teria por referecircncia o
ser do sujeito A inspeccedilatildeo do mundo se daraacute radicalmente do exterior o
pensamento de sobrevocirco se potencializa passa a fazer uso de
ldquoprocedimentos obliacutequosrdquo se desloca de uma vez por todas para o
experimento No Pequeno Racionalismo a tensatildeo e a ambiguidade do seacuteculo
XVII se perde pois nada mais haacute a nutrir e tentar superar os descompassos
da interioridade e da exterioridade Eacute por isso que de modo paradoxal
apesar de seus limites o Grande Racionalismo acaba se tornando uma
espeacutecie de ldquointermediaacuterio obrigatoacuteriordquo para todo pensamento que deseja
recusaacute-lo
Negada a possibilidade de uma representaccedilatildeo formal do
infinito o que nos resta eacute o cientificismo ou seja o mundo da extensatildeo e a
capacidade formal da consciecircncia Eacute por isso que de acordo com Merleau-
Ponty em meio aos restos arqueoloacutegicos do seacuteculo XVII no Pequeno
Racionalismo o que temos eacute radicalizaccedilatildeo do impeacuterio da exterioridade a
experiecircncia de um ser constituiacutedo partes extra partes logo achatado e
vergado pela razatildeo cientificista Daiacute que o que iraacute mover a ciecircncia claacutessica
natildeo seraacute o Cogito vertical mas a intuitus mentis que operacionalizada acaba
158
legitimando o que de mais equiacutevoco poderiacuteamos herdar do cartesianismo
Daiacute a ideia de que no Pequeno Racionalismo e em seus desdobramentos o
que encontramos seja antes um pseudocartesianismo aquele que faria da
causalidade ainda considerada um problema natildeo resolvido para o proacuteprio
Descartes uma consequecircncia suficiente e necessaacuteria para todo saber
cientificamente legitimado O que isto significa Como daria a repecursatildeo do
cartesianismo no pensamento cientiacutefico emergente dos escombros do Grande
Racionalismo A seguir no proacuteximo capiacutetulo pensemos nestas questotildees
159
CAPIacuteTULO III O PSEUDOCARTESIANISMO E O REALISMO CIENTIFICISTA
O PARADOXO DO MENON
Celui qui voudra limiter la lumiegravere spirituelle agrave lrsquoactualiteacute repreacutesenteacutee se heurtera toujours au problegraveme socratique laquo De quelle maniegravere trsquoy prendras-tu pour chercher ce dont tu ignores que tu ne connais pas celle que tu te proposeras de chercher Et si tu la rencontres justement par hasard comment sauras-tu que crsquoest bien elle alors que tu ne la connais pas raquo (Meacutenon 80 D) (LACHIEgraveZE-REY 1950 p 17-18)
31 Apresentaccedilatildeo do problema Descartes e o cientificismo
Na Pheacutenomeacutenologie de la perception jaacute encontraacutevamos em uma
criacutetica natildeo soacute dirigida a Descartes mas tambeacutem ao intelectualismo de um
modo geral especialmente o de Brunschvicg ndash conforme veremos mais
adiante ndash a tentativa de elucidar a experiecircncia que fazemos do mundo A
questatildeo eacute muito simples o filoacutesofo encontra-se diante de sua escrivaninha e
se pergunta pelo Cogito Juntamente com suas indagaccedilotildees encontra-se
assediado pelo mundo Ao mesmo tempo vecirc-se enveredado por um mundo
de coisas e um mundo de ideias e de repente o problema estaacute posto
Acompanhemos o que ele nos diz
Penso no Cogito cartesiano quero terminar este trabalho sinto em
minha matildeo o frescor do papel atraveacutes da janela percebo as aacutervores
da avenida A cada momento minha vida precipita-se em coisas transcendentes ela se passa inteira no exterior Ou o Cogito eacute esse
pensamento que se formou a trecircs seacuteculos no espiacuterito de Descartes
ou eacute o sentido dos textos que ele nos deixou de qualquer maneira ele
eacute um ser cultural para o qual meu pensamento antes se dirige do que o abarca assim como meu corpo em um ambiente familiar se
orienta e caminha entre os objetos sem que eu precise representaacute-los
expressamente Este livro inicial natildeo eacute uma certa reuniatildeo de ideias
para mim ele constitui uma situaccedilatildeo aberta da qual eu natildeo saberia dar a foacutermula complexa e em que eu me debato cegamente ateacute que
como que por milagre os pensamentos e as palavras se organizem
por si mesmos Com mais razatildeo ainda os seres sensiacuteveis que me
circundam o papel sob minha matildeo as aacutervores sob meus olhos natildeo me entregam seu segredo minha consciecircncia se esvai e se ignora
neles (MERLEAU-PONTY 1945 p 423)
160
Ora haveria nestas linhas uma definiccedilatildeo dedutiva do Cogito
Natildeo haveria ali antes uma metamorfose do intelectualismo ndash quer seja o
cartesiano quer sejam as suas variantes ndash do que uma ruptura Jaacute teria
Merleau-Ponty indicado de antematildeo a sua posiccedilatildeo filosoacutefica antes mesmo
de apresentar o problema Caso a resposta seja afirmativa natildeo correriacuteamos
o risco de sermos injustos com quem sempre procurou antes configurar as
paisagens nas quais teriam espaccedilo os embates de seus argumentos Em
contraposiccedilatildeo natildeo bastaria entatildeo pensar que em particular as paacuteginas
precedentes deste livro jaacute natildeo seriam todas elas uma preparaccedilatildeo para este
momento especial da obra daiacute a mudanccedila de ritmo e a inserccedilatildeo imediata de
suas ideias Ora olhando mais de perto natildeo haacute duacutevida da densidade
enigmaacutetica destas palavras desta simples descriccedilatildeo como tantas outras ao
longo da Pheacutenomeacutenologie de la perception
Embora jaacute diversas vezes estudado e discutido por vaacuterios
inteacuterpretes a pergunta pelo Cogito na obra de Merleau-Ponty ndash
especialmente neste texto de 1945 ndash natildeo deixa de ser nem por isso menos
fecunda Poderiacuteamos entatildeo considerar as disjunccedilotildees impostas pelo filoacutesofo
como a apresentaccedilatildeo de posturas que ele trataraacute de desconstruir tais como o
sensualismo ou realismo empiacuterico o positivismo loacutegico da Escola de Viena e
o idealismo transcendental ndash seja qual for a sua confissatildeo e isto ao tratar
do Cogito cartesiano Frente aos impasses gerados por estas abordagens
filosoacuteficas ndash apenas insinuadas pelo filoacutesofo ndash a proposta seria pois o
exerciacutecio da reduccedilatildeo e mediante isto o resgate da experiecircncia Todavia aqui
percebemos a sutiliza de Merleau-Ponty trata-se apenas de uma descriccedilatildeo e
jaacute em meio a este processo encontramos indicaccedilotildees do caminho que seraacute
percorrido por sua criacutetica inclusive sua criacutetica ao realismo cientificista o
que nos faz encontrar um eco destas linhas tambeacutem em La Structure du
comportement
A escrivaninha que vejo diante de mim e na qual escrevo o cocircmodo
em que estou e cujas paredes para aleacutem do campo sensiacutevel se
fecham agrave minha volta o jardim a rua a cidade enfim todo meu horizonte espacial natildeo me aparecem se me atenho ao que diz a
consciecircncia imediata como causa da percepccedilatildeo que tenho deles os
quais imprimiriam em mim sua marca ou produziriam uma imagem
161
deles mesmos por uma accedilatildeo transitiva Parece-me antes que minha percepccedilatildeo eacute como um feixe de luz que revela os objetos no lugar em
que estatildeo e que manifesta a presenccedila deles ateacute entatildeo latente Que eu mesmo perceba ou que considere outro sujeito perceptivo parece-
me que o olhar ldquopousardquo nos objetos e os atinge agrave distacircncia como bem exprime o uso latino de lumina para designar o olhar
(MERLEAU-PONTY 2006 p 281-2)
Eacute certo que neste texto o filoacutesofo tem o ensejo de criticar o
realismo a partir do perspectivismo da percepccedilatildeo Mas no texto sobre o
Cogito aleacutem de Descartes o alvo natildeo era tambeacutem realismo Vejamos Nos
dois textos ao menos o que encontramos eacute o filoacutesofo e seu meio o filoacutesofo
diante do mundo e eacute neste horizonte que a pergunta que atravessa estes
dois momentos parece se configurar o que seriam estes entes que se
encontram agrave sua volta e como se daacute a sua relaccedilatildeo com eles Eacute neste
momento que a nosso ver vem agrave tona especialmente na Pheacutenomeacutenologie de
la perception o mesmo problema que encontraacutevamos presente dentre as
indagaccedilotildees dos antigos ldquocomo buscar o que natildeo se conhece e caso
encontremos como saber se encontramos o que justamente natildeo
conheciacuteamos antesrdquo91 A nosso ver o ldquoparadoxo de Menonrdquo92 estaacute no
coraccedilatildeo das indagaccedilotildees de Merleau-Ponty e eacute justamente esta aporia que o
filoacutesofo ndash tal como acreditamos ter sido tambeacutem mesmo que por outras vias
e com outras conclusotildees o intento do Bergson do Ensaio ndash tentaraacute elucidar
91 καὶ τίνα τρόπον ζητήσεις ὦ Σώκρατες τοῦτο ὃ microὴ οἶσθα τὸ παράπαν ὅτι ἐστίν ποῖον γὰρ ὧν
οὐκ οἶσθα προθέmicroενος ζητήσεις ἢ εἰ καὶ ὅτι microάλιστα ἐντύχοις αὐτῷ πῶς εἴσῃ ὅτι τοῦτό ἐστιν ὃ σὺ οὐκ ᾔδησθα 92 (80d) (Μένων) καὶ τίνα τρόπον ζητήσεις ὦ Σώκρατες τοῦτο ὃ μὴ οἶσθα τὸ παράπαν ὅτι ἐστίν
ποῖον γὰρ ὧν οὐκ οἶσθα προθέμενος ζητήσεις ἢ εἰ καὶ ὅτι μάλιστα ἐντύχοις αὐτῷ πῶς εἴσῃ ὅτι
τοῦτό ἐστιν ὃ σὺ οὐκ ᾔδησθα (80e) (Σωκράτης) μανθάνω οἷον βούλει λέγειν ὦ Μένων ὁρᾷς
τοῦτον ὡς ἐριστικὸν λόγον κατάγεις ὡς οὐκ ἄρα ἔστιν ζητεῖν ἀνθρώπῳ οὔτε ὃ οἶδε οὔτε ὃ μὴ
οἶδε οὔτε γὰρ ἂν ὅ γε οἶδεν ζητοῖ - οἶδεν γάρ καὶ οὐδὲν δεῖ τῷ γε τοιούτῳ ζητήσεως - οὔτε ὃ μὴ
οἶδεν - οὐδὲ γὰρ οἶδεν ὅτι ζητήσει (Soacutecrates Menon 80d-e) ndash Trad MEN ndash E de que maneira investigaraacutes Soacutecrates aquilo que ignoras totalmente o que eacute Qual das coisas que natildeo sabes vais propor como objeto de tua investigaccedilatildeo Ou ainda no caso favoraacutevel de que o descubras como vais saber que eacute precisamente o que tu natildeo sabias SOacuteC ndash Compreendo Menon o que queres dizer Daacutes-te conta do argumento polecircmico que nos traz a saber que natildeo eacute possiacutevel para o homem investigar nem o que sabe nem o que natildeo sabe Natildeo seria pois capaz de investigar o que sabe visto que o sabe ndash e nenhuma necessidade tem um homem assim de investigaccedilatildeo ndash nem o que natildeo sabe visto que nem sequer sabe o que eacute que vai investigar (PLATAtildeO 2001)
162
uma vez que como diraacute Lachiegraveze-Rey citado por Merleau-Ponty ldquoaquele que
deseja limitar a luz espiritual agrave atualidade representada sempre se
encontraraacute com o problema socraacuteticordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 429) Se
isto eacute verdade contudo o que explicaria no texto de 1945 um retorno ao
que na tradiccedilatildeo serve de fundamento aos intelectualismos em outros
termos por que o retorno ao Cogito cartesiano93
No que diz respeito a esta questatildeo pelo que vimos
anteriormente uma das grandes dificuldades do cartesianismo estava
justamente no fato de que no final das contas o ldquouniverso de consciecircnciardquo
que o Cogito revela limita-se apenas a um ldquouniverso de pensamentordquo Daiacute
tambeacutem uma espeacutecie de intelectualismo ou mesmo de criticismo presente
em Descartes Por conseguinte eacute certo que se procuraacutessemos no proacuteprio
criticismo ao menos tal como ele se esboccedilava em Brunschvicg uma
tentativa de soluccedilatildeo ao ldquoparadoxo do Menonrdquo isto se daria a partir da
distinccedilatildeo entre ldquouma forma geral da consciecircncia que natildeo pode ser derivada
de nenhum acontecimento corporal e psiacutequicordquo e ldquoconteuacutedos empiacutericos cuja
existecircncia atual poderia se ligar a certos acontecimentos exteriores ou a
certas particularidades de nossa constituiccedilatildeo psicofiacutesicardquo (MERLEAU-
PONTY 2006 p 309-10) Os limites de tal tentativa para Merleau-Ponty
estariam na desconsideraccedilatildeo do que viria a ser para o sujeito tanto a
experiecircncia de sua passividade como a sua ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo presente
no hiato entre a Esteacutetica e a Analiacutetica como a mateacuteria em sua condiccedilatildeo de
componente cognoscitivo assim como tambeacutem a perda da fenomenalidade
do proacuteprio fenocircmeno o que converteria a percepccedilatildeo tatildeo-somente em uma
ldquovariedade de intelecccedilatildeordquo na qual lhe ficaria de positivo apenas o juiacutezo
Frente aos problemas levantados pelas relaccedilotildees entre a forma e a mateacuteria o
93 Para o leitor apressado de imediato haacute uma contradiccedilatildeo grave em Merleau-Ponty ao tomar a noccedilatildeo cartesiana de razatildeo como ponto de partida de seu projeto filosoacutefico assim como em suas primeiras obras parecera partidaacuterio da noccedilatildeo claacutessica de Natureza Parece haver quase que uma relaccedilatildeo mal resolvida entre o filoacutesofo e o cartesianismo para natildeo dizer apesar de suas criacuteticas com o proacuteprio Descartes Se os conceitos dos quais se serve encontram-se corrompidos natildeo estaria a sua filosofia ameaccedilada a qualquer momento por algum abalo siacutesmico Onde estaria a razatildeo desse impasse Encontramos algumas possibilidades quando discutirmos o que o filoacutesofo entendera como ldquoimpensadordquo de Descartes a sensibilidade o corpo-sujeito o corpo proacuteprio
163
dado e o sensiacutevel a soluccedilatildeo proposta pelo criticismo seria pois ldquouma teoria
intelectualistardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 310-11) Por conseguinte
O problema das relaccedilotildees entre a alma e o corpo se colocaria apenas
no niacutevel de um pensamento confuso que se ateacutem aos produtos da
consciecircncia em vez de ver neles a atividade intelectual que os faz ser
Recolocada no contexto intelectual que lhe confere um sentido a ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo se suprime como problema O corpo
reencontraria a extensatildeo da qual sofre a accedilatildeo e da qual eacute apenas
uma parte a percepccedilatildeo reencontra o juiacutezo que a baseia Toda forma
de consciecircncia pressupotildee sua forma acabada ndash a dialeacutetica do sujeito
epistemoloacutegico e do objeto cientiacutefico (MERLEAU-PONTY 2006 p 311)
Eacute neste sentido que ao contraacuterio da tradiccedilatildeo cartesiana ao
contraacuterio de uma ldquoconsciecircncia intelectualrdquo que faz com que o fato da visatildeo e
o seu ldquoconjunto de conhecimentos existenciaisrdquo lhe sejam exterior o que
Merleau-Ponty propotildee eacute uma percepccedilatildeo que seja uma experiecircncia incipiente
ou seja a consideraccedilatildeo de uma ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo e a explicitaccedilatildeo de
uma ldquoconsciecircncia naturadardquo que vive mergulhada em um comeacutercio com o
mundo nascendo juntamente com ele Daiacute a conclusatildeo do filoacutesofo
A intelecccedilatildeo que o Cogito havia encontrado no coraccedilatildeo da percepccedilatildeo
natildeo esgota seu conteuacutedo na medida em que a percepccedilatildeo se abre para um ldquooutrordquo na medida em que eacute a experiecircncia de uma
existecircncia ela proveacutem de uma noccedilatildeo primitiva que ldquosoacute pode se entendida por ela mesmardquo de uma ordem da ldquovidardquo na qual as
distinccedilotildees do entendimento satildeo pura e simplesmente anuladas Assim Descartes natildeo procurou integrar o conhecimento da verdade e
a prova da realidade a intelecccedilatildeo e a sensaccedilatildeo Natildeo eacute na alma eacute em Deus que elas unem-se uma agrave outra Mas depois dele essa
integraccedilatildeo devia aparecer como a soluccedilatildeo dos problemas postos pelo realismo filosoacutefico Ela permitiria com efeito renunciar agrave accedilatildeo do
corpo ou das coisas sobre o espiacuterito defini-los como os objetos de uma consciecircncia e superar a alternativa do realismo e do ceticismo
associando segundo os termos de Kant um idealismo transcendental e um realismo empiacuterico (MERLEAU-PONTY 2006 p
305-6)
No entanto se o cartesianismo apresenta problemas o que
justificaria a centralidade que o filoacutesofo daacute ao Cogito Conforme vimos
Descartes identificara em seu enfrentamento do problema da similitude o
que constituiacutea a questatildeo das ldquoespeacutecies intencionaisrdquo ao aproximar-se da
164
problematicidade da explicaccedilatildeo causal em sua aplicaccedilatildeo ao processo
perceptivo Apesar disto como iraacute acentuar La Structure du comportement
ele ainda permaneceria preso a esta mitologia explicativa ao tentar superar
esta questatildeo por meio de uma espeacutecie de ocasionalismo ou seja a ideia de
que ldquoas impressotildees cerebrais satildeo apenas as causas ocasionais da percepccedilatildeordquo
(MERLEAU-PONTY 2006 p 296 o grifo eacute nosso) haja vista que ainda
permanece a necessidade de uma correspondecircncia existente entre ldquocertas
impressotildees cerebraisrdquo e ldquocertas percepccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p
296) Daiacute a permanecircncia da causalidade como fundamento da
representaccedilatildeo94 fazendo com que haja apenas no final das contas uma
ldquosubstituiccedilatildeo das causas exemplares pelas causas ocasionaisrdquo Neste ponto
poreacutem encontramos mais uma vez a deacutemarche merleau-pontiana em natildeo
se contentar com uma compreensatildeo historicista de Descartes mas procurar
tambeacutem no movimento que mantinha vivo o seu pensamento a experiecircncia
da ambiguidade Eacute por esta razatildeo que para Merleau-Ponty em Descartes
encontrariacuteamos pois uma negaccedilatildeo dessa atitude e ao mesmo tempo a
possibilidade de um fundamento capaz de propiciar o seu engendramento
ou seja tal como aconteceraacute nas ciecircncias do Pequeno Racionalismo a
necessidade de encontrar no corpo as condiccedilotildees determinantes e
adequadas da percepccedilatildeo No caso de Descartes em meio agrave ambiguidade de
94 De certo modo podemos encontrar aqui uma aproximaccedilatildeo com o Holzwege Conforme Heidegger a ideia de uma ldquoimagem do mundordquo traz em si o que eacute proacuteprio do mundo claacutessico natildeo por fazer do mundo um decalque uma simples pintura mas por tornaacute-lo um sistema logo uma ldquoimagem do mundo compreendida essencialmente natildeo quer por isso dizer uma imagem que se faz do mundo mas o mundo concebido como imagemrdquo (HEIDEGGER 1998 p 112)rdquo Soacute eacute possiacutevel ao ente ser ou seja existir na medida em que se dispotildee diante do sujeito cognoscente Eacute o proacuteprio ser de todo ente que eacute determinado procurado e encontrado no estar-representado [Vorgestelltheit] (HEIDEGGER 1998 p 113) A ruptura com os simulacros indica nesta perspectiva o engendramento de um primado da representaccedilatildeo Embora se nega a existecircncia de imagens ou duplos reais transportados materialmente ao ceacuterebro o que se sucede eacute a constituiccedilatildeo do proacuteprio mundo como imagem Haacute um mesmo processo pelo que simultaneamente o homem se faz sujeito [sub-jectum] e o mundo objeto [ob-jectum] Em outros termos embora a representaccedilatildeo natildeo seja um processo mimeacutetico em contrapartida ela se torna um mecanismo pelo qual se traz para diante de si ldquoo que-estaacute-perante enquanto algo contrapostordquo fazendo com que ele seja remetido ao que representa Logo percebemos neste processo a saber a conquista do mundo como imagem ldquoo processo fundamental da modernidaderdquo no qual ldquoo homem combate pela posiccedilatildeo na qual pode ser aquele ente que daacute a medida e estende a bitola a todo o enterdquo (HEIDEGGER 1998 p 117)
165
seu pensamento compreendemos a razatildeo de sua incursatildeo agrave glacircndula pineal
que na ciecircncia claacutessica seria substituiacuteda por uma ldquozona de associaccedilatildeordquo
Deste modo eacute possiacutevel encontrar no proacuteprio cartesianismo o
que seria uma possiacutevel superaccedilatildeo dos impasses nos quais ele mesmo se
colocara uma vez que mesmo que tenha possibilitado o realismo
cientificista segundo o qual a visatildeo soacute se faz possiacutevel por intermeacutedio do
ceacuterebro ainda na tentativa de romper com as ldquopequenas imagens que
volteiam pelo arrdquo Descartes chegara agrave conclusatildeo de que ao contraacuterio do que
se pensava natildeo eacute o olho que vecirc mas a alma (DESCARTES 1824a p 64) O
que isto significa Diraacute Merleau-Ponty ldquoeacute a alma que vecirc e natildeo o ceacuterebro eacute
pelo mundo percebido e suas estruturas proacuteprias que podemos explicar o
valor espacial atribuiacutedo em cada caso particular a um ponto do campo
visualrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 298) Eacute assim que conforme o filoacutesofo
ldquono que diz respeito agrave percepccedilatildeo a originalidade radical do cartesianismo
consiste em se colocar no proacuteprio interior dessa percepccedilatildeo em natildeo analisar
a visatildeo e o tato como funccedilotildees de nosso corpo mas lsquoapenas o pensamento de
ver e de tocarrsquordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 301) Conforme veremos a
seguir de certa forma esta ideia estaria presente na psicologia da Gestalt
fazendo com que Descartes houvesse de certo modo jaacute entrevisto a noccedilatildeo
moderna de consciecircncia servindo tambeacutem de inspiraccedilatildeo ao que iraacute
possibilitar a superaccedilatildeo kantiana do ceticismo e do realismo Nisto estaria
talvez aleacutem do que jaacute explicitamos ao tratar da imagem uma das
justificativas do retorno de Merleau-Ponty ao Cogito pensando ainda haver
nele apesar de suas dificuldades uma espeacutecie de ambiguidade que por sua
vez seria dissipada e silenciada no radicalismo do realismo cientificista e
isso no intuito de revisar a noccedilatildeo claacutessica de representaccedilatildeo mediante os
impasses que procuramos ilustrar com a questatildeo socraacutetica Mas como
ficaria em contrapartida o embate com o realismo Como o realismo se
posicionaria frente agraves questotildees levantadas por Merleau-Ponty em sua
descriccedilatildeo do Cogito Para o realismo grosso modo trata-se de seres
efetivamente transcendentes e dotados de uma existecircncia em si Teria o
realismo conseguido entatildeo resolver o problema Ora o retorno ao Cogito
nos deixa clara a insatisfaccedilatildeo de Merleau-Ponty com esta postura daiacute a
166
nossa pergunta se lhe eacute certo contudo como indicamos anteriormente
certos infortuacutenios do intelectualismo entatildeo por que natildeo uma incursatildeo ao
realismo
Antes de tudo o realismo natildeo se daacute conta do que constitui de
fato a questatildeo que tenta enfrentar nem se apercebe de que o que estaacute em
jogo em suas formulaccedilotildees e encontra-se nelas natildeo resolvido Deste modo
tambeacutem natildeo encontrariacuteamos nele a superaccedilatildeo da aporia socraacutetica Quais as
razotildees Ora se por um lado partimos do pressuposto de que o realismo
traga consigo a soluccedilatildeo do paradoxo levantado e por outro lado se o que
estaacute no fundamento deste uacuteltimo eacute a afirmaccedilatildeo de que as coisas satildeo
transcendentes isto implica tambeacutem que natildeo as possuiacutemos nem as
percorremos pois natildeo sabemos o que elas satildeo e afirmamos apenas a sua
ldquoexistecircncia nuardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 423) Para Merleau-Ponty o
realismo seria na verdade compartilhando de seus mesmos prejuiacutezos a
outra face do intelectualismo ou melhor estariacuteamos diante por um lado de
intelectualismo racionalista e de outro de um intelectualismo realista ou
cientificista tratando-se sempre no final de um intelectualismo Sendo
assim ldquoque sentido haveria em afirmar a existecircncia de natildeo se sabe o querdquo
(Ibidem p 494) O embaraccedilo do realismo teria suas raiacutezes por conseguinte
no reducionismo da ldquoluz naturalrdquo agrave ldquoatualidade representadardquo atitude esta
que conforme Lachiegraveze-Rey natildeo poderia acarretar outra consequecircncia que
os impasses gerados pela aporia socraacutetica Natildeo seriam estes impasses que o
filoacutesofo tentou nos apontar cuidadosamente nas duras paacuteginas de La
Structure du comportement ao tratar dos problemas gerados pelo realismo
das ciecircncias Neste caso qual seria o parentesco deste realismo com o
pensamento cartesiano
Para Merleau-Ponty tanto na Dioptrique como no Traiteacute des
passions Descartes partiria de um ldquomundo jaacute prontordquo apenas em seguida
seriam inseridos o corpo e a alma havendo nisso um claro abandono da
existecircncia de ldquocoisas extramentaisrdquo tais como foram inseridas pelo realismo
logo a presenccedila de um direcionamento para uma descriccedilatildeo da experiecircncia
humana a partir de uma explicaccedilatildeo do que lhe eacute inerente e natildeo do que lhe eacute
exterior ou melhor nesta perspectiva natildeo haveria uma exterioridade a ditar
167
suas relaccedilotildees Por conseguinte a percepccedilatildeo natildeo seria um ldquoefeitordquo da
Natureza mas passaria a ser compreendida a partir de sua estrutura
interna a partir dos ldquo[] motivos que asseguram agrave consciecircncia ingecircnua que
ela tem acesso a lsquocoisasrsquo e que lhe permitem apreender num pedaccedilo de cera
um ser soacutelido para aleacutem das aparecircncias transitoacuteriasrdquo (MERLEAU-PONTY
2006 p 302) A partir disto Merleau-Ponty acentua as diferenccedilas entre a
ldquoduacutevida ceacuteticardquo e a ldquoduacutevida metoacutedicardquo Enquanto a primeira torna-se um
estado de incerteza insoluacutevel por centrar-se na existecircncia de coisas
extramentais a segunda por encontrar em si mesma aquilo que faz cessar
esta mesma duacutevida ldquo[] revela ao pensamento o domiacutenio indubitaacutevel das
significaccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 302) A questatildeo natildeo estaacute se a
aacutervore que vejo existe ou natildeo mas qual eacute o sentido desta operaccedilatildeo dado que
eacute certa minha existecircncia ou seja eacute a operaccedilatildeo de meu pensamento que faz
com que eu seja capaz de vecirc-la Logo
Desse ponto de vista a percepccedilatildeo natildeo podia mais aparecer como o
efeito em noacutes da accedilatildeo de uma coisa exterior nem o corpo como o intermediaacuterio dessa accedilatildeo causal a coisa exterior e o corpo definidos
pelo ldquopensamentordquo da coisa e pelo ldquopensamentordquo do corpo ndash pelo significado coisa e pelo significado corpo ndash tornavam-se indubitaacuteveis
tais como se apresentam para noacutes numa experiecircncia luacutecida ao mesmo tempo que perdiam os poderes ocultos que o realismo
filosoacutefico lhes confere (MERLEAU-PONTY 2006 p 303)
Em contrapartida eacute abandonando o recurso a construccedilotildees
meramente teoacutericas ou a simples epifenocircmenos que o proacuteprio fenocircmeno da
corporeidade eacute suscetiacutevel de ser compreendido quer dizer que a experiecircncia
de uma totalidade acima de tudo significante torna-se manifesta Mas natildeo eacute
este o procedimento da ciecircncia claacutessica Pelo contraacuterio tantos cientistas
quanto psicoacutelogos ldquo[] consideram a percepccedilatildeo e seus objetos proacuteprios como
lsquofenocircmenos psiacutequicosrsquo ou lsquointerioresrsquo funccedilotildees de certas variaacuteveis fisioloacutegicas
e psiacutequicasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Deste modo deparamo-nos
novamente com o realismo uma vez que ldquose entendemos por natureza um
conjunto de acontecimentos ligados por leis a percepccedilatildeo seria uma parte da
natureza o mundo percebido uma funccedilatildeo do mundo real das qualidades
168
primeirasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Seguindo este criteacuterio
entendemos a conclusatildeo de Merleau-Ponty ldquoa partir do momento em que
admitimos como quer o realismo que a alma lsquosoacute vecirc imediatamente por
intermeacutedio do ceacuterebrorsquo mesmo que esta mediaccedilatildeo natildeo seja uma accedilatildeo
transitiva ela obriga a procurar no corpo um equivalente fisioloacutegico do
percebidordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) O corpo entendido como mera
extensatildeo coisa entre as coisas natildeo estaria nas consequecircncias deste
princiacutepio algumas das referecircncias nas quais a psicologia claacutessica iria erguer
o arcabouccedilo teoacuterico de sua anaacutelise do corpo e do comportamento Mas a
questatildeo natildeo eacute tatildeo simples Como esta afirmaccedilatildeo poderia ser verdadeira se
pensamos estar Descartes justamente na antiacutepoda do realismo
A nosso ver aqui encontramos o elo que une La Structure du
Comportement e LrsquoŒil et lrsquoesprit a comeccedilar pelo tiacutetulo deste uacuteltimo Para
Merleau-Ponty sobretudo estaacute em jogo os desdobramentos que essa relaccedilatildeo
iraacute adquirir no intelectualismo da ciecircncia claacutessica e em nossa concepccedilatildeo de
homem Pensar as relaccedilotildees entre o olho e o espiacuterito significa pensar as
relaccedilotildees entre alma e ceacuterebro entre pensamento e ceacuterebro ndash certamente natildeo
eacute gratuita a semelhanccedila com o tiacutetulo e as questotildees discutidas em uma das
referecircncias de La Structure du Comportement Le Cerveau et la penseacutee de H
Pieacuteron ndash entre filosofia e ciecircncia Eacute assim que ele notaraacute a proximidade entre
esta concepccedilatildeo cartesiana de alma e os trabalhos dos gestaltistas assim
como por natildeo seguir as consequecircncias deste argumento a ciecircncia claacutessica
iraacute se afastar do que seria a intuiccedilatildeo originaacuteria do cartesianismo e se
perderaacute nas encruzilhadas especialmente na fisiologia claacutessica e suas zonas
de associaccedilatildeo de um pseudocartesianismo Aqui certamente somos levados
reconhecer que em LrsquoŒil et lrsquoEsprit aleacutem dos horizontes de uma discussatildeo
acerca da arte deparamo-nos com o projeto de uma ldquonova ontologiardquo aquela
mesma que ambicionava romper com o que se considerava ser os limites da
metafiacutesica claacutessica Logo natildeo eacute sem sentido que vaacuterios trechos de Lrsquoœil et
lrsquoesprit jaacute se encontravam nos cursos de Merleau-Ponty sobre a ontologia
cartesiana
Daiacute a importacircncia de reconhecer que a presenccedila da pintura neste
texto manifesta-se por haver ali a proposta de uma ontologia oposta agrave
169
metafiacutesica cartesiana Mais do que um simples elogio agrave arte ou o esboccedilo de
um tratado de esteacutetica o que encontramos eacute a recusa de uma metafiacutesca que
se fundamenta no divoacutercio entre o olho a visatildeo dos olhos nossa
corporeidade e o espiacuterito a intuitus mentis valendo o mesmo a nosso ver
para a visatildeo cientificista tanto em sua oposiccedilatildeo de ceacuterebro e pensamento
como tambeacutem na reduccedilatildeo da relaccedilatildeo existente entre eles agraves leis da
causalidade Eacute assim que encontramos nos uacuteltimos trabalhos de Merleau-
Ponty a retomada de algumas das questotildees que animaram La Sctructure du
comportement poreacutem neste horizonte vinculada a uma ldquofeacute perceptivardquo e na
nervura do imaginaacuterio a uma ldquofenomenologia da ausecircnciardquo
Pois eacute certo que vejo minha mesa que minha visatildeo termina nela que ela fixa e deteacutem meu olhar com sua densidade insuperaacutevel como tambeacutem eacute certo que eu sentado diante de minha mesa ao pensar na ponte da Concoacuterdia natildeo estou mais em meus pensamentos mas na ponte da Concoacuterdia e que finalmente no horizonte de todas estas visotildees estaacute o proacuteprio mundo que habito o mundo natural e o mundo histoacuterico com todos os vestiacutegios humanos de que eacute feito [] O que nos importa eacute precisamente saber o sentido do ser do mundo a esse propoacutesito nada devemos pressupor nem a ideia ingecircnua do ser em si nem a ideia correlata de um ser de representaccedilatildeo de um ser para a consciecircncia de um ser para o homem todas essas satildeo noccedilotildees que devemos repensar a respeito de nossa experiecircncia do mundo ao mesmo tempo que pensamos o ser do mundo (MERLEAU-PONTY 1992 p 17 18)
Pensando nestas palavras notamos portanto tambeacutem em Lrsquoœil
et lrsquoesprit a criacutetica merleau-pontiana agrave psicofisiologia que como nos
acentuava Lebrun nascia tambeacutem com a Dioptrique No entanto mesmo que
Lebrun tenha visto no cego do seacuteculo XVIII o nascimento da psicologia a
compreensatildeo do humano desligada da oacutetica pensamos que seguindo as
trilhas de Merleau-Ponty a ciecircncia do Pequeno Racionalismo ainda
permanecia tributaacuteria dos horizontes abertos pelo cego cartesiano Daiacute que
uma criacutetica inspirada em uma ldquoontologia da pinturardquo na encarnaccedilatildeo do
olhar a nosso ver tambeacutem implique uma criacutetica ao primado das relaccedilotildees
causais explicitadas pela ciecircncia claacutessica Cabe-nos todavia precisar o que
na leitura do filoacutesofo faz parte do pensamento cartesiano e aquilo que
pertence ao ldquopseudocartesianismordquo dos cientistas ou antes as dubiedades
que permeiam o proacuteprio cartesianismo propiciando agrave ciecircncia claacutessica retirar
170
dele o que melhor lhe convinha Tentemos entender primeiramente o que
seria este ldquopseudocartesianismordquo que serve de inspiraccedilatildeo para o realismo
das ciecircncias O ldquopseudocartesianismordquo dos cientistas para Merleau-Ponty
tem por fundamento o modo como eacute encarada uma espeacutecie de
ldquoocasionalismordquo presente em algumas paacuteginas da Dioptrique O problema
discutido por Descartes parece ser o mesmo que acompanha as Reacuteponses
aux Cinquiegravemes Objections ou o seu Traiteacute de lrsquohomme aleacutem do conhecido
recurso agrave ldquoglacircndula pinealrdquo tambeacutem presente no Traiteacute des passions de
lrsquoacircme Trata-se pois conforme jaacute indicamos da pergunta pelo modo
mediante o qual os objetos na consciecircncia podem ser considerados
realidades ou seja o que se procura satildeo os argumentos que nos
possibilitam falar da existecircncia de uma correspondecircncia entre as ideias que
se encontram no sujeito e as coisas que estatildeo fora dele Em outros termos
se a percepccedilatildeo eacute o resultado da accedilatildeo de uma coisa sobre o corpo e
consequentemente do corpo sobre a alma ndash dada a compreensatildeo do homem
como um composto de corpo e alma (DESCARTES 1996m p 139 ndash IIa Obj)
ndash resta saber como ldquo[] um duplo ou uma imitaccedilatildeo do real eacute suscitado no
corpo depois no pensamentordquo (MERLEAU-PONTY A Estrutura do
comportamento p 294) jaacute que ldquoeacute inicialmente o sensiacutevel o proacuteprio percebido
que instalamos nas funccedilotildees de coisa extramental []rdquo(MERLEAU-PONTY
2006 p 294)
A nosso ver eacute ali inclusive neste pseudocartesianismo dos
cientistas que se efetiva e se encarna a diplopia cartesiana que elucidamos
ao tratar da natureza Daiacute a ideia de uma separaccedilatildeo existente entre o ldquoqualerdquo
e o sensiacutevel a ideia de um ldquoqualerdquo capaz de trazer consigo ao mesmo tempo
uma pura impressatildeo e sua funccedilatildeo correspondente Logo ldquoconhecer eacute pois
sempre apreender um dado em certa funccedilatildeo sob certo aspecto lsquoenquantorsquo
ele me significa alguma estruturardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 306) Deste
modo eacute justamente por natildeo ter radicalizado a criacutetica cartesiana agraves ldquoespeacutecies
intencionaisrdquo aos ei1dwla que encontramos na ciecircncia claacutessica os caminhos
pelos quais na verdade ele acabara se tornando mediante uma vivecircncia
empiacuterica um desdobramento do que haacute de equiacutevoco na compreensatildeo do
171
Cogito entendido agora tatildeo-somente como fundamento de uma ldquoconsciecircncia
intelectualrdquo logo novamente possibilitando o que viria a ser o
ldquooperacionalismo das ciecircnciasrdquo e seu esquecimento do mundo-da-vida
Consequentemente na encruzilhada que configura Descartes a ciecircncia
claacutessica se perde nos labirintos abertos pela noccedilatildeo cartesiana de causalidade
e suas ldquocausas ocasionaisrdquo encontrando o seu assento na necessidade de se
ldquo[] colocar no ceacuterebro alguma representaccedilatildeo fisioloacutegica do objeto percebidordquo
(MERLEAU-PONTY 2006 p 297) sendo tal necessidade ldquo[] inerente agrave
atitude realista em geralrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Por
conseguinte nesta incursatildeo que sentido iraacute adquirir o realismo
Se haacute uma tese central que permeia as diversas modalidades de
realismo como jaacute salientamos seraacute provavelmente a crenccedila de que existam
objetos reais independentes de nossa consciecircncia O mundo existe em si e
por si mesmo sem o nosso consentimento quer pensemos nele ou natildeo quer
o percebamos ou natildeo Assim sendo mesmo quando em um realismo
ingecircnuo natildeo distingo os conteuacutedos de minha consciecircncia e o objeto
percebido ou estabeleccedila partindo da diferenccedila uma correspondecircncia entre
eles em um realismo naturalista mesmo quando separo em um realismo
criacutetico percepccedilatildeo e representaccedilatildeo tomando o cuidado para natildeo confundir as
determinaccedilotildees quantitativas do mundo verdadeiro com as subjetivas
qualidades que dele apreendemos mediante os nossos sentidos uma certeza
permanece haacute um mundo que me eacute absolutamente exterior No entanto se
pensamos nas contribuiccedilotildees das ciecircncias claacutessicas o realismo criacutetico cada
vez se distanciaraacute mesmo mantendo os mesmos fundamentos do realismo
ingecircnuo e quem nos adverte isto seraacute o proacuteprio psicoacutelogo ldquohaacute seacuteculos vaacuterias
ciecircncias em particular a Fiacutesica e a Biologia comeccedilaram a solapar a
confianccedila singela dos seres humanos no sentido de considerar este mundo
como a realidaderdquo (KOumlHLER 1968 p 10) O mundo deixa de ser aquilo que
vejo quando abro os meus olhos assim se estou em uma sala escura e um
foco luminoso atrai o meu olhar natildeo seraacute uma luz real que vejo mas uma
ldquoluz fenomecircnicardquo aquela que soacute existe em mim pois a ldquoluz realrdquo natildeo
passaria de um ldquomovimento vibratoacuteriordquo (MERLEAU-PONTY 2006 cap I) O
que nos fez a ciecircncia Continua o psicoacutelogo ldquo[] a ciecircncia teve de construir
172
um mundo objetivo e independente de coisas fiacutesicas espaccedilo fiacutesico tempo
fiacutesico e movimento fiacutesico e de afirmar que tal mundo natildeo aparece de modo
algum na experiecircncia diretardquo (KOumlHLER 1968 p 11) Quais as razotildees Eacute
que nem tudo o que percebemos pertence agrave coisa percebida logo haacute
elementos que devem ser postos na conta do sujeito Como se daria esta
distinccedilatildeo entre o que cabe ao sujeito e o que cabe ao objeto percebido
Vejamos
32 A psicologia claacutessica o objetivismo cientificista
Retomando uma tradiccedilatildeo galileana95 na experiecircncia do mundo
e seguindo a separaccedilatildeo intelectualista entre o ldquoqualerdquo e a ldquocoisa sensiacutevelrdquo eacute
possiacutevel fazer uma distinccedilatildeo entre aquilo que eacute absoluto e matematicamente
imutaacutevel e aquilo que eacute relativo por estar condicionado por uma flutuante
subjetividade presa agrave mediaccedilatildeo dos sentidos ou seja entre qualidades
primaacuterias e secundaacuterias Assim ldquoos elementos confusos e inconfiaacuteveis na
figuraccedilatildeo sensorial da natureza satildeo de algum modo efeitos dos proacuteprios
sentidosrdquo (BURTT 1991 p 67) pois ldquoeacute porque o quadro mental resultante
passou pelos sentidos que ele possui todas essas caracteriacutesticas confusas e
enganosasrdquo (BURTT 1991 p 67) Por conseguinte (KOumlHLER 1968 Cap I)
enquanto as qualidades secundaacuterias natildeo passam de meros efeitos dos
nossos sentidos as primaacuterias seriam as que na Natureza satildeo de fato reais e
quantificaacuteveis96 Esta dualidade da experiecircncia cujas raiacutezes ndash caso
95 Lembremo-nos do que nos diz o proacuteprio Galileu ldquo() natildeo acredito que os corpos externos para provocar em noacutes esses gostos esses cheiros e esses sons requeiram mais que o tamanho a figura o nuacutemero e o movimento vagaroso ou raacutepido e julgo que se os ouvidos a liacutengua e as narinas fossem suprimidas a figura os nuacutemeros e os movimentos certamente permaneceriam mas natildeo os odores nem os gostos nem os sons os quais sem o animal vivo natildeo creio que constituam mais que nomes assim como as coacutecegas natildeo satildeo nada mais que um nome se a axila ou a membrana nasal fossem suprimidasrdquo (GALILEU 1942 vol IV p 333) 96 Como nos adverte o Koyreacute ldquosoacute assim eacute que as limitaccedilotildees do empirismo aristoteacutelico puderam ser superadas e que o verdadeiro meacutetodo experimental pocircde ser elaborado Um meacutetodo no qual a teoria matemaacutetica determina a proacutepria estrutura da pesquisa experimental ou para retomar os proacuteprios termos de Galileu um meacutetodo que utiliza a linguagem matemaacutetica (geomeacutetrica) para formular suas indagaccedilotildees agrave natureza e para interpretar as respostas que ela daacute Um meacutetodo que substituindo o mundo do mais ou
173
tiveacutessemos um interesse etioloacutegico ndash encontrariacuteamos jaacute no pensamento grego
(Demoacutecrito e Platatildeo) constituiraacute o realismo das ciecircncias claacutessicas cujos
experimentos ao mesmo tempo serviratildeo de base para o proacuteprio realismo O
fundamento do que desde entatildeo seraacute considerado real especialmente para
as nascentes ciecircncias preocupadas em serem verdadeiramente ciecircncias ndash e
como tais dotadas de um saber rigoroso ndash natildeo seraacute outro que aqueles
tomados de empreacutestimo da fiacutesica claacutessica e de sua cientificidade ou melhor
do que constitui filosoficamente os princiacutepios de uma ldquofiacutesica matemaacuteticardquo
(HEIDEGGER 1998) Se acompanhamos atentamente as reflexotildees de La
Structure du comportement natildeo teriam sido a Fisiologia e Psicologia claacutessicas
quem melhor aprenderam esta liccedilatildeo Caso se duvide do filoacutesofo basta ouvir
mais uma vez a confissatildeo do proacuteprio psicoacutelogo
De fato se os cientistas verificaram ser o mundo simples
impermeaacutevel ao seu meacutetodo que melhor esperanccedila de ecircxito podemos acalentar como psicoacutelogos E uma vez que jaacute foi executada pelos
fiacutesicos a extraordinaacuteria faccedilanha de passar do mundo da experiecircncia
direta mas confusa para um mundo de clara e rude realidade
pareceria aconselhaacutevel para o psicoacutelogo tirar partido desse grande acontecimento na histoacuteria da ciecircncia e tratar de estudar a Psicologia
partindo da mesma base mais soacutelida (KOumlHLER 1968 p 10)
Do mesmo modo como nos acentua Kofka ldquoa moderna
psicologia cientiacutefica foi iniciada pela quantificaccedilatildeordquo (KOFKA 1980 p 25) e
as razotildees jaacute sabemos natildeo eacute apenas o meacutetodo mas tambeacutem o proacuteprio
conceito de realidade que eacute importado da fiacutesica claacutessica A psicologia
inspirava-se nos procedimentos da quiacutemica e da fiacutesica fazendo o seu ofiacutecio
pousar no isolamento de elementos e na descoberta tanto de suas leis
quanto de suas combinaccedilotildees A psicologia do seacuteculo XIX para dizermos com
Guillaume por conseguinte ldquo[] tinha tomado por tarefa a anaacutelise dos fatos
de consciecircncia ou das condutasrdquo (GUILLAUME 1979 p 1) Por sua vez a
fisiologia cumprindo bem o seu papel projetava no coacutertex cerebral as
mesmas relaccedilotildees causais que marcam o mundo fiacutesico fazendo do substrato
menos conhecido empiricamente pelo Universo racional da precisatildeo adota a mensuraccedilatildeo como princiacutepio experimental e fundamentalrdquo (KOYREacute 1991 p 74)
174
fisioloacutegico de nossa relaccedilatildeo com o mundo um ldquodepoacutesito de vestiacutegios
cerebraisrdquo um ldquocentro de imagensrdquo ou de ldquopercepccedilotildeesrdquo tal como expressa o
famoso exemplo da central telefocircnica Nesta perspectiva o organismo eacute
considerado a partir de um pretenso substrato mecacircnico que norteia as
relaccedilotildees orgacircnicas com o meio ele eacute o objeto que serve de cenaacuterio para uma
ldquoexperiecircncia sensorial particularrdquo que tem sua origem em ldquoacontecimentos
fiacutesicosrdquo Em meio a este processo o corpo eacute o uacutenico objeto que nos eacute
imediato Neste jogo ora o corpo eacute compreendido como uma coisa dentre
outras ora eacute compreendido como um encadeamento fenomecircnico regido por
princiacutepios de causalidade assim ldquosoacute temos conhecimento do organismo
como de todas as outras coisas fiacutesicas atraveacutes de um processo de inferecircncia
ou construccedilatildeordquo (KOumlHLER 1968 p 11) Como salienta Koumlhler ldquomeu
organismo reage ante a influecircncia de outros objetos fiacutesicos mediante
processos que mantecircm o mundo sensorial em torno de mim Outros
processos no organismo fazem surgir a coisa sensorial que chamo de meu
corpordquo (KOumlHLER 1968 p 11) O corpo eacute uma realidade em si uma mera
sub-stacircncia e ao mesmo tempo frente ao entendimento uma ob-stacircncia
Considerando o corpo como uma mera circunstacircncia do mundo a ciecircncia
claacutessica natildeo somente natildeo se deu conta de sua dignidade ontoloacutegica como
deixou escapar tambeacutem o proacuteprio fenocircmeno corporal e suas consequecircncias
metafiacutesicas Eacute por considerar o corpo uma simples extensatildeo que a psicologia
claacutessica se crecirc poder de iure classificar os comportamentos em superiores e
inferiores e poder constituir via a fisiologia claacutessica o comportamento
reflexo como a entidade atocircmica a partir da qual seria possiacutevel entender
inclusive os comportamentos ditos superiores Perde-se pois a
potencialidade de se entender a relaccedilatildeo autecircntica que se estabelece na
experiecircncia perceptiva entre o corpo e seu objeto haja vista que uma
conduta um movimento vital natildeo se explica mediante a superposiccedilatildeo de
reflexos elementares ou de uma forccedila vital
Deste modo a psicologia claacutessica iria cair nas armadilhas do
pensamento cartesiano assim como as ciecircncias do Pequeno Racionalismo
no justo momento em que tentando romper com a abstraccedilatildeo filosoacutefica
pensava tecirc-la superado Eacute contra isto que a ciecircncia moderna se levanta e o
175
faz tendo por referecircncia o que de certa forma jaacute nos assinalava Merleau-
Ponty apesar de entrevisto por Descartes natildeo fora radicalizado eacute a alma
que vecirc e natildeo o olho O que isto significa A compreensatildeo de que a visatildeo natildeo
eacute simplesmente uma operaccedilatildeo fisioloacutegica mas estruturada ao passo que
em Descartes a negaccedilatildeo da visatildeo dos olhos se dava no intuito de legitimar
uma visatildeo do espiacuterito O curioso eacute que deste modo esta ruptura da ciecircncia
moderna se torna possiacutevel justamente no momento em que o
pseudocartesianismo dos cientistas ndash logo uma questatildeo cartesiana ndash perde a
sua cidadania em prol da estrutura da experiecircncia de uma percepccedilatildeo que
natildeo desconsidera o seu fundo que eacute na verdade a percepccedilatildeo de uma figura
sobre um fundo Eacute assim que ldquoo interesse da Teoria da Formardquo diz Paul
Guillaume ldquoseraacute o de estabelecer uma uniatildeo inteligiacutevel entre os termos
estiacutemulo-resposta distantes entre si e mostrar como a constelaccedilatildeo objetiva
dos estiacutemulos condiciona a organizaccedilatildeo perceptiva e como esta se reflete na
organizaccedilatildeo da reaccedilatildeordquo (GUILLAUME 1979 p 2)
Nestas consideraccedilotildees vemos aparecer as duas caracteriacutesticas
fundamentais sob as quais se nos apresenta a noccedilatildeo de forma no horizonte
da psicologia contemporacircnea a totalidade e a organizaccedilatildeo A noccedilatildeo de
forma tal como aborda Koumlhler e Koffka apresenta as mesmas
caracteriacutesticas que jaacute Wertheimer anunciara na hora de defini-la como ldquoo
conjunto cuja conduta natildeo se determina pela conduta de seus elementos
individuais mas pela natureza interna do conjuntordquo (WERTHEIMER 1938
p 13)97 O caraacuteter de organizaccedilatildeo inerente agrave ldquoformardquo eacute fundamental na
tentativa de encontrar uma soluccedilatildeo ao problema do comportamento
explicado sob os auspiacutecios da fisiologia claacutessica98 A adoccedilatildeo da noccedilatildeo de
97 ldquoBut there is a third kind of aggregate which has been but cursorily investigated These are the aggregates in which a manifold is not compounded from adjacently situated pieces but rather such that a term at its place in that aggregate is determined by the whole-laws of the aggregate itselfrdquo 98 A compreensatildeo e a explicitaccedilatildeo do comportamento como totalidade e organizaccedilatildeo se tornara inclusive a tarefa que Kurt Goldstein autor muito caro a Merleau-Ponty assumira em suas pesquisas A metodologia goldsteiniana ao evidenciar o caraacuteter dogmaacutetico e infundado do programa behaviorista intenta a desconstruccedilatildeo de uma psicologia atomista que natildeo entenda a natureza humana senatildeo como um soma de fragmentos Como nos diz Goldstein ldquoSe um estudioso da natureza humana embasa seus estudos sobre resultados de uma ciecircncia determinada conta apenas com um ponto de partida nunca teraacute de alcanccedilar
176
forma para a teoria do comportamento adquire uma importacircncia radical ela
possibilita acentuar o dinamismo interno e a orientaccedilatildeo para a accedilatildeo que lhe
eacute inerente Em contrapartida a referecircncia agrave Gestalt no estudo do sistema
nervoso teraacute dado um passo aleacutem daquele da atitude geomeacutetrica atitude
proacutepria da psicologia claacutessica Superando no organismo um reducionismo a
relaccedilotildees causais torna-se possiacutevel o estabelecimento da noccedilatildeo de ldquoordemrdquo
como categoria descritiva e portanto capaz de uma compreensatildeo integral do
comportamento A razatildeo disso eacute que na forma cada momento se encontraraacute
determinado pelo conjunto dos outros e seu valor respectivo depende de um
estado de equiliacutebrio total cuja foacutermula eacute um caraacuteter que lhe eacute intriacutenseco
(MERLEAU-PONTY 1942 p 101 2006 p 97) Todavia embora aponte
caminhos para uma superaccedilatildeo dos entraves outorgados pela anaacutelise
atomista de Pavlov a Psicologia da Forma apresentava para Merleau-Ponty
alguns problemas que tambeacutem precisam ser revistos O fato de que a forma
possa ser definida como um processo de ldquofigura-fundordquo natildeo nos permite
caso sejamos consequentes agrave superaccedilatildeo filosoacutefica que nos traz integraacute-la ao
mundo fenomecircnico Para Merleau-Ponty eacute preciso levar ateacute as uacuteltimas
consequecircncias a noccedilatildeo de forma apontada pelos trabalhos da Gestalt O que
isto significa
A teoria da Gestalt tem por objetivo acima de tudo superar as
antinomias claacutessicas que foram produzidas pela psicologia ao fazer uso da
noccedilatildeo de causalidade Caso se queira de fato assim como eacute o interesse de
Merleau-Ponty estabelecer uma relaccedilatildeo entre consciecircncia e natureza
especialmente nos primeiros trabalhos eacute preciso superar tanto a distinccedilatildeo
feita pela psicologia claacutessica dos campos ldquoexteriorrdquo ldquointeriorrdquo e ldquomentalrdquo
quanto a reduccedilatildeo deles aos ditames da causalidade fiacutesica Como integraacute-los
uma resposta correta para seus problemas a partir do material de um soacute campo da ciecircncia se o organismo fosse uma soma de partes agraves quais fossem possiacuteveis de estudar em separado natildeo teria nenhuma dificuldade em combinar o conhecimento sobre as partes para constituir a ciecircncia sobre a totalidade Mas todas as tentativas feitas para compreender o organismo como um todo diretamente a partir desses fenocircmenos tiveram muito pouco ecircxito Eacute liacutecito concluir que essas tentativas natildeo foram frutuosas porque o organismo natildeo eacute uma soma de partesrdquo (GOLDSTEIN 1961 p 18) Essa atitude metodoloacutegica de Goldstein natildeo passara despercebida nas pesquisas de Merleau-Ponty Vaacuterias satildeo as referecircncias que o filoacutesofo lhe faz especialmente nos primeiros trabalhos
177
Nesse sentido a Psicologia da Forma apresenta a possibilidade de que a
noccedilatildeo de forma seja aplicaacutevel aos trecircs campos integrando-os como trecircs tipos
de estruturas e assim apontando uma superaccedilatildeo das antinomias do
materialismo versus espiritualismo materialismo versus vitalismo Por
conseguinte ldquomateacuteriardquo ldquovidardquo e ldquoespiacuteritordquo participariam de uma maneira
desigual na natureza da forma chegando a inserir diferentes graus de
integraccedilatildeo e ao mesmo tempo uma hierarquia na qual a individualidade se
realizava frente ao todo Como Merleau-Ponty se posicionara diante disto
Para ele encontra-se aiacute justamente o fracasso da Psicologia da Forma ou
seja ao dirigir-se a um caminho que natildeo aquele prometido por seus
primeiros passos O problema estaacute em que ela natildeo se pergunta pelo ser que
pode ter a forma e erra ao colocaacute-la no nuacutemero dos acontecimentos da
natureza Por fim seu fracasso estaacute por natildeo pensar segundo a forma
(MERLEAU-PONTY 2006 p 147) Seraacute preciso conforme Merleau-Ponty
encontrar uma filosofia da forma Logo natildeo se pode considerar o que
frequentemente se chama ldquomateacuteriardquo ldquovidardquo ldquoespiacuteritordquo como classes de ser
mas como ldquoordens de significaccedilatildeordquo da mesma estrutura (MERLEAU-PONTY
2006 p 147) Entendemos melhor esta postura do filoacutesofo se nos fizermos
as seguintes questotildees Haacute um objetivismo da estrutura ou seja ela eacute uma
realidade independente Caso seja uma coisa seria dada e verificaacutevel pela lei
da causalidade
Efetivamente a estrutura natildeo eacute nem uma ideia nem um objeto de
pensamento pois carece da determinaccedilatildeo precisa para secirc-lo Eacute mister
assinalar que o termo estrutura eacute um simples indicativo da organizaccedilatildeo
interna e da orientaccedilatildeo para o exterior do objeto concreto natildeo sendo
independente deste objeto assim como natildeo eacute por exemplo a sua cor A
estrutura estaacute pois longe de ser um elemento acidental do objeto assim
como tambeacutem uma substacircncia Logo eacute compreensiacutevel a afirmaccedilatildeo de que ldquoa
mateacuteria eacute pregnante de uma formardquo na qual estrutura e organizaccedilatildeo
expressam tatildeo soacute o que fora realizado tanto na forma quanto na mateacuteria
pela pregnacircncia A estrutura pois natildeo eacute um ei1dov [eidos] mas a expressatildeo
de uma ordem imanente aos objetos Soacute a tiacutetulo de ldquoordemrdquo a estrutura eacute
178
objeto de uma consciecircncia mas de uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo e natildeo
constituinte que o capta por intermeacutedio da unidade harmocircnica de seus
elementos assim como captamos uma melodia
Ora se por um lado a forma natildeo eacute uma instacircncia a priori mas
contemporacircnea ao objeto ela tambeacutem natildeo eacute algo a existir ldquoem sirdquo na
Natureza especialmente quando nos referimos agrave fiacutesica Ao falar de formas
em fiacutesica postula-se pelo contraacuterio a existecircncia de uma ordem e
organizaccedilatildeo natural na qual as noccedilotildees de estrutura e de lei se integram
como momentos dialeacuteticos Se eacute certo que o objeto da fiacutesica pois eacute a ordem
dos fenocircmenos ou a organizaccedilatildeo da natureza ao inveacutes da postulaccedilatildeo de uma
fusiv [physis]rdquo que fosse o ldquolugarrdquo das estruturas eacute certo tambeacutem que esta
ldquocerta transcendecircnciardquo da forma natildeo se constituindo como um elemento do
mundo eacute o ldquolimiterdquo para o qual tende o conhecimento fiacutesico (MERLEAU-
PONTY 2006 p 152) aquele mesmo que faz aparecer a forma como um
objeto da percepccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 2006 p 155) Desde o momento em
que a forma deixa de ser compreendida como um ser da natureza e se
apresenta como unidade de significaccedilatildeo potildee em primeiro plano esta
originalidade que comportam as formas vitais frente os sistemas fiacutesicos
Efetivamente esta originalidade se molda no fato de que as estruturas
orgacircnicas satildeo aquelas nas quais ldquoo equiliacutebrio natildeo se obteacutem em relaccedilatildeo a
condiccedilotildees presentes e reais mas em relaccedilatildeo a condiccedilotildees soacute virtuais que o
sistema mesmo traz agrave existecircncia enquanto que o equiliacutebrio obtido na forma
fiacutesica eacute em relaccedilatildeo a condiccedilotildees exteriores dadasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006
p 157)
Em seus uacuteltimos trabalhos no entanto mais do que a ldquoestruturardquo
ou a ideia de um ldquoconsciecircncia perceptivardquo tida em La Structure du
Comportement como fundante em relaccedilatildeo agrave consciecircncia representativa por se
originar no mundo percebido mais do que a ideia de que a consciecircncia
perceptiva seja solidaacuteria com o corpo-proacuteprio ou vivido na tentativa de
minimizar o papel constituinte da consciecircncia e outorgar agrave relaccedilatildeo ldquocorpo
sensiacutevelrdquo e ldquomundo sensiacutevelrdquo o poder de doar sentido que Husserl atribuiacutea agrave
179
consciecircncia transcendental tal como fora esboccedilado na Pheacutenomeacutenologie de la
perception seraacute a noccedilatildeo de ldquocarnerdquo e seu ldquoquiasmardquo como pudemos notar ao
tratar da representaccedilatildeo que receberaacute a atenccedilatildeo de Merleau-Ponty Assim
neste capiacutetulo pensando no pensamento cartesiano pudemos fazer um
itineraacuterio que nos colocou no intervalo de La structure du comportement e de
Le Visible et lrsquoInvisible No proacuteximo toacutepico faremos um percurso semelhante
e retomaremos este mesmo itineraacuterio ao tratar da pergunta pelo homem
Antes poreacutem cabe-nos nos indagar sobre o modo a partir do qual no
horizonte de uma ldquocriserdquo Merleau-Ponty iraacute compreender a tarefa da
filosofia assim como pudemos notar na elaboraccedilatildeo do conceito de ldquocarnerdquo e
na maneira como o filoacutesofo se aproximara de Descartes no fundo buscando
sempre elucidar a experiecircncia de um ldquoimpensadordquo Eacute assim que conforme
veremos o filoacutesofo iraacute utilizar este termo heideggeriano em sintonia com a
sua concepccedilatildeo de linguagem e expressatildeo segundo a ideia de que na
linguagem o que encontramos eacute sempre a experiecircncia de um desequiliacutebrio
uma superaccedilatildeo do significante pelo significado Deste modo segundo o
filoacutesofo o sentido surgiraacute sempre do excesso do significado em relaccedilatildeo ao
significante havendo sempre uma espeacutecie de devir na vivecircncia da
linguagem Daiacute este modo de traccedilar a partir de Descartes o que poderia vir
a ser uma certa etiologia da crise pois jamais conseguiremos esgotar o
sentido de uma obra filosoacutefica ela sempre seraacute indecifraacutevel cabendo-nos o
exerciacutecio de sempre retomaacute-la em busca de um novo sentido pelo simples
fato de que ldquo[] o irrefletido ao qual nos voltamos natildeo eacute o que antecede a
filosofia ou que antecede a reflexatildeo eacute o irrefletido compreendido e
conquistado pela reflexatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1990 p 53)
33 A tradiccedilatildeo intelectualista e seus cenaacuterios
A princiacutepio eacute inegaacutevel que a Crise possua um caraacuteter negativo
conforme vimos no primeiro capiacutetulo no horizonte de uma criacutetica
husserliana a um naturalismo das ciecircncias (HUSSERL 1993) O proacuteprio
Merleau-Ponty chega a falar de um ldquoestado de natildeo-filosofiardquo confessa
inclusive que ldquoa crise nunca foi tatildeo radicalrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p19)
180
chegando agrave afirmaccedilatildeo extrema de que ldquoem todo caso na Franccedila hoje
filosoficamente natildeo sabemos o que pensamosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996
p165) Mas o diagnoacutestico natildeo eacute novo lembra-nos a abertura de La Structure
du comportement quando se tentava traccedilar um retrato do cenaacuterio filosoacutefico e
cientiacutefico de sua eacutepoca e a constataccedilatildeo natildeo podia ser outra ldquoassim acham-
se justapostas entre os contemporacircneos na Franccedila uma filosofia que faz de
toda natureza uma unidade objetiva constituiacuteda face agrave consciecircncia e
ciecircncias que tratam o organismo e a consciecircncia como duas ordens de
realidade e em sua relaccedilatildeo reciacuteproca como lsquoefeitosrsquo e como lsquocausasrsquordquo
(MERLEAU-PONTY 1942 p 2) Eacute muito esclarecedora a indagaccedilatildeo que o
filoacutesofo faz logo a seguir ldquouma volta pura e simples ao criticismo seraacute a
soluccedilatildeo E uma vez feita a criacutetica da anaacutelise real e do pensamento causal
natildeo haacute aiacute nada de fundado no naturalismo da ciecircncia nada que
lsquocompreendidorsquo e transposto deva encontrar lugar em uma filosofia
transcendentalrdquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 2) Se este estado de crise e de
ruiacutenas explicitam uma espeacutecie de ldquodoenccedila da razatildeordquo e se conforme Kant ldquoa
criacutetica da razatildeo pura eacute um profilaacutetico contra uma doenccedila da razatildeo que tem o
seu germe em nossa naturezardquo (KANT 2005 p 209 ndash Reflexatildeo 5073 de
1776-78 Ak 1879) e sendo assim ldquoeacute o oposto da inclinaccedilatildeo que nos
aprisiona a nossa terra natal (nostalgia) a aspiraccedilatildeo de deixar o nosso
ciacuterculo e nos relacionarmos com outros mundosrdquo (KANT 2005 p 209 ndash
Reflexatildeo 5073 de 1776-78 Ak 1879) qual seria a recusa de um ldquoretorno ao
criticismordquo
Uma reduccedilatildeo pura e simples ao ldquocriticismordquo para Merleau-
Ponty natildeo resolveria aquela reduccedilatildeo pura e simples operada pelo
cientificismo a um universo de entidades mensuraacuteveis e calculaacuteveis Do
mesmo modo a defesa de uma ldquofilosofia purardquo aquela que entenderia a
atividade do espiacuterito como a uacutenica capaz de nos dar as coisas tais como satildeo
em si mesmas natildeo seria menos problemaacutetica Pelo contraacuterio em Merleau-
Ponty como salienta Slatman ldquoa filosofia natildeo deveria se separar da
experiecircncia mas acompanhaacute-lardquo (SLATMAN 2001 p14) daiacute que na
ruptura com uma ldquotradiccedilatildeo intelectualistardquo o ldquoretorno agraves coisas mesmasrdquo
realizado pelo filoacutesofo se fundamenta ldquo[] em termos de uma transformaccedilatildeo
181
da transcendentalidade pura em uma transcendentalidade impura ou
lsquocontaminadarsquordquo (SLATMAN 2001 p 12)99 Se o intento de resoluccedilatildeo desses
impasses a partir de uma ldquotranscendentalidade impurardquo jaacute estaacute presente nos
primeiros trabalhos de Merleau-Ponty cada vez mais se faz manifesto nos
uacuteltimos o que nos pode levar a compreender a elucidaccedilatildeo da Crise
entendida na condiccedilatildeo de uma ldquotensatildeo criacuteticardquo dessas questotildees como
basilar na gecircnese de seus projetos Para isto basta ouvir o proacuteprio filoacutesofo ao
propor-se conforme podemos ver em seus projetos de curso um movimento
semelhante agravequele realizado pela Krisis (HUSSERL 1954) pensando
elaborar assim a primeira parte de Le Visible et lrsquoInvisible (MERLEAU-PONTY
1964a) ldquotoda primeira parte deve ser concebida de maneira muito direta
atual como a Krisis de Husserl mostrar nossa natildeo-filosofia depois buscar a
sua origem em uma Selbstbesinnung histoacuterica e em uma Selbstbesinnung
sobre nossa cultura que eacute ciecircncia buscaremos nelas os Winkesrdquo (MERLEAU-
PONTY 1964a p 237) Mas o que haacute na Krisis de Husserl que tanto encanta
Merleau-Ponty Haveria ali conforme procuramos indicar anteriormente a
confirmaccedilatildeo que o filoacutesofo buscava para a sua suspeita de que no que diz
respeito agraves ciecircncias o problema radica-se no fato de que ali encontramos
mais ldquometafiacutesica do que se desejaria explicitarrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b
p 25) natildeo seria a ruptura com o kantismo a partir da convicccedilatildeo de que
como nos ensina a Krisis ldquoo caminho que conduz agrave filosofia transcendental
parte de uma questatildeo-em-retorno (Ruumlckfrage)rdquo na qual se poderia pensar os
conceitos de Lebenswelt de Zusammenleben de Leiblichkeit assim como a
distinccedilatildeo conforme veremos no proacuteximo toacutepico entre Leib e Koumlrper
(HUSSERL 1954 p 123) Natildeo seria a abertura de uma ldquoquestatildeo retroativardquo
(Ruumlckfrage) na qual seria possiacutevel um retorno filosoacutefico ao mundo da
percepccedilatildeo nos movimentos de uma genealogia do objetivismo cientificista
Antes de tudo a nosso ver vale salientar que quando se trata
do criticismo antes de ser uma recusa direta de Kant o que se nega eacute a
99 ldquoNotre analyse ici est conduite par la conviction que toute la philosophie de Merleau-Ponty cherche agrave determiner une voie pour retourner aux choses mecircmes mais contrairement agrave la conception de Husserl cette philosophie nrsquoaboutit pas ni agrave une philosophie transcendentale pure ni agrave une philosophie eacuteideacutetiquerdquo (SLATMAN 2001 p 12)
182
versatildeo apresentada por Brunschvicg aquela mesma que de forma elogiosa
Politzer apresentava como ldquo[] talvez a mais bela tentativa de siacutentese e de
criacutetica integrais que a interpretaccedilatildeo de Kant veio a conhecerrdquo (POLITZER
1978 p 11) uma vez que
O kantismo surge como o evangelho da consciecircncia moderna como expressatildeo da chegada do reino da civilizaccedilatildeo verdadeiramente moderna como a afirmaccedilatildeo da autonomia da soberania teoacuterica e praacutetica da consciecircncia uacutenica fonte de normas como a primeira expressatildeo consciente e eneacutergica deste fato essencialmente moderno a reparticcedilatildeo dos valores da lei e dos valores da feacute (POLITZER 1978 p 11)
Talvez nesta recusa esteja a confirmaccedilatildeo daquele paradoxo que o
proacuteprio Politzer sente estar presente entre os leitores de Kant o paradoxo
segundo o qual natildeo compreenderaacute bem o pensamento kantiano quem
propriamente natildeo tenha se exercitado em um meacutetodo racional o meacutetodo
racional empregado pelo proacuteprio Kant Logo a incompreensatildeo estaria na
incapacidade de percorrer o caminho que o proacuteprio pensamento kantiano
teria trilhado daiacute o descreacutedito frente ao kantismo Para Politzer Brunschvicg
teria tido o sucesso em ldquoformular a teoria criacutetica em sua pureza e em sua
generalidaderdquo ao reconhecer a descoberta de um ldquopoder constituinterdquo ldquo[] de
uma capacidade de invenccedilatildeo intelectual de criaccedilatildeo cientiacutefica que brota da
consciecircncia segundo a ordem humana e natildeo da razatildeo segundo a ordem
divinardquo (POLITZER 1978 p 12) Eacute o que diraacute o proacuteprio Brunschvicg ao
entender o ldquopoder constituinterdquo da consciecircncia como
uma noccedilatildeo de alcance capital a de que o conhecimento cientiacutefico eacute algo original consistente por si soacute que natildeo se poderia compreender tomando como referecircncia um modelo exterior ou anterior um dado imediato da percepccedilatildeo ou a intuiccedilatildeo de uma realidade transcendente que por consequecircncia a inteligecircncia humana em relaccedilatildeo contiacutenua e indefinida com o que atraiacute e o que repugna na experiecircncia deve ser constitutiva de uma realidade positiva (BRUNSCHVICG Apud POLITZER 1978 p 56) [Neste sentido salientaraacute tambeacutem Politzer ao citar Brunschvicg como Fecircnix das cinzas do sistema caduco levanta-se] ldquoa verdade do meacutetodo transcendental que sobre a ideia criacutetica permite-nos fundar Prolegocircmenos natildeo mais em um sentido uacutenico exclusivo para a metafiacutesica kantiana da natureza mas seguindo uma interpretaccedilatildeo muito mais ampla e mais rica para a ciecircncia dos matemaacuteticos e fiacutesicos da atualidaderdquo (BRUNSCHVICG Apud POLITZER 1978 p 12)
183
Ora se o idealismo criacutetico pintado por Brunschvicg eacute tudo isto
que nos diz Politzer por que a Fecircnix do ldquomeacutetodo transcendentalrdquo natildeo
despertaraacute encanto algum em Merleau-Ponty A razatildeo talvez natildeo esteja no
meacuterito pelo qual se procurava ldquojulgar Kant segundo aquilo que fez pela
humanizaccedilatildeo ou pela autonomia espiritual da consciecircnciardquo (POLITZER
1978 p 13) mas justamente na ideia de ldquohumanizaccedilatildeordquo ou de possibilidade
de uma ldquoautonomia espiritualrdquo assim como a necessidade de uma escolha
radical que se deveria fazer entre o homo credulus preso aos valores da feacute e
o homo sapiens liberto pelos valores da lei Eacute neste sentido que natildeo
podemos desconsiderar uma raacutepida nota de La Structure du comportement na
qual o filoacutesofo parece querer se justificar ao usar o termo ldquocriticismordquo e negaacute-
lo ldquoPensamos aqui em uma filosofia como a de L Brunschvicg e natildeo na
filosofia kantiana que em particular na Criacutetica do juiacutezo [Kritik der
Urteilskraft] conteacutem indicaccedilotildees essenciais no tocante aos problemas que
estatildeo aqui em discussatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 223) O que estaacute em
questatildeo pois eacute uma filosofia de ldquoinspiraccedilatildeo criticistardquo a mesma que jaacute o
incomodava em seu Projet de travail sur la nature de la perception de 1933
Uma doutrina de inspiraccedilatildeo criticista trata a percepccedilatildeo como uma operaccedilatildeo intelectual pela qual os dados inextensos (as ldquosensaccedilotildeesrdquo) satildeo postos em relaccedilatildeo e explicados de tal sorte que acabam por constituir um universo objetivo A percepccedilatildeo assim considerada eacute uma ciecircncia incompleta eacute uma operaccedilatildeo mediata (MERLEAU-PONTY apud SAINT-AUBERT 2005)
Quanto a Brunschvicg natildeo vale lembrar que Kant entrara em
cena na Franccedila no momento em que decepcionados tanto com o
materialismo e o racionalismo quanto com o cientificismo muitos ali se
lamentavam por terem se esquecido do Absoluto Natildeo estaria nisto o
desconforto da ldquogeraccedilatildeo existencialistardquo em ter tido uma formaccedilatildeo que natildeo
ousava ultrapassar as leituras de Kant (DE BEAUVOIR 1972) Ora natildeo eacute
sem sentido que Merleau-Ponty afirme que juntamente com Bergson100
100
Vale salientar que para Merleau-Ponty a filosofia bergsoniana conduzia a outros caminhos embora o pensamento de Bergson natildeo fosse tatildeo conhecido por volta de 1930 Nos
184
Brunschvicg ocupa um papel central na formaccedilatildeo de sua geraccedilatildeo Qual a
razatildeo Conforme Merleau-Ponty era o fato de ser um ldquopensador
extraordinariamente cultivadordquo um intelectual natildeo preso apenas ao discurso
filosoacutefico mas capaz de dialogar com a ciecircncia ou com a literatura era isto
pois o que tanto seduzia em seu ensino Nisto poder-se-ia dizer
encontrava-se o seu ldquovalor pessoal extraordinaacuteriordquo No entanto Brunschvicg
era um idealista A filosofia que ensinava era sempre a de um retorno para
si a de uma reflexatildeo na qual o fundamento encontrava-se sobretudo na
atividade criadora do ldquoespiacuteritordquo uma vez que ldquoo universo da experiecircncia
imediata conteacutem natildeo mais do que eacute requerido pela ciecircncia mas menos pois
eacute um mundo superficial e mutilado eacute como diz Espinosa o mundo das
consequecircncias sem premissasrdquo (BRUNSCHVICG 1922 sect 35 p 70) Assim o
motivo pelo qual se aproximava da ciecircncia ou da literatura acabava por
comprometer o seu pensamento pois se centrava sempre na necessidade de
se descobrir como todos participam do ldquounordquo como as accedilotildees do homem se
apresentam como uma atividade criadora do espiacuterito uma vez que o ldquounordquo
indicava justamente o espiacuterito a razatildeo universal que estava presente em
todos Como acentua Merleau-Ponty neste pensamento ldquonatildeo haacute o seu
espiacuterito e o meu e o dos outros homens Natildeo haacute um valor de pensamento ao
qual participamos todos e a filosofia comeccedilava e terminava em suma com o
principais centros acadecircmicos franceses embebidos pelo racionalismo havia inclusive uma certa hostilidade ao bergsonismo Mas nem por isso sua filosofia deixaria de adquirir notoriedade Apresentando-se como uma opccedilatildeo em relaccedilatildeo ao cartesianismo ou ao kantismo natildeo representando absolutamente um idealismo Bergson optou em natildeo comeccedilar pelo cogito mas pelo que denominou de ldquodados imediatos da consciecircnciardquo ldquoquer dizer que eu me apreendo a mim mesmo para comeccedilar a tiacutetulo de primeira verdade em filosofia sim mas eu me apreendo natildeo como puro pensamento eu me apreendo como duraccedilatildeo como tempo Ora a anaacutelise a qual Bergson se dedicou em Matiegravere et Meacutemoire por exemplo mostra que se noacutes consideramos o tempo eacute preciso considerar no tempo em particular a dimensatildeo do presente E esta dimensatildeo do presente em Bergson desenvolve a consideraccedilatildeo do corpo e a consideraccedilatildeo do mundo exterior Ele definiu o presente como aquele sobre o qual noacutes agimos e agimos evidentemente por nosso corpo De modo que vocecirc vecirc de imediato que esta duraccedilatildeo sobre a qual Bergson chama a atenccedilatildeo a princiacutepio implicava uma relaccedilatildeo ao nosso corpo e uma relaccedilatildeo de algum modo inteiramente carnal com o mundo atraveacutes do corpordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 252-3) Para Merleau-Ponty Henri Bergson estabelece algumas das bases que viriam a constituir futuramente o existencialismo francecircs Poreacutem como natildeo chegara a ser lido suficientemente como deveria naquele periacuteodo o meio acadecircmico natildeo percebera que o que chegava de novo na Franccedila jaacute havia sido de certo modo entrevisto
185
retorno a esse princiacutepio uacutenico de todos os nossos pensamentosrdquo (MERLEAU-
PONTY 2000b p 251) Haacute nestas palavras um acordo inegaacutevel com as
seguintes palavras da Pheacutenomeacutenologie de perception
Enquanto eu sou consciecircncia ou seja enquanto alguma coisa tem sentido para mim eu natildeo estou nem aqui nem ali natildeo sou nem Pedro nem Paulo natildeo me distingo em nada de uma ldquooutrardquo consciecircncia visto que todos noacutes somos presenccedilas imediatas no mundo e dado que esse mundo eacute por definiccedilatildeo uacutenico sendo o sistema das verdades Um idealismo transcendental consequente despoja o mundo de sua opacidade e de sua transcendecircncia O mundo eacute isso mesmo que noacutes nos representamos natildeo como homens ou como sujeitos empiacutericos mas enquanto somos todos uma uacutenica luz e participamos do Uno sem dividi-lo A anaacutelise reflexiva ignora o problema do outro como o problema do mundo porque faz aparecer em mim com o primeiro lampejo da consciecircncia o poder de ir a uma verdade universal de direito e porque o outro sendo tambeacutem sem ecceidade sem lugar e sem corpo o Alter e o Ego satildeo um soacute no mundo verdadeiro elo de espiacuteritos (MERLEAU-PONTY 1945 p VI)
Para Merleau-Ponty a filosofia de Brunschvicg torna-se a
expressatildeo das diversas nuances do racionalismo e do idealismo que sua
ldquofenomenologia da percepccedilatildeordquo passaraacute a criticar e denominar como
ldquointelectualismosrdquo101 levando-se em conta a observaccedilatildeo de Saint-Aubert de
que na obra Les eacutetapes de la philosophie matheacutematique Brunschvicg teria
batizado a sua proacutepria doutrina como um ldquointelectualismordquo (SAINT-AUBERT
2005 p 61) A criacutetica ao intelectualismo e agraves doutrinas de ldquoinspiraccedilatildeo
criticistardquo que natildeo consideram a percepccedilatildeo senatildeo uma ldquooperaccedilatildeo intelectualrdquo
torna-se inclusive um modo indireto de afrontamento desta filosofia que se
fundamentava em uma definiccedilatildeo estreita de razatildeo em uma ldquofilosofia magrardquo
na qual se efetivava uma reduccedilatildeo de toda ldquometafiacutesicardquo a uma ldquoteoria do
conhecimentordquo (SAINT-AUBERT 2005 p 64) O que Merleau-Ponty natildeo
podia aceitar como nos lembra Saint-Aubert era justamente o que se
constituiria como aquilo que seu projeto filosoacutefico assumiria o compromisso
de desconstruir ldquoa concepccedilatildeo do espiacuterito como uma espeacutecie de lsquoprojetorrsquo cuja
atividade se resume por completo em lsquoconstruirrsquordquo (SAINT-AUBERT 2005 p
64) Em contrapartida o que procuraraacute Merleau-Ponty ao negar uma
101 Em outros termos a criacutetica a Brunschvicg indica sobretudo uma desaprovaccedilatildeo do criticismo um distanciamento de Kant Nos cursos sobre a Natureza esta questatildeo retorna
186
ldquorepresentaccedilatildeo estaacutetica do universo percebidordquo tal como eacute fornecido pela
ciecircncia pautada pelo intelectualismo seraacute a iniciativa de ldquo[] projetar sobre
o processo inconsciente da percepccedilatildeo a luz que fornece a anaacutelise clara e
distinta do desenvolvimento da ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY apud SAINT-
AUBERT 2005 p 66)
O intelectualismo ou como diraacute La Structure du Comportement
uma ldquofilosofia de inspiraccedilatildeo criticistardquo assumindo as consequecircncias do
cartesianismo seguiria em outra direccedilatildeo Natildeo haveria no conhecimento esse
ldquoco-noscererdquo [co-nascer] que eacute vivido pelo olhar uma vez que para tal seria
necessaacuterio que fosse transformado o modo como a proacutepria filosofia lida
consigo mesma e com o que constitui o foco de sua interrogaccedilatildeo ou melhor
o modo como iraacute encarar o que seria uma ldquoexperiecircncia da verdaderdquo
34 As ldquoruiacutenas do pensamentordquo e o ldquoconflito dos pontos de vistardquo a crise na compreensatildeo do humano
Wir leben in einer Ruinenlandschaft verfallener Ideale (FINK 1974 p 212)102
Ruiacutena eacute ruiacutena deve ficar Eacute que as ruiacutenas sempre foram mais eloquentes do que a obra remendada (SARAMAGO)103 Dans le monde lhomme est entreacute sans bruit (DE CHARDIN 1956)
341 O conflito dos pontos-de-vista na compreensatildeo do homem a compreensatildeo do intervalo do saber cientiacutefico e do saber filosoacutefico Ao falar em um de seus cursos sobre uma crise da racionalidade
que se estabelece nas ldquorelaccedilotildees entre os homensrdquo (MERLEAU-PONTY 1996
102 A nosso ver esta frase constantemente relembrada por Merleau-Ponty [Nous vivons dans des ruines de penseacutees] refere-se ao seguinte trecho ldquoWir leben in einer Ruinenlandschaft verfallener Ideale lange Abendschatten des Zweifels des Miszligtrauens des Skepsis und der Muumldigkeit dunkeln uumlber dem lsquoAbendlandrsquo Vielleicht war der Mensch noch nie sich so fragwuumlrdig obwohl noch kein Zeitalter den riesigen Wissensstoff besaszlig wie das unsrige in zahllosen speziellen Wissenschaften haben wir den Menschen ausgeforscht in Soziologie Ethnologie vergleichender Kulturkunde eine raffinierte Psychologie hat die Masken abgenommen mit denen das Menschenleben sich verlarnte hat die geheimen Hintergruumlnde und Abgruumlnde der Seele ausgeleuchtet Aber wissen denn damit wer wir sind was unser Ziel Bestimmung istrdquo (FINK 1989 p 212) 103 SARAMAGO J Viagem a Portugal Lisboa Editorial Caminho 1984
187
p 40) para Merleau-Ponty a questatildeo certamente se trata antes de se
perguntar pela ldquocompossibilidade dos homensrdquo pela ldquopossibilidade de uma
sociedade orgacircnicardquo Embora se trate de um conceito leibniziano a
compossibilidade eacute pensada neste curso a partir de Marx Neste capiacutetulo
contudo o nosso objetivo central natildeo seraacute o de tratar sobre o que levaraacute o
filoacutesofo a negar a filosofia ldquosocial claacutessicardquo a partir de uma reflexatildeo da
histoacuteria mas refletir pensando em uma frase de Teilhard de Chardin que
detivera a atenccedilatildeo de Merleau-Ponty nos cursos sobre La Nature o modo
como o homem se torna uma questatildeo filosoacutefica tendo-se em vista que no
mundo ldquoo homem entrou sem ruiacutedordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 334) Eacute
certo que no contexto em que surgira a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo era de
investigar as possibilidades do conceito de evoluccedilatildeo No entanto
encontramos nessa frase uma imagem que nos apresenta o modo mediante o
qual emergira no cenaacuterio contemporacircneo uma reflexatildeo acerca do homem
da noccedilatildeo de subjetividade e por conseguinte da noccedilatildeo fenomenoloacutegica de
corpo-sujeito Natildeo eacute sem sentido que em seu estudo acerca do problema
antropoloacutegico em Merleau-Ponty Bimbenet comeccedilara justamente com esta
frase (BIMBENET Nature et humanite Le probleme anthropologique dans lrsquooeuvre de
Merleau-Ponty p 9) Nesta perspectiva cabe-nos aqui nos perguntar tanto pelo
sentido que adquire em Merleau-Ponty a indagaccedilatildeo acerca daquele que
sem ruiacutedo adentrara o cenaacuterio do Mundo Moderno como tambeacutem pelo
caminho que eacute aberto por esta reflexatildeo pelas sendas de pensamento que nos
satildeo agora permitidas percorrer104
Em contrapartida a nossa intenccedilatildeo natildeo seraacute a de elucidar a
presenccedila em Merleau-Ponty da proposta e defesa de uma antropologia
Permanecendo no horizonte filosoacutefico o que esperamos explicitar eacute o modo
pelo qual a partir de uma criacutetica agrave metafiacutesica claacutessica e seus
desdobramentos em uma visatildeo cientificista de mundo ndash conforme vimos nos
104 Ora desde Foucault sabe-se que a pergunta acerca do homem tivera um de seus primeiros clarotildees em Kant Para alguns o problema antropoloacutegico poderiacuteamos dizer natildeo eacute novo na histoacuteria da filosofia Jaacute poderiacuteamos encontraacute-lo nos antigos A este respeito eacute suficiente fazer referecircncia agraves Comeacutedias de Terecircncio e a importacircncia que tiveram as suas peccedilas em especial o Heautontimoroumenos na gecircnese do humanismo renascentista Contudo a possibilidade de tal etiologia natildeo constitui no momento o nosso interesse
188
rebentos do que seria o Pequeno Racionalismo ndash Merleau-Ponty nos aponta
caminhos de compreensatildeo das relaccedilotildees do homem consigo mesmo e com o
mundo de tal modo que natildeo nos deixe escapar na aproximaccedilatildeo daquilo que
eacute o foco de nossa pesquisa este mesmo foco o proacuteprio fenocircmeno humano
Trata-se pois de uma descriccedilatildeo mas de uma descriccedilatildeo que nem por isso
limita-se a se dar unicamente nos contornos da tradiccedilatildeo filosoacutefica Neste
sentido compreendemos a razatildeo pela qual Merleau-Ponty natildeo hesita em
tornar parte de suas investigaccedilotildees agravequilo que de autecircntico a ciecircncia pode
nos ensinar agravequilo que independente de sua ἐπιστήmicroη [episteacuteme] daacute
mostras de ser mais condizente com a compreensatildeo de nossas experiecircncias
Qual a razatildeo No ponto de partida do filoacutesofo natildeo cabe a concisa separaccedilatildeo
entre fatos e ideias ou essecircncias O fato se daacute impregnado por sua essecircncia
esta natildeo se encontra oculta vedada pelo denso veacuteu do sensiacutevel no proacuteprio
sensiacutevel manifesta-se o inteligiacutevel logo a mateacuteria jaacute eacute graacutevida jaacute traz em si a
sua forma
Ora seguindo a proposta deste trabalho vale salientar que estas
perspectivas emergem na tentativa de lidar com as questotildees que
acompanham o sentimento de crise que procuramos elucidar nos capiacutetulos
anteriores em meio a uma experiecircncia de non-sens mediante o
enfrentamento dos domiacutenios da teacutecnica da perda do proacuteprio homem
assombrado pelas investidas do cientificismo Vaacuterios satildeo os contemporacircneos
de Merleau-Ponty que falam constantemente que apesar de suas
conquistas o homem perdera a si mesmo perdera o sentido de sua
existecircncia que apesar de seus avanccedilos nos desvendamentos dos enigmas do
universo perdera a chave que lhe possibilita decifrar o maior e mais
importante dos enigmas o de si mesmo105 E tal constataccedilatildeo torna-se quase
unacircnime nomeadamente o fato de ser tal situaccedilatildeo a consequecircncia de um
projeto frustrado de humanidade o qual encontra o seu solo o seu
105 Eacute o que parece nos dizer Koyreacute ldquoEacute nisto que consiste a trageacutedia do espirito moderno que lsquoresolveu o enigma do Universorsquo mas tatildeo-somente para substitui-lo por um outro lsquoo enigma de simesmorsquordquo (KOYREacute 1968 p 42-3)Contemporacircneo de Merleau-Ponty colega de Bachelard na Sorbonne lembremo-nos do sentido dessa frase de Koyreacute em sua leitura de Husserl
189
fundamento (Grund) nas desventuras da metafiacutesica este ldquodeusrdquo do ocidente
que ndash conforme a leitura heideggeriana de Nietzsche ndash revelava estar
perdendo as suas forccedilas ensaiava seus uacuteltimos suspiros Daiacute a sensaccedilatildeo de
natildeo se saber o que se pensa a vivecircncia de uma eacutepoca determinada por
ruiacutenas ruiacutenas de pensamentos Conforme procuraremos mostrar eacute neste
contexto que insurge a pergunta pelo homem ou melhor tal pergunta torna-
se filosoficamente suscetiacutevel de ser engendrada acompanhada de todas as
suas consequecircncias filosoacuteficas
Pensando nestas questotildees o nosso intuito neste capiacutetulo eacute
mostrar como elas repercutem seguindo as pegadas husserlianas que
nascem e se articulam nos horizontes de uma ldquocriserdquo em nosso modo de
compreender o que eacute proacuteprio do homem elucidando o modo pelo qual o
filoacutesofo iraacute enfrentar a ideia de uma ldquocrise da Razatildeordquo presente na
compreensatildeo do homem em outros termos procurando mostrar como esta
tarefa se harmoniza com o breve itineraacuterio etioloacutegico da noccedilatildeo de crise tal
como jaacute procuramos mostrar Caminharemos pois ndash tendo em vista o
itineraacuterio e background que justificam nossas escolhas ndash no intuito de
refletir como de uma ldquocrise do espiacuteritordquo passando por uma ldquocrise da Razatildeordquo
vislumbrando essa vivecircncia nas relaccedilotildees com a Natureza deparamo-nos
neste capiacutetulo em Merleau-Ponty com uma espeacutecie de ressignificaccedilatildeo da
ideia de crise a saber com uma crise ou mal-estar da Razatildeo que se origina
no conflito existente entre as visotildees ou os pontos de vista antinocircmicos que se
tem acerca do homem dito de outro modo com uma crise do olhar na
compreensatildeo do homem
Quando pensamos no mundo claacutessico seraacute a noccedilatildeo de sujeito
que melhor expressa os seus fundamentos Isto explica talvez por que esta
questatildeo acabara por ocupar tanto a atenccedilatildeo do pensamento moderno
mesmo que diferentemente de outras eacutepocas a sua intenccedilatildeo fosse
desconstruiacute-lo ou quiccedilaacute reduzi-lo a cinzas sob a eacutegide quer seja da
estrutura dos determinismos sociais ou bioloacutegicos quer seja inclusive do
Dasein ou do inconsciente Eacute assim que em outros termos o Cogito
cartesiano se tornou uma das paacuteginas mais visitadas pela filosofia do seacuteculo
190
XX e esta deacutemarche tal como tentamos explicitar no segundo capiacutetulo natildeo
fora diferente com Merleau-Ponty Conforme o filoacutesofo a maior dificuldade
seria pois encontrar uma concepccedilatildeo de homem que natildeo fosse cuacutemplice de
um simples humanismo naturalista ainda embaraccedilado com as categorias
claacutessicas e isto dado o ensejo de promover um retorno coerente a uma
experiecircncia concreta e autecircntica do mundo Neste sentido a fenomenologia
apontara para o filoacutesofo um meacutetodo eficaz que pudesse viabilizar seu projeto
de encontrar uma compreensatildeo do humano aqueacutem do cientificismo e do
racionalismo aqueacutem portanto da noccedilatildeo claacutessica de sujeito Eacute assim que
encontramos os diversos movimentos e nuances das primeiras obras do
filoacutesofo o seu enamoramento com o pensamento moderno especialmente a
ciecircncia e a arte a sua desaprovaccedilatildeo da ciecircncia claacutessica a sua rejeiccedilatildeo do
realismo e do intelectualismo que norteavam as reflexotildees da tradiccedilatildeo
filosoacutefica A subjetividade se torna uma questatildeo revisitada em um primeiro
momento na tentativa de reformulaccedilatildeo do Cogito cartesiano que nos levasse
agrave elucidaccedilatildeo de um Cogito taacutecito de um ldquosujeito encarnadordquo Diraacute Merleau-
Ponty em uma entrevista dada em maio de 1946 ldquoA Pheacutenomeacutenologie de la
perception tenta responder a uma questatildeo que eu me coloquei dez anos
antes e que eu acredito todos os filoacutesofos de minha geraccedilatildeo se colocaram
como sair do idealismo sem cair novamente na ingenuidade do realismordquo
(MERLEAU-PONTY 1997b p 66) Para Merleau-Ponty a filosofia precisava
se voltar para um mundo vivido e concreto que a cumplicidade natildeo
declarada de antinomias como a do realismo e do idealismo por exemplo
colocara agraves margens do pensamento Um retorno agrave existecircncia neste
contexto significava uma possibilidade de superaccedilatildeo uma vez que
transpostas para o homem ldquocontradiccedilotildees fundamentaisrdquo como as do ldquoserrdquo e
do ldquonadardquo do ldquosujeitordquo e do ldquoobjetordquo entre outras alcanccedilavam uma
possibilidade de siacutentese a partir de sua proacutepria antiacutetese
A pergunta pela ldquoexistecircnciardquo a reaccedilatildeo contra o idealismo a partir
de temas como o da ldquoencarnaccedilatildeordquo do ldquomundo sensiacutevelrdquo e da ldquohistoacuteriardquo natildeo
representavam para a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty apenas um dos itens de
um manual filosoacutefico um conjunto de temas a mais para ser discutido em
aporias interminaacuteveis ou no engessamento de um meacutetodo preestabelecido
191
mas acima de tudo o arcabouccedilo de um novo modo de filosofar daiacute como
mostramos a sua resistecircncia a modelos de leitura filosoacutefica como os de
Gueacuteroult Este novo ldquoolharrdquo nascia da experiecircncia da ambiguidade e dos
equiacutevocos presentes em um aacuterduo e sofrido confronto da vida com o
pensamento sendo o contraacuterio tambeacutem verdadeiro O palco da histoacuteria natildeo
se permitia ser contemplado como um espelho das especulaccedilotildees filosoacuteficas
tal como se esperava As noccedilotildees idealistas de ldquonatureza humanardquo natildeo
conseguiam expressar os paradoxos vividos nas relaccedilotildees pessoais na
poliacutetica na histoacuteria A experiecircncia da guerra em contrapartida corroboraria
este desejo desnudaria e tornaria ilegiacutetima uma filosofia que se colocava
apenas em busca daquilo que seja capaz de revelar em tudo e em todos o
ldquounordquo o ldquoespiacuteritordquo Eacute o que expressa Merleau-Ponty em La guerre a eu lieu
Convidavam-nos a colocar em duacutevida a histoacuteria jaacute feita a reencontrar o momento em que a Guerra de Troacuteia poderia ainda natildeo acontecer e no qual a liberdade num soacute gesto esfacelaria as fatalidades externas Essa filosofia otimista que reduziu a sociedade humana a uma soma de consciecircncias sempre prontas para a paz e para a felicidade era a filosofia de uma naccedilatildeo dificilmente vitoriosa uma compensaccedilatildeo imaginaacuteria recordaccedilotildees de 1914 Sabiacuteamos dos campos de concentraccedilatildeo que os judeus eram perseguidos mas essas certezas pertenciam ao campo do pensamento Natildeo viviacuteamos em presenccedila da alternativa de sofrecirc-las ou enfrentaacute-las () Ao mesmo tempo em que o objeto de horror o anti-semitismo nos aparecia como misteacuterio e formados pela filosofia que nos formara todo dia durante quatro anos perguntaacutevamos como o anti-semitismo eacute possiacutevel Havia um uacutenico meio de evadir-se da questatildeo podia-se negar que o anti-semitismo fosse verdadeiramente vivido por algueacutem (MERLEAU-PONTY 1966 p 246 251)
Frente a esta confissatildeo uma conclusatildeo possiacutevel eacute a de que a
Weltanshaung de uma intelectualidade francesa confessadamente pautada
pelo idealismo natildeo conseguia dialogar com os fatos suscitados por uma
guerra natildeo conseguia compreender por exemplo a resistecircncia nem orientar
um posicionamento colaboracionista ou natildeo-colaboracionista Faltava um
retorno ao ldquoconcretordquo que servisse de auxiacutelio agraves tentativas de superaccedilatildeo do
idealismo pelos jovens franceses da deacutecada de 30 Eacute por isso que neste
cenaacuterio ao propor um retorno ao proacuteprio mundo agrave experiecircncia vivida a
fenomenologia parecia expressar que de repente para se sair da caverna
bastava apenas abrir os olhos Eacute assim que houvera uma certa simpatia por
autores como Husserl e Heidegger em suas tentativas de desconstruccedilatildeo de
192
uma consciecircncia substancializada ou como diria Sartre de um ldquoespiacuterito-
aranhardquo condenado a deglutir o mundo a tornaacute-lo um ser de sua proacutepria
substacircncia para somente assim poder conhececirc-lo (SARTRE Uma ideia
fundamental de Husserl a intencionalidade in SARTRE Situaccedilotildees I) Pelo
contraacuterio eacute preciso reconhecer que ldquoo homem existente natildeo pode ser
assimilado por um sistema de ideias por mais que se possa dizer e pensar
sobre o sofrimento ele escapa ao saber na medida em que eacute sofrido em si
mesmo onde o saber permanece incapaz de transformaacute-lordquo (SARTRE 1972
p 122) Eacute neste sentido que Merleau-Ponty como nos testemunha Sartre
() virava as costas para as pompas da filosofia e dizia que as verdades satildeo prostitutas que jamais ultrapassam ndash a natildeo ser na Greacutecia antiga ndash o umbral dos filoacutesofos Natildeo sei se ele ficou tatildeo entusiasmado quanto eu quando aprendi pela primeira vez aquilo que nossos mestres nos haviam escondido que se pudesse refletir sobre um lampiatildeo a gaacutes Mais humanista ele fez com que se abandonasse o lampiatildeo para deslocar a reflexatildeo para o homem que o acende Enquanto as luzes e as avenidas de Paris me fascinavam ele se fascinava com ldquoa verdadeira vidardquo com os sofrimentos e o cotidiano dos homens O que eles fazem desejam e vecircem (SARTRE 1972 p 152)
A compreensatildeo do homem a partir de seu fazer desejar e ver
assim como podemos vislumbrar nos trabalhos de Merleau-Ponty e de
autores considerados ldquoexistencialistasrdquo indica-nos paisagens de uma eacutepoca
sequiosa pelo ldquoconcretordquo pela ldquoexistecircnciardquo pela ldquovidardquo Voltar para o homem
que acende o lampiatildeo significa romper com toda uma tradiccedilatildeo filosoacutefica que
preferira os ldquoespectrosrdquo e os ldquofantasmasrdquo do mundo das ideias de um ldquoCeacuteu
imaginaacuteriordquo ao inveacutes dos homens concretos no cotidiano de suas vidas
Compreender como ensinava a fenomenologia husserliana a consciecircncia
como intencionalidade significava naquele momento regressar a uma
experiecircncia anterior ao pensamento a uma unidade primordial e
indissoluacutevel entre o homem e seu mundo o homem e seus companheiros de
ldquocarne e ossordquo ou como indicaria Levinas o anuacutencio do que seria a ldquoruiacutena
da representaccedilatildeordquo uma ldquosuperaccedilatildeo da intenccedilatildeo na proacutepria intenccedilatildeordquo a
recusa da ilusatildeo de que o objeto estaria condenado a ser ldquoa todo instante tal
como o sujeito pensa atualmenterdquo (LEVINAS 1997) Como acentua Sartre o
que se negava era um ldquoidealismo oficialrdquo em nome do ldquotraacutegico da vidardquo logo o
193
que deveria chamar a atenccedilatildeo filosoacutefica deveriam ser os ldquohomens reais com
seus trabalhos e suas penasrdquo
Todavia ao contraacuterio de um humanismo romacircntico a pergunta
pelo homem que acende o lampiatildeo revelava em consequecircncia uma pergunta
pela histoacuteria e suas ambiguidades suas sombras e suas luzes uma vez que
ldquoo movimento das ideias soacute consegue descobrir verdades respondendo a
alguma pulsaccedilatildeo da vida interindividual e toda mudanccedila no conhecimento
do homem tem relaccedilatildeo com uma nova maneira pessoal dele de exercer sua
existecircnciardquo (SARTRE 1972 p 152) Assim
Se o homem eacute o ser que natildeo se contenta em coincidir consigo como uma coisa mas que se representa a si mesmo se vecirc se imagina oferece a si mesmo siacutembolos rigorosos ou fantaacutesticos fica bem claro que em contrapartida qualquer mudanccedila na representaccedilatildeo do homem traduz uma mudanccedila do proacuteprio homem (MERLEAU-PONTY 1991 p 254)
Das cinzas de uma ldquocrise do espiacuteritordquo parece emergir uma
verdadeira ldquocrise do homemrdquo O que eacute o homem Se eacute verdade o que nos diz
Merleau-Ponty que para melhor compreendermos o homem enquanto
questatildeo filosoacutefica precisariacuteamos evocar ldquo[] toda a histoacuteria deste meio
seacuteculo com seus projetos suas decepccedilotildees suas guerras suas revoluccedilotildees
suas audaacutecias seus pacircnicos suas invenccedilotildees suas fraquezas []
(MERLEAU-PONTY 1991 p 254) eacute verdade tambeacutem que todas essas
questotildees por sua vez apenas adquirem sentido se remetidas a investigaccedilatildeo
de como ali o humano fora compreendido o modo como ldquosem ruiacutedordquo o
homem adentrara o pensamento moderno Poreacutem vale salientar natildeo se
trata da constataccedilatildeo ou rememoraccedilatildeo de um humanismo como impeacuterio do
humano Natildeo haacute aqui a legitimaccedilatildeo daquela ldquosubstituiccedilatildeo do teocentrismo
medieval pelo ponto de vista humanordquo do qual nos alerta Koyreacute (KOYREacute
1991 p 18) ao falar da presenccedila deste processo no discurso religioso em
meio agraves fronteiras do pensamento moderno jaacute nas margens de um
esgotamento do espiacuterito da Idade Meacutedia Natildeo se trata da emergecircncia de um
nova tese mas do reconhecimento de uma eacutepoca na qual tanto as teses
como as antiacuteteses acerca do homem acabam se mesclando em uma
associaccedilatildeo inteiramente nova por exemplo do materialismo e do
194
espiritualismo Seria pois o reconhecimento de uma ordem originaacuteria do
humano Ao menos por volta de 1900 o que poderiacuteamos encontrar no dizer
de Merleau-Ponty ainda seria apenas a sua reivindicaccedilatildeo ora presente na
compreensatildeo da humanidade como o momento ou o episoacutedio de um
processo evolutivo de uma vida decomposta em processos fiacutesicos ou
quiacutemicos ora presente na instauraccedilatildeo de uma condiccedilatildeo humana perpassada
ateacute mesmo por forccedilas ldquosobrenaturaisrdquo forccedilas que transcendiam a sua
proacutepria natureza
O retorno a existecircncia frente a essa histoacuteria que mais indicava
por fim uma das faces de uma autecircntica crise tratava-se justamente da
dissociaccedilatildeo radical entre uma real compreensatildeo do homem e a ideia de uma
ldquohumanidade de pleno direitordquo assim como as consequecircncias que uma tal
dissociaccedilatildeo traria consigo Neste sentido se o sentimento de uma crise pelo
que parece apontar as linhas acima indica para a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty
um retorno ao ldquohomem concretordquo ao conflito existente na compreensatildeo da
relaccedilatildeo do homem consigo mesmo com o mundo e com a histoacuteria106 parece-
nos que dificilmente haveria uma adesatildeo a uma soluccedilatildeo de cunho
exclusivamente espiritualista ou agraves reflexotildees apontadas no primeiro
capiacutetulo do Hamlet valeriano e seus cracircnios ilustres dado que o proacuteprio
Hamlet ainda seria sobretudo um belo retrato do sujeito claacutessico Ora
nesta perspectiva a Pheacutenomeacutenologie de la perception natildeo pode ser
simplesmente localizada no quadro de uma ontologia regional aquela dos
reinos ontoloacutegicos na qual ldquo[] Husserl era senatildeo o Josueacute pelo menos o
Moiseacutesrdquo (BEAUFRET 1976 p 127) Eacute claro que na Franccedila apesar das sutis
diferenccedilas107 Sartre e Merleau-Ponty fazem eco agrave obra husserliana ainda
marcada pelo valor dado agrave ideia de Constituiccedilatildeo Neste sentido segundo
106 O artigo de Merleau-Ponty ldquoO homem e a adversidaderdquo eacute um exemplo disso 107 Quanto a isso apontando as diferenccedilas que tivera a recepccedilatildeo de Husserl em Merleau-Ponty daquele ecoada em Sartre Beaufret nos diz que ldquo[] o livro de Sartre tem por eixo o primeiro Husserl o das Ideen cuja publicaccedilatildeo em 1913 eacute diz Sartre lsquoo grande acontecimento da filosofia anterior agrave guerrarsquo ao passo que Merleau-Ponty leu a Krisis isto eacute apoacuteia-se no Husserl de 1935 que tem vinte e dois anos a mais que o de Sartrerdquo (BEAUFRET 1976 p 128) Disso a compreensatildeo da Pheacutenomeacutenologie de la perception ldquo[] como uma trajetoacuteria arqueoloacutegica no campo do percebido agrave procura do lsquogecircnio perceptivo aqueacutem do sujeito pensantersquordquo (BEAUFRET 1976 p 128)
195
alguns inteacuterpretes haveria na Pheacutenomeacutenologie de la perception ainda
resquiacutecios de uma ldquofilosofia da consciecircnciardquo que o proacuteprio Merleau-Ponty natildeo
deixaria de lamentar futuramente Mas a intenccedilatildeo natildeo era simplesmente
descrever nossas vivecircncias O que haacute nisso de uma ldquofilosofia da
consciecircnciardquo Conforme Beaufret nos adverte ldquo[] no sentido de Husserl
[] descrever significa finalmente lsquoconstituirrsquo Merleau-Ponty por sua vez
teria podido dizer meu livro tem por finalidade lsquoconstituirrsquo a grande funccedilatildeo
realizante da consciecircncia ou percepccedilatildeo e seu correlativo noemaacutetico o
lsquopercebidorsquordquo (BEAUFRET 1976 p 128) Disto se poderia deduzir que o
filoacutesofo a partir de uma tarefa de constituiccedilatildeo do vivido assim como a
fenomenologia seria de fato omnium phoenomenum fidissimus interpres
(BEAUFRET 1976 p 128)108 Mas as coisas natildeo satildeo tatildeo simples a
Pheacutenomeacutenologie de la perception estaacute aleacutem de um mero ldquoreino ontoloacutegico das
origens absolutasrdquo A filosofia de Merleau-Ponty eacute uma fenomenologia
existencial que busca descrever o ambiente concreto no qual o sujeito
pensante se encontra em situaccedilatildeo Ele pretende nos levar a perceber o
mundo antes do conhecimento a ldquoretornar a este mundo anterior ao
conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e em relaccedilatildeo ao qual
toda determinaccedilatildeo cientiacutefica eacute abstrata significativa e dependente como a
geografia em relaccedilatildeo agrave paisagem ndash primeiramente noacutes aprendemos o que eacute
uma floresta um prado ou um riachordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p III) visto
jaacute ser o nosso mundo carregado de sentido Conforme Rudolf Bernet
Na Pheacutenomeacutenologie de la perception Merleau-Ponty tenta esclarecer o sentido da distinccedilatildeo entre filosofia da natureza e filosofia do espiacuterito partindo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da existecircncia humana
(BERNET 1992 p 61) [Natildeo visualizando a ambiguidade apenas na histoacuteria o filoacutesofo a encontraraacute tambeacutem em nossa proacutepria estrutura ontoloacutegica o que demonstra sua negaccedilatildeo em compreendecirc-la a partir das dicotomias claacutessicas pois] [] eacute sem duacutevida atraveacutes do atestado de incapacidade do dualismo ontoloacutegico entre ldquoser em sirdquo e ldquoser para sirdquo ao descrever fenocircmenos mais correntes da existecircncia humana que Merleau-Ponty se converteu em pensador do entre-deux e ateacute mesmo da ambiguidade (BERNET 1992 p 59) [Desse modo] recusando uma forma da dialeacutetica que faz violecircncia aos fenocircmenos reduzindo-os todos a uma forma da oposiccedilatildeo dos contraacuterios e se engajando na via de um pensamento natildeo-hegeliano da diferenccedila
108 Traduccedilatildeo inteacuterprete fideliacutessimo de todos os fenocircmenos
196
tambeacutem foi levado a dar um novo sentido aos conceitos tradicionais da negatividade e da interrogaccedilatildeo Eacute este novo pensamento da diferenccedila e da negatividade que lhe permitiu propor uma anaacutelise ineacutedita dessa obra da liberdade que eacute a histoacuteria [] (BERNET 1992 p 59)
Neste sentido como jaacute tivemos a oportunidade de assinalar ao
nos voltar para o pensamento merleau-pontiano natildeo podemos nos esquecer
do peso que tivera em seu decurso saberes como a psicologia a fiacutesica a
biologia a fisiologia a psicanaacutelise entre outros Dentre estes no horizonte
da Pheacutenomeacutenologie de la perception a psicologia possui um papel especial
que pode ateacute nos levar a compreender os primeiros trabalhos do filoacutesofo na
perspectiva de um pensamento anfiacutebio Todavia poderiacuteamos nos indagar
haveria de ser vaacutelida a presenccedila da psicologia como um componente
importante na pesquisa filosoacutefica Que papel possui a psicologia na filosofia
de Merleau-Ponty Podemos pensar esta questatildeo a partir de duas
perspectivas Conforme a primeira haveria em Merleau-Ponty um
pensamento imaturo e seduzido pelo psicologismo que se oporia a um
pensamento mais ontoloacutegico fruto do encontro com a fenomenologia Na
outra perspectiva naquela em que ensaiamos compreender o filoacutesofo
haveria um desejo de estabelecer no fundo um diaacutelogo entre filosofia e
ciecircncia
Na primeira perspectiva seguindo especialmente as trilhas de
Sartre somos levados a concluir que Merleau-Ponty se aproximava da
psicologia apenas por ter ainda um pensamento juvenil e que esta
aproximaccedilatildeo inclusive seria futuramente lamentada109 Que conclusotildees
Sartre tiraraacute disto Conforme a oacutetica sartreana os trabalhos da psicologia
foram o primeiro machado usado por Merleau-Ponty para atravessar a densa
floresta dos problemas suscitados por uma filosofia voltada para a
existecircncia Contudo ldquo() com os gestaltistas e com os psiquiatras ele
109 Embora houvesse uma identificaccedilatildeo conforme indicamos anteriormente pelo fim que levaria os ex-colegas da Eacutecole Normale Supeacuterieure agrave filosofia a saber o desejo de partir do concreto de descobrir ldquoa verdade que habita as ruas e as faacutebricasrdquo109 Merleau-Ponty iria partir primeiramente dos trabalhos de autores como Weiszaumlcker Buytendijk Minkowski Gelb e Goldstein
197
avanccedilava sem teacutecnica e sem arte por instinto em direccedilatildeo lsquoagrave proacutepria coisarsquordquo
(SARTRE op cit p 152) Merleau-Ponty diante de certos impasses acabara
deparando-se com o medo do psicologismo o que o levaria agrave fenomenologia
Sartre natildeo tinha duacutevida de que ldquoo determinismo estatiacutestico dos psicoacutelogos
natildeo tinha nada a ver com esse esforccedilo cego ainda mas obstinado para
penetrar no fundo de si mesmo e assistir agrave gecircnese ndash ao menor piscar dos
olhos ndash do homem pelo homem e do mundo pelos homens []rdquo(SARTRE op
cit p 152) Foi assim que ele encontraria outro machado o da ldquointenccedilatildeordquo
Neste mesmo sentido poderiacuteamos dizer entatildeo que a filosofia de Merleau-
Ponty seria a tentativa fracassada de efetivaccedilatildeo conforme insinuaccedilatildeo de
alguns leitores como Kelkel (KELKEL 2002) do programa de uma
ldquofenomenologia psicoloacutegicardquo que Husserl aleacutem do anuacutencio natildeo fizera senatildeo
um esboccedilo
Ora o leitor atento sabe que de modo totalmente diverso a
Pheacutenomeacutenologie de la perception estaacute muito longe de ser o desenvolvimento
de uma ldquopsicologia fenomenoloacutegicardquo E para tal conclusatildeo natildeo precisariacuteamos
aguardar a descoberta em alguma gaveta do filoacutesofo em uma das Notes de
Travail na qual Merleau-Ponty corroboraria suas verdadeiras intenccedilotildees ao
dizer que antes de um tratado de psicologia o que se visava era sobretudo
uma ontologia (MERLEAU-PONTY 1992 p 228) Basta nos aproximar com
mais cuidado tanto das paisagens abertas pelo texto e das questotildees que
fazem parte de seu tecido quanto do modo como eacute feito cada um destes
movimentos A nosso ver a razatildeo deste descompasso eacute o mesmo que estaacute
presente nas leituras de Sartre Breacutehier e Alquieacute o mesmo que por sua vez
mostra-se ser um dos eixos centrais da filosofia de Merleau-Ponty a saber o
modo como satildeo encaradas as difiacuteceis relaccedilotildees entre o pensamento filosoacutefico e
o trabalho cientiacutefico Para tanto o seu pensamento fundamenta-se na
recusa de uma filosofia concebida seja como Erklaumlrung seja como
Begruumlndung o abandono de uma filosofia que assume por tarefa como jaacute
assinalado instalar-se em um ser a fim de construir os demais a partir dele
Eacute a ilusatildeo daquilo que o filoacutesofo chamaria de uma ldquofilosofia linearrdquo presa em
um ldquouacutenico centrordquo Um caminho de superaccedilatildeo se encontraria talvez em uma
ldquofilosofia circularrdquo que natildeo deixasse de se colocar a si mesma em causa e
198
acrescentemos que fosse suscetiacutevel de se estruturar em um ou vaacuterios
centros que fosse concecircntrica
Por conseguinte apesar da retoacuterica sartreana natildeo podemos
deixar de levantar algumas questotildees frente ao que dissera questotildees que
podem nos conduzir a uma outra perspectiva Assim em contrapartida
pensamos que apesar de toda ojeriza de Sartre agraves restriccedilotildees da psicologia
ele acabara de cometer um erro um tanto psicologista Tambeacutem seria difiacutecil
que fosse diferente Sartre encontrava-se proacuteximo demais de Merleau-Ponty
a sua leitura nos lembra a mesma que Zola fizera de Ceacutezanne A nosso ver eacute
preciso buscar um outro modo de ler a obra de Merleau-Ponty e neste
sentido somos seduzidos a inverter o olhar buscando pensar antes uma
ldquorepercussatildeordquo da obra sobre a vida do que uma ldquoinfluecircnciardquo da vida sobre a
obra (MERLEAU-PONTY 1966 p 15-16) A aproximaccedilatildeo merleau-pontiana
da psicologia se daacute no intuito de um projeto que posteriormente poderaacute
adquirir uma outra coloraccedilatildeo mas que a princiacutepio parte do desejo de
compreender as relaccedilotildees entre ldquoconsciecircnciardquo e ldquonaturezardquo ldquoprimeira pessoardquo
e ldquoterceira pessoardquo ldquofilosofiardquo e ldquociecircnciardquo para ver se entre ela e a filosofia
ainda eacute possiacutevel um diaacutelogo O filoacutesofo precisa saber dialogar com a ciecircncia e
a ciecircncia tambeacutem dialogar com o filoacutesofo Mas para isso eacute preciso
desconstruir toda uma tradiccedilatildeo que as apresenta ainda como rivais Eacute assim
que entendemos por exemplo a relaccedilatildeo que se estabelece entre La Structure
du comportement e Pheacutenomeacutenologie de la perception Nas palavras do proacuteprio
Merleau-Ponty
Nossos primeiros trabalhos publicados se dedicam a um problema que eacute constante na tradiccedilatildeo filosoacutefica mas que se colocou de uma maneira mais aguda a partir do desenvolvimento das ciecircncias do homem a ponto de conduzir a uma crise de nosso saber simultacircnea agrave de nossa filosofia Trata-se da discordacircncia entre a visatildeo que o homem pode ter de si mesmo pela reflexatildeo ou pela consciecircncia e a que obteacutem religando suas condutas a condiccedilotildees exteriores das quais elas dependem manifestamente Sob a primeira relaccedilatildeo o homem se apresenta como absolutamente livre Ele apenas pode reconhecer por verdade aquilo de que tenha consciecircncia Portanto eacute ele que daacute um sentido a todos os fatos que se lhe apresentam Ele constitui em uma autonomia absoluta todo ser e todo valor e nada pode vir de fora do sujeito pensante Esta perspectiva do homem sobre ele mesmo ou este contato consigo aparecem em grande parte dos filoacutesofos como absolutamente irrecusaacuteveis e vaacutelidas contra todo
199
argumento que se possa lhe opor Sunt quaeligdam quaelig quilibet debeat potius quam rationibus persuaderi (Descartes) E todavia desenvolveu-se todo um saber histoacuterico e psicoloacutegico do homem que o considera do ponto de vista do espectador estrangeiro e manifesta sua dependecircncia em relaccedilatildeo ao meio fiacutesico orgacircnico social e histoacuterico a ponto de fazecirc-lo aparecer como um objeto condicionado (MERLEAU-PONTY 2000b p 11)
Diante destas duas perspectivas acerca do homem Merleau-
Ponty percebe a impossibilidade de uma escolha radical Haacute uma dialeacutetica
constante entre o testemunho da consciecircncia110 e os olhares do espectador
estrangeiro Ao mesmo tempo o saber positivo se vecirc impossibilitado de negar
a validade do acesso que o pesquisador deve ter aos seus proacuteprios
pensamentos e o saber filosoacutefico incapaz de negar o fato de que ldquonosso
conhecimento de noacutes mesmos deve muito mais ao conhecimento exterior do
passado histoacuterico agrave etnografia agrave patologia mental por exemplo do que agrave
elucidaccedilatildeo direta de nossa proacutepria vidardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 12) A
tarefa do filoacutesofo se daacute no intuito de chegar agrave compreensatildeo de um homem
que se revela ao mesmo tempo sujeito e objeto Eacute claro que as criacuteticas
incisivas de Merleau-Ponty agrave ciecircncia claacutessica o convite a uma ldquopsicanaacuteliserdquo
110 Sobre este aspecto eacute interessante que a imagem utilizada pelo filoacutesofo seja retirada das Objectiones et Responsiones agraves Meditationes De Prima Philosophia especialmente nas Quintaelig Responsiones ldquoExistem certas coisas das quais cada um deveria experimentar por si mesmo mais do que ser persuadido por razotildeesrdquo [ldquoQuae postea de indifferentia voluntatis negas etsi per se manifesta sint nolo tamen coram te probanda suscipere Talia enim sunt ut ipsa quilibet apud se debeat experiri potius quam rationibus persuaderi tuque ocirc caro ad ea quae mens intra se agit non videris attendere Ne sis igitur libera si non lubetrdquo (DESCARTES 1996 l 19-20 ndash Ve Reacutep IV 3)] Por que essas palavras de Descartes servem de referecircncia para esse modo de compreender a razatildeo humana Vale lembrar que a resposta eacute dirigida especialmente agraves objeccedilotildees levantadas por Gassendi agrave Quarta Meditaccedilatildeo Dois argumentos centrais cruzam a nosso ver as objeccedilotildees de Gassendi a ideia de nada e o problema da liberdade (DESCARTES 1996g p 89-173 [182]) Frente a esses escolhos o que significa falar em um apud se experiri O que Descartes quer dizer ao falar de uma deacutemarche que natildeo se deixa levar por ldquorazotildeesrdquo Trata-se do que podemos entender aqui como a ldquoliberdade cartesianardquo tal como Sartre nos descreve ldquoDescartes que eacute acima de tudo um metafiacutesico toma as coisas pelo [] lado extremo a sua experiecircncia fundamental natildeo eacute a liberdade criadora ex nihilo mas principalmente a do pensamento autocircnomo que descobre pelas suas proacuteprias forccedilas relaccedilotildees inteligiacuteveis entre essecircncias jaacute existentes Eacute por isso que noacutes os Franceses que vivemos haacute trecircs seacuteculos agrave custa da liberdade cartesiana entendemos implicitamente por ldquolivre arbiacutetriordquo o exerciacutecio de um ldquopensamentordquo independente e natildeo tanto a produccedilatildeo de um ato criador e finalmente os nossos filoacutesofos assimilam como Allain a liberdade como ato de julgarrdquo (SARTRE 1968 p 282) Natildeo haveria nessa ldquoliberdade cartesianardquo a defesa de uma Razatildeo autocircnoma e absoluta a qual se encontra na gecircnese dessa Crise Natildeo estaria aqui desde jaacute a configuraccedilatildeo daquilo que se tornaria o fundamento dos intelectualismos tanto filosoacuteficos quanto cientiacuteficos Ao longo deste trabalho tentamos nos aproximar destas questotildees
200
rigorosa da ciecircncia natildeo perdeu o seu espaccedilo O diaacutelogo com a ciecircncia nasce
tendo em vista a ciecircncia moderna e a preocupaccedilatildeo filosoacutefica de natildeo promover
o renascimento de um ldquoconflito perpeacutetuordquo entre o saber empiacuterico e o
filosoacutefico tal como podemos visualizar nas desventuras do Pequeno
Racionalismo Com isso podemos entender os primeiros trabalhos de
Merleau-Ponty tambeacutem como uma revisatildeo da condiccedilatildeo humana longe dessas
dicotomias e consequentemente a descoberta de um ldquomeio comumrdquo da
filosofia e da ciecircncia que revelaria ldquo() aqueacutem do sujeito e do objeto puro
como que uma terceira dimensatildeo onde nossa atividade e nossa passividade
nossa autonomia e nossa dependecircncia deixariam de ser contraditoacuteriasrdquo
(MERLEAU-PONTY 1975b p 12) Eacute deste fundo que ecoa a confissatildeo do
filoacutesofo que nos ajuda a compreender as suas primeiras obras
Noacutes tentamos a princiacutepio um esforccedilo deste gecircnero no que concerne agraves relaccedilotildees entre o sujeito e as condiccedilotildees orgacircnicas de sua vida tocando em outros termos o problema tradicional das relaccedilotildees entre alma e corpo A percepccedilatildeo uma vez que eacute a junccedilatildeo de duas ordens devia tornar-se nosso tema e eacute sobre ela que versam nossos dois primeiros trabalhos publicados um La Structure du comportement considerando do exterior o homem que percebe e buscando liberar o sentido vaacutelido das pesquisas experimentais que o abordam do ponto de vista do espectador estrangeiro outro Pheacutenomeacutenologie de la perception situando-se no interior do sujeito para mostrar a princiacutepio como o saber adquirido nos convida a conceber suas relaccedilotildees com seu corpo e seu mundo e enfim por esboccedilar uma teoria da consciecircncia e da reflexatildeo que torne possiacuteveis estas relaccedilotildees (MERLEAU-PONTY 1975b p 13)
Os dois primeiros trabalhos de Merleau-Ponty natildeo satildeo obras
opostas Pelo contraacuterio elas satildeo complementares natildeo importando que o
autor tenha confessado isso por volta de nove anos apoacutes sua primeira obra
filosoacutefica Neste sentido natildeo se torna um contra-senso falar em um
horizonte ao mesmo tempo ontoloacutegico e fenomenoloacutegico comum a estas
duas obras filosoacuteficas como tambeacutem de um ldquomeacutetodordquo comum que as abraccedila
tal como revela o proacuteprio filoacutesofo nas linhas citadas acima Pensando nisto
neste ldquomeacutetodordquo de trabalho comum agraves duas obras Eacutetienne Bimbenet chega a
falar em Nature et Humaniteacute de um ldquomeacutetodo dos pontos de vistardquo (la
meacutethode des points de vues) que nortearia tanto La Structure du
comportement quanto a Pheacutenomeacutenologie de la perception No texto de 1942
Merleau-Ponty partiria do ldquoponto de vista do espectador estrangeirordquo ao
201
passo que no texto de 1945 ele privilegiaria o ldquoponto de vista da reflexatildeordquo
ou se preferirmos do ldquoobservador internordquo111 Mas natildeo seria isto uma
contradiccedilatildeo indaga Bimbenet Natildeo eacute de se achar estranho que no momento
em que o filoacutesofo se propotildee a compreender as relaccedilotildees existentes entre
ldquoconsciecircnciardquo e ldquonaturezardquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 1) ele adote um
meacutetodo que acabe por cristalizar uma cisatildeo entre estes termos (BIMBENET
2004 p 36) Ao procurar compreender o uso destas expressotildees Bimbenet
descobre que ldquoespectador estrangeirordquo (spectateur eacutetranger) estaacute presente em
um texto (Le Moi le monde et dieu) de Pierre Lachiegraveze-Rey editado em 1928
no qual o autor falava de uma natureza que se revelava exterior a um sujeito
que por consequecircncia mostrava-se ldquoestrangeirordquo em relaccedilatildeo a ela As
coisas a natureza e todos os objetos existiriam apenas para este ldquoespectador
estrangeirordquo
Por outro lado a recusa de Marcel em seu Journal
meacutethaphysique em se colocar em uma ldquoatitude espetacularrdquo tatildeo atestada
pela filosofia antiga configurava tambeacutem o que se pode compreender por
aquela expressatildeo uma vez que poderiacuteamos entender que no fundo Marcel
se negava a ser um ldquoespectador estrangeirordquo diante do mundo o mundo era
a sua paacutetria Poreacutem seraacute em Bergson que compreenderemos melhor a
distinccedilatildeo destes pontos de vista ldquoquando a ciecircncia se coloca por fora da
coisa trabalhando sobre siacutembolos exteriores a ela a intuiccedilatildeo metafiacutesica se
define pelo contraacuterio como esta lsquosimpatia pela qual nos transportamos para
o interior de um objeto para coincidirmos com o que ele tem de uacutenico e
111 No entanto reconsiderando a leitura de Bimbenet de que haacute no filoacutesofo um jogo de pontos de vista articulado nas obras de 1942 e de 1945 no embate entre o ponto de vista do ldquoespectador estrangeirordquo e o ponto de vista da ldquoreflexatildeordquo e se pensamos agora esses pontos de vista a partir da dinacircmica dos movimentos proacuteximos aos de Husserl como indica Slatman entre uma ldquoarqueologiardquo e uma ldquogenealogiardquo como podemos entender a filosofia de Merleau-Ponty Seria a partir da identidade tanto do ponto de vista do ldquoespectador estrangeirordquo com o movimento arqueoloacutegico como do ponto de vista da reflexatildeo com o movimento considerado nas trilhas de Slatman como ldquogenealoacutegicordquo Parece-nos que natildeo haacute um simples paralelismo entre esses termos mas a indicaccedilatildeo de um modus philosophandi bastante sutil O movimento arqueoloacutegico eacute um movimento du dehors mas que em seu extremo possibilita uma desconstruccedilatildeo daquilo que um movimento du dedans o da reflexatildeo constitui equivocamente como fundamento Mas o que faz com que isso natildeo seja a simples defesa de um impeacuterio do Fora eacute o fato de que o inverso torna-se tambeacutem suscetiacutevel de ocorrer sem contudo esmerar um retorno a um sujeito abstrato
202
consequentemente de inexprimiacutevelrdquo (BERGSON) O ponto de vista do
ldquoespectador estrangeirordquo eacute o ponto de vista da ciecircncia do realismo
cientificista que ao buscar uma objetividade pura opotildee-se agrave intuiccedilatildeo
filosoacutefica Eacute nesta tensatildeo que Merleau-Ponty se localiza e aqui volta nossa
questatildeo anterior ao adotar estes posicionamentos Merleau-Ponty natildeo
legitima uma oposiccedilatildeo entre consciecircncia e natureza no momento em que se
propotildee a compreendecirc-la e superaacute-la O que o filoacutesofo quer dizer ao afirmar
que enquanto em La Structure du comportement partira do ponto de vista do
espectador estrangeiro ele se situava na Pheacutenomeacutenologie de perception no
interior do sujeito
Conforme Bimbenet o problema que se coloca para Merleau-
Ponty ao esboccedilar o seu projeto a partir de uma retomada de suas primeiras
obras eacute a compreensatildeo de que estes pontos de vista natildeo satildeo definitivos
Quando o filoacutesofo se posiciona em um horizonte estrangeiro agrave consciecircncia
em La Structure du comportement sua intenccedilatildeo eacute desconstruir
pacientemente os limites do realismo da ciecircncia Ele se propotildee a fazer isso
inclusive caminhando em direccedilatildeo ao ponto de vista da proacutepria consciecircncia
e uma vez situado ali ndash como se propunha a Pheacutenomeacutenologie de la perception
ndash fazer um mesmo movimento poreacutem em um sentido inverso Neste sentido
() as duas obras longe de legitimar a oposiccedilatildeo da consciecircncia e da natureza e de validar a oposiccedilatildeo das duas perspectivas sobre o homem natildeo fazem senatildeo partir de uma tal oposiccedilatildeo para melhor desqualificaacute-la uma parte do ponto de vista realista da natureza outro do ponto de vista reflexivo da consciecircncia mas eacute justamente para aproximar de uma maneira divergente o estranho meio onde a oposiccedilatildeo delas termina Eacute portanto uma mesma verdade um ldquomeio comumrdquo da consciecircncia e da natureza como do saber positivo e da filosofia que tentam colocar La Structure du comportement e a Pheacutenomeacutenologie de la perception Se elas natildeo tecircm o mesmo ponto de partida as duas obras tecircm em compensaccedilatildeo o mesmo ponto de chegada o meacutetodo eacute global e nos dois momentos complementares O ponto de vista do espectador estrangeiro caso sigamos todas as suas implicaccedilotildees acaba por retomar o ponto de vista da reflexatildeo a mesma exigecircncia descritiva mas tambeacutem a mesma inclinaccedilatildeo arqueoloacutegica prevalecem nos dois casos (BIMBENET 2004 p 36-7)
Neste sentido se assim entendermos as relaccedilotildees entre La
Structure du comportement e a Pheacutenomeacutenologie de la perception as relaccedilotildees
que se estabelecem entre elas e principalmente as paacuteginas desta uacuteltima
203
obra marcam e constituem um modo de filosofar a busca de uma regiatildeo
anterior agraves cisotildees agrave tematizaccedilatildeo de uma cisatildeo que nasce no interior do
proacuteprio Ser agrave gecircnese de uma filosofia da ldquoambiguidaderdquo do entre-deux
antes que de um simples ldquomeio termordquo ou de uma soma de partes Vaacuterias
vezes este procedimento se manifesta em Merleau-Ponty seja na busca de
uma ruptura com o idealismo que natildeo conduza ao realismo seja na
tentativa de ruptura com o subjetivismo filosoacutefico sem aceitar os dogmas de
um objetivismo da ciecircncia seja no enamoramento com a dialeacutetica que natildeo
implique uma paixatildeo por uma compreensatildeo atrapalhada da histoacuteria e seus
equiacutevocos seja na superaccedilatildeo do racionalismo que natildeo promova a simples
aprovaccedilatildeo de sua face intelectualista ou empirista etc
Ora pensando nestes pontos de vista acerca do homem a fim de
melhor compreendecirc-los vejamos como eles se efetivam em Merleau-Ponty
especialmente nos primeiros trabalhos Deste modo partiremos do
pressuposto de que os conceitos de ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema corporalrdquo
estariam justamente nesta clivagem na tentativa de conciliar o ponto de
vista da ciecircncia e o ponto de vista da filosofia a explicitaccedilatildeo de duas
perspectivas complementares ou melhor de duas faces de uma mesma
experiecircncia O que Merleau-Ponty entende por ldquocorpo proacutepriordquo e por
ldquoesquema corporalrdquo Como iraacute apresentar em sua tentativa de
desconstruccedilatildeo do sujeito cartesiano a sua compreensatildeo da subjetividade
Vejamos
342 A encarnaccedilatildeo do sujeito e as faces da subjetividade encarnada ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo
Se eacute possiacutevel pensar a subjetividade nos primeiros trabalhos de
Merleau-Ponty eacute justamente como subjetividade somaacutetica carnal
encarnada corporal Eacute neste sentido que ele nos falaraacute de um corpo que natildeo
eacute coisa mas tampouco eacute ideia libertando-se por esta via das antinomias
claacutessicas Eacute um corpo no mundo sempre em relaccedilatildeo Um corpo que escapa
assim dos limites do corpo imaginado pelo mundo claacutessico pela conversatildeo
cartesiana do mundo em ldquoespetaacuteculordquo Em contrapartida como ser
204
encarnado o sujeito passa a se encontrar constantemente mesclado com
as coisas com o mundo tornando possiacutevel uma intersubjetividade fundada
em uma experiecircncia corporal Corpo e psiquismo reuacutenem-se em uma mesma
experiecircncia original de acesso agraves coisas e ao proacuteprio ldquoeurdquo Com estas
ponderaccedilotildees Merleau-Ponty tanto nos mostra que o sujeito natildeo eacute um
espiacuterito puro uma substacircncia separada assim como tambeacutem que o corpo
como existecircncia encarnada natildeo eacute meramente uma ldquores extensardquo mas um
jogo vivido de significaccedilotildees O corpo eacute vivido e natildeo meramente um conjunto
de oacutergatildeos como um objeto funcional e apenas produtivo Sendo uma
subjetividade que se compreende no meio das coisas apesar disto o corpo
manteacutem as coisas agrave sua volta fazendo delas um prolongamento de si pois
tanto o corpo quanto o mundo satildeo feitos do mesmo estofo
Assim sendo este modo da subjetividade habitar o mundo
mediante o corpo equivale a assinalar que eacute a sua vida perceptiva que
assegura e garante a experiecircncia do conhecimento e conta como antecipaccedilatildeo
a toda noccedilatildeo de objeto desde o momento em que em virtude desta
experiecircncia realiza-se a abertura ao mundo A reflexatildeo transforma a
percepccedilatildeo em percepccedilatildeo refletida e eacute necessaacuterio admitir pois outra atitude
referida a uma espeacutecie sui generis de reflexatildeo que tomara nota de si e das
mudanccedilas produzidas sem anular as relaccedilotildees e laccedilos orgacircnicos existentes
entre a percepccedilatildeo e a coisa percebida Deste modo a partir de Merleau-
Ponty podemos dizer que se algueacutem adentrou sem barulho o cenaacuterio do
pensamento moderno pensando na epiacutegrafe deste capiacutetulo com certeza natildeo
fora um espiacuterito um sopro fantasmagoacuterico eteacutereo e universal nem muito
menos uma maacutequina de carne e ossos uma vez que ldquo[] fica cada vez mais
evidente que a encarnaccedilatildeo e o outro satildeo o labirinto da reflexatildeo e da
sensibilidade ndash de uma espeacutecie de reflexatildeo sensiacutevel ndash entre os
contemporacircneosrdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 294)
Ora estas consideraccedilotildees tornam evidente a existecircncia de uma
atividade simboacutelica (MERLEAU-PONTY 2006 p 163) que impossibilita a
consideraccedilatildeo da estrutura orgacircnica sob o ditado de uma lei ldquoas estruturas
orgacircnicas natildeo se compreendem por uma norma mas por um certo tipo de
accedilatildeo transitiva que caracteriza o indiviacuteduordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p
205
161) A presenccedila desta atividade orientada potildee em primeiro plano a tese que
Merleau-Ponty jaacute formulava no final de La Structure du comportement de que
todo o problema da percepccedilatildeo reside na compreensatildeo das noccedilotildees de
ldquoestruturardquo e ldquosignificaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 240) O que isto nos
diz acerca do corpo nos primeiros trabalhos Abertamente dirigida contra as
posturas da fisiologia claacutessica e do behaviorismo Merleau-Ponty se esforccedilava
por elucidar que a forma e a mateacuteria da percepccedilatildeo satildeo aparentadas desde a
origem estando a mateacuteria como insinuamos anteriormente jaacute graacutevida de
sua forma Logo a siacutentese que compotildee os objetos percebidos natildeo eacute uma
siacutentese intelectual eacute uma siacutentese de transiccedilatildeo Ao contraacuterio de ser o fruto de
um ato intelectual que apreenderia o objeto ou como possiacutevel ou como
necessaacuterio na percepccedilatildeo ele eacute real ligado intencionalmente ao corpo A
percepccedilatildeo proporciona uma experiecircncia integral dos movimentos corporais
um ldquoesquema corporalrdquo muito mais aleacutem da simples soma de partes O que
seria este ldquoesquema corporalrdquo Efetivamente este conceito foi introduzido
pelos trabalhos de Henry Head (1926) e Paul Schilder (1951) Trata-se pois
de um termo nascido e utilizado especialmente pela neurologia no intuito
de informar o modo como a disposiccedilatildeo do corpo se apresenta no psiquismo
humano favorecendo a compreensatildeo de certos fenocircmenos patoloacutegicos que
no organismo podem apresentar distuacuterbios fisioloacutegicos neuroloacutegicos ou
mesmo psicoloacutegicos Ao se perguntar pelo ldquoesquema corporalrdquo o que visa
Merleau-Ponty eacute justamente contra certas posturas cientificistas explicitar
que natildeo haacute uma relaccedilatildeo causal entre nossa ldquoestrutura corporalrdquo e a
interioridade nascida do nosso contato com o mundo
O corpo se situa no mundo e nele constitui seu ponto de
referecircncia intencional Por esta natureza corporal os gestos as palavras os
silecircncios e os atos abrem sempre um campo inesgotaacutevel de significaccedilatildeo e de
intencionalidades O problema estaacute que a tradiccedilatildeo tanto filosoacutefica como
cientiacutefica acostumou-nos com uma consideraccedilatildeo parcial do corpo dada
uma compreensatildeo mecacircnica do organismo e de suas relaccedilotildees com o meio
Ora o corpo eacute examinado como coisa ora eacute examinado como fenocircmeno Mas
a natureza corporal eacute a de um conjunto composto por partes que se regem
por princiacutepios de causalidade Se partirmos da compreensatildeo cartesiana do
206
corpo como ldquoextensatildeordquo desembocaremos nos mesmos erros da psicologia
claacutessica ao colocar o corpo na condiccedilatildeo de base de sua investigaccedilatildeo
comportamental como fato como realidade em si Neste ponto
basilarmente concordam tanto o intelectualismo quanto o empirismo Diraacute o
filoacutesofo que ldquotanto o intelectualismo como o empirismo se datildeo por objeto de
anaacutelise o mundo objetivo que natildeo eacute primeiro nem segundo o tempo nem
segundo seu sentido um e outro satildeo incapazes de expressar a maneira
peculiar na qual a consciecircncia perceptiva constitui seu objeto Ambos
mantecircm sua distacircncia relativamente agrave percepccedilatildeo ao inveacutes de aderir-se a elardquo
(MERLEAU-PONTY 1945 p 34) Em outras palavras ambos consideram o
corpo como fato e esquecem seu sentido fenomenoloacutegico Do mesmo modo o
erro fundamental que Merleau-Ponty encontra nas posturas mecanicistas e
vitalistas estaacute precisamente no fato de esquecer a unidade significativa pela
qual o corpo se estrutura a fim de consideraacute-lo somente como um produto
real da natureza visto que a experiecircncia que temos do ldquocorpo proacutepriordquo faz
com este se nos apresente ao contraacuterio de um mosaico de sensaccedilotildees como
um fenocircmeno uma unidade de significaccedilatildeo Eacute neste sentido que notamos
na ldquopurificaccedilatildeordquo do conceito claacutessico de ldquoesquema corporalrdquo o
direcionamento de Merleau-Ponty aos trabalhos da ciecircncia moderna
especialmente os trabalhos de Goldstein Como Merleau-Ponty iraacute se
aproximar dos trabalhos de Goldstein O que eles lhe diratildeo sobre o
ldquoesquema corporalrdquo
Antes de tudo vale lembrar que a noccedilatildeo de ldquoesquema corporalrdquo
natildeo se daacute desvinculada do sentido atribuiacutedo aos fenocircmenos patoloacutegicos o
que nos ajuda a compreender a principal razatildeo pela qual encontramos na
Pheacutenomeacutenologie de la perception as indagaccedilotildees filosoacuteficas de Merleau-Ponty
acerca do patoloacutegico O peso que esta temaacutetica possui para Merleau-Ponty
manifesta-se principalmente nos vaacuterios momentos em que ele retoma por
exemplo os distuacuterbios patoloacutegicos do caso Schneider ou discute fenocircmenos
207
como a alucinaccedilatildeo112 Mas qual sua funccedilatildeo na compreesatildeo da corporeidade
A este respeito encontramos no proacuteprio Goldstein uma resposta
Noacutes tomamos como ponto de partida de nossas consideraccedilotildees os fenocircmenos que se manifestam em um homem atingido por lesotildees do coacutertex cerebral Noacutes escolhemos este material primeiramente porque pensamos ndash provavelmente com razatildeo ndash que eacute preciso atribuir uma significaccedilatildeo ldquocentralrdquo preeminente ao coacutertex cerebral Os fenocircmenos que se produzem quando ele foi lesado seratildeo portanto particularmente significativos para noacutes enquanto tentamos conhecer a essecircncia do homem Noacutes fizemos tambeacutem esta escolha porque ela nos permite demonstrar certas leis gerais da desintegraccedilatildeo funcional leis que importa conhecer para melhor conhecer o funcionamento do organismo (GOLDSTEIN 1951 p 15 2000 p 33)
A escolha de pessoas que sofreram uma lesatildeo no coacutertex cerebral
eacute significativa Eacute o modo de tentar compreender melhor a estrutura do nosso
organismo expresso na relaccedilatildeo entre suas partes A desintegraccedilatildeo funcional
para Goldstein possibilita a articulaccedilatildeo de um contra-argumento e de uma
resposta agrave compreensatildeo do organismo fragmentado em funccedilotildees
extremamente circunscritas e especializadas113 As suas famosas
experiecircncias em sobreviventes de guerra no entanto conduziratildeo a sua
pesquisa em outra direccedilatildeo Eacute assim que ele se posiciona contra ao que
chamou ldquomeacutetodo analiacutetico da ciecircnciardquo Eacute assim que propotildee uma leitura
holiacutestica do humano e de seus fenocircmenos uma vez que o ldquoordinaacuterio
aumentordquo de uma especializaccedilatildeo dos saberes cientiacuteficos a constituiccedilatildeo de
um meacutetodo ldquoatomiacutesticordquo embora tenha significado um certo enriquecimento
112 Poderiacuteamos pensar tambeacutem no modo como o filoacutesofo usa de seus estudos sobre os fenocircmenos patoloacutegicos para exemplificar discussotildees aparentemente distantes de uma compreensatildeo do corpo tais como o marxismo e a revoluccedilatildeo do proletariado (MERLEAU-PONTY 1945 p 201) 113 Lembremos que um ferimento cerebral em uma perspectiva claacutessica deveria liberar os diferentes automatismos do organismo o que traduziria no caso da sexualidade em um ldquo() comportamento sexual acentuado113rdquo Pelo contraacuterio frente agrave indiferenccedila de um paciente com ferimento cerebral agraves certos estiacutemulos sexuais como nos diz Merleau-Ponty ldquoa patologia potildee em evidecircncia entre o automatismo e a representaccedilatildeo uma zona vital em que se elaboram as possibilidades sexuais do doente assim como acima suas possibilidades motoras perceptivas e ateacute mesmo suas possibilidades intelectuais Eacute preciso que exista imanente agrave vida sexual uma funccedilatildeo que assegure seu desdobramento e que a extensatildeo normal da sexualidade repouse sobre as potecircncias internas do sujeito orgacircnico Eacute preciso que exista um Eros ou uma Libido que animem um mundo original decircem valor ou significaccedilatildeo sexuais aos estiacutemulos exteriores e esbocem para cada sujeito o uso que ele faraacute de seu corpo objetivordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 182)
208
teoacuterico acabara por trazer consigo diversos problemas para uma
compreensatildeo autecircntica da existecircncia humana (GOLDSTEIN 1961) Natildeo se
pode pensar o homem como uma simples soma de saberes fragmentados
pois ao contraacuterio do que pensa as metodologias atomiacutesticas ou analiacuteticas da
ciecircncia o organismo eacute um todo eacute uma unidade Sendo assim
Se o organismo eacute um todo e cada uma de suas partes funciona normalmente dentro deste todo entatildeo na experimentaccedilatildeo analiacutetica que isola as partes agrave medida que as estuda as propriedades e funccedilotildees de qualquer uma destas partes devem encontrar-se alteradas por seu isolamento do todo do organismo Portanto natildeo podem revelar o funcionamento destas partes na vida normal Satildeo inumeraacuteveis os fatos que provam como se altera o funcionamento de um setor de resultados de seu isolamento Se desejarmos utilizar os resultados de tais experiecircncias para compreender a atividade do organismo na vida normal (quer dizer como um todo) devemos conhecer em que forma essa condiccedilatildeo de isolamento modifica a funccedilatildeo e devemos levar em conta tais modificaccedilotildees (GOLDSTEIN 1961 p 19)
Goldstein compreende o organismo a partir da dinacircmica que se
estabelece entre figura e fundo Eacute a partir deste pressuposto que o ldquoesquema
corporalrdquo seraacute compreendido por Merleau-Ponty rompendo-se pois com a
fisiologia claacutessica No entanto como esta compreensatildeo se relacionaria com
aquilo que o filoacutesofo denomina ldquocorpo proacutepriordquo Gostariacuteamos de pensar esta
relaccedilatildeo seguindo as trilhas de Slatman (SLATMAN 2001 p 26-27) e de
Saint-Aubert (SAINT-AUBERT 2004 p 148 e seguintes) a partir da
repercussatildeo que tivera nos trabalhos do filoacutesofo as leituras dos ineacuteditos de
Husserl assim como a sua posiccedilatildeo frente a elas nomeadamente um aspecto
terminoloacutegico em particular114 Quando se trata dos textos husserlianos
lidos no original certamente duas palavras causam um certo desconforto agraves
liacutenguas que natildeo trazem consigo certas especificidades proacuteprias do alematildeo
como traduzir pois Leib e Koumlrper se para ambos apesar de suas nuances
significativas temos apenas o termo ldquocorpordquo como correspondente Neste
sentido talvez a liacutengua francesa consiga superar de certa forma esse
impasse pelo contraste dos termos chair e corps O que quer dizer as
114 A este respeito procuramos seguir as indicaccedilotildees de Slatmann Cf SLATMAN 2001
209
distinccedilotildees O termo Leib refere-se a um corpo entendido organicamente
vivido ou seja um corpo que eacute vivo que eacute ldquosomardquo115 Em contrapartida o
termo Koumlrper refere-se ao corpo entendido fisicamente como coisa material
O homem eacute neste sentido um ser leiblich [corpoacutereo] diferentemente da
pedra que eacute um ser koumlrperlich [corpoacutereo]
Na fenomenologia esta distinccedilatildeo se torna um pouco mais ampla
a ponto de acentuar o seu proacuteprio modo de abordagem do corpo humano em
sua radical diferenccedila do modo utilizado pela ciecircncia especialmente pelas
ciecircncias bioloacutegicas Assim qual seria o objeto da biologia O Koumlrper quer
dizer o corpo entendido como objeto de pesquisa aquele do qual podemos
dizer que temos a posse Na fenomenologia o corpo eacute antes compreendido
como Leib como uma intencionalidade encarnada aquele do qual dizemos
que noacutes mesmos somos A nosso ver nos primeiros trabalhos de Merleau-
Ponty a noccedilatildeo de ldquocorpo proacutepriordquo seraacute a sua compreensatildeo de Leib ao passo
que o conceito de ldquocorpo objetordquo ou ldquoesquema corporalrdquo estaraacute vinculado agrave
sua compreensatildeo de Koumlrper Por conseguinte ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema
corporalrdquo adquirem no pensamento merleau-pontiano significados proacuteprios
que os distanciam do uso husserliano de Leib e Koumlrper116 Que significados
seriam estes Diferentemente de Husserl conforme vimos ao nos referir a
Goldstein Merleau-Ponty iraacute partir de um diaacutelogo com a ciecircncia moderna o
que o levaraacute a natildeo entender o ldquoesquema corporalrdquo como ldquoum resumo de
nossa experiecircncia corporalrdquo nem como um ldquocentro de imagensrdquo (MERLEAU-
PONTY 1945 p 114-5) nem tampouco como a consideraccedilatildeo que a Gestalt
possui de uma tomada de consciecircncia global tida no mundo intra-sensorial
Para o filoacutesofo esta expressatildeo eacute um pouco mais radical ela indica o nosso
115 Termo grego que no portuguecircs parece nos expressar melhor o termo alematildeo 116 Do mesmo modo quando nos uacuteltimos trabalhos a palavra Chair ganha cidadania no projeto merleau-pontiano seraacute bem outro o seu sentido expressando em primeiro lugar a relaccedilatildeo de incorporaccedilatildeo na qual Koumlrper Leib e Mundo encontram-se unidos em um mesmo tecido Em Le Visible et lrsquoInvisible Merleau-Ponty nos fala tambeacutem de ldquoum corpo sentienterdquo e de ldquoum corpo sensiacutevelrdquo como os dois lados de um mesmo corpo ldquo[] os dois lsquoladosrsquo de nosso corpo o corpo como sensiacutevel e o corpo como sentiente ndash o que outrora chamamos de corpo fenomenal e de corpo objetivo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 133) No entanto eacute versatildeo merleau-pontiana de Leib como ldquocorpo proacutepriordquo e Koumlrper como ldquoestrutura corporalrdquo que nos interessa neste momento
210
ser-no-mundo nossa abertura a ele nossa tensatildeo com ele (MERLEAU-
PONTY 1945 p 117) A introduccedilatildeo deste ldquoesquema corporalrdquo comporta
especiais ressonacircncias na teoria da percepccedilatildeo na medida em que permite
por um lado uma
oposiccedilatildeo ao movimento reflexivo que separa o objeto do sujeito e o sujeito do objeto dando-nos apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia e natildeo a experiecircncia do corpo ou o corpo na realidade Por outro lado tambeacutem eacute importante agrave teoria da percepccedilatildeo porquanto se articula como um lanccedilar do corpo proacuteprio em seu ser-no-mundo aquele de uma intencionalidade e da abertura do corpo que tem como base sua proacutepria espacialidade natildeo de posiccedilatildeo mas de ldquosituaccedilatildeordquo e que manifesta que o ldquouso que um homem faz de seu corpo [seja] transcendente [mesmo] ao olhar o corpo como ser bioloacutegico porque a simples presenccedila de um ser vivo transforma o mundo fiacutesico (MERLEAU-PONTY 1945 p 220-1)
Ora esta estrutura do ldquocorpo proacutepriordquo que percebemos atraveacutes
do ldquoesquema corporalrdquo e que se nos mostra como fonte de significaccedilatildeo eacute a
base para uma anaacutelise ontoloacutegica do corpo Os elementos fundamentais
deste esquema seratildeo indubitavelmente aqueles elementos estruturais da
proacutepria existecircncia ou seja a espacialidade e a motricidade O valor do
ldquoesquema corporalrdquo radica no importante papel que desempenha esta
espacialidade e esta motricidade que em outras palavras vecircm a significar
situaccedilatildeo e accedilatildeo Sem uma ancoragem corporal e sem uma inclinaccedilatildeo ou
tendecircncia do corpo para a coisa a percepccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Todavia
natildeo nos equivoquemos entre ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoestrutura corporalrdquo natildeo haacute
uma dualidade talvez no maacuteximo o jogo dos ldquopontos de vistasrdquo em relaccedilatildeo a
um mesmo foco tal como Bimbenet nos assinala (BIMBENET 2004 p 36-
7) Pensar o ldquocorpo proacutepriordquo implica para o filoacutesofo pensar uma realidade
estrutural Procurando desconstruir o cientificismo do tipo behaviorista
claacutessico e o idealismo cartesiano como jaacute indicamos a noccedilatildeo de um
comportamento que se daacute tatildeo-somente de modo estruturado soacute pode nos
apontar uma experiecircncia corporal um ldquoesquema corporalrdquo mediante o qual
percebemos o mundo temos acesso a ele Daiacute a consideraccedilatildeo existencial do
ldquocorpo proacutepriordquo como uma intencionalidade encarnada e espacial que
revelando-se ser um verdadeiro pivocirc expressa uma unidade de significaccedilatildeo
em sua constante transcendecircncia rumo a um mundo inesgotaacutevel A nosso
211
ver na interpretaccedilatildeo que Merleau-Ponty faz do membro fantasma na
Pheacutenomeacutenologie de la perception ajuda-nos a melhor compreender o modo
como ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema corporalrdquo satildeo perspectivas entrelaccediladas a
nos revelar na experiecircncia do corpo uma unidade de fato e essecircncia O que
ela nos diz
Para Merleau-Ponty o importante deste fenocircmeno eacute o que pode
nos dizer acerca de como o nosso ldquoesquema corporalrdquo expressa o modo como
vivemos o nosso corpo Todavia uma leitura meramente fisioloacutegica natildeo eacute
suficiente pois nos limitariacuteamos agrave persistecircncia de ldquoestimulaccedilotildees
interoceptivasrdquo De imediato uma questatildeo crucial exige a atenccedilatildeo do filoacutesofo
como explicar o fato de que mesmo anestesiado o paciente continue a
sentir o membro que lhe fora amputado Como explicar tambeacutem aqueles
casos em que esta experiecircncia ocorre sem que tenha havido uma
amputaccedilatildeo Como salienta Merleau-Ponty uma explicaccedilatildeo perifeacuterica do
membro fantasma apresenta vaacuterios problemas Todavia natildeo se pode dizer
que uma explicaccedilatildeo central que postulasse a origem da sensaccedilatildeo na
conservaccedilatildeo de ldquotraccedilos cerebraisrdquo tambeacutem seja suficiente Frente agrave
impossibilidade de uma leitura fisiologista pensa Merleau-Ponty natildeo basta
recorrer a uma leitura psicologista aquela que pautando-se na anosognose
veria naquela experiecircncia uma simples negaccedilatildeo do paciente em se aceitar
com um membro mutilado O erro desta leitura no entanto encontra-se em
desconsiderar o substrato fisioloacutegico do paciente o fato de que uma secccedilatildeo
em seus nervos pode afetar sua percepccedilatildeo ilusoacuteria do membro Neste
sentido o problema natildeo estaria apenas na presenccedila indevida de uma
representaccedilatildeo Da mesma forma uma simples adiccedilatildeo das perspectivas
fisioloacutegicas e psicoloacutegicas tambeacutem natildeo seria suficiente uma vez que
Eacute preciso compreender entatildeo como os determinantes psiacutequicos e as condiccedilotildees fisioloacutegicas engrenam-se uns aos outros natildeo se concebe como o membro fantasma se depende de condiccedilotildees fisioloacutegicas e se a esse tiacutetulo eacute o efeito de uma causalidade em terceira pessoa pode por outro lado depender da histoacuteria pessoal do doente de suas recordaccedilotildees de suas emoccedilotildees ou de suas vontades Pois para que as duas seacuteries de condiccedilotildees possam em conjunto determinar o fenocircmeno assim como dois componentes determinam um resultante ser-lhes-ia necessaacuterio um mesmo ponto de aplicaccedilatildeo ou um terreno comum e natildeo se vecirc qual poderia ser o terreno comum a ldquofatos fisioloacutegicosrdquo que estatildeo no espaccedilo e a ldquofatos psiacutequicosrdquo que natildeo
212
estatildeo em parte alguma ou mesmo a processos objetivos como os influxos nervosos que pertencem agrave ordem do em si e a cogitationes tais como a aceitaccedilatildeo e a recusa a consciecircncia do passado e a emoccedilatildeo que satildeo da ordem do para si (MERLEAU-PONTY 1945 p 91)
Uma teoria mista do membro fantasma se apresenta ldquoobscurardquo a
Merleau-Ponty principalmente tendo-se em vista a perspectiva dicotomizada
na qual as explicaccedilotildees fisioloacutegicas e psicoloacutegicas se encontram Assim sendo
compartilham de um mesmo erro que as fazem perder o proacuteprio fenocircmeno
Em outros termos ainda natildeo conseguem se desvencilhar das categorias do
mundo objetivo natildeo se atentando que a experiecircncia se daacute em uma outra
ordem em uma camada ainda preacute-reflexiva ou seja na perspectiva do ser
no mundo Compreender esta vivecircncia patoloacutegica a partir deste acircngulo
significa compreender que ldquoa recusa da mutilaccedilatildeo no caso do membro
fantasma ou a recusa da deficiecircncia na anosognose natildeo satildeo decisotildees
deliberadas natildeo se passam no plano da consciecircncia teacutetica que toma posiccedilatildeo
explicitamente apoacutes ter considerado diferentes possiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY
1945 p 96) Neste caso a patologia revela a existecircncia de uma outra
dimensatildeo do humano aquela que natildeo sendo da ordem do ldquoeu pensordquo nasce
a partir de um ldquoeu possordquo de uma subjetividade corporal Mas o que
significa dizer que a recusa natildeo parte de um ldquosujeito esclarecidordquo de uma
ldquoconsciecircncia racionalrdquo Como nos elucida Merleau-Ponty
Aquilo que em noacutes recusa a mutilaccedilatildeo e a deficiecircncia eacute um Eu engajado em um certo mundo fiacutesico e inter-humano que continua a estender-se para seu mundo a despeito de deficiecircncias ou de amputaccedilotildees e que nessa medida natildeo as reconhece de jure A recusa da deficiecircncia eacute apenas o avesso de nossa inerecircncia a um mundo a negaccedilatildeo impliacutecita daquilo que se opotildee ao movimento natural que nos lanccedila a nossas tarefas a nossas preocupaccedilotildees a nossa situaccedilatildeo a nossos horizontes familiares Ter um braccedilo fantasma eacute permanecer aberto a todas as accedilotildees das quais apenas o braccedilo eacute capaz eacute conservar o campo praacutetico que se tinha antes da mutilaccedilatildeo [] Portanto o doente sabe de sua perda justamente enquanto a ignora e ele a ignora justamente enquanto a conhece Esse paradoxo eacute o de todo ser no mundo dirigindo-me a um mundo esmago minhas intenccedilotildees que finalmente me aparecem como anteriores a elas e que todavia soacute existem para mim enquanto suscitam pensamento e vontades em mim (MERLEAU-PONTY 1945 p 91)
213
Segundo Merleau-Ponty podemos vislumbrar na experiecircncia do
ldquocorpo proacutepriordquo camadas que distinguem por um lado um ldquocorpo habitualrdquo
e por outro lado um ldquocorpo atualrdquo Aqui natildeo se trata de uma dicotomia
proposta pelo filoacutesofo Pelo contraacuterio trata-se da constataccedilatildeo de um
problema que nasce na proacutepria experiecircncia do ldquocorpo proacutepriordquo expressa na
experiecircncia do membro fantasma A vivecircncia do corpo habitual eacute o que
garante a percepccedilatildeo do mundo como tangiacutevel dos objetos como manejaacuteveis
Cada membro traz consigo um verdadeiro campo que possibilita a
experiecircncia do mundo como o horizonte e o fundo possibilitam a percepccedilatildeo
de uma figura No entanto a ausecircncia de um membro representa ausecircncia
de um campo sem que os objetos que lhe pertencem deixem de existir
Como indaga Merleau-Ponty ldquocomo posso perceber objetos manejaacuteveis
embora natildeo possa manejaacute-los Eacute preciso que o manejaacutevel tenha deixado de
ser aquilo que manejo atualmente para se tornar aquilo que se pode
manejar tenha deixado de ser um manejaacutevel para mim e tenha se tornado
como que um manejaacutevel em sirdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 98) Esta
experiecircncia conduz a uma vivecircncia do corpo natildeo mais como uma experiecircncia
espontacircnea mas generalizada quase que impessoal Como sair deste
impasse Para Merleau-Ponty eacute possiacutevel esclarecer este descompasso entre
o habitual e o atual a partir do fenocircmeno do recalque assim como eacute
entendido pela psicanaacutelise O que isto quer dizer
O recalque trata-se sobretudo de um presente que natildeo quer se
tornar passado de uma paralisaccedilatildeo do tempo pessoal Frente aos obstaacuteculos
gerados por um empreendimento opta-se em natildeo abandonaacute-lo mas
continuamente colocar-se a renovaacute-lo em espiacuterito sempre na abertura a um
futuro impossiacutevel Neste sentido o recalque natildeo pode ser encarado como
uma simples recordaccedilatildeo dado que permanece sempre um presente proacuteximo
natildeo se encontrando portanto distante de noacutes Assim sendo ldquo[] todo
recalque eacute a passagem da existecircncia em primeira pessoa a um tipo de
escolaacutestica dessa existecircncia que vive para uma experiecircncia antiga ou antes
para uma recordaccedilatildeo de tecirc-la tido depois para a recordaccedilatildeo de ter tido essa
recordaccedilatildeo e assim por diante a ponto de que finalmente ela soacute retenha sua
forma tiacutepicardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99) Haacute para Merleau-Ponty um
214
ldquoadvento do impessoalrdquo na vivecircncia do recalque que ldquo[] nos faz
compreender nossa condiccedilatildeo de seres encarnados ligando-a agrave estrutura
temporal do ser no mundordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99) Sempre em
nossa existecircncia pessoal deparamo-nos com uma ldquoexistecircncia quase
impessoalrdquo na qual pertencemos primeiramente assim como um organismo
pertence antes a uma Ungebung para depois pertencer a uma Umwelt A
experiecircncia do recalque acaba portanto de nos clarear e confirmar a
existecircncia do nosso organismo como um solo originaacuterio e anterior a um
sujeito epistemoloacutegico um solo no qual a estrutura temporal de nossa
experiecircncia possibilita ldquoa fusatildeo entre a alma e o corpo no ato a sublimaccedilatildeo
da existecircncia bioloacutegica em existecircncia pessoal do mundo natural em mundo
cultural []rdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 100) Nesta perspectiva salienta
Merleau-Ponty
Assim como se fala de um recalque no sentido estrito quando atraveacutes do tempo mantenho um dos mundos momentacircneos pelos quais passei e faccedilo dele a forma de toda minha vida ndash da mesma maneira pode-se dizer que meu organismo como adesatildeo preacute-pessoal agrave forma geral do mundo como existecircncia anocircnima e geral desempenha abaixo de minha vida pessoal o papel de um complexo inato Ele natildeo existe como uma coisa inerte mas esboccedila ele tambeacutem o movimento da existecircncia [] Com maior razatildeo o passado especiacutefico que eacute nosso corpo soacute pode ser reaprendido e assumido por uma vida individual porque ela nunca o transcendeu porque ela o alimenta secretamente e emprega nisso uma parte de suas forccedilas porque ele permanece seu presente como se vecirc na doenccedila em que os acontecimentos do corpo se tornam acontecimentos da jornada diaacuteria O que nos permite centrar nossa existecircncia eacute tambeacutem o que nos impede de centraacute-la absolutamente e o anonimato de nosso corpo eacute inseparavelmente liberdade e servidatildeo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99-101)
Voltando ao fenocircmeno do membro fantasma a partir das
consideraccedilotildees acima devemos entendecirc-lo como ldquo[] a experiecircncia recalcada
um antigo presente que natildeo decide a tornar-se passado As recordaccedilotildees que
se evocam diante do amputado induzem um membro fantasma natildeo como no
associacionismo uma imagem chama uma outra imagem mas porque toda
recordaccedilatildeo reabre o tempo perdido e nos convida a retomar um olhar
diferenciado frente ao patoloacutegico aquele que deve partir do que Merleau-
Ponty denomina como a ldquoperspectiva do ser no mundordquo A experiecircncia do
215
membro fantasma se daacute portanto no entender do filoacutesofo porque as
excitaccedilotildees sensiacuteveis que ele traz consigo mantecircm ainda o membro amputado
no circuito da existecircncia Assim a posse de um ldquocorpo habitualrdquo eacute por
conseguinte uma necessidade proacutepria de uma existecircncia integrada Um
olhar filosoacutefico sobre o fenocircmeno do membro fantasma revela-nos por fim
uma compreensatildeo do homem natildeo mais como um psiquismo que
simplesmente se soma a um organismo mas pensando concretamente
como um ldquovai-vem da existecircnciardquo que vive entre o corporal e os atos
pessoais Nesta perspectiva a patologia expressaria justamente a
necessidade de reconhecer os acontecimentos aniacutemicos natildeo mais ora pela
fisiologia ora pela psicologia mas como um processo vital que estaacute
sobretudo ligado agrave existecircncia dado que o ldquodistuacuterbio dito somaacutetico delineia
comentaacuterios psiacutequicos sobre o tema do acidente orgacircnico e o distuacuterbio
ldquopsiacutequicordquo limita-se a desenvolver a significaccedilatildeo humana do acontecimento
corporalrdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 104) Assim como assinala Merleau-
Ponty
Os motivos psicoloacutegicos e as ocasiotildees corporais podem se entrelaccedilar porque natildeo haacute um soacute movimento em um corpo vivo que seja acaso absoluto em relaccedilatildeo agraves intenccedilotildees psiacutequicas nem um soacute ato psiacutequico que natildeo tenha encontrado pelo menos seu germe ou seu esboccedilo geral nas disposiccedilotildees fisioloacutegicas Natildeo se trata nunca do encontro incompreensiacutevel entre duas causalidades nem de uma colisatildeo entre a ordem das causas e a ordem dos fins Mas por uma reviravolta insensiacutevel um processo orgacircnico desemboca em um comportamento humano um ato instintivo muda e torna-se sentimento ou inversamente um ato humano adormece e continua distraidamente como reflexo Entre o psiacutequico e o fisioloacutegico pode haver relaccedilotildees de troca que quase sempre impedem de definir um distuacuterbio mental como psiacutequico ou como somaacutetico (MERLEAU-PONTY 1945 p 104 grifo nosso)
Ora o que nos revela este modo de compreender o psiacutequico e o
fisioloacutegico a partir de ldquorelaccedilotildees de trocardquo nas quais se abre um campo de
existecircncia e de sentido Certamente em primeiro lugar a compreensatildeo de
que a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo uma vez consagrada ao mundo
exige sobretudo uma ldquoespacialidade de situaccedilatildeordquo Eacute por esta razatildeo que uma
concepccedilatildeo cartesiana do corpo torna-se contraditaria uma vez que a uniatildeo
de corpo e alma era antes uma uniatildeo por justaposiccedilatildeo logo uma
216
espacialidade posicional Daiacute que uma compreensatildeo do ldquocorpo proacutepriordquo de
inspiraccedilatildeo cartesiana dava-se tatildeo-somente mediada por uma inspeccedilatildeo
ldquoespiritualrdquo desligada e separada da consciecircncia Eacute um ldquoobjetordquo para ela o
que faz consequentemente que exista uma posiccedilatildeo do corpo ante a
consciecircncia Em contrapartida para Merleau-Ponty pelo que pudemos notar
em sua leitura de Goldstein a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo natildeo eacute
objetiva mas vivida eacute existencial Sem a orientaccedilatildeo do ldquocorpo proacutepriordquo
inclusive natildeo seria possiacutevel a espacialidade corporal uma vez que ldquoa
espacialidade do corpo eacute o desdobramento de seu ser de corpo a maneira
pela qual se realiza como corpordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 174) O que
isto significa A ligaccedilatildeo ao mesmo tempo entre espacialidade e motricidade
pois embora a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo seja de situaccedilatildeo ela natildeo
seria possiacutevel sem a accedilatildeo e isto porque ldquoeacute na accedilatildeo que a espacialidade do
corpo se realizardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 119) Ora compreendido
assim como se daria a relaccedilatildeo que o ldquocorpo proacutepriordquo estabelece com as
coisas que lhe satildeo exteriores
Desde o momento em que a espacialidade corporal aponta a um
horizonte na medida em que o ldquocorpo proacutepriordquo eacute no dizer de Merleau-Ponty
ldquo[] o terceiro termo sempre subentendido da estrutura figura-fundordquo
(MERLEAU-PONTY 1945 p 119) a realidade do espaccedilo estaacute no fato de que
a espacialidade externa das coisas unicamente se faz manifesta a noacutes na
relaccedilatildeo que elas mantecircm com o corpo com a espacialidade corporal Por sua
vez de acordo com o filoacutesofo sabe-se que a representaccedilatildeo exterior natildeo eacute
uma mera representaccedilatildeo dado que natildeo eacute para um ldquoeu pensordquo que se
evidencia a existecircncia real do espaccedilo exterior Haacute uma espacialidade das
coisas mas esta espacialidade estaacute em relaccedilatildeo direta com minha situaccedilatildeo
porquanto
O que eacute dado natildeo eacute somente a coisa mas a experiecircncia da coisa uma transcendecircncia em um rastro de subjetividade uma natureza que transparece atraveacutes de uma histoacuteria [] Para que percebamos as coisas eacute preciso que as vivamos [] Se o sujeito que percebe faz a siacutentese do percebido eacute preciso que ele domine e pense uma mateacuteria da percepccedilatildeo que organize e ligue ele mesmo do interior todos os aspectos da coisa quer dizer que a percepccedilatildeo perca sua inerecircncia a um sujeito individual e a um ponto de vista que a coisa perca sua transcendecircncia e sua opacidade Viver uma coisa natildeo eacute
217
nem coincidir com ela nem pensaacute-la de uma parte agrave outra Vecirc-se entatildeo nosso problema Eacute preciso que o sujeito perceptivo sem abandonar seu lugar e seu ponto de vista na opacidade do sentir dirija-se para coisas das quais antecipadamente ele natildeo tem a chave e das quais todavia ele traz em si mesmo o projeto abra-se a um Outro absoluto que ele prepara no mais profundo de si mesmo (MERLEAU-PONTY 1999 p 436)
Daiacute a conclusatildeo de que o corpo eacute o terceiro termo sempre
subentendido na estrutura figura-fundo pois a espacialidade das coisas
aparece sempre nesta estrutura captada pelo corpo A espacialidade corporal
e o espaccedilo exterior formam um ldquosistema praacuteticordquo Nele a espacialidade do
corpo serve de fundo no qual se destaca a espacialidade externa o que abre
espaccedilo a um outro elemento fundamental de nossa corporeidade que
tambeacutem apenas nos tornamos conscientes por meio do ldquoesquema corporalrdquo
trata-se aqui da motricidade Sem a motricidade corporal a espacialidade
externa permaneceria algo abstrato sem sentido e o corpo natildeo passaria de
um puro fragmento do espaccedilo Aqui estaacute pois em breves linhas uma
revisatildeo filosoacutefica tanto do conceito de ldquosubjetividaderdquo como do conceito de
ldquoobjetividaderdquo Em La Structure du comportement Merleau-Ponty jaacute havia nos
advertido que a alma e o corpo ldquonatildeo podem nunca distinguir-se sem deixar
de ser sua conexatildeo empiacuterica estaacute fundada sobre a operaccedilatildeo originaacuteria que
instala um sentido em um fragmento da mateacuteria e a faz habitar aparecer
serrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 236) Por sua vez na Pheacutenomeacutenologie de la
perception nos diraacute algo semelhante ldquoO exterior e o interior satildeo
inseparaacuteveis O mundo estaacute inteiramente dentro e inteiramente fora de mim
Quando percebo esta mesa eacute mister que a percepccedilatildeo da superfiacutecie natildeo
ignore a dos peacutes sem o qual o objeto se deslocaria os movimentos de uma
melodia se unem sua sucessatildeo lhes eacute essencialrdquo (MERLEAU-PONTY 1945
p 466-7) O que estes textos nos revelam Antes de tudo a unidade
humana
218
SEGUNDA PARTE CRISE E FILOSOFIA O SENTIDO DA FEcircNIX
219
Capiacutetulo IV A CRISE DO ENTENDIMENTO E O SENTIDO DA HISTOacuteRIA
A HISTORIOGRAFIA FILOSOacuteFICA
Il y a un etat de lrsquohumaniteacute ougrave nous sommes et qui est 1) destructeur de la philosophie au sens ordinaire et classique 2) appelle cependant au plus haut point prise de conscience philosophique ndash Le ldquoPheacutenixrdquo dit Husserl (MERLEAU-PONTY 1996 p 39) Holz lautet ein alter Name fuumlr Wald Im Holz sind Wege die meist verwachsen jaumlh im Unbegangen aufhoumlren Sie heiβen Holzwege Jeder verlaumluft gesondert aber im selben Wald Oft scheint es als gleiche einer dem anderen Doch es scheint nur so Holzmacher und Waldhuumlter kennen die Wege Sie wissen was es heiβt auf einem Holzweg zu sein (HEIDEGGER 1952 Epiacutegrafe)
ldquo[hellip] But as when the bird of wonder dies the maiden phoenix her ashes new create another heir as great in admiration as herselfrdquo (SHAKESPEARE)117
41 A experiecircncia filosoacutefica da Verdade
O que faltaria pois a um modo de filosofar fundado em alicerces
intelectualistas Ora se a histoacuteria adquire um papel fundamental no Mundo
Moderno ndash contrariando os conselhos cartesianos ndash natildeo eacute de se admirar que
as suspeitas ou constataccedilotildees de uma ldquoconsciecircncia histoacutericardquo afetem tambeacutem
frontalmente a validade apodiacutetica neste momento de uma ldquoverdade
filosoacuteficardquo O que isto significa Quando se coloca em questatildeo a
autenticidade do labor filosoacutefico o que se atinge visceralmente satildeo antes de
tudo as relaccedilotildees com o passado natildeo de ldquosimples eventosrdquo mas do proacuteprio
pensamento Como se pode notar natildeo eacute sem motivo que o historicismo seja
qual for a sua versatildeo incomode tanto a filosofia No entanto nem por isso
deixa de lhe ser suscetiacutevel tornar-se viacutetima de seus afrontamentos e
repercussotildees O que resta agrave filosofia se aleacutem do naturalismo erguem-se
contra ela ao mesmo tempo a denuacutencia de ser uma mera reproduccedilatildeo do
117 Traduccedilatildeo ldquoQuando o paacutessaro fantaacutestico morre a fecircnix-fecircmea suas cinzas se reproduzem criando seu novo herdeiro tatildeo admiraacutevel quanto ela mesma forardquo (King Henry VIII Ato V cena 2)
220
passado ou produto do presente Como fica a ldquoverdade filosoacuteficardquo mediante a
arquitetocircnica de uma ldquoverdade histoacutericardquo
Para Merleau-Ponty pensar a experiecircncia filosoacutefica da verdade
ou a verdade de uma experiecircncia filosoacutefica significa pensar tanto o nosso
modo de acesso aos filoacutesofos ndash a nossa ldquopercepccedilatildeo das filosofiasrdquo ndash como o
proacuteprio exerciacutecio do entendimento118 Nesta perspectiva qual seria o sentido
de uma historiografia filosoacutefica Em suma caso se parta do pressuposto de
que na lida com os problemas filosoacuteficos encontra-se um diaacutelogo com
passado cujos desdobramentos uma simples philosophia perennis natildeo daria
mais conta que caminho melhor conduziria agrave compreensatildeo de uma historia
philosophica Com certeza se partirmos de Merleau-Ponty natildeo seraacute
seguindo a ldquoordre des raisonsrdquo nem muito menos sem as devidas
consideraccedilotildees apesar de seu inquestionaacutevel meacuterito os procedimentos das
Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie (Hegel)119 Quais seriam os
argumentos para esta recusa Em vaacuterios momentos o filoacutesofo nos deixa
claro o seu afastamento de uma compreensatildeo da Histoacuteria da Filosofia como
uma simples rememoraccedilatildeo do passado a tentaccedilatildeo em pensaacute-lo apenas por
ele mesmo Eacute preciso tambeacutem nas fibras de uma leitura do passado
compreender nossa eacutepoca o que noacutes pensamos e o que nos faz pensar
assim A partir do horizonte presente o passado eacute antes de qualquer coisa
(e)-vocado [eacutevoqueacute] chamado para fora de si chamado para o ldquosi mesmordquo do
hoje120 pensar o passado no horizonte do presente pelo simples fato de que
natildeo sabemos o que pensamos121 Em outros termos natildeo bastaria uma
118 Por conseguinte trata-se de verticalizar por exemplo com radicalidade uma revisatildeo do Cogito e da Ontologia presente na fundaccedilatildeo desse mesmo Cogito 119 O desconforto de Merleau-Ponty com a concepccedilatildeo hegeliana de Histoacuteria se daraacute especialmente a partir de suas leituras de Marx e de Weber Por sua vez seraacute a partir de sua concepccedilatildeo de Histoacuteria e de Filosofia conforme veremos nas seccedilotildees seguintes que se daraacute a sua recusa ao meacutetodo historiograacutefico de Gueacuteroult 120 Natildeo seria essa a preocupaccedilatildeo mesma de Descartes (DESCARTES 1996a) 121 Se uma das caracteriacutesticas da Crise eacute a presenccedila de ldquoruiacutenas de pensamentordquo parece-nos que podemos entender melhor o pensamento de Merleau-Ponty remontando-nos ao periacuteodo que denominara conforme jaacute vimos de Grande Racionalismo Trata-se antes aqui do que entendemos como os movimentos de uma histoacuteria da filosofia constantemente presente em Merleau-Ponty embora confessadamente expliacutecito e direto como em Martial Gueacuteroult Eacute certo que a intenccedilatildeo do filoacutesofo eacute em primeiro lugar compreender a sua eacutepoca tal como tivera a oportunidade de salientar em seus cursos no Collegravege de France O que visa natildeo eacute o
221
recusa do intelectualismo filosoacutefico em sua lida com as ciecircncias ou com o
que excedia os limites de seu territoacuterio seria preciso caso se quisesse ser
radical uma recusa das marcas que o intelectualismo havia deixado no que
a proacutepria Filosofia compreendia como seu modo de ldquooperarrdquo como seu
proacuteprio meacutetodo Caberia agrave Filosofia pois tornar-se um problema para si
mesma e em consequecircncia ao filoacutesofo repensar o seu proacuteprio modo de
interrogar e de se fazer ldquointerrogaccedilatildeordquo
Nesta perspectiva quando Merleau-Ponty nos acentua em seus
cursos no Collegravege de France que o que estaacute em jogo em seus trabalhos natildeo
se situa no acircmbito de uma Historia da Filosofia compreendemos que haja
muito mais do que uma simples confissatildeo frente agrave possiacutevel incompreensatildeo
dos tiacutetulos de um curso sobre Lrsquoontologie carteacutesienne et lrsquoontologie
drsquoaujourdrsquohui haja muito mais do que um modo de desculpar suas
digressotildees frente agrave tradiccedilatildeo e as constantes incursotildees aos problemas de sua
eacutepoca Para Lefort em contrapartida natildeo se encontraria senatildeo nestes
cursos e na proacutepria justificativa do filoacutesofo o esforccedilo em ler o presente em
encontrar uma ldquonova ontologiardquo o que distanciaria Merleau-Ponty de um
embate historiograacutefico Ora concordamos com Lefort no que se refere aos
desdobramentos da investigaccedilatildeo merleau-pontiana mas acreditamos
tambeacutem que ali uma reflexatildeo sobre a Histoacuteria da Filosofia esteja
passado compreendido por si mesmo (MERLEAU-PONTY 1996 p 163) mas a sua eacutepoca a ontologia e a filosofia de seu tempo Mas esta deacutemarche natildeo eacute uma marca dos uacuteltimos trabalhos podemos encontraacute-la jaacute em seus primeiros livros Assim eacute comum encontrarmos ao longo de toda a sua obra desvios cesuras direcionamentos ao passado especialmente no diaacutelogo com os cartesianos com o pensamento claacutessico Qual seria as razotildees Responde-nos o filoacutesofo ldquoPorque natildeo sabemos o que pensamos Mais faacutecil dizer em que natildeo somos cartesianosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 163) Parece-nos pois que haacute aqui uma deacutemarche filosoacutefica que emerge de uma constataccedilatildeo Logo poderiacuteamos reformular porquanto natildeo sabemos o que pensamos porquanto vivemos em uma crise das ciecircncias e do sentido na qual deparamo-nos constantemente com ldquoruiacutenas de pensamentosrdquo o retorno arqueoloacutegico ao passado ndash semelhante ao Ruumlck-gang heideggeriano (HEIDEGGER 1978 p 390) ndash pode nos ajudar a melhor nos situar em relaccedilatildeo ao presente Por conseguinte a proposta de Merleau-Ponty se encaminha na lateralidade de um movimento negativo ndash busca daquilo em que natildeo somos claacutessicos ndash que se daacute em um movimento positivo ndash compreensatildeo do passado em vistas do presente O retorno agrave histoacuteria da filosofia ao passado justifica-se pois dada a constataccedilatildeo de que ali estaria a gecircnese do presente no entanto natildeo enquanto resultado de uma cadeia de causalidade mas como a repercussatildeo ou o fruto de uma seacuterie de mudanccedilas que perderam o sentido de sua origem logo como o resultado dialeacutetico inerente a todo acontecimento histoacuterico
222
marcadamente implicada embora por uma via negativa Por conseguinte
natildeo entendemos a afirmaccedilatildeo de que ldquoisto natildeo eacute histoacuteria da filosofia passado
por si mesmo ndash mas passado evocado para compreender o que noacutes
pensamos ndash no horizonte do presenterdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p163)
como a negaccedilatildeo de uma discussatildeo historiograacutefica mas como a negaccedilatildeo de
um determinado modo de se fazer Histoacuteria da Filosofia e portanto a
indicaccedilatildeo da radicalidade que o pensador pretendia dar a seu projeto
filosoacutefico Pensar a histoacuteria a partir do presente tornar o presente um ldquojuiacutezo
de valorrdquo para entender o ldquopassadordquo natildeo seria a versatildeo moderna da
deacutemarche claacutessica No final natildeo ressuscitaria uma versatildeo intelectualista da
histoacuteria Se esta afirmaccedilatildeo natildeo tem sentido o que distanciaria o filoacutesofo do
modo claacutessico ou mesmo intelectualista de tratar a histoacuteria
42 A crise do entendimento e os entraves da historiografia claacutessica o problema da histoacuteria A Crise da Filosofia proveniente de certos ldquomodos de filosofarrdquo
nasce tambeacutem a nosso ver nos horizontes de uma compreensatildeo equivocada
de ldquohistoacuteriardquo Em outros termos partir do pressuposto de que haacute um
problema no ldquomodo de filosofarrdquo implica assinalar os limites de um
determinado modelo ldquohistoriograacuteficordquo Antes poreacutem precisamos entender
como a histoacuteria se torna problema Para Merleau-Ponty encontramos uma
indicaccedilatildeo no que considera a ldquocrise do entendimentordquo a qual por sua vez
encontra sua origem na cisatildeo criticista estabelecida a partir do problema do
conhecimento entre Entendimento e Razatildeo Enquanto a Razatildeo poderia se
dirigir ao conhecimento das coisas tais como satildeo em si mesmas o
Entendimento se contentaria com a finitude dos fenocircmenos Como ficaria
nesta perspectiva a histoacuteria Natildeo caberia pois agrave Razatildeo a compreensatildeo da
histoacuteria dado natildeo ser possiacutevel um conhecimento em si dos acontecimentos
histoacutericos A objetividade presente nos procedimentos do Entendimento
exigiria do conhecimento histoacuterico a sua subserviecircncia aos meacutetodos
utilizados na lida com os fenocircmenos fiacutesicos fazendo do passado um objeto
223
submetido a regras determinadas a um meacutetodo e sua certificada eficaacutecia
Qual seria a consequecircncia disto Como diraacute Merleau-Ponty
Frequentemente noacutes raciocinamos como se houvesse face-a-face uma filosofia que potildee no homem valores determinaacuteveis fora do tempo uma consciecircncia desligada de todo interesse pelo acontecimento ndash e ldquofilosofias da histoacuteriardquo que pelo contraacuterio situam no curso das coisas uma loacutegica oculta da qual teriacuteamos tatildeo-somente que receber o veredito A escolha neste caso seria entre uma sabedoria do entendimento que natildeo se preocupa em encontrar um sentido agrave histoacuteria e tenta unicamente flexionaacute-la continuamente segundo seus valores e um fanatismo que em nome de um segredo da histoacuteria inverteria nossas avaliaccedilotildees mais evidentes (MERLEAU-PONTY 1996 p 42)
A transposiccedilatildeo da histoacuteria ao territoacuterio da teoria claacutessica do
conhecimento acaba nos revelando no projeto moderno de dar cientificidade
agraves ldquoCiecircncias do Espiacuteritordquo por exemplo um procedimento de mesmo cunho
daqueles utilizados nas ldquoCiecircncias da Naturezardquo Aqui nos deparamos dentre
outros com um dos grandes equiacutevocos do pensamento que se sedimentou e
teve sua gecircnese no seacuteculo XVII122 O maior limite desta concepccedilatildeo
certamente seraacute o reducionismo no qual se considera apenas como histoacuterico
o que se encontra preso a um campo circunscrito de objetos123 Nisto
122 Neste sentido seguindo as trilhas heideggerianas proacuteximas das percorridas por Merleau-Ponty encontrariacuteamos paralela a um ldquoprocedimento de verificaccedilatildeo da leirdquo na investigaccedilatildeo experimental da Natureza segundo Heidegger nas ldquociecircncias do espiacuterito historiograacuteficasrdquo a ldquocriacutetica das fontesrdquo Ora o que podemos entender por essa expressatildeo Como Heidegger mesmo nos salienta ldquoeste nome assinala aqui a totalidade da pesquisa de fontes do inventaacuterio da garantia da avaliaccedilatildeo da conservaccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo Eacute certo que a explicaccedilatildeo historiograacutefica fundada na criacutetica das fontes natildeo reconduz os factos a leis e regras Mas tambeacutem natildeo se limita a um simples relatar dos factos Nas ciecircncias historiograacuteficas assim como nas ciecircncias da natureza o procedimento tende a representar o permanente e a tornar a histoacuteria objecto A histoacuteria soacute pode tornar-se objectiva quando se tornou passado O que eacute consistente no passado aquilo com base no qual a explicaccedilatildeo historiograacutefica calcula o que eacute uacutenico e o que eacute muacuteltiplo na histoacuteria eacute o sempre-jaacute-sido-alguma-vez o comparaacutevel No permanente comparar de tudo com tudo o compreensiacutevel eacute calculado verificado e fixado como o plano da histoacuteriardquo (M Heidegger 1998 p 104-5) Por conseguinte ldquoeacute porque a historiografia enquanto investigaccedilatildeo projecta e objectiva o passado no sentido de um conjunto de efeitos limitados e explicaacuteveisrdquo ndash lembra-nos Heidegger ndash ldquoque exige como instrumento de objectivaccedilatildeo a criacutetica das fontesrdquo (HEIDEGGER 1998 p 105) 123 Consequentemente pensando em Heidegger seraacute histoacuterico tudo aquilo que se encontra em exata ldquocorrespondecircnciardquo e ldquoverificabilidaderdquo com um preacutevio e determinante conjunto de ldquofontesrdquo No entendimento histoacuterico portanto encontramos a constataccedilatildeo de uma eacutepoca do representar [(Vor)-stellen] de um mundo feito imagem de uma objetivaccedilatildeo do real lanccedilada
224
encontramos a impossibilidade de diaacutelogos por exemplo entre histoacuteria e
literatura histoacuteria e arte etc124 Nesta perspectiva sob os auspiacutecios do
criticismo o problema da histoacuteria torna-se em suma tatildeo-somente uma
indagaccedilatildeo acerca da possibilidade de uma ldquociecircncia da histoacuteriardquo
permanecendo ainda preso em um horizonte epistemoloacutegico que tem por
referecircncia e fundamento nada menos do que a Kritik der reinen Vernunft As
Ciecircncias da Natureza ainda serviam pois de referecircncia e modelo o que natildeo
deixaria de constituir tambeacutem uma simples Kritik der historischen Vernunft
Como nos adverte Merleau-Ponty
Quando se trata de conhecimento nossas relaccedilotildees com a histoacuteria satildeo do mesmo gecircnero que a de nossas relaccedilotildees com a natureza segundo Kant o entendimento historiador como o entendimento fiacutesico forma uma verdade ldquoobjetivardquo na medida em que constroacutei e o objeto eacute apenas um elemento de uma representaccedilatildeo coerente que pode ser retificada e precisada indefinidamente sem nunca confundir-se com a proacutepria coisa (MERLEAU-PONTY 1975b p 29)
De acordo com o filoacutesofo primeiramente em meio a este cenaacuterio
criticista presente na histoacuteria instaura-se conforme jaacute salientamos uma
crise no justo momento em que natildeo se tendo a devida ldquodistacircnciardquo caindo
por terra a exigida exterioridade o presente tambeacutem se torna um objeto de
investigaccedilatildeo Neste sentido como pensar a neutralidade exigida pelo
entendimento posto que ldquoa invasatildeo da histoacuteria pelo historiador natildeo poderaacute
ser evitadardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 29) Como ficariam as
ldquomatemaacuteticas relaccedilotildeesrdquo estabelecidas pelo rigor do meacutetodo entre sujeito e
objeto no caso o sujeito e o seu presente A consequecircncia deste impasse
acabara se tornando segundo o filoacutesofo a entrada no entendimento de
antinomias antes reservadas apenas ao exerciacutecio da Razatildeo Torna-se
incontornaacutevel a emergecircncia de um dualismo reinante entre um saber e uma
praacutetica que se tornam antagocircnicos visto que de um lado ldquoo saber
frente a um sujeito no caso o pesquisador123 Aquele que investiga a histoacuteria agora se torna um verdadeiro (sub)-iectum frente a um (ob)-iectum calculaacutevel determinaacutevel o passado 124 Pensando assim o que foge a esse campo natildeo tem outra alcunha senatildeo a de ldquoexceccedilatildeordquo o desvio indesejado e transgressor agraves ldquofontesrdquo entendidas aqui no sentido heideggeriano e por isso merecedor do descaso da ldquoRazatildeo Histoacutericardquo
225
multiplica os pontos de vista por meio de conclusotildees provisoacuterias abertas
motivadas isto eacute condicionaisrdquo e de outro a praacutetica faria o mesmo
ldquomediante decisotildees absolutas parciais injustificaacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY
1975b p 30) Quais a razotildees deste infortuacutenio Segundo Merleau-Ponty
estaria no esquecimento de que ldquotodas as instacircncias que se queriam opor agrave
histoacuteria tecircm tambeacutem sua histoacuteria e graccedilas a ela se comunicam com a
Histoacuteria embora tenham sua proacutepria maneira de usar o tempordquo (MERLEAU-
PONTY 1968 p 45) Por conseguinte o erro encontra-se na tentativa de se
legitimar uma cisatildeo entre o entendimento e a histoacuteria tal como se tentou
fazer entre espiacuterito e mateacuteria quando na verdade a verdadeira separaccedilatildeo
estaria entre ldquo[] a histoacuteria como deus desconhecido ndash gecircnio bom ou mau ndash e
a histoacuteria como meio de vidardquo (MERLEAU-PONTY 1968 p 45) pois
A histoacuteria eacute um meio de vida se entre a teoria e a praacutetica entre a cultura e o trabalho do homem entre as eacutepocas entre as vidas entre as accedilotildees deliberadas e o tempo em que estas accedilotildees aparecem haacute uma afinidade que natildeo seja fortuita nem se fundamente em uma loacutegica onipotente O ato histoacuterico eacute inventado e no entanto responde tatildeo bem aos problemas do tempo que eacute compreendido e seguido como que se incorpora ndash dizia Peacuteguy ndash agrave ldquoduraccedilatildeo puacuteblicardquo Haveria ilusatildeo retrospectiva ao projetaacute-lo no passado que ele transforma mas haveria ilusatildeo prospectiva ao fazer cessar o presente no umbral de um porvir vazio como se cada presente natildeo se prolongasse em direccedilatildeo a um horizonte futuro e como se o sentido de um tempo do qual decide a iniciativa humana natildeo fosse nada diante dela (MERLEAU-PONTY 1968 p 45)
Neste sentido no esquecimento destes movimentos
encontrariacuteamos os limites da historiografia claacutessica O fato eacute que nolens
volens tanto a histoacuteria eacute uma accedilatildeo como tambeacutem a accedilatildeo eacute tambeacutem histoacuteria
logo ldquoa condiccedilatildeo do historiador natildeo eacute tatildeo diferente daquela do homem de
accedilatildeo Ele transporta para aqueles cuja accedilatildeo foi decisiva reconstitui as suas
decisotildees refaz o que fizeram (com a diferenccedila de que conhece o contexto
melhor do que eles e jaacute sabe quais seratildeo as consequecircncias)rdquo (MERLEAU-
PONTY 1975b p 31) O problema da histoacuteria por conseguinte natildeo pode
ser apenas um problema epistemoloacutegico mas ldquoum problema inerente agrave
nossa vidardquo natildeo podendo pois furtar-se agrave ldquobusca pelo sentido do nosso
serrdquo Ora o que incomoda portanto a Filosofia em uma problematizaccedilatildeo da
226
historicidade A emergecircncia de sentido ou de sua necessidade no acircmago da
finitude humana Eacute neste sentido que nos diraacute o filoacutesofo
[] natildeo se pode conceber um conhecimento histoacuterico que seja rigorosamente objetivo porque a interpretaccedilatildeo e a perspectivaccedilatildeo do passado dependem das escolhas morais e poliacuteticas que o historiador fez por sua conta como aliaacutes estes daquela e que neste ciacuterculo em que se encerrou a existecircncia humana nunca pode abstrair de si para aceder a uma verdade nua e soacute comporta um progresso na objetivaccedilatildeo nunca uma objetivaccedilatildeo plena (MERLEAU-PONTY 1975b p 65)
Faz-se mister no entender de Merleau-Ponty compreender uma
historicidade aqueacutem da proacutepria subjetividade e que natildeo sendo simplesmente
uma coisa nasccedila no interior e na vivecircncia da proacutepria histoacuteria Disto
concluiraacute o pensador precisamos reconhecer que ldquonossa relaccedilatildeo com a
histoacuteria natildeo eacute pois somente a relaccedilatildeo do entendimento a do espectador
com o espetaacuteculordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 31) pois ldquonatildeo seriacuteamos
espectadores se natildeo estiveacutessemos comprometidos com o passado e a accedilatildeo
natildeo seria grave se natildeo concluiacutesse a empresa do passado e natildeo desse ao
drama seu uacuteltimo atordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 31) Ora natildeo seria
assim que Merleau-Ponty iria entender a ldquofilosofia da histoacuteriardquo de Marx Natildeo
haveria em Marx em sua criacutetica ao sistema hegeliano a ruptura com uma
tradiccedilatildeo idealista que se acreditava distante do criticismo e de suas
antinomias A nosso ver natildeo podemos entender a compreensatildeo merleau-
pontiana de histoacuteria nos afastando de suas leituras de Marx e tambeacutem
mutatis mutandis de Weber No que diz respeito a Marx para o filoacutesofo vale
lembrar que o marxismo natildeo eacute pois ldquo() uma filosofia do sujeito mas
tambeacutem natildeo eacute uma filosofia do objeto Eacute uma filosofia da histoacuteriardquo
(MERLEAU-PONTY 1975b p 76) Eacute assim que em seu Eacuteloge de la
Philosophie afirmava com veemecircncia ldquoA novidade de Marx como criacutetico de
Hegel natildeo estaacute pois em ter feito da produtividade humana o motor da
histoacuteria e em considerar a filosofia um reflexo de seu movimento ()rdquo
(MERLEAU-PONTY 1986 p 64) Pelo contraacuterio estaacute ldquo() em haver
denunciado o artifiacutecio pelo qual a filosofia introduzia o sistema na histoacuteria
para depois o encontrar laacute e reafirmar a sua onipotecircncia quando parecia
227
renunciar a elardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 64) Em Marx Merleau-Ponty
visualiza a criacutetica de uma histoacuteria universal uma vez que ldquoem Hegel o
filoacutesofo tanto aparece como o simples leitor de uma histoacuteria jaacute concluiacuteda o
paacutessaro de Minerva que soacute levanta vocirco ao entardecer como parece ser a
uacutenica personagem da histoacuteria pois eacute o uacutenico ser que natildeo a experimenta e a
compreende elevando-a a conceitordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 64) O
leitor de Hegel no entanto poderia logo levantar objeccedilotildees a estas palavras
pois o autor das Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie natildeo teria
feito da filosofia uma intelecccedilatildeo da experiecircncia histoacuterica no mesmo instante
em que fazia da histoacuteria o devir da filosofia
Para Merleau-Ponty esta mesma objeccedilatildeo na verdade oculta um
conflito Diraacute o filoacutesofo que ldquosendo a filosofia para Hegel saber absoluto
sistema totalidade a histoacuteria de que fala o filoacutesofo natildeo eacute verdadeiramente
histoacuteria isto eacute algo que se construa mas a histoacuteria universal
compreendida feita mortardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 63) Esta certeza
adquire sentido para Merleau-Ponty uma vez que ldquoinversamente uma
histoacuteria sendo puro fato ou acontecer introduz no sistema em que se
incorpora um movimento interior que o destroacuteirdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p
64) Ao deduzir isto Hegel pode ser compreendido no dizer de Alain como
um sutil vendedor de sonhos ldquo() aqueles que lsquooferecem um sono cujos
sonhos satildeo precisamente o mundorsquordquo (ALAIN apud MERLEAU-PONTY 1986
p 64) pois
A histoacuteria universal de Hegel eacute o sonho da histoacuteria Como nos sonhos tudo o que eacute pensado eacute real tudo o que eacute real eacute pensado Os homens nada podem fazer que natildeo esteja jaacute compreendido no reverso das coisas no sistema E o filoacutesofo faz-lhes a concessatildeo de admitir que nada pode pensar que natildeo tenha sido feito por eles concedendo-lhes tambeacutem o monopoacutelio da eficaacutecia Mas como reserva para si o do sentido eacute na filosofia e soacute nela que a histoacuteria adquire sentido Poreacutem eacute o filoacutesofo que pensa e decreta a identidade da histoacuteria e da filosofia o que equivale a dizer que natildeo haacute identidade (MERLEAU-PONTY 1986 p 65)
Em Marx pensa Merleau-Ponty estas ideias adquirem um outro
colorido No jovem Marx o proacuteprio exerciacutecio da filosofia o seu privileacutegio e a
sua pretensatildeo de esgotar o real natildeo podem ser entendidos como um ato
228
gerador da histoacuteria mas como um fato histoacuterico em si mesmo Assim
imanente agrave vida humana encontramos uma racionalidade histoacuterica dado
que para o pensamento marxista ldquoa histoacuteria natildeo eacute jaacute apenas a ordem do
fato ou do real a que com a racionalidade a filosofia viria conferir direito de
existecircncia eacute o meio onde se forma todo o sentido e em particular o sentido
conceitual ou filosoacutefico no que tem de legiacutetimordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p
65) Assim ldquoaquilo a que Marx chama praacutexis eacute este sentido que se desenha
espontaneamente no entrecruzar das accedilotildees com que o homem organiza as
suas relaccedilotildees com a natureza e com os outros Natildeo eacute dirigida por uma ideia
de histoacuteria universal ou totalrdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 66) Em Marx
Merleau-Ponty natildeo enxerga aquele poder exaustivo da filosofia que estava
presente em Hegel natildeo havendo tambeacutem a compreensatildeo do ato filosoacutefico
como o simples reflexo de uma histoacuteria que jaacute fora dada Pensando ainda no
jovem Marx ldquoa filosofia como conhecimento separado lsquodestroacutei-sersquo apenas
para se lsquorealizarrsquo A racionalidade passa do conceito para o centro da praacutexis
inter-humana e certos fatos histoacutericos assumem um significado filosoacutefico
neles vive a filosofiardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 67)
A partir do que jaacute assinalamos natildeo se pode concluir que exista a
possibilidade de se ldquo() transformar a dialeacutetica da consciecircncia em dialeacutetica
da mateacuteria ou das coisas quando se diz que haacute uma dialeacutetica nas coisas natildeo
pode ser senatildeo nas coisas enquanto pensadas de modo que ao fim e ao
cabo esta objetividade eacute o cuacutemulo do subjetivismordquo (MERLEAU-PONTY
1986 p 67) Pensando nisso ldquoMarx natildeo desloca a dialeacutetica para as coisas
mas sim para os homens considerados bem entendido com todo o seu
ingrediente humano e enquanto empenhados pelo trabalho e pela cultura
numa empresa que transforma a natureza e as relaccedilotildees sociaisrdquo (MERLEAU-
PONTY 1986 p 67) De modo reciacuteproco ldquoa contingecircncia do acontecer
humano deixa de ser jaacute uma falha na loacutegica da histoacuteria para ser a sua
condiccedilatildeo Sem ela a histoacuteria natildeo seraacute mais do que um fantasmardquo Em sua
leitura de Marx o filoacutesofo chega agrave conclusatildeo de que ldquoa histoacuteria natildeo tem
sentido se o seu sentido for concebido como o de um rio que sob a accedilatildeo de
causas todo-poderosas corre para um oceano no qual desaparecerdquo
(MERLEAU-PONTY 1986 p 68) pois ldquoqualquer recurso agrave histoacuteria universal
229
corta o sentido do acontecer torna insignificante a histoacuteria efetiva e eacute uma
maacutescara do niilismordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 68) Deste modo ldquo()
como o Deus exterior eacute um Deus falso tambeacutem a histoacuteria exterior jaacute natildeo eacute
histoacuteria Os dois absolutos rivais vivem apenas se no seio do ser se instalar
um projeto humano que os recuse e eacute na histoacuteria que o filoacutesofo aprende a
conhecer esta negatividade filosoacutefica a que se opotildee em vatildeo a plenitude da
histoacuteriardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 68)
Ao ser compreendido a partir de si mesmo o pensamento
marxista no entender de Merleau-Ponty inova em sua compreensatildeo de
histoacuteria e no seu modo de se aproximar do fenocircmeno humano a partir de
suas relaccedilotildees Isto todavia natildeo ocorre na leitura de certos marxistas Pelo
contraacuterio afirma Merleau-Ponty ldquoteriacuteamos uma ideia bem estranha do
marxismo e de suas relaccedilotildees com a filosofia se focircssemos julgaacute-lo pelos
escritos de certos marxistas contemporacircneos Para estes visivelmente a
filosofia eacute inteiramente verbal desprovida de qualquer conteuacutedo e
significaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) Aqui de modo especial o
filoacutesofo pensa em autores como Naville Garaudy Herveacute Mounin entre
outros Merleau-Ponty natildeo poderia deixar de achar estranha a proposta de
Naville em pensar a economia poliacutetica a partir das ciecircncias da natureza
como tambeacutem a criacutetica de Cogniot aos ldquofiloacutesofos de cafeacuterdquo por definirem o
homem como natildeo-ser125 Assim levando-se em conta tais pensadores que se
diziam marxistas Merleau-Ponty conclui que apesar do fato de que ldquocada
um tem pleno direito de adotar a filosofia que lhe agrade como por exemplo
o cientificismo e o mecanicismo ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) por
outro lado ldquoeacute preciso saber e dizer que esse tipo de ideologia nada tem a ver
com o marxismordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) Diraacute o filoacutesofo que
125 Ao elogiar Descartes por natildeo cometer esse erro Cogniot se esquecia das notaacuteveis palavras cartesianas da segunda Meditaccedilatildeo ldquoeu natildeo sou esse conjunto de membros que se denomina corpo humano natildeo sou um ar tecircnue e penetrante disseminado por todos esses membros natildeo sou um vento um sopro um vapor nem algo que posso fingir e imaginar ()rdquo (DESCARTES 1973 p 261) No seio do pensamento cartesiano para decepccedilatildeo de Cogniot jaacute se podia visualizar conforme Merleau-Ponty como fissura uma certa ldquonadificaccedilatildeordquo
230
Uma concepccedilatildeo marxista da sociedade humana e em particular da sociedade econocircmica vendo-a em movimento rumo a um novo arranjo em cujo interior as leis da economia claacutessica natildeo mais se aplicaratildeo natildeo pode submetecirc-la a leis permanentes como as da fiacutesica claacutessica Em O Capital o esforccedilo de Marx tende justamente a mostrar que as famosas leis da economia claacutessica frequentemente apresentadas como traccedilos permanentes de uma ldquonatureza socialrdquo na realidade satildeo atributos (e maacutescaras) de uma certa ldquoestrutura socialrdquo ndash o capitalismo que evolui agrave sua proacutepria destruiccedilatildeo A noccedilatildeo de estrutura ou totalidade que parece merecer a desconfianccedila de Naville eacute uma categoria fundamental do marxismo Uma economia poliacutetica marxista soacute pode falar em leis no interior de estruturas qualitativamente distintas que devem ser descritas em termos de histoacuteria A priori o cientificismo surge como uma concepccedilatildeo conservadora pois nos leva a tomar aquilo que eacute momentacircneo como se fora eterno De fato na histoacuteria do marxismo o fetichismo da ciecircncia apareceu sempre do lado em que a consciecircncia revolucionaacuteria estava prostrada (MERLEAU-PONTY 1975b p 71-2)
Natildeo eacute mais vaacutelido procurar pensar a sociedade humana a partir
de leis naturais permanentes uma vez que ateacute mesmo na fiacutesica caso
pensemos aqui na fiacutesica moderna esta concepccedilatildeo da Natureza e de suas leis
eacute questionaacutevel ldquoLonge de eliminar a estrutura a fiacutesica moderna soacute concebe
suas leis no quadro de um certo estado histoacuterico do universo fornecido por
coeficientes empiacutericos dados como tais e que natildeo podem ser deduzidos de
sorte que natildeo nos oferece qualquer criteacuterio que nos permita consideraacute-lo
como definitivordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 72) Conforme indicaccedilatildeo de
Chauiacute (CHAUIacute 1975) caso prestemos atenccedilatildeo natildeo podemos deixar de notar
que no fundo Merleau-Ponty deseja desvencilhar o materialismo marxista
do materialismo cientificista Para isto o filoacutesofo precisa investigar como a
noccedilatildeo de mateacuteria se apresenta em Marx e como ela se difere de uma
concepccedilatildeo cientificista (CHAUIacute 1975) O que Marx entende por mateacuteria
Merleau-Ponty procura responder a esta indagaccedilatildeo lembrando-nos de que
ldquo() Marx falava de uma lsquomateacuteria humanarsquo isto eacute assumida no movimento
da praacutexisrdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 69) Mateacuteria natildeo seria portanto no
pensamento marxista uma coisa natural que se manifesta em relaccedilotildees
partes extra partes Pelo contraacuterio as relaccedilotildees sociais eacute que constituem a
mateacuteria a qual o filoacutesofo se refere Assim tanto materialismo histoacuterico
quanto materialismo dialeacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo um certo
231
desdobramento de uma dialeacutetica do trabalho que por sua vez eacute o motor do
mundo histoacuterico e social126 ldquoA dialeacutetica ()rdquo como assinala Chauiacute ldquo() natildeo
eacute materialista porque passou do sujeito espiritual para a coisa material mas
porque passou para o mundo sensiacutevel Este eacute o mundo natural tal como eacute
visto trabalhado e conhecido pela praacutetica social e poliacutetica dos homensrdquo
(CHAUIacute 1975 p 73) Como enfatizaraacute ainda Chauiacute
No ensaio Em torno do Marxismo Merleau-Ponty dissera que a cultura era natural para o homem Com isto natildeo queria dizer que a cultura eacute um fato natural a ser explicado pelas ciecircncias da natureza mas que o conceito de natureza se transforma dialeticamente quando se estabelece sua relaccedilatildeo com a cultura isto eacute com as formas historicamente determinadas das relaccedilotildees sociais mediatizadas pelas relaccedilotildees dos homens com as coisas atraveacutes do trabalho (CHAUIacute 1975 p 73)
A compreensatildeo merleau-pontiana de Marx afasta-se das
possibilidades de uma leitura mecanicista do marxismo Na Pheacutenomeacutenologie
de la perception o filoacutesofo jaacute havia chegado agrave conclusatildeo de que ldquonatildeo
podemos livrar-nos do materialismo histoacuterico assim como da psicanaacutelise
condenando as concepccedilotildees lsquoredutorasrsquo e o pensamento causal em nome de
um meacutetodo descritivo e fenomenoloacutegico ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p
633) Isso porque ldquo() assim como a psicanaacutelise o materialismo histoacuterico
natildeo estaacute ligado agraves formulaccedilotildees lsquocausaisrsquo que dele se puderam oferecer e
assim como ela ele poderia ser exposto em uma outra linguagemrdquo
(MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Para Merleau-Ponty ldquoo materialismo
histoacuterico consiste tanto em tornar a economia histoacuterica quanto em tornar a
histoacuteria econocircmicardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 633) pois
A economia na qual ele assenta a histoacuteria natildeo eacute como na ciecircncia claacutessica um ciclo fechado de fenocircmenos objetivos mas uma confrontaccedilatildeo entre forccedilas produtivas e formas de produccedilatildeo que soacute chega ao seu fim quando as primeiras saem do anonimato tomam consciecircncia de si mesmas e tornam-se assim capazes de pocircr em forma o futuro Ora a tomada de consciecircncia eacute evidentemente um fenocircmeno cultural e por aiacute podem introduzir-se na trama da histoacuteria todas as motivaccedilotildees psicoloacutegicas () A economia acha-se integrada agrave histoacuteria antes que a histoacuteria reduzida agrave economia O ldquomaterialismo
126 Aqui seguimos de perto a leitura que Chauiacute faz do pensamento merleau-pontiano em Marxismo e Filosofia assim como ela deixa expliacutecito em suas notas de traduccedilatildeo
232
histoacutericordquo nos trabalhos que inspirou frequentemente eacute apenas uma concepccedilatildeo concreta da histoacuteria que leva em consideraccedilatildeo aleacutem de seu conteuacutedo manifesto ndash por exemplo as relaccedilotildees oficiais entre os ldquocidadatildeosrdquo em uma democracia ndash o seu conteuacutedo latente quer dizer as relaccedilotildees inter-humanas tais como elas efetivamente se estabelecem na vida concreta Quando a histoacuteria ldquomaterialistardquo caracteriza a democracia como um regime ldquoformalrdquo e descreve os conflitos que atormentam esse regime o sujeito real da histoacuteria que ela procura recuperar sob a abstraccedilatildeo juriacutedica do cidadatildeo natildeo eacute apenas o sujeito econocircmico o homem enquanto fator da produccedilatildeo mas mais geralmente o sujeito vivo o homem enquanto produtividade enquanto ele quer dar forma agrave sua vida enquanto ama odeia cria ou natildeo obras de arte tem filhos ou natildeo os tem O materialismo histoacuterico natildeo eacute uma causalidade exclusiva da economia Seriacuteamos tentados a dizer que ele natildeo faz a histoacuteria e as maneiras de pensar repousarem na produccedilatildeo e na maneira de trabalhar mas geralmente na maneira de existir e de coexistir nas relaccedilotildees inter-humanas Ele natildeo reduz a histoacuteria das ideias agrave histoacuteria econocircmica mas as recoloca na histoacuteria uacutenica que ambas exprimem a histoacuteria da existecircncia social O solipsismo enquanto doutrina filosoacutefica natildeo eacute um efeito da propriedade privada mas na instituiccedilatildeo econocircmica e na concepccedilatildeo do mundo projeta-se uma mesma preferecircncia existencial de isolamento e desconfianccedila
(MERLEAU-PONTY 1999 p 633)
Pelo que notamos Merleau-Ponty procura fugir de um dualismo
que logo pode se erguer ao se estudar o ldquomaterialismo histoacutericordquo marxista no
qual se deveria optar pela certeza de que o drama da coexistecircncia tem uma
significaccedilatildeo puramente econocircmica ou pela certeza de que o drama
econocircmico se dissolve em um drama mais geral fazendo com que
acabaacutessemos nos defrontando com o espiritualismo A partir da noccedilatildeo de
existecircncia pensa o filoacutesofo esta alternativa acaba por ser superada Neste
sentido ldquouma teoria existencial da histoacuteria eacute ambiacutegua mas natildeo se pode
censurar essa ambiguidade pois ela estaacute nas coisasrdquo (MERLEAU-PONTY
1999 p 633) Para Merleau-Ponty inclusive ldquoeacute apenas com a aproximaccedilatildeo
de uma revoluccedilatildeo que a histoacuteria segue mais de perto a economia ()rdquo
(MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Assim sendo ldquo() como na vida
individual a doenccedila sujeita o homem ao ritmo vital de seu corpo em uma
situaccedilatildeo revolucionaacuteria por exemplo em um movimento de greve geral as
relaccedilotildees de produccedilatildeo transparecem elas satildeo expressamente percebidas
como decisivasrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Ora ldquonem o conservador
nem o proletaacuterio tecircm consciecircncia de estar envolvidos em uma luta apenas
233
econocircmica e eles sempre datildeo agrave sua accedilatildeo uma significaccedilatildeo humanardquo
(MERLEAU-PONTY 1999 p 634) Por outro lado
() Uma concepccedilatildeo existencial da histoacuteria natildeo retira agraves situaccedilotildees econocircmicas seu poder de motivaccedilatildeo Se a existecircncia eacute o movimento permanente pelo qual o homem retoma por sua conta e assume uma certa situaccedilatildeo de fato nenhum de seus pensamentos poderaacute ser inteiramente desprendido do contexto histoacuterico em que vive e em particular de sua situaccedilatildeo econocircmica Justamente porque a economia natildeo eacute um mundo fechado e porque todas as motivaccedilotildees se ligam no interior da histoacuteria o exterior torna-se interior assim como o interior tornar-se exterior e nenhum componente de nossa existecircncia jamais pode ser ultrapassado Seria absurdo considerar a poesia de P Valeacutery como um simples episoacutedio da alienaccedilatildeo econocircmica a poesia pura pode ter um sentido eterno Mas natildeo eacute absurdo procurar no drama social e econocircmico no modo de nosso Mitsein o motivo dessa tomada de consciecircncia (MERLEAU-PONTY 1999 p 635)
Conforme Merleau-Ponty ao se colocar contra um materialismo
positivista e um idealismo dialeacutetico a contribuiccedilatildeo de Marx estaacute em inserir
tanto ldquomateacuteriardquo quanto ldquoconsciecircnciardquo em uma nova dimensatildeo aquela do
materialismo histoacuterico e do materialismo dialeacutetico pois como jaacute afirmamos
anteriormente mateacuteria seraacute conforme a compreensatildeo merleau-pontiana do
pensamento marxista
() as relaccedilotildees sociais entendidas como relaccedilotildees determinadas entre os homens mediadas por suas relaccedilotildees determinadas com as coisas Em uacuteltima instacircncia a dialeacutetica materialista eacute uma dialeacutetica do trabalho Natildeo o trabalho paciente do conceito como em Hegel mas o trabalho concreto dos homens sofrendo e fazendo a histoacuteria em condiccedilotildees determinadas isto eacute o trabalho inserido num modo de produccedilatildeo determinado (CHAUIacute 1975 p 75)
Ora a partir destas consideraccedilotildees podemos concluir com o
filoacutesofo que ldquoa histoacuteria eacute um objeto estranho um objeto que somos noacutes
proacuteprios mas onde nossa vida insubstituiacutevel nossa liberdade selvagem jaacute se
encontra prefigurada comprometida jaacute arriscada por outras liberdades hoje
passadasrdquo (CHAUIacute 1975 p 31) A histoacuteria torna-se apenas possiacutevel
consequentemente se houver uma ldquoloacutegica na contingecircnciardquo ldquouma razatildeo na
desrazatildeordquo uma ldquopercepccedilatildeo histoacutericardquo que ldquo[] como outra deixa em
segundo plano o que natildeo passar ao primeiro apreende as linhas de forccedila em
seu nascimento e conduz ao acabamento ativamente o traccedilado destas
234
mesmas linhasrdquo (MERLEAU-PONTY 1968 p 46)127 Por conseguinte tendo-se
em conta uma ldquofilosofia da histoacuteriardquo tal como se pode vislumbrar no
pensamento marxista ao retomarmos a nossa questatildeo inicial
compreendemos a conclusatildeo merleau-pontiana de que o dualismo criticista
presente na concepccedilatildeo claacutessica de histoacuteria funda-se sob um contra-senso O
entendimento tal como fora postulado em conformidade com a
epistemologia claacutessica desconsidera a relaccedilatildeo de sentido sem a qual natildeo
haveria histoacuteria mas uma mera representaccedilatildeo uma pura ficccedilatildeo Deste
modo
A compreensatildeo histoacuterica natildeo introduz portanto um sistema de categoria escolhido arbitrariamente apenas presume nossa possibilidade de termos um passado nosso de retomarmos em nossa liberdade a obra de tantas outras liberdades esclarecendo suas escolhas pelas nossas e as nossas pelas delas retificando umas pelas outras enfim nossa possibilidade de estar na verdade Natildeo haacute respeito maior objetividade mais profunda do que esta pretensatildeo de buscar seu conteuacutedo na proacutepria fonte onde a histoacuteria nasce A histoacuteria natildeo eacute um deus exterior uma razatildeo escondida de que soacute poderiacuteamos registrar as conclusotildees eacute o fato metafiacutesico pelo que a mesma vida a nossa corre em noacutes e fora de noacutes em nosso presente e em nosso passado de sorte que o mundo eacute um sistema com vaacuterias entradas ou caso se queira a afirmaccedilatildeo de que temos semelhantes (MERLEAU-PONTY 1975b p 40)
Para Merleau-Ponty a histoacuteria eacute antes de tudo uma ldquoinvenccedilatildeordquo
e natildeo uma simples descoberta Logo uma ldquotomada de consciecircnciardquo acerca da
histoacuteria significa na verdade a sua colocaccedilatildeo em forma a sua enformaccedilatildeo
[mise en forme] A ldquovivecircncia da histoacuteriardquo acompanha uma ldquoconsciecircncia da
histoacuteriardquo nasce em um determinado contexto dado natildeo estar previamente
pronta a histoacuteria surge quando ldquocomeccedilamos a falar delardquo No entanto natildeo
se trata de uma compreensatildeo idealista mas da ideia de uma histoacuteria
entendida antes em um movimento circular e isto porque seria ela a
proacutepria histoacuteria causa e efeito de seu conhecimento o que nos leva a
127 ldquoA histoacuteria tem sentido mas natildeo eacute um puro desenvolvimento da ideia constroacutei seu sentido no contato com a contingecircncia no momento em que a iniciativa humana funda um sistema de vida retomando os dados dispersos E a compreensatildeo histoacuterica que revela uma interioridade histoacuterica deixa-nos entretanto na presenccedila da histoacuteria empiacuterica com sua espessura e seus casos natildeo a subordina a nenhuma razatildeo escondidardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 35)
235
encontraacute-la apoacutes sua ldquoinvenccedilatildeordquo em um contexto onde ainda natildeo existia
poreacutem o paradoxo estaacute no fato de que tal ldquomovimento retroacutegradordquo soacute se
tornou possiacutevel apoacutes termos feito a experiecircncia de seu conhecimento Deste
modo natildeo haveria uma ruptura entre a ldquoconsciecircncia da histoacuteriardquo e a
ldquohistoacuteria-realidaderdquo ou mesmo entre a histoacuteria como ldquonomerdquo e como ldquocoisardquo
pelo contraacuterio o que se postularia antes seria um entrelaccedilamento de
conhecimento e experiecircncia de essecircncia e de fato Mas pensando na
circularidade da histoacuteria ndash aquela que nos situaria no intervalo entre o
sensiacutevel e o conceitual ndash o que acontece quando em determinado momento
passamos a ldquoviver e a pensar historicamenterdquo Para Merleau-Ponty neste
momento ao contraacuterio da constituiccedilatildeo de um ldquonovo objetordquo o que se efetiva
eacute sobretudo um novo modo de compreender o ldquotempordquo pois
Em todas as sociedades os homens sabem que haacute homens diante deles e vagamente ou precisamente sabem tambeacutem o que eles fazem Quando se colocam a viver e a pensar historicamente natildeo eacute um novo objeto que seu conhecimento se anexa eacute uma nova estrutura do tempo (uma nova relaccedilatildeo com os outros uma nova ideia do sentido e da verdade) que se estabelece (MERLEAU-PONTY 2000b p 205)
Eacute neste sentido que de acordo com Merleau-Ponty entre os
gregos natildeo encontramos a experiecircncia da histoacuteria Pelo contraacuterio ali natildeo se
tem uma compreensatildeo do tempo como ldquoponto de partidardquo mas um ldquoeterno
retornordquo o ldquoeterno retornordquo do mesmo a busca apenas pelo ldquoque eacuterdquo uma
visatildeo turva da ldquoespessura das geraccedilotildeesrdquo e dos mundos diferentes que
poderiam nascer Como diraacute o filoacutesofo ldquotudo se passa como se tivessem
recalcado em seus mitos as suas vertigens e o seu pessimismo Kronos
devora seus filhos haacute no centro do mundo uma potecircncia que natildeo daacute o ser
senatildeo para tiraacute-lordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 206) haja vista que ldquoo
tempo dos filoacutesofos eacute antes uma potecircncia que natildeo destroacutei o ser senatildeo para
recriaacute-lo uma cintilaccedilatildeo do ser um impulso ininterrupto que acrescenta o
ser ao ser e imita de seu meio o imutaacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p
206) Deste modo a compreensatildeo do tempo segue antes os ldquociclos da
naturezardquo o que faz com que seu ldquoarranquerdquo ou ldquoimpulsordquo seja na verdade
apenas um ldquoretornordquo uma vez que a ordem humana deveria ser apenas um
reflexo da ordem da Natureza que por sua vez ancorava sua perfeiccedilatildeo nos
236
fundamentos de uma total ausecircncia de movimento O que acontece poreacutem
quando se muda este modo de entender o tempo O que mudaria com os
ldquohomens da histoacuteriardquo
Para o filoacutesofo o surgimento de uma espeacutecie de ldquoatmosfera da
histoacuteriardquo na qual tudo o que eacute feito pelo homem traz consigo a ldquoabertura de
um campordquo faz com que algo seja sempre fundado instituiacutedo retomado e
antecipado Natildeo se tem mais a compreensatildeo do tempo como um ldquoimpulso
naturalrdquo que nos seria anterior mas sempre o ldquosentimento de algo por fazerrdquo
Neste momento Merleau-Ponty compara a experiecircncia do tempo agrave mesma
que fazemos ao acordar pois do mesmo modo que nos concentramos em
um objeto para ldquovoltarmos a ser uma condutardquo um comportamento uma
relaccedilatildeo viva com o meio ldquo[] o tempo mais antigo eacute convocado para assistir
ao que vai voltar a ser em noacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) o que faz
de nosso presente no entender do filoacutesofo um ldquoempreendimentordquo pois ldquopor
mais que pensemos nossas instituiccedilotildees nossos planos invadem o porvir
descontam dele o seu aumento natildeo funcionam senatildeo no meio histoacuterico natildeo
satildeo como se diz lsquocondicionadosrsquo agrave histoacuteria ndash e instalam os homens sem se
dar conta disso na atmosfera da histoacuteriardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p
207)
No entanto esta dinacircmica da histoacuteria natildeo pode nos levar a crer
que seja ela apenas uma ldquosegunda naturezardquo que ainda mantenha a
causalidade e a finalidade da natureza e a sua ldquoastuacuteciardquo estaria justamente
ao se ldquoinsinuar nelasrdquo em fazer com que elas falem a ldquosua linguagemrdquo que
sejam ldquodesviadas de si mesmasrdquo e nos leve a uma histoacuteria que natildeo seja
absoluta que natildeo seja um ldquouniverso de imanecircnciardquo tal como podemos
vislumbrar na ideia de ldquoprogressordquo ou mesmo na insinuaccedilatildeo de uma ldquoloacutegica
da histoacuteriardquo que no fundo trazem consigo a crenccedila em ldquo[] uma potecircncia
que vela as mudanccedilas da histoacuteria como a natureza vela a nossa
permanecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) Neste aspecto Merleau-
Ponty estaria a nosso ver proacuteximo de Gadamer ao identificar em Wahrheit
und Methode dentre os conflitos da historiografia claacutessica a ideia de uma
ldquohistoacuteria da decadecircnciardquo que exigiria do imaginaacuterio moderno a necessidade
de ainda copiar as receitas metodoloacutegicas das Ciecircncias da Natureza e isto
237
quando o que se estaacute em jogo eacute a sua elevaccedilatildeo ao patamar de ldquociecircnciardquo de
ldquoinvestigaccedilatildeo cientiacuteficardquo Daiacute no fundo ainda a busca pelo ldquoimpereciacutevelrdquo
pelo ldquoimutaacutevelrdquo (GADAMER 2004 p 37-38) Eacute o que nos parece confirmar
Merleau-Ponty
Desde que se pensa por exemplo que o mundo antigo trazia em si mesmo o capitalismo como a planta traz a semente desde que se
trata o passado como o simples esboccedilo do presente a preacute-histoacuteria
como chegada de uma histoacuteria inelutaacutevel e esta enfim como o
anuacutencio de um fim e de uma consumaccedilatildeo da histoacuteria restabelecemos o tempo histoacuterico sob a categoria do tempo natural
[] A Greacutecia era o que ela era e podia nada sair dela por completo
ou [mesmo sair] algo diferente do que dela saiu A loacutegica do desenvolvimento que conduz dela a noacutes foi apenas pensada e apenas foi porque o Ocidente criou o tipo de sociedade as condiccedilotildees
materiais e intelectuais que tornavam possiacutevel a ideia de um
universo econocircmico e portanto a da Greacutecia como sociedade ldquopreacute-
capitalistardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207)
Para o filoacutesofo haacute na histoacuteria pelo que se pode notar uma
recusa em assumir a condiccedilatildeo de uma ldquosegunda naturezardquo um ldquouniverso de
imanecircnciardquo no qual as ldquodimensotildees do tempordquo seriam complementares O que
isto significa O que levaria o filoacutesofo a negar por exemplo a ideia de que
haveria uma ldquoenteleacutequiardquo pela qual o capitalismo seria fruto de um preacute-
capitalismo A suspeita de que ldquoa introspecccedilatildeo natildeo segue os traccedilos de uma
causalidade e de uma finalidade preacutevias []rdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p
207) E o que dizer entatildeo da gecircnese de um novo tempo histoacuterico ou mesmo
de um novo sistema Para o filoacutesofo ldquoeacute preciso dizer unicamente que se
arruinou a si mesmo que deixou o campo livre para outra coisa e que o
novo sistema natildeo era necessaacuterio entatildeo mesmo se o precedente natildeo fosse
mais possiacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) pois um tempo ldquo[] natildeo
traz em si seu futuro possiacutevel a natildeo ser na medida em que ele exclui certas
restauraccedilotildees impossiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 208)128 Daiacute no que
diz respeito agrave histoacuteria a conclusatildeo de Merleau-Ponty
128 A este respeito continua Merleau-Ponty ldquoTalvez um dia apareccedila na histoacuteria sob o nome de ldquopreacute-socialismordquo Se isto acontecer aconteceraacute porque o socialismo teraacute se instituiacutedo e natildeo porque ele aguardava oculto no coraccedilatildeo do capitalismo E isto aconteceraacute por caminhos e desenvolvimentos que natildeo satildeo necessariamente os que deixam prever a anaacutelise do
238
O conceito de histoacuteria representa uma aquisiccedilatildeo capital da filosofia com a condiccedilatildeo de que natildeo a empreguemos como uma anti-metafiacutesica Por muito que substitua a metafiacutesica ao contraacuterio ela traz uma luz incomparaacutevel agrave mais profunda das questotildees metafiacutesicas o que eacute esta verdade que nasceu e que morreraacute o que eacute este sentido que retoma seus antecedentes sem poder se encerrar neles nem em seu futuro o que eacute esta afinidade que faz com que no simultacircneo e no sucessivo o homem interesse ao homem Natildeo como o animal interessa o animal porque se assemelham ou se completam mas na diferenccedila e na rivalidade natildeo na monotonia da natureza mas na desordem da histoacuteria Haacute uma descoberta da histoacuteria mas natildeo eacute a de uma coisa de uma forccedila ou de um destino eacute a de uma interrogaccedilatildeo e caso se queira de uma anguacutestia (MERLEAU-PONTY 2000b p 208)
Ora pensando na historiografia filosoacutefica como iriam ecoar
estas questotildees Seria esta tambeacutem a concepccedilatildeo de histoacuteria que
encontrariacuteamos ou antes haveria ali uma tendecircncia em marchar tambeacutem
segundo as antinomias impostas pelo criticismo A este respeito natildeo
podemos deixar de salientar que tendo em vista as contradiccedilotildees de uma
historiografia marcada pelo modelo das Ciecircncias da Natureza paralela a ela
surgiria tambeacutem toda uma tradiccedilatildeo fundamentada na claacutessica distinccedilatildeo
entre ldquoexplicaccedilatildeordquo (Erklaumlren) e ldquocompreensatildeordquo (Verstehen)129 Diferentemente
das ldquoCiecircncias da Naturezardquo marcada pela ldquoexplicaccedilatildeordquo precisa de uma
relaccedilatildeo causal as ldquoCiecircncias do Espiacuterito Historiograacuteficasrdquo conforme esta
tradiccedilatildeo iriam se guiar pelo meacutetodo compreensivo a saber pelo
empreendimento de retirada do que haacute de sentido nos fatos humanos O que
natildeo se podia mais legitimar era o esforccedilo positivista em natildeo levar em conta
os procedimentos proacuteprios de apreensatildeo de nossas ldquovivecircnciasrdquo130 No
capitalismo no seacuteculo XIX Talvez este futuro comece em pontos de nosso sistema aos quais natildeo prestamos atenccedilatildeo e que poderiacuteamos jaacute localizar se olhaacutessemos mais livremente o presente para adivinhar o que faraacute sua figura definitiva diante do futurordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 208) 129 Trata-se aqui especialmente de Droysen e Dilthey 130 Ao contraacuterio de ser o sujeito epistemoloacutegico especialmente em Dilthey considerava-se a vida o cerne da existecircncia humana O pensamento eacute formado pelo ldquotrabalho da vidardquo o que natildeo daacute voz a uma relatividade histoacuterica A soluccedilatildeo natildeo estaacute simplesmente em somar como que por mera adiccedilatildeo um horizonte temporal agravequilo que pode ser considerado como incondicional Pelo contraacuterio a vida eacute o fundamento da relatividade ou seja ldquoa temporalidade do incondicionalrdquo o ldquoincondicional no tempordquo Todavia a este respeito vale lembrar que de acordo com Gadamer (2004) Dilthey parecia ainda natildeo trazer consigo in thesi a pergunta pela histoacuteria e se manter no horizonte kantiano de uma indagaccedilatildeo das
239
entanto esta cisatildeo seria suficiente Teria a separaccedilatildeo entre ldquoexplicaccedilatildeordquo e
ldquointerpretaccedilatildeordquo resolvido de vez os impasses criados por esta espeacutecie de
ldquonaturalismordquo do discurso histoacuterico Da sua parte seria por esta distinccedilatildeo
de territoacuterios que marcharia tambeacutem a historiografia filosoacutefica
Antes poreacutem de refletirmos sobre a legitimidade desta
separaccedilatildeo torna-se necessaacuterio por sua vez verificarmos a suspeita de que
em um primeiro momento antes da descoberta da ldquocompreensatildeordquo ou
mesmo na tentativa de negaacute-la o historicismo acabara deixando no proacuteprio
discurso histoacuterico algumas consequecircncias e a principal delas no afatilde de
salvar o que teria de legiacutetimo em sua objetividade foi justamente a projeccedilatildeo
de uma historiografia tida como ldquoimparcialrdquo na qual o passado poderia ser
contemplado sem as interferecircncias desvirtuantes do proacuteprio historiador e de
sua eacutepoca Em outros termos seria o caso pois antes de pensarmos a sua
possibilidade verificarmos como essa cisatildeo se encarna no proacuteprio discurso
filosoacutefico uma vez que paralelamente aos movimentos da histoacuteria e de sua
metodologia precavida a filosofia jaacute tinha tomado uma direccedilatildeo que lhe
podia tambeacutem servir de defesa a saber a ideia de que diferentemente de
uma histoacuteria dos fatos a histoacuteria das ideias na condiccedilatildeo de doutrina natildeo se
encontraria associada a um ldquoacontecimento histoacutericordquo131 o que lhe afastaria
de qualquer possibilidade de determinaccedilatildeo (MONDOLFO 1963 p 41)132
Frente a tal medida preventiva acreditou-se que a histoacuteria do
pensamento teria se livrado daquele paradoxo que assombrava o historiador
dos ldquoacontecimentosrdquo a saber o conflito entre um ideal de objetividade e os
ataques do historicismo e o que permitia isto era justamente o fato de que
possibilidades epistemoloacutegicas da proacutepria histoacuteria embora proponha uma metodologia agraves Ciecircncias do Espiacuterito 131 Cabe-nos pesquisar futuramente em outra oportunidade como ficaria essa problemaacutetica relacionada agrave noccedilatildeo heideggeriana de Ereignis e qual seria a posiccedilatildeo de Merleau-Ponty 132 Eacute por isso que conforme Mondolfo nos adverte na historiografia filosoacutefica podemos vislumbrar a realizaccedilatildeo do famoso dictum de Ranke ldquoAcostumou-se atribuir agrave histoacuteria a tarefa de julgar o passado instruindo assim o presente em benefiacutecio dos tempos futuros Mas nosso trabalho natildeo aspira a uma tal funccedilatildeo eminente e soacute pretende mostrar como sucederam realmente as coisas (will bloβ zeigen wie es eigentlich gewesen)rdquo (MONDOLFO 1963 p 40) Logo ldquoacima de tudo o que importa eacute natildeo lsquojulgar o passado [filosoacutefico neste caso] em benefiacutecio do presenterdquo jaacute que a histoacuteria da filosofia pretende mostrar primeiramente lsquocomo se pensou realmentersquordquo (MONDOLFO 1963 p 42-3)
240
natildeo tendo por interesse conhecer o passado a tarefa radicava-se em verificar
se a arquitetocircnica argumentativa que formava uma obra do pensamento
poderia ser considerada vaacutelida em conformidade com paracircmetros loacutegicos da
proacutepria razatildeo o que era possiacutevel por se tratar de ldquoideias abstratasrdquo Teria
sido tal incursatildeo suficiente para lhe salvar dos paradoxos que viriam sofrer
em geral uma ldquohistoacuteria dos acontecimentosrdquo e sua historiografia Natildeo teria
sofrido a filosofia do mesmo infortuacutenio de Eacutedipo ao tentar fugir de seu
ldquodestinordquo O fato eacute que esta ldquohistoriografia filosoacuteficardquo densamente
intelectualista trazia ainda consigo o ideaacuterio de uma imparcialidade
esboccedilada em uma tarefa de ldquoexplicaccedilatildeordquo (Erklaumlren) tal como no manuseio da
ldquoobjetidade cientiacuteficardquo Assim ela natildeo teria outro destino senatildeo as medidas
de um ldquosujeito imparcialrdquo No final das contas ao privilegiar a ldquoexplicaccedilatildeordquo a
historiografia filosoacutefica ainda permaneceria cativa da concepccedilatildeo claacutessica de
ldquohistoacuteriardquo que no fundo aqueacutem do criticismo apontava antes um fundo
claacutessico Eacute neste sentido que para Merleau-Ponty esta tradiccedilatildeo se
encontrava em meio a um impasse o mesmo impasse que a condenava ao
fracasso Em especial qual seria o ldquoalvordquo de sua criacutetica Quem melhor
expressaria essa tradiccedilatildeo Nos movimentos de qual historiografia filosoacutefica
encontrariacuteamos ainda as sombras e os fantasmas deste modo barroco de
tratar a histoacuteria
A nosso ver trata-se aqui do meacutetodo estrutural-geneacutetico de
Martial Gueacuteroult No que lhe diz respeito apesar da sua inquestionaacutevel
importacircncia para uma reflexatildeo acerca da filosofia e sua histoacuteria vale-nos
dizer que segundo Merleau-Ponty ainda faltaria ao meacutetodo gueroultiano
uma ldquoradicalidaderdquo A ressalva de Merleau-Ponty emerge justamente na
leitura que Gueacuteroult faz da obra de Descartes Como assinala o proacuteprio
Merleau-Ponty agraves margens de uma de suas notas ineacuteditas ldquoBem entendido
natildeo haacute nada a dizer contra uma leitura completa e que segue a ordem das
razotildees Resta saber se ela eacute suficiente noacutes dizemos [se eacute suficiente] agrave
proacutepria histoacuteria da filosofiardquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VI (67 verso)) O
que o filoacutesofo pretendia dizer com estas palavras A seguir tentaremos
encontrar uma possiacutevel resposta a esta questatildeo Vejamos
241
43 O horizonte intelectualista de fundo cartesiano presente na histoacuteria da filosofia ldquoa ordem das razotildeesrdquo ndash Da leitura de Descartes agrave historiografia filosoacutefica No cerne da recusa de Merleau-Ponty agrave historiografia filosoacutefica
tradicional certamente encontramos as criacuteticas feitas muitas vezes
discretas ao meacutetodo estrutural-geneacutetico de Gueacuteroult A criacutetica a Gueacuteroult
natildeo se daacute seguindo o modo tal como ela se apresenta em Merleau-Ponty no
sentido de desmerecer seus trabalhos de historiografia filosoacutefica mas
apontar alguns de seus limites Neste sentido partimos do pressuposto de
que a leitura de Descartes retratada em seu ceacutelebre livro Descartes seacutelon
lrsquoordre des raisons acabara por se instituir como um dos fundamentos de
sua historiografia tornando-a pois em alguns aspectos cartesiana133 Por
conseguinte iremos nos centrar especialmente no prefaacutecio desta obra ndash logo
em um texto sobre Descartes e natildeo propriamente sobre historiografia
filosoacutefica134 ndash por perceber ali uma espeacutecie de esboccedilo programaacutetico de seu
meacutetodo o que Deleuze parece nos corroborar como veremos mais adiante
aleacutem de tantos outros filoacutesofos que confirmam a importacircncia deste livro
importacircncia que transcende o acircmbito de uma simples monografia filosoacutefica
sobre um autor claacutessico do seacuteculo XVII
Nossa pretensatildeo seraacute pois assinalar como problemaacutetica a
instauraccedilatildeo ou a insinuaccedilatildeo de que a leitura proacutepria a um determinado
filoacutesofo possa instituir-se como modelo na leitura de outras filosofias
vislumbrando nisto alguns pressupostos proacuteprios ao ideaacuterio iluminista no
tratamento da histoacuteria Nossa incursatildeo a Descartes nas linhas a seguir natildeo
se daraacute no sentido de estudaacute-lo mas de ver como haveria uma relaccedilatildeo entre
a leitura de seus textos e o meacutetodo historiograacutefico em questatildeo Pensando
nisso nossa principal questatildeo seraacute a de compreender por que a partir de
133 ldquoOr il semble qursquoune fois satisfaites les exigences de la critique historique la meilleure meacutethode ce soit bien en lrsquoespegravece drsquoanalyser les structures de lrsquooeuvre Reommandable pour toutes les philosophies cette analyse paraicirct ici particuliegraverement neacutecessairerdquo (GUEacuteROULT 1968 vol 1 p 12) 134 Centramo-nos especialmente neste texto talvez em prejuiacutezo de tantos outros textos ceacutelebres de Gueacuteroult sobre historiografia filosoacutefica por considerar ali tambeacutem estarem mais bem expressas as questotildees que procuraremos elucidar
242
uma compreensatildeo da Filosofia e da proacutepria Razatildeo como experiecircncia do
pensamento haveria em Merleau-Ponty uma constante insatisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo ao meacutetodo estrutural-geneacutetico e isso apesar de suas inquestionaacuteveis
contribuiccedilotildees
Conforme Gueacuteroult uma leitura seacuteria de qualquer filosofia deve
abandonar antes de tudo os ldquojogos de reflexatildeordquo que se esquecem de
subordinar a compreensatildeo agrave explicaccedilatildeo Tendo por referecircncia Victor Delbos
o filoacutesofo procura fugir das ilusotildees que invadem todo aquele que pretende
compreender uma filosofia prescindindo da (ex)-plicaccedilatildeo de um exerciacutecio
racional de ldquodesdobramentosrdquo de ideias Compreendendo apenas a si mesmo
o leitor natildeo tem outro destino senatildeo o de se tornar uma viacutetima da ldquofantasiardquo
deixando o entendimento exilado em algum caacutercere distante Pelo contraacuterio
longe do vocirco de Iacutecaro o leitor deve se prender ou melhor se deixar prender
pelas ldquoredes estreitas de um textordquo135 Ora tenhamos pelo pensamento o
devido respeito natildeo eacute ele um ldquomonumentordquo semelhante ao pensador de
Rodin a uma fortaleza agrave la Vauban Frente ao monumento pouco importam
as luzes que na histoacuteria jaacute o iluminaram Pouco importa a histoacuteria a
recomendaccedilatildeo de Descartes eacute justamente que fechemos o livro de histoacuteria
caso ela nos ldquodesencorajerdquo136 Eacute preciso abandonar toda ldquoteoria romanceadardquo
que tenha por vista a ldquocompreensatildeordquo como procedimento de leitura filosoacutefica
Como deixar de ser uma mariposa que apenas nas noites de veratildeo encontra
a verdade por acaso137 A resposta de Gueacuteroult eacute direta centremo-nos nas
estruturas arquitetocircnicas que constituem um texto O que isto significa
135 Movimento que se expressa tatildeo bem pelo verbo francecircs srsquoempieacuteger na ideia de um ldquoenvolvimento reciacuteprocordquo 136 ldquoLa veacuteriteacute historique est ce qursquoelle est Il faut fermer les livres drsquohistoire si elle vous rebute On se gardera en tout cas de la travestir pour la rendre plaisante Crsquoest le conseil que Descartes nous donne pour toutes les espegraveces de veacuteriteacute y compris celles qui nous concernent nous-mecircmes lsquoJe nrsquoapprouve point qursquoon tacircche agrave se tromper en se repaissant de fausse imaginations Crsquoest pourquoi voyant que crsquoest une plus grande perfection de connaicirctre la veacuteriteacute encore mecircme qursquoelle soit agrave notre deacutesavantage que de lrsquoignorer jrsquoavoue qursquoil vaut mieux ecirctre moins gai et avoir plus de connaissance Aussi nrsquoest-ce pas toujours lorsqursquoon a le plus de gaicircteacute qursquoon a lrsquoesprit plus satisfait au contraire les grandes joies sont ordinairement mornes et seacuterieuses et il nrsquoy a que les meacutediocres et passagegraveres qui soient accompagneacutees du risrsquordquo (GUEacuteROULT 1968 p 13) 137 ldquoIl est possible en effet de srsquoimaginer comprendre sans expliquer lorsque croyant comprendre autrui on ne fait que se comprendre soi-mecircme Cette illusion ne manque pas
243
O texto eacute sobretudo constituiacutedo por uma rede precisa de um
rigoroso encadeamento de ideias Nada mais distante da filosofia pensa
Gueacuteroult que o esquecimento do texto que a certeza de que o ldquodemocircnio da
filosofia natildeo faz caso do textordquo Ora como isto eacute possiacutevel Neste momento o
filoacutesofo natildeo deixa de lanccedilar uma linha do Fausto Ich Bin der Geist der stets
verneint138 O que eacute um espiacuterito O que eacute o ldquodemocircniordquo da Filosofia Na fala
de Mefistoacutefeles Gueacuteroult vislumbra a ilusatildeo e o deliacuterio do modo como os
filoacutesofos satildeo geralmente lidos Se a Filosofia tem algum democircnio com
certeza ele natildeo nega o texto ele natildeo eacute um fantasma enganador como o de
Goethe A Filosofia natildeo se ilude com fumaccedilas natildeo gosta de ldquojogosrdquo natildeo se
afirma por aquilo que ela natildeo eacute quer dizer pelo seu contraacuterio ou por sua
negaccedilatildeo O filoacutesofo natildeo frequenta o Oraacuteculo de Delfos Se Gueacuteroult
descrevesse o ldquodemocircniordquo da Filosofia certamente ele deixaria de lado as
sacerdotisas do Templo de Apolo Talvez diria que ousemos afirmar ldquoo
democircnio da filosofia natildeo faz caso da sibilardquo O texto natildeo exige para ser
decifrado nada menos do que uma teacutecnica que o filoacutesofo gentilmente nos
oferece a) a criacutetica propriamente dita b) a anaacutelise das estruturas
(GUEacuteROULT 1968 p 10)
Longe dos ldquoardisrdquo da interpretaccedilatildeo natildeo nos espanta que
Gueacuteroult se vanglorie do abandono do ldquotemperamento do inteacuterpreterdquo da
ldquosituaccedilatildeo existencialrdquo No entanto haacute um caso em que a ldquointerpretaccedilatildeo eacute
vaacutelidardquo quando desejamos conhecer ldquoreaccedilotildees pessoaisrdquo de um grande
pensador Nos outros casos qualquer incompatibilidade de interpretaccedilatildeo
deve ser entendida como um erro pois como nos ensina a Regula X ldquotodas
as vezes que dois homens versam um julgamento contraacuterio sobre a mesma
de naicirctre lorsque la fantasie lrsquoemporte sur lrsquoentendement On satisfait alors agrave une imagination vive et impatiente qui plutocirct que de srsquoempieacuteger dans les mailles eacutetroites drsquoun texte trouve en celui-ci lrsquooccasion de prendre librement son vol quitte agrave revenir de temps en temps se percher sur des reacutefeacuterences piqueacutees au bas de pages Ces geacuteneacutereuses effusions qui procegravedent par illuminations plutocirct que par stricte analyse peuvent sans doute rencontrer ccedilagrave et lagrave quelque veacuteriteacute mais comme par une heureuse fortune tel le papillon de nuit qui vient herteur par harsard le globe lumineux autour duquel il tourne Si elles peuvent procurer le sentiment du lsquocomprendrersquo crsquoest au profit drsquoune doctrine romanceacutee ougrave le roman impose agrave la doctrine des perspectives et un climat eacutetrangersrdquo (GUEacuteROULT 1968 p 9) 138 ldquoEu sou o espiacuterito que negardquo
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coisa eacute certo que um dos dois se engana Aleacutem disso nenhum dos dois
possui a verdade pois se houvesse uma visatildeo clara e niacutetida poderia expocirc-la
a seu adversaacuterio de tal modo que acabaria por forccedilar sua convicccedilatildeordquo
(GUEacuteROULT 1968 p 10) O proacuteprio Gueacuteroult nota a pouca probabilidade
desta regra pois sabe das artimanhas da imaginaccedilatildeo frente o entendimento
Como resolver este problema Abandonando a preocupaccedilatildeo pela
ldquoexclusividade da verdaderdquo para pensar na ldquoaplicaccedilatildeo do meacutetodordquo Neste
movimento todavia Gueacuteroult esquece-se de pensar algo significativo a
incursatildeo para o meacutetodo resolve o problema da verdade A essa indagaccedilatildeo
talvez Gueacuteroult nos lembre do significado na cadeia das razotildees do Malin
Geacutenie Essa pergunta nesse momento pouco importa agrave arquitetocircnica do
texto O importante eacute que destas observaccedilotildees foi possiacutevel encontrar uma
ldquoanaacutelise particularmente necessaacuteriardquo para se ler Descartes e ldquorecomendaacutevelrdquo
a toda e qualquer obra filosoacutefica
Seguindo as recomendaccedilotildees de Descartes natildeo deixaremos de
entendecirc-lo de entendecirc-lo como ele gostaria de ser entendido honrosamente
por meio de um rationum nexus de um encadeamento racional totalmente
distante do non-sens da sucessatildeo biograacutefica da simples sequecircncia das
mateacuterias de temas e problemaacuteticas parciais Seguindo a ordem das razotildees eacute
possiacutevel explicar com exatidatildeo o pensamento cartesiano o pensamento
que como um monumento oferece ao entendimento a capacidade de
vislumbrar sua eternidade A cadeia das razotildees sabe muito bem acorrentar
as ideias que constituem a arquitetocircnica de um pensamento Com a
dignidade de quem deixa de ser como a Obra de Arte ldquosimples possibilidade
material de agir sobre a sensibilidade esteacutetica do sujeitordquo (GUEacuteROULT 1968
p 11) o pensamento resiste agraves injuacuterias assim como o pensador de Rodin a
toda leitura ldquoneuroacuteticardquo que possa acusaacute-lo de ansiedade depressatildeo ou
qualquer outra psicastenia A psicologia de Janet como toda psicologia natildeo
tem espaccedilo no gabinete de um filoacutesofo seacuterio que natildeo se deixa levar por
esvoaccedilantes deliacuterios Uma explicaccedilatildeo filosoacutefica portanto deve estar fechada
hermeticamente a toda leitura que se espraie pelo psicoloacutegico do mesmo
modo que natildeo se deve deixar iludir pela Histoacuteria mesmo ela no intuito de se
fazer ldquoapraziacutevelrdquo tenha sido travestida
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Para o autor de Descartes selon lrdquoordre des raisons a criacutetica
propriamente dita se faz presente nas obras de Gilson Gouhier Laporte
dentre outros Poreacutem a anaacutelise das estruturas segundo ele apesar dos
esforccedilos de Brunschvicg eacute algo ainda por fazer algo que o seu livro procura
inaugurar apesar do despretensioso desejo de natildeo se prender agrave hybris da
ldquoinovaccedilatildeordquo Ler uma filosofia insiste Gueacuteroult natildeo eacute separar o ldquojoio do trigordquo
buscar o que haacute de verdadeiro em uma doutrina pensada per si frente agrave sua
recepccedilatildeo nas ciecircncias O segredo estaacute na anaacutelise objetiva das estruturas
Este procedimento no entanto natildeo seria vaacutelido apenas para Descartes O
filoacutesofo eacute enfaacutetico ao afirmar que ldquoa descoberta de tais estruturas eacute capital
para o estudo de toda filosofia pois eacute por elas que se constitui seu
monumento a tiacutetulo de filosofia eacute por oposiccedilatildeo agrave faacutebula ao poema agrave
elevaccedilatildeo espiritual ou miacutestica agrave teoria cientiacutefica geral ou agraves opiniotildees
metafiacutesicasrdquo (GUEacuteROULT 1968 p 10) Eacute certo que haacute na aplicaccedilatildeo desta
teacutecnica especificidades proacuteprias agrave leitura do pensamento cartesiano no
entanto eacute inegaacutevel que o historiador do pensamento vecirc neste procedimento
um modelo de se fazer Histoacuteria da Filosofia Ler um filoacutesofo eacute antes de tudo
descobrir as estruturas demonstrativas que satildeo dadas atraveacutes de uma
combinaccedilatildeo de meios loacutegicos e arquitetocircnicos Aqui longe de pensar que
haveria entre Filosofia e Obra de Arte uma arquitetocircnica comum Ao
contraacuterio da arquitetocircnica da Obra de Arte a da Filosofia natildeo afeta a nossa
sensibilidade natildeo afeta o sujeito mas apenas exige um consentimento do
Juiacutezo O leitor de filosofia natildeo tem outro papel senatildeo o de ser uma instacircncia
ratificadora Eacute neste espiacuterito que conforme Gueacuteroult devemos ler Descartes
Como todavia alcanccedilar estas estruturas Seguindo as recomendaccedilotildees
diretas ou indiretas do proacuteprio autor lendo-o como ele gostaria de ser lido
Neste caso seguindo um preceito cartesiano
Na aproximaccedilatildeo das estruturas arquitetocircnicas de Descartes
Gueacuteroult se inspira em algumas indicaccedilotildees que o filoacutesofo do seacuteculo XVII dera
sobre como melhor extrair o que haacute de grandioso nas obras dos ldquogecircnios
superioresrdquo Trata-se de cartas endereccediladas a Voeumlt a Mersenne e a
Eacutelisabeth em trechos das Meditationes das Regulaelig dos Principes e do
Discours de la Meacutethode Embora a Histoacuteria da Filosofia tenha sido
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excomungada pelo Tribunal da Razatildeo Cartesiana Descartes daacute algumas
diretrizes nestas obras de como ler sua filosofia Natildeo se explica uma
filosofia por fragmentos seguindo a ldquoordem das mateacuteriasrdquo139 mas a partir do
seu todo Nada de ldquorecortesrdquo ou como diraacute o Prefaacutecio das Meditationes nada
de ldquoepilogar sobre o textordquo nada de se descuidar da seacuterie e do nexo das
razotildees prendendo-se em partes soltas ldquoin singulas tantum clausulasrdquo Agindo
por ldquorecortesrdquo nega-se a exatidatildeo exigida por uma explicaccedilatildeo seacuteria ofende-
se a proacutepria loacutegica do pensamento fazendo com que possam ser extraiacutedas
afirmaccedilotildees contraacuterias do seio de uma mesma filosofia comete-se o mesmo
crime pelo qual os sofistas foram mal-vistos pela tradiccedilatildeo e a razatildeo medieval
se tornara uma pedra salgada a insidiosa maacutequina da dialeacutetica
Haacute pensa Gueacuteroult uma dupla exigecircncia ou um duplo princiacutepio
em Descartes que emerge de uma ldquoideia seminalrdquo ldquo[] o saber tem limites
intransponiacuteveis fundados naqueles de nossa inteligecircncia mas que no
interior desses limites a certeza eacute inteirardquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 15) A
partir desta maacutexima emerge um princiacutepio que se faz notar nas Regulaelig e
outro que se articula melhor nas Meditationes Enquanto o primeiro eacute
filosoacutefico o segundo eacute metodoloacutegico O princiacutepio filosoacutefico se refere a um
ldquoprimado da reflexatildeo sobre sirdquo a um exame dos limites e do alcance do
entendimento O princiacutepio metodoloacutegico refere-se agrave duacutevida hiperboacutelica de
Descartes que podendo duvidar de tudo natildeo lhe eacute permitido duvidar da
razatildeo humana No uso da duacutevida como meacutetodo Descartes alcanccedila o Cogito
o espiacuterito visto que como professa a ldquoSegunda Meditaccedilatildeordquo ldquoo Cogito eacute o
primeiro de nossos conhecimentos o espiacuterito eacute mais faacutecil de conhecer que o
corpo pois o espiacuterito se conhece sem o corpo mas o corpo natildeo se conhece
sem o espiacuterito []rdquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 16) Nesta articulaccedilatildeo do
139 Aqui poreacutem faz-se necessaacuterio distinguir entre uma ldquoordem das razotildeesrdquo a qual Descartes se refere e uma ldquoordem das mateacuteriasrdquo que ele nega radicalmente A ldquoordem das mateacuteriasrdquo eacute caracterizada por ser convencional e por tratar cada mateacuteria como um todo por se prender a aspectos e temas de um determinado pensamento Pelo contraacuterio a ldquoordem das razotildeesrdquo eacute marcada pela necessidade cada mateacuteria ou tema tem sentido apenas se relacionados com outros se ligados entre si a ponto de constituiacuterem uma cadeia uma corrente na qual cada componente tem um lugar especiacutefico e um papel reservado Assim raciocinando por essa ordem Descartes pode organizar a cadeia de modo a seguir sempre no que se refere agraves ideias a faciolioribus ad difficiliora
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pensamento cartesiano Gueacuteroult vecirc a abertura da ldquoera do idealismo
modernordquo e a inversatildeo do ldquoponto de vista escolaacutesticordquo (GUEacuteROULT 1968 v
1 p 16)
Todavia o importante no que foi dito como parece assinalar
Gueacuteroult eacute a preocupaccedilatildeo cartesiana em demonstrar a unidade da sapientia
humana o Cogito os limites do entendimento e o papel da duacutevida O
reconhecimento de uma ligaccedilatildeo entre ideias fundamentais do pensamento
cartesiano significa o reconhecimento da ldquounidade da continuidade e do
rigor racionaisrdquo que constituem o que eacute proacuteprio da filosofia de Descartes O
importante eacute perceber que
O esforccedilo do cartesianismo se engaja portanto desde o comeccedilo para a constituiccedilatildeo de um sistema total de saber certo ao mesmo tempo metafiacutesico e cientiacutefico sistema fundamentalmente diferente do sistema aristoteacutelico visto que inteiramente imanente agrave certeza matemaacutetica envolvida no intelecto claro e distinto mas ao menos total e mais estrito ainda em sua exigecircncia de rigor absoluto [] Nada mais sistemaacutetico para Descartes que sua doutrina Eacute para ele um uacutenico bloco de certeza sem fissura onde tudo estaacute ligado a tal ponto que nenhuma verdade pode ser ausentada sem que o conjunto desabe ldquoEu vejo que se engana facilmente em relaccedilatildeo agraves coisas que eu escrevi pois a verdade sendo indivisiacutevel a menor coisa que se retire dela ou que se acrescenta a ela a falsificardquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 18-9)
Ora qual eacute o cerne entatildeo do pensamento cartesiano A verdade
eacute um saber indiviso assemelha-se agrave luz que apesar de iluminar objetos
diferentes permanece a mesma Como fazer com que a filosofia se adeacuteque a
esta compreensatildeo de verdade Seguindo os passos da Matemaacutetica
tornando-se um ldquouacutenico e mesmo bloco de certezardquo ligando-se estritamente a
cadeias de ideias que natildeo deixem de seguir uma ordem a ordem das razotildees
A indivisibilidade da verdade exige uma reforma do modo de se fazer
filosofia agora voltada para o cumprimento de uma ordem140 O que isto
quer dizer O proacuteprio Descartes nos responde ldquoa ordem consiste nisto
140 Neste sentido conclui Gueacuteroult ldquola preacutecise restitution de lrsquoordre permettra de fixer non moins preacuteciseacutement la signification profonde de la doctrine et en deacuteceacutelera des aspects souvent ignoreacutes Notre intention toutefois nrsquoa pas de faire agrave tout prix du nouveau mais de faire de lrsquoexact Le banal pour nous vaut mieux que lrsquoineacutedit si lrsquoun est vrai et autre fauxrdquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 13)
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somente que as coisas que satildeo propostas primeiras devem ser conhecidas
sem a ajuda das seguintes e que as seguintes devem estar dispostas de tal
modo que elas sejam demonstradas pelas uacutenicas coisas que as precedemrdquo
(DESCARTES 1996 l p 121 ndash IIa Obj) A doutrina cartesiana segundo
Gueacuteroult natildeo eacute outra coisa senatildeo um bloco de certeza que se constitui por
um encadeamento de verdades segundo a ordem (GUEacuteROULT 1968 v 1 p
20) A partir desta descriccedilatildeo como devemos ldquoexplicarrdquo a filosofia cartesiana
e fazendo dela um ldquomodelordquo de leitura outras filosofias tambeacutem O que isto
implica Uma leitura geograacutefica ndash situar onde uma ideia se encontra na
cadeia das razotildees ndash e estatiacutestica ndash apresentar a quantidade de ocorrecircncias de
cada ideia ndash da ldquoexplicaccedilatildeordquo filosoacutefica Eacute preciso seguir a ordem entender
porque uma ideia se encontra nesta ou naquela ldquoposiccedilatildeordquo do encadeamento
antes ou depois Cada mateacuteria se encontra posicionada na cadeia das
razotildees de modo ldquonecessaacuteriordquo Sendo assim natildeo haacute como criticar uma ideia
que natildeo fora anteriormente explicitada Ligados matematicamente os termos
natildeo podem ser inquiridos por algo que lhes seja ldquoestranhordquo Se A foi dito
antes de B A eacute condiccedilatildeo de B e pelo jeito condiccedilatildeo suficiente e necessaacuteria
Tarefa da Histoacuteria da Filosofia procurar saber o porquecirc do posicionamento
de uma ideia dentre outras no conjunto de um pensamento filosoacutefico A
verdade do pensamento encontra-se apenas nele mesmo no interior da
corrente das razotildees fazendo com que a referecircncia a questotildees exteriores
como a experiecircncia natildeo passe de non-sens A experiecircncia serve apenas para
verificar hipoacuteteses e princiacutepios previamente postulados pela razatildeo e natildeo
para sugeri-los
Para Descartes a ordem pode por sua vez subdividir-se em
duas a saber a ldquoordem sinteacuteticardquo e a ldquoordem analiacuteticardquo Assim o Discours de
la Meacutethode e as Meditationes seguem a ldquoordem analiacuteticardquo ao passo que os
Principes seguem a ldquoordem sinteacuteticardquo Qual a diferenccedila das duas ordens Na
ldquoordem analiacuteticardquo natildeo apenas haacute a ldquoapresentaccedilatildeordquo de um determinado
raciociacutenio mas a ldquodemonstraccedilatildeordquo de seu meacutetodo do modo pelo qual ele foi
elaborado Jaacute na ldquoordem sinteacuteticardquo haacute uma apresentaccedilatildeo simultacircnea do
raciociacutenio sem referecircncias a justificativas ou explicitaccedilotildees que conduziram
ateacute a conclusatildeo do argumento Sem duacutevida como ele mesmo confirmaraacute