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    Prólogo

     Excetuando-se Deus, Leonardo é certamente o artista sobre o qual mais se escreveu.DANIEL ARASSE[

    Kenneth Clark [2], um dos maiores especialistas em Leonardo da Vinci, emitiu a ideiabastante perspicaz de que a cada geração esse espantoso personagem deveria ser

    reinterpretado.Quando alguém é o símbolo personificado da pintura, da beleza e mesmo do gênio, devse adaptar ao gosto de cada época.

    Quinhentos anos mais tarde, Da Vinci teve tempo de assumir um grande número depersonalidades. Seus biógrafos sucessivos[3] o reinventaram segundo a moda de cada épocaEle mesmo embaralhou as pistas e contribuiu bastante para a própria lenda.

    Existem outras grandes figuras na história que tenham sofrido flutuações biográficascomparáveis? Certamente algumas, dentre as quais aquelas consideradas como gêniosuniversais... Mas ainda assim Da Vinci continua sendo o personagem mais complexo e maiscontrovertido. Não se passa meio século sem que haja uma nova revisão da sua vida e atémesmo das suas obras, cujo conceito evolui radicalmente segundo a época. Como devemosnos situar nessa floresta de contradições?

    Dois métodos são aqui utilizados simultaneamente: o confronto e a íntima convicção. Éque parece mais justo, levando em conta a época em que ele viveu: Florença e suaefervescência, algumas pequenas revoluções próprias ao Renascimento, como a emergênciado estatuto do artista, as pestes, algumas viagens comprovadas, algumas referênciasbiográficas devidamente registradas (contratos, processos, nascimentos, mortes...), algumas

    ínfimas certezas; enfim, a verdadeira mudança de perspectiva operada por Leonardo, novoponto de vista sobre o mundo no qual, no centro do motivo, não é mais Deus que prima, mas homem. Quanto ao resto, há que selecionar entre as diversas versões aquela que“historicamente” par ece a mais provável. E só aceitar as que coincidem pelo menos trêsvezes.

    Por exemplo, e para começar pelo fim, o famoso quadro de Ingres, no qual, no instanteda sua morte, Francisco I sustenta Leonardo nos braços: nesse dia preciso em que Leonardomorre, o rei está em Saint-Germain-en-Laye cumprindo uma obrigação real e paterna, obatizado do seu segundo filho. A inverossimilhança é total... O melhor, portanto, é ater-se àvida de Leonardo, ao que dela se sabe e a algumas raras certezas.

    Como a do mais humilde dos homens, ela deve começar pelo nascimento, continuar pelcurso da existência e terminar pela morte. Só que, no caso de Leonardo, as dificuldadessurgem já na origem. Ele nasce em segredo, e não se sabe onde. Em Vinci, em Anchiano? Nacasa da mãe, do pai?

    Em compensação, a data do seu batismo é consignada com solenidade no “livro daslembranças”[4] do seu avô paterno, Antonio. As crianças eram geralmente batizadas um diaapós o nascimento. Portanto, ele teria nascido em 15 de abril de 1452.

    A seguir, nada de preciso até os doze, catorze ou dezesseis anos.

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    Após a morte do avô, ou da primeira esposa do pai – que de certa forma cuidava deleem Vinci –, ser  Piero, seu pai, o faz ir a Florença, onde passará cerca de vinte anos. Lá eleconhece sucessos magníficos e fracassos espetaculares. Não obtém o reconhecimento que lheé devido, tanto a seus olhos como aos olhos dos seus pares. Alguns problemas com a justiçamancham gravemente sua reputação. Ele prefere fugir, tentar a sorte na Lombardia, junto aLudovico Sforza, duque de Milão. Ali também ficará cerca de vinte anos, oscilando, como emFlorença, entre êxitos e fracassos igualmente retumbantes.

    A fase final de sua vida, depois de Milão, por mais uns vinte anos, se passa na errânciae na dependência. Perto do fim teria mesmo sofrido o assédio da miséria, não tivesse osoberano da França se afeiçoado por ele e lhe oferecido a hospitalidade real na Touraine.

    Onde Leonardo está enterrado? Não há túmulo, nem ossuário. A Revolução Francesa e tempo se encarregaram de dispersar o pouco de seus restos mortais.

    De forma que esse homem, célebre desde sua juventude até hoje, ou seja, nos cincoséculos subsequentes à sua morte, não repousa em parte alguma. Mais vivo do que nunca,continua sendo um mito em contínua reelaboração. Como se desde o seu desaparecimento eletivesse aperfeiçoado a lenda que já sentira um grande prazer em cultivar enquanto vivia.

    Seu nome, no mundo inteiro sinônimo de beleza, arte e diletantismo, magia e graça,absoluto e gênio, faz pensar na medida do mistério que o envolve.

    Pois o mais célebre pintor do universo deixou no mundo apenas uma dúzia de quadrosde sua autoria. Inacabados ou danificados... O maior escultor da humanidade não legou àposteridade nenhum testemunho do seu gênio... O melhor arquiteto, tampouco... O engenheiromilitar que se orgulhava de ter descoberto o maior número de meios técnicos capazes deganhar todas as guerras e de “matar a guerra”[5]1, como dizia, também nada deixou... Quantoao imenso cientista, o mais prodigioso inventor de máquinas que o universo jamais conheceu

    seus famosos Cadernos só foram redescobertos muito depois do seu tempo, quando chegou ahora de inventar “suas” esquecidas descobertas... Nenhum historiador poderia afirmar seriamente que os desenhos de suas maravilhosas

    máquinas não são simples citações, cópias bem informadas de invenções que pairavam no arnas preocupações da época. E, se foram invenções dele, como teria podido realizá-las? Osmateriais indispensáveis à sua construção ainda não existiam.

    Recentemente em Madri, em junho de 2000, num caderno autenticado como de autoria dLeonardo, descobriu-se o plano detalhado de um paraquedas piramidal, que permaneceu emsegredo até o século XXI. Um rico mecenas convence um paraquedista inglês, AdrianNicholas, a testá-lo, saltando de uma altura de três mil metros no Parque Nacional Kruger, naÁfrica do Sul, equipado com o aparelho voador construído escrupulosamente segundo asindicações de Leonardo, com a única exceção de que o tecido é de algodão e não de linho. Ovelame possui uma armação de madeira de pinho e pesa cerca de cem quilos, quarenta vezespeso dos paraquedas atuais. Mesmo assim, a descida se efetua sem problemas. Os primeirosdois mil metros são percorridos em cinco minutos, ou seja, muito lentamente. Portanto, esseparaquedas “funciona” de forma perfeita! Mas é preciso abrir um paraquedas moderno para última parte da queda. O modelo de Leonardo não é muito flexível e, sobretudo, é pesado

    demais para não se abater sobre o paraquedista na chegada, com o risco de matá-lo.

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    Algum dia saberemos se essas “invenções” guardadas por quatro ou cinco séculos,anotadas nos Cadernos, são apenas dele? Seria ele o autor só de algumas? Quais? Todos osartistas, na época, se copiam mutuamente, anotam a ideia, o projeto, o plano e mesmo arealização de seus pares quando os julgam notáveis. De que serve nomear o autor? A invençãé que conta, é que faz sonhar. Com muita frequência, quem reproduz o sonho de determinadamáquina não é seu criador, mas seu admirador e, no caso de Leonardo, talvez seuaperfeiçoador. Não sabemos, e certamente nunca saberemos, por quem essas maravilhosas

    máquinas foram concebidas. Da bombarda à bicicleta, do submarino ao paraquedas, do aviãoao escafandro, todas essas inovações da nossa modernidade na verdade prescindiram do seugênio para vir ao mundo. Eruditos já as haviam imaginado antes dele. Roger Bacon descrevequase todas as máquinas cuja invenção se atribui a Leonardo. E, mesmo se esses planosextraordinários lhe pertencessem, ele não teria tido nenhuma influência sobre o mundocientífico. Mantidos em segredo nos cadernos que só começam a ser descobertos em 1880 eque certamente aguardam novas descobertas, seus sonhos ficaram no estado de sonho, seusprojetos são letra morta. Ele não contribuiu, nem de perto nem de longe, para os progressos dhumanidade.

    Esse famoso Leonardo não teria então trazido nada ao mundo? Apenas doze quadros, emsua maioria inacabados e nem todos excelentes. Talvez treze... Dois afrescos muitodanificados.

    O maior filósofo da terra, no dizer de Francisco I, também não deixou um único tratadonão conseguiu acabar uma única das obras – mais de quarenta[6] projetadas – que a vidainteira sonhou publicar.

    O músico, unanimemente louvado por seus pares, improvisava para a felicidade detodos, como reconhecem os contemporâneos, mas nem ele nem ninguém nunca se deu o

    trabalho de traçar a menor nota numa pauta. Nenhuma de suas composições chegou até nós.Composições que mesmo Josquin des Prés, o mais talentoso músico do Renascimento, julga,no entanto, da maior originalidade.

    Também não há nenhum vestígio dos insólitos instrumentos de música que lhegranjearam a glória na corte do duque de Milão. Nenhum desses objetos, tão enaltecidos pelocronistas da época, chegou até nós.

    Quanto ao Leonardo poeta, tampouco restou uma quadra, um esboço de versos. Emtroca, uma quantidade de adivinhas de extrema crueldade, de chistes licenciosos ou sibilinosalém de terríveis enigmas, em geral edificantes ou mesmo moralizadores...

    Sabe-se hoje o que basicamente lhe trouxe a glória e o sucesso aos olhos doscontemporâneos, e que lhe assegurou, se não a fortuna, ao menos a sobrevivência material: foseu talento único de encenador, de organizador de festas geralmente ditas feéricas, quealegraram as horas das cortes nas quais brilhou. Assim, ele foi antes de tudo um grande, umimenso artista do efêmero, de uma incrível intrepidez intelectual.

    Mas, se buscarmos vestígios, só resta voltar à pintura, único domínio no qual quase[7]não existem dúvidas.

    O que dizer, enfim, da sua descendência pictórica? Discípulos, alunos, epígonos... Por

    decência, prefere-se não citar ninguém. Seus “seguidores” conduzem diretamente à

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    idealização de mau gosto. Eles deixaram, no melhor dos casos, apenas obras sem a menorimaginação.

    Há cinco séculos, no entanto, Leonardo continua sendo o mais famoso dos pintores, omais louvado dos artistas! Isso nos leva a crer que a principal de suas obras foi sua própriavida. E certamente ela foi excepcional. O que hoje ainda não sabemos dele talvez nãocoubesse em vários grandes volumes. Basta lembrar que sua data de nascimento era aindadesconhecida em 1940! O mesmo vale para o caso Saltarelli[8], que, no imediato pós-guerra

    nem sempre era mencionado...Célebre muito cedo, e mesmo celebrado, incríveis lendas[9] contraditórias se elaboramdurante sua vida e depois de sua morte. Embora os séculos XVII e XVIII se interessem poucopor ele, o XIX volta a homenageá-lo. Objeto de uma imensa curiosidade que sempre provocodesconfiança, maledicência e calúnias, como se todos tivessem uma boa razão para desconfidele e admirá-lo, Leonardo não conhece período de purgatório.

    É verdade que ele é “super”, como dizem hoje as crianças: superbonito, superengraçadsupergentil, superinteligente, supertalentoso, superforte fisicamente, superdotado paradiversas coisas, superpolivalente, supersimpático... Supergenial. E supervadio! Não obstanteessa reputação única, ele se debate a vida inteira com a miséria que sempre o ameaça. Precismendigar sua existência ao mesmo tempo em que brilha com uma reputação sulfurosa, às vezdiabólica. Em tudo é reconhecido como o melhor. Em pintura, claro, mas também em desenhoem literatura, em música, em canto, em matemática, em anatomia, em botânica, em escultura,em arte militar, em geometria, em arquitetura... Mesmo em poesia – ele, que não escreveu umúnico verso!

    Seus desenhos, por si só, incontestavelmente asseguram uma posteridade, mas em suamaior parte só foram descobertos, como os Cadernos no seio dos quais dormiam, no final do

    século XVIII. Até então sua reputação parece das mais infundadas. E mesmo assim ela seespalha, voa, em toda parte o precede, e Leonardo tem a maior dificuldade do mundo paraestar à altura dela. Muitas vezes, para não decepcionar, ele foge.

    Pouco ou mesmo nenhum viático para atravessar os séculos, ainda mais considerando atotal ausência do que lhe assegurou a maior reputação e a glória: suas encenações, sua arte dfesta. Poucos relatos desses momentos de alegria coletiva saudados nas crônicas, exceto ascrônicas, justamente. A obra da vida de Leonardo, sua mais bela encenação, sua maisgrandiosa festa, é sua vida, seu senso da felicidade, da festa e dos outros.

    Os cronistas[10] não deixaram de relatar essa vida, de imaginá-la, de embelezá-la – seque isso é possível –, de transformá-la em lenda, mitificando-a de todas as maneiras.

    [1] Daniel Arasse, 1944-2003, historiador da arte e italianófilo, “italianomaníaco”, ele dizia. O melhor especialista emRenascimento italiano, sobretudo no que se refere a Lippi e Da Vinci.

    [2] Autor de uma conhecida biografia de Leonardo da Vinci (editada em francês por Le Livre de Poche, 1967, e LibrairieGénérale Française, 2005; editada em português pela Ediouro, 2002).

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    [3] Sem falar de inúmeros romancistas que se ocuparam do tema.

    [4] Caderno mantido nas famílias ricas e médias, raramente entre os pobres, por várias gerações, registrando nascimentos emortes, estado do patrimônio e, em geral, qualquer mudança no interior da linhagem. Transformado a seguir num registronotarial.

    [5] Ver no final do volume as notas bibliográficas.

    [6] Ele fez uma lista dessas obras que não tiveram a chance de vir à luz.

    [7] De fato, no século XIX lhe foram atribuídos quadros cuja autoria lhe é atualmente negada, como é o caso de algumas obrque hoje se sabe serem de Caravaggio. Leonardo deixou tão poucos quadros que cada século achou que devia lhe imputarnovos, agora devolvidos a seus verdadeiros autores. Mas os progressos científicos de datação e de atribuição são tais que

    ninguém está protegido de novas revelações.[8] Trata-se da condenação por sodomia ligada ao jovem Iacopo Saltarelli, em consequência de uma delação feita no tamburo(cf. adiante nota de rodapé à p. 23).

    [9] “Ele é o mais forte assim como o mais belo. A força do seu espírito é imune à fraqueza do corpo”, ou ainda: “Com a mãodireita ele refreia um cavalo furioso, torce o badalo de um sino suspenso às muralhas, curva a ferradura de um cavalo como sfosse de chumbo, e essa mesma mão corre ágil e leve sobre as cordas da lira”, escreve Gabriel Séailles em  Léo de Vinci,l’artiste et le savant , Librairie académique Perrin, 1912.

    [10] Ver a bibliografia no final do volume, necessariamente sumária. Muitas obras esgotadas, muitas nunca traduzidas para ofrancês. O mundo inteiro apoderou-se de Leonardo e jamais o abandonou.

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    Primeira parte (1452-1480)

    INFÂNCIA

    Pode-se dizer que Leonardo da Vinci teve uma infância feliz? Pelos critérios do séculoXXI, seguramente não. Uma infância sem pai e com pouquíssima presença da mãe, quase sem

    autoridade e sem verdadeira escola, sem limites, sem imposições... Sem muito amor, mas, cocerteza, uma infância livre, uma infância selvagem, uma infância imensa. Numa paisagem quetece o pano de fundo dos sonhos de todo europeu do Sul, em meio a oliveiras plantadas desda Bíblia, vagando sob a árvore da civilização, acompanhado do canto das cigarras, do ruídodo vento nas folhas de figueiras e amendoeiras perfumadas, dos regatos que correm entre umcolina e outra, ele é o filho selvagem do campo da Toscana. Entre Siena, Pisa e Florença,Vinci e Anchiano, entre vinhedos e ciprestes, charnecas e matagais, ele percorre esse lugarcomo quem respira. Diante dele, a perder de vista, colinas onduladas, casas e esplanadas, ostroncos nítidos e negros dos pinheiros recortados sobre arcadas brancas, das oliveiras defolhas descoradas, dos carvalhos de folhagem estranhamente azulada, dos loureiros, dosciprestes em forma de lança...

    Leonardo é tão livre como os animais que vivem nessas paragens e que serão, durantetoda a sua vida, seus amigos. Seus primeiros e definitivos amigos. Nenhum o rechaça, ele amde imediato e loucamente o ser vivo em todas as suas formas. Formas vegetais, minerais,humanas, mas sobretudo animais. É o que o apaixona quando criança e que o apaixonará até fim da vida. A vida, justamente. Eis o que ele preza acima de tudo.

    A MÃEEm Anchiano, uma jovem servente de albergue, Catarina, é seduzida e engravidada por

    um jovem notário importante da cidade. É também rapidamente abandonada. Mas a famíliaVinci mostra alguma atenção por ela. Oito meses após o nascimento da criança que elacertamente conservou consigo, os Vinci lhe arranjam ou lhe compram um marido chamadoAccattabriga, apelido frequente entre os soldados e que significa “brigão”. Uma vez casadocom Catarina, ele passa a trabalhar como fabricante de cal, ou seja, explorando um forno apartir do calcário local a fim de produzir cal para argamassa, louças, adubo... A família

    paterna de Leonardo os instala em alguma parte para depois não ter mais de se preocupar comeles.Após o nascimento de Leonardo, Accattabriga faz seis filhos, um atrás do outro, na

    pobre Catarina. Ninguém sabe se outros morreram. Suas meias-irmãs se chamam Piera, MariAntonia, Lisabetta e Sandra; o único homem, Francesco, morrerá jovem, na guerra. Naverdade, Leonardo mal conhece esses irmãos por parte de mãe. Desde pequeno, é na casa doavô, em Vinci, que reside em companhia da avó Lucia e do tio Francesco. O pai e as tiaspaternas já vivem longe, em cidades grandes.

    A vida em Vinci é modesta, voluntariamente modesta. O avô Antonio optou pelo otium contra o negotium. A arte de viver em vez da arte de enriquecer. Uma vida de pequeno

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    proprietário rural. Dessa existência austera ele fez uma vida feliz. Sem despesas supérfluas. vida não se compra, como não se compra a alegria. O pomar é cercado do que em Vinci sechama de árvore-do-pão, um castanheiro toscano cuja farinha, quando o inverno se prolonga,alimenta homens e animais.

    Assim Leonardo nasce, por acaso, de uma ilusão de amor, do encontro fugaz de duaslinhas, uma proveniente da vida de estudo, a outra da vida bucólica. Será essa a explicação dsua saúde física e intelectual, feita de equilíbrio e força, resistência e argúcia?

    Mesmo sem ter sido desejada, a criança é aceita. Cresce sem coerções, a escola daaldeia não faz muitas exigências. Ali ensinam os fundamentos. O abaco[1] ministra um ensindito primário. Nesse povo de negociantes, todos devem aprender a comprar, vender, avaliar volume de uma jarra à primeira vista e multiplicar os benefícios. Leonardo é uma criançainteligente, assimila tudo o que lhe propõem, domina rapidamente os ensinamentos do abaco

     Nada parece tê-lo ferido ou traumatizado, como se diria hoje. Ele aprende a ler, aescrever, a calcular e certamente um pouco mais, sem nenhuma imposição. A prova é queconservou durante toda a vida a escrita especular dos canhotos não contrariados nemcorrigidos. Ninguém julgou conveniente ensinar-lhe a usar a mão direita.

    FAMÍLIA PATERNA

    Se as origens da mãe são ignoradas, a família paterna é há dois séculos conhecida eprestigiada em Vinci.[2] Traz o nome de suas terras e, por tradição, forma uma dinastia denotários. Esse ofício consiste então em estabelecer contratos, autenticar atas, mudanças depropriedade, assegurar a função de gerente, conselheiro financeiro e administrador defortunas. Permite agir por procuração, como mandatário ou supervisor de um comércio.Somente ser  Piero, o pai de Leonardo, pratica essa arte. O avô e seu segundo filho, Francescrenunciaram a ela para viver felizes sem fazer nada, contentando-se com seus bens. Só dequando em quando um contrato ou um processo rapidamente despachado força Antonio, o ava interromper sua meditativa partida de gamão. Mas o ritmo é logo retomado. E foi esse velhAntonio que declarou o nascimento do neto com alegria, orgulho e solenidade; foi ele que ofez batizar na ausência dos genitores e em plena Semana Santa. Neto bastardo, mas acolhidocom calor por esse avô, por ser o primeiro neto.

    Os historiadores ainda discutem se o nascimento de um bastardo criava ou não umgrande problema. Bastardos célebres ilustram a época (Alberti, Bórgia, Lippi...[3]). Mas

    certamente nunca é simples ser visto ou ver-se como ilegítimo. Apesar disso, tal ilegitimidadassegura a Leonardo uma marginalidade que o ajuda ou mesmo o força a emancipar-se dasconvenções sociais e familiares, conferindo-lhe uma primeira marca de talento. Da suadiferença, da qual não tarda a ter uma consciência aguda, ele faz uma força.

    O PAI

    Quatro anos antes do seu nascimento, o pai, ser  Piero, partiu em busca da glória e dafortuna na capital toscana. No ano em que nasce seu filho natural, ele desposa uma jovem de

    dezesseis anos, Albiera, bonita e muito bem dotada, que aos poucos será deixada em Vinci na

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    casa do pai. Como não consegue ter filhos, ela transfere seus carinhos a Leonardo, à espera ddia em que terá o seu. Porém, ela morrerá ao chegar esse dia. Teria sido ela que inspirou ainacreditável juventude da Sant’Ana, reflexo das estranhas relações de Leonardo com o triode mulheres – mãe, avó, madrasta – que cuidam dele?

     No ano seguinte à morte de sua primeira esposa, ser  Piero desposa outra mulher [4] igualmente jovem, igualmente bela e ainda mais rica. Ela também morrerá no parto, impedindo pai de Leonardo de ter um herdeiro legítimo. Durante 25 anos, o bastardo será seu filho

    único.Leonardo terá de se conformar em viver sem os pais, já que ambos não se importam comele. E, se o pai levou 25 anos até conseguir um herdeiro legítimo, não foi por falta detentativas. Suas duas primeiras mulheres morreram jovens, no parto. Mas a terceira, quandoele tem mais de cinquenta anos, lhe dá seis filhos. À morte desta, ele desposa uma quarta, qulhe dá outros seis rebentos!

    Leonardo vive então a infância cercado de mulheres muito belas e muito jovens às quaiprefere não se apegar, pois, assim que engravidam, morrem. Quanto à mãe, a duas colinas dedistância da casa do avô, ela vive grávida, entre recém-nascidos ou filhos natimortos, e sob dominação do marido colérico a quem foi dada.

     Não é preciso dizer que a criança selvagem constrói uma imagem da maternidade, se nperigosa – na época é comum a morte no parto –, ao menos repugnante. Os filhos tambémmorrem...

    Leonardo da Vinci não terá e nunca desejará ter filhos. Nos seus cadernos, declaraabertamente seu horror às mulheres parturientes, a essas maternidades obscenas, excessivas,assassinas. E o sexo feminino parece um sorvedouro nos seus desenhos pretensamenteanatômicos. Como diz André Chastel em seu Traité de peinture, Leonardo da Vinci demonstr

    uma “aversão condoída em relação ao modo de propagação da espécie”.Resta, límpida e luminosa, a imagem das mães eternamente jovens. Jovens por toda aeternidade. Ou porque elas morrem antes dos 24 anos, como suas duas primeiras madrastas,ou porque ele deve brutalmente deixá-las, como deixou a mãe, para “fazer a vida” na cidadegrande, onde recriará livremente em seus quadros a imagem maravilhosa e definitiva de umamadona de apenas vinte anos.

    Quando seu avô Antonio morre em 1464, Leonardo vai viver na casa do pai[5] e lácompletar os estudos, a fim de ter o mais cedo possível uma profissão.

    Depois de tantos lutos, esse desenraizamento deve ter sido brutal. Uma extirpação dainfância. Nas colinas perfumadas, duas mulheres jovens cuidaram do filho bastardo, além daavó, do avô e do jovem tio. Todos partilhavam com ele um amor imodesto pela vida. A únicaverdadeira herança de Leonardo será essa paixão pela natureza e pelo ser vivo.

    FLORENÇA

    A chegada em Florença é a despedida da liberdade, da natureza e da vida em estadoselvagem. É o fim da mãe a algumas colinas dali, das bonitas e doces madrastas, do terno avôe, principalmente, da experimentação de todas as formas de vida na natureza. Instalado na cado pai, a caminho de tornar-se um grande senhor, Leonardo é compelido a buscar rapidament

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    uma profissão. Como gosta de desenhar tudo o que vê, como gosta de observar e reproduzirminuciosamente, e como todos ao redor se alegram de contemplar seus desenhos, ele passa aintegrar o prestigioso ateliê de Andrea Verrocchio (Andrea di Cione, dito Verrocchio, “o olhexato”). É a melhor bottega de Florença, a mais polivalente, onde ele aprenderá todas asartes. Talvez com um pistolão do pai, mas os observadores pensam que seu simples talento lhserviu de salvo-conduto.

    Lá as pessoas se tratam de modo informal pelo nome, geralmente pelo sobrenome,

    estando as designações de messer , maestro ou padre reservadas a doutores, médicos, cônegomonges... E mesmo assim nem sempre. A igualdade reina na Toscana. O florentino vive numarepública e se orgulha de ter derrubado as hierarquias sociais. A riqueza ostentatória éseveramente punida.

    O burguês, como o artesão, vai beber na taverna, fala livremente, responde à altura,sempre atento às conversas políticas. E é maledicente! “Maledicente como um toscano”,dizem na Itália da época. A atmosfera é animada, vibrante, alegre, às vezes febril. Asrefeições de família ocorrem entre nove e dez da manhã, e outra pouco antes do anoitecer.Marido e mulher, irmãos e irmãs, amigos e companheiros comem no mesmo prato, bebem nomesmo copo – pão, “ervas”, doces e frutas. Carne só aos domingos. “Quando se mata umporco, é preciso dar chouriço ao vizinho senão ele se zanga”, lembra o adágio.

    O florentino vive ainda essencialmente fora de casa. A rua é a peça exterior da moradiaNo verão instala-se ali para jogar dados, xadrez... a multidão servindo de árbitro, o menorincidente provocando um pânico. Todos sabem tudo de todos.

    VERROCCHIO

    Andrea Verrocchio abre as portas do seu ateliê e certamente seu coração ao efeboLeonardo. É dele que conservamos a primeira descrição do “fenômeno”. Sim, um fenômeno,realmente. Pois, tão logo chega a Florença, o superlativo se apodera dele. O ditirambo osegue, o elogio o precede. Parece sobressair-se sobre todos os contemporâneos. Graça,beleza, talento, humor, inteligência, gentileza... O encanto segue seus passos, seu físico éelogiado por todos. Mesmo Vasari reconhece que ele é fora do comum. Outros falam de seustraços angélicos, de seus olhos claros, azuis ou verdes, ninguém sabe ao certo, de seus cabelloiros ou ruivos – optam pelo loiro veneziano. Uma carnação clara, uma pele magnífica.Corpo de efebo esguio. E, o que é notável na época, uma altura gigantesca: mais de um metro

    noventa.[6] Quanto à voz, é bela, com certeza, mas terrivelmente alta. Até mesmo superagudaE ele a utiliza como um instrumento magistralmente trabalhado. Sua gentileza é legendária; sehumor, irradiante. Sociável e bom companheiro, conquista na confraria dos pintores, artistas artesãos – assim são classificados os florentinos – uma sólida reputação de bon vivant.

    É inútil insistir sobre seu talento, ou melhor, seus talentos: há mais de cinco séculos omundo se encarrega disso.

    A CIDADE DOS MÉDICI

    A cidade que o acolhe por volta de 1465-1467 acaba de perder seu grande homem.

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    Cosme de Médici[7] é sucedido durante três anos por um filho um tanto apagado, Pedro, oGotoso, e logo em seguida por um neto, Lourenço, dito “erradamente” o Magnífico. Trata-sede uma tradução incorreta da palavra latina munificent , ou seja: magnífico significa aquiapenas “riquíssimo”.

    Por volta dos anos 1470, quando Leonardo chega, Florença é uma cidade de cinquentamil habitantes, cercada por onze quilômetros de muralhas, reforçada por oitenta torres devigia: em toda parte e o tempo todo, a guerra ameaça. Intramuros, há 108 igrejas, cinquenta

    iazze, 33 bancos, 23 palazzi, 84 botteghe, 83 fábricas de sedas. Mais um detalhe: osescultores em madeira são mais numerosos que os açougueiros! É realmente a cidade dosartesãos. Os pintores, na época, são só artesãos. O artista ainda está por nascer e Leonardocontribuirá para isso.

    A República toscana continua existindo, mas o poder é exercido despoticamente porLourenço de Médici, essa criança mimada, mal-educada e perdulária com o dinheiro públicoParadoxalmente, seus gastos suntuários não enriquecem os artistas; o Magnífico só recorre aeles para oferecer suas obras de presente ao papa, a quem envia algumas. Mas ele nuncaencomendará explicitamente algo a Leonardo.

     No entanto, a glória não tarda a visar o belo jovem e, com ela, o ciúme, a maledicênciaa delação... De acordo com uma denúncia no tamburo[8], Leonardo é acusado, assim comoalguns outros artistas e artesãos, de sodomia, estupro e outras práticas vergonhosas. Seria esa razão secreta pela qual Lourenço sempre recusará que Leonardo o represente fora deFlorença?

    Embora os contemporâneos nunca tenham duvidado, os biógrafos levarão cinco séculosantes de ousar revelar ao público a homossexualidade de Leonardo. Por muito tempopreferiram vê-lo casto, abstinente ou mesmo impotente. Alguns quase chegam a lhe atribuir

    aventuras femininas. O seu apego obsessivo em pintar e sobretudo em conservar A Giocondaseria um indício, sobretudo porque não se sabe de nenhum amante masculino. Mas houvevários e muito belos, avidamente desenhados e oficialmente (ou pelo menos publicamente)apresentados e sustentados por ele. Hoje se admite sua predileção masculina, com certezamuito intensa. A tamburazione (denúncia) dizia em parte a verdade quanto à natureza da suasexualidade.

    Ele é processado, e a cidade inteira se apaixona por esse caso mundano e popular aomesmo tempo.

    Leonardo, que começava a receber algumas encomendas importantes, como o retrato deGinevra Benci, herdeira de uma das mais célebres famílias da Toscana, já antevia um futuroradiante. No entanto, a tamburazione frustra seus projetos: ele deve desaparecer por doisanos. É provável que, para se fazer esquecer, ele tenha se recolhido em Vinci. Mas ninguémesquece um jovem tão belo, tão promissor, tão escandaloso. Ao retornar, a juventudeflorentina o festeja. Ele não é mais o melhor aluno de Verrocchio, mas seu igual. Já assinouobras com o mestre, e é reconhecido um anjo de sua autoria no Batismo de Cristo. Sem falarde algumas madonas assinadas pelo ateliê. Forçado pelas circunstâncias, ele põe-se atrabalhar por conta própria, abre uma bottega com seus melhores amigos do episódio do

    tamburo, oriundos do mesmo ateliê, e parte em busca de encomendas. Com a ajuda do pai,

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    notário de numerosas congregações, elas começam a chegar. Leonardo só precisa abaixar-separa juntá-las com desenvoltura. O ateliê executa, e Leonardo assina. O êxito é imediato nescolmeia que é Florença. As botteghe são como lojas polivalentes que reúnem todas as artesmanuais, nas quais as disciplinas não estão separadas; ao contrário, elas se misturamalegremente no entusiasmo do trabalho e das encomendas. Se a produção e a venda constituemo essencial da atividade das botteghe, junto com a formação e a aprendizagem dos alunos,elas são também viveiros de artistas. Lá se entra garzone, entre nove e catorze anos de idade

    e fica-se pelo menos seis anos, aprendendo a entalhar com estiletes, a preparar painéis, aaplicar colas e vernizes, a compor os gessos, a triturar a greda e os pigmentos de cor, segundsua natureza... Isso se estende por pelo menos dez anos.

    Locais tanto de produção quanto de comércio, lá se vendem, se encomendam ou serealizam obras de arte e de artesanato. Uma verdadeira “fábrica” na qual são produzidos osobjetos mais variados: sinos, portas, cofres de casamento, bandejas, estandartes... o queenvolve um número de técnicas imenso.

    A febre toscana quer adquirir tudo, possuir o mundo, conquistar a fortuna. Tudo o que amão do homem sabe fazer deve satisfazer a avidez dos toscanos.

    MESTRE VERROCCHIO[9]

    Em todas essas especialidades, Andrea Verrocchio é o maior. Sua técnica diversificadaé a verdadeira cultura dos ateliês, e ele se cercou sistematicamente dos melhores.Ghirlandaio, o Perugino, Lorenzo di Credi coabitam por um tempo com Leonardo. Osmelhores de uma geração, os melhores de uma época, os melhores do Renascimento. Ao ladoexistem outras botteghe, as de Botticelli, de Uccello, dos irmãos Pollaiolo, eles também osmelhores, à sua maneira. Talvez um pouco menos polivalentes. Todos são contemporâneos edentro do mesmo perímetro... Uma sorte ou um milagre. A emulação acompanha afraternidade. Eles se influenciam, se criticam, mas exclusivamente entre si, gostam uns dosoutros e se copiam. Vivem juntos, muito unidos, mas são ainda um pouco considerados comopárias. Ao deixarem o conforto da confraria artesanal para reivindicar o título, ou melhor, opapel de artista, começam a cair no opróbrio, então cerram fileiras mais do que nunca. Umafraternidade e uma solidariedade quase a toda prova. Há algumas amizades, alguns amorestambém. Sandro Botticelli e Filippino Lippi – o filho de Filippo Lippi, o falecido mestre doprecedente – permanecerão sempre os irmãos de Leonardo até na adversidade.

    A Botticelli, Leonardo deve seu pendor figurativo e floral, seu primeiro estilo. Muitoantes de Michelangelo, ele aperfeiçoa um tratamento da forma serpentina, destinada a ser afigura emblemática do Renascimento, clássica e depois maneirista. No início, Leonardocritica seu uso da perspectiva, que mais tarde adotará. Nos seus cadernos encontramos umaúnica menção admirativa por um artista vivo: é Sandro Botticelli. E, se ele critica seu modode tratar os fundos com demasiada desenvoltura, é sempre em particular. O vulgo nunca deveouvir um artista falar mal de outro.

    Leonardo é imediatamente fascinado pelo poder mágico da pintura que permite simularcoisas terríveis, assustadoras, sendo portanto o poder de enganar o espectador que crêrealmente estar diante de seres monstruosos ou de catástrofes naturais. Então, por que não

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    pintar coisas inventadas, sobrenaturais, impossíveis? Por que não torná-las possíveis?Ele sente uma indizível paixão pelo horrível e pelo grotesco, todas as excentricidades

    da natureza o fascinam, sobretudo as que se veem às vezes no rosto deformado de pessoas debaixa condição. Leonardo é bastante livre e curioso demais para não solicitá-las, oferecendolhes comida e bebida a fim de desenhá-las à vontade. Ele prima na arte dos monstros[10], dohíbridos, dos animais quiméricos que dominam o imaginário da época e que não lhe bastam.Sua busca de animais fabulosos e cabeças fantásticas é insaciável e não conhecerá fim.

    Da infância camponesa ele conserva um amor imoderado pelos animais. Todos,absolutamente. Uma familiaridade nunca desmentida. Com eles se exprime sua preocupaçãoconstante de pintar a natureza, de não perdê-la de vista. A infância não termina; seus cenáriose seus animais são transpostos para a vida do adulto em toda a sua obra.

    POLIVALÊNCIA

    À imagem de Verrocchio, genial topa-tudo, seus alunos são formados em todas asdisciplinas, servem-se de todas as técnicas existentes. A começar pela cópia dos antigos.

    Acabam de ser feitas as primeiras escavações arqueológicas, e a estatuária romana deslumbrA aprendizagem no ateliê dura seis anos. E é proibido usar a cor antes de dominar todaas outras técnicas, do desenho à ourivesaria, da fabricação de painéis à aplicação de vernizeda trituração dos pigmentos de cor ao trabalho com a pena e à aprendizagem de todas asferramentas do escultor. A originalidade de Verrocchio está em supervisionar e administraruma emulação coletiva, fazendo os aprendizes participarem de suas próprias encomendas. Nseu ateliê, todos os trabalhos – pintura, escultura, solda, acessórios... – são feitos por váriosalunos. Realizados em comum e ainda sem menor assinatura. Mas o jogo de influências, amultiplicidade de mãos numa mesma obra requer uma certa unicidade de estilo, no que sereconhece de imediato o Mestre. E Verrocchio é um grande mestre.

    Ainda que Leonardo se revele o aluno mais dotado, a beleza e a exatidão do traço e dacores são sempre e antes de tudo o resultado de anos de trabalho. Ele tem talento, capacidadimensas, mas deve submeter-se a esses anos de dificuldade, de paciência, de aprendizagemminuciosa. E Verrocchio é tanto mais exigente quanto Leonardo, aos dezoito anos, transbordade amor pela vida, de energia irradiante, de desejos lançados em todas as direções. Eleprecisará disciplinar-se, domar seu temperamento desordenado, desmedido.

    O senso da observação, herdado da infância em plena natureza, nunca lhe faltará.

    Também terá de controlar a mão esquerda, cuja escrita só é legível num espelho, e ensinar àdireita os cânones da pintura. A vida inteira ele desenhará com a mão esquerda, mas pintaapenas com a direita, após alguns anos de treinamento intensivo. Durante a aprendizagem, acópia desempenha um papel importante. A beleza das ruínas exerce uma atração tão nova queninguém cessa de reproduzi-las. Leonardo também se concentra nos drapeados, nos claros-escuros, nas sobreposições de volumes, o que faz com perfeição. Ele é o Fídias do pincel. Houtra especialidade no ateliê de Verrocchio – espécie de característica comum às obras dessépoca – que é uma atenção dada à fluidez dos movimentos, bem mais além do gosto preciosopor detalhes decorativos. Trata-se de uma predileção pelos rostos de jovens guerreiros nosquais se desenha um sorriso ambíguo, intrigante. Não percamos de vista que o Renascimento

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    tanto a palavra como a coisa, exprime a ideia de uma violenta ressurgência do passado. Atéentão, ignorava-se quase tudo do glorioso passado enterrado no solo da Itália.[11]

    Verrocchio ensina uma técnica que consiste em fabricar modelos de argila sobre osquais se colocam tecidos molhados e cobertos de terra, a seguir pintados num painel.Leonardo logo ultrapassa o mestre. “Pobre do aluno que não ultrapassa seu mestre!” 1, eleescreverá então.

    Também em escultura realiza proezas, mas sem deixar vestígios. Não por falta de

    desenhos e projetos de peças; certamente as realizações não suportaram a travessia dosséculos. Em Florença, pelo menos, na época dos seus vinte anos, fala-se muito do seu talentocomo escultor. Também de suas pequenas madonas, as primeiras exclusivamente de suaautoria, quando ainda não trabalha por conta própria. Mas a admiração e o entusiasmo que elcausa lhe permitem essa licença. Aliás, Verrocchio é o primeiro a lhe passar tudo, inclusivesuas experimentações técnicas.[12] E Leonardo põe-se a testar misturas de óleos,revestimentos e vernizes que farão o renome dos pintores holandeses, mas que, mal dosadas,mal “cozinhadas”, arruínam algumas de suas obras. A vida inteira continuará experimentando“molhos” de vernizes, de cera e mesmo de encáustica. Adquire assim um domínio técnicoinigualável e um gosto muito vivo por todas essas misturas.[13] A vida inteira conservará oprazer e a vontade de tratar ele próprio seus painéis. “Nas coisas confusas o gênio despertapara novas invenções, saber olhar...” 2, Leonardo anota. Para ele, é evidente que a pinturadeve suscitar o riso e as lágrimas, o prazer e o pavor, o entusiasmo ou a melancolia. O que,cinco séculos mais tarde, Arthur Cravan[14] resume por um definitivo “a pintura é andar,beber, correr, comer, dormir e fazer suas necessidades... por mais que digam que sou vulgar, isso aí...”

    A imitação monstruosa é às vezes tão bem-sucedida que alguns esquecem que se trata

    antes de mais nada e apenas de pintura. Ilusões perigosas. Leonardo percebe toda a vantagemque pode obter da confusão que produz. Ao mesmo tempo não se sente livre, não se separasuficientemente de Verrocchio, vive das encomendas que ele lhe passa e não quer tomarconsciência de que, a despeito de suas relações execráveis com o pai, este continua atuandounto a possíveis compradores a fim de ajudá-lo.

    GINEVRA BENCI E AS PEQUENAS MADONAS

    Algumas obras de Leonardo se tornaram célebres e acessíveis antes do exílio forçado.

    Certamente foram cedidas por Verrocchio e lhe trazem um começo de glória. São trêspequenas obras-primas: o retrato de Ginevra Benci, a Madona do cravo e a maravilhosapequena madona dita Madona Dreyfus, as primeiras seguramente de sua autoria.

    Leonardo faz uma amizade real com os Benci, uma das mais célebres famílias deFlorença. São relações que se mantiveram por toda a sua vida. Pinta o retrato de Ginevra, aovem herdeira, por ocasião de seu casamento com um homem que ela não ama, donde o

    estranho sentimento de tristeza que Leonardo não consegue atenuar nessa obra. Quanto ao paidela, ele cuida dos negócios de Leonardo e guarda seus pertences, “mapa-múndi, biblioteca,alguns quadros de amigos...”3, quando este deixa Florença e vai para Milão. Benci, que sabedos gostos e da curiosidade de Leonardo, lhe oferece livros de medicina a respeito de

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    cavalos, por volta de 1503, e também lhe encomenda o São João Batista em 1510. Foirealmente uma vida inteira de amizade e fidelidade.

    Ginevra é o primeiro de seus célebres retratos, o mais triste, mas também o maisinsólito, banhado numa estranha luz muito pouco florentina. Qual seria a função das folhas degenebreiro ao fundo? Limitariam-se a evocar, discretamente, o prenome da heroína? O arbustambém funciona como um anteparo de separação entre o mundo exterior e a intimidade que instaura entre o modelo e quem o contempla. O projeto de Leonardo, aqui, é a sprezzatura,

    invenção italiana que define uma espécie de soltura de espírito ou a arte de ocultar a arte. Jáentão ele se recusa a ostentar seu saber, a deixar transparecer na pintura seu grau de domíniotentação a que cedem tantas vezes seus pares.

    Aqui ele quer fazer ver não uma paixão – passageira por definição – mas otemperamento do modelo, o que define seu ser permanente. Conceber um movimento é suaobsessão fundamental; captar o movimento que revela a vida interior. Ginevra Benci é seuprimeiro grande êxito nessa direção e seu único quadro no modo triste. Isso se deve, segundoDaniel Arasse, à vontade de quem lhe fez a encomenda: Bernardo Bembo é o amante, talvezplatônico, da bela, que é obrigada a deixá-lo para se casar com um outro. Leonardo pensa emagradar Bembo mostrando a tristeza desolada no rosto da amada, para consolá-lo da perda...O fato é que esse assumido clima melancólico é uma grande novidade em pintura.Concorrência direta ou influência reconhecida dos trabalhos de Botticelli? Ainda não hárivalidade entre eles.

    A Madona Dreyfus, dita também da romã, é um quadro de dimensões minúsculas (15,7x 12,8cm). O corpo malproporcionado do Menino Jesus e a paisagem de fundo, mais de tipoflamengo ou veneziano, diferem muito do Leonardo dos anos seguintes, o que fez a obra seratribuída por muito tempo a Lorenzo di Credi. Mas o quadro é uma variação florentina típica

    em torno das imagens de devoção. Leonardo toma emprestado de Lippi (pai) esse esboço derelação terna entre mãe e filho. O que é confirmado pelas duas madonas seguintes, a cravo e enois, que se aproxima da Madona Dreyfus. Elas parecem formar um par. E certamente é o

    que acontece. Deve ter existido ou estaria faltando uma quarta madona.A Madona Benois é, com Ginevra Benci, a obra mais pessoal de Leonardo. O Menino

    tem um movimento mais marcado do que nunca. É o bebê mais físico de Leonardo, modeladopela luz. Sua Virgem nada mais tem de convencional, com a fronte descoberta, numaconfiguração que anuncia a de Sant’Ana. O que aqui sobressai e é novo é a animação das duafiguras, como se ambas cruzassem seus movimentos: a jovem mãe alegre frente à criança degravidade concentrada. Assim o artista introduz o estado de alma na pintura, com o auxílio dgestos naturais colhidos ao vivo.

    O traço comum das três madonas é o trabalho sobre o par mãe-filho. E todas estãosituadas num interior que se abre para a natureza. Os fundos também se falam.

    TAMBURAZIONE

    Em Florença, capital da maledicência, o tamburo é visitado toda manhã pelos oficiaisda noite, espécie de brigada dos costumes, que zelam pela moralidade citadina. As denúnciaanônimas, depositadas clandestinamente durante a noite, são lidas de manhã e, quando surge

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    alguma que parece ter fundamento, um inquérito é feito. Voltemos ao caso de 1476, quandoLeonardo é vítima de uma tamburazione que ficou célebre. Esta é tanto mais mortífera por seterrivelmente precisa.

    Aos oficiais da Signoria, declaro pela presente que Iacopo Saltarelli, irmão de Giovanni Saltarelli, vive com este na lojado ourives da via Vacchereccia, bem defronte ao Buco; veste-se de preto e tem dezessete anos, mais ou menos. EsseIacopo pratica muitas atividades imorais e consente em satisfazer pessoas que lhe pedem coisas condenáveis. E dessamaneira ele fez muitas coisas, isto é, prestou tais serviços a pessoas sobre as quais tenho boas informações e que possonomear com certeza. Esses homens sodomizaram o dito Iacopo, e juro que é verdade.

    O informante fornece então quatro nomes dos supostos parceiros ou clientes do ditoIacopo:Bartolomeo di Pasquino, ourives que mora na via Vacchereccia, Lionardo di ser Piero da Vinci, habita com Andrea delVerrocchio, Baccino, o alfaiate de coletes que mora perto de Orsanmichele, na rua com duas grandes lojas de tosadoreque desce até a loggia dos Cerchi. Ele abriu uma nova loja de coletes. Lionardo Tornabuoni, dito Il Teri, vestido de

     preto...

    O Tornabuoni citado é o sobrinho do Magnífico.Esse documento só foi publicado pela primeira vez em 1886. Até então, Leonardo é

    considerado como um homem decididamente casto!As caixas redondas do tamburo recolhem todo o lixo que a baixeza, a estupidez, o

    rancor e o ciúme acumulam. A acusação de sodomia é a mais frequente; ela dispensa provas,suspeita basta para desconsiderar o acusado. O escândalo logo se produz. Vai muito além douniverso dos ateliês, já que um parente próximo de Lourenço de Médici está implicado. Osguardiães da moral se mobilizam, prendem os parceiros dessas “sodomias coletivas”. Elescomparecem juntos ao tribunal em 8 de abril de 1476. A presença de um membro da famíliaMédici leva os juízes a absolver todos os acusados “contanto que uma nova queixa não sejadepositada no tamburo”.

     No entanto, em 7 de junho, aparece no tamburo uma segunda queixa ainda mais

    explícita: “Iacopo Saltarelli se faz sodomizar por numerosas pessoas, sobretudo por aquelascujos nomes seguem... Leonardo, que continua a trabalhar com Verrocchio...”De novo os juízes absolvem. A improcedência judicial não prova a inocência dos

    acusados, mas desta vez Leonardo é salvo. Escapou por pouco e jura que não mais o pegarãoQue risco corre o homossexual em Florença nesses anos? Entre a pena de morte e nada

    a margem é imensa. De 1430 a 1505, mais de dez mil homens são acusados de sodomia. Umritmo de 130 por ano. De cada cinco, um é reconhecido culpado. Alguns são executados,outros banidos por infâmia, condenados a multas, a humilhações públicas... Depende de quemulga e de quem é julgado. Embora a acusação contra Leonardo não possa ser vista como

    negligenciável, ela nada tem de excepcional. Os costumes dos artistas, mais que outros,alimentam a crônica, suscitam ódios, ciúmes, e por isso eles são denunciados no tamburo. Aliás, é frequente a desproporção entre a pena e o delito.

    O EXÍLIO

    Quais seriam os efeitos psicológicos desse caso sobre um jovem pintor que estáconstruindo sua reputação? Medo, angústia de se envolver num escândalo que pode implicarpai, perder a liberdade, ter de interromper as atividades artísticas ao fugir de Florença? Será

    que ele foi molestado pelos oficiais, passou uma noite na cadeia? O fato é que, ao ver-se

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    livre, Leonardo concebe um estranho instrumento “capaz de abrir um esconderijo desde seuinterior”.4

    O caso Saltarelli revela de forma cruel, sob as luzes de uma sala de audiências, asexualidade de Leonardo.

    Tanto para ele como para o pai, o mal é irremediável. O bastardo sujou o nome dosVinci! Consequência imediata: o pai resolve tirar o filho de Florença. Ele pode fazer isso.Leonardo não tem como se opor à decisão paterna, não tem os meios financeiros e, sobretudo

    tem só 24 anos, quando a maioridade é aos 25. A ordem, portanto, é fazer-se esquecer, durocastigo para quem sonha com a glória. Não mais o pegarão. Até a morte, Leonardo dissimulatudo o que em sua vida possa provocar julgamentos da boa sociedade, da qual depende paracomer, para trabalhar, para existir. Ele camufla seus costumes, cala seus amores, enterra suastristezas. Definitivamente. Nada mais sairá do seu controle nem o trairá. Quando se exibir,será com conhecimento de causa, um risco calculado.

    R EFAZER 

    Fazer-se esquecer e esquecer a humilhação. Dois anos de silêncio. O que ele faz emVinci entre 1476 e a primavera de 1478? Exulta na natureza que ele ama, desenha como umdoido – faz então seus primeiros desenhos de paisagens em estado puro. Recupera as forças.Na volta, terá de recomeçar tudo. Mas dessa vez por conta própria. Nem pensar em retornarao ateliê de Verrocchio, a sombra do escândalo continua ligada a seus passos. Melhorrecomeçar do zero. Com a ajuda e as relações do pai, ele vai inaugurar, em 1478, seu primeiateliê. E contratar os amigos. Graças a esse pai que lhe é tão hostil, conseguirá algumasencomendas, entre elas, em 1481, um grande retábulo para o altar da Igreja San Donato emScopeto, cujos pagamentos se parcelam por 24 meses. Uma encomenda importante, mas quenão o impede de empreender e terminar ao mesmo tempo a Madona com criança e gato, a

    adona Benois e uma segunda Anunciação, talvez a que se encontra hoje no Louvre.Pintar para a Igreja é submeter-se a um certo número de exigências que os artistas,

    trabalhando cada vez mais para particulares, não querem mais aceitar. Hoje se esquece isso,mas na época a arte religiosa possui uma tríplice função. Ela deve ensinar aos fiéis, que sódispõem dessas imagens piedosas para compreender a fé que lhes transmitem, os fundamentoda boa crença. Deve recordar permanentemente os atores e os acontecimentos da históriasagrada. Enfim, deve insuflar no espectador, ou melhor, no fiel, uma verdadeira empatia pelo

    personagens divinos. Uma via-sacra, portanto, deve ser capaz de fazer chorar.

    A ANUNCIAÇÃO

    Pintar a Anunciação no exterior não é mais uma novidade, mas em geral ela é situadasobre um fundo de arquitetura que realça a cena. Quanto a Leonardo, ele dispõe o tema nahorizontalidade do painel a fim de conferir à sua paisagem uma atmosfera difusa aindadesconhecida. A perspectiva geométrica se afirma pelo desenho das pedras de cantaria queformam o ângulo das paredes, mas se interrompe de repente, se apaga, na altura do último

    cipreste. O ar embaçado se justifica por uma fórmula – a de “Maria, porto da Salvação”,

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    ainda pouco usada – que convida a essa atmosfera brumosa, marítima e, em suma,antecipadamente leonardiana. Quanto à Madona com criança e gato, o primeiro quadro deLeonardo em que aparece um animal, ela exprime o fascínio que ele sentirá a vida inteira portodos os bichos.

    Daí por diante já se percebe sua marca nos drapeados, nos interiores familiares e nosfundos, nas perspectivas atmosféricas azuis: uma Toscana perdida numa lonjura azulada.Reconhecendo-lhe a excelência, Verrocchio o consulta para um estandarte que representa

    Vênus e o Amor, destinado a um torneio de Juliano de Médici. Se o grosso da obra éexecutado pelo ateliê, é com sua delicadeza de pincelada habitual que Leonardo conclui otrabalho.

    Seu pai o ajudou a instalar-se, no entanto se desinteressa totalmente pelo que acontece aseguir ao filho. Ou porque Leonardo abandona encomendas que permanecerão inacabadas, ouporque o nascimento de um primeiro filho legítimo o autoriza a esquecer o bastardo. Aprofissão de notário o torna muito sensível ao diz que diz, e ele desconfia desse filhoincômodo, nunca lhe demonstrando estima, confiança, ternura ou o menor interesse. Suaterceira esposa, a que lhe dá finalmente filhos, e sobretudo a quarta, que lhe dará outra meiadúzia, vão aos poucos proibir a entrada de Leonardo na casa do pai. Medo de uma influênciasobre a progênie legítima? Leonardo deixará Florença sem rever esse pai, do qual dirá: “Elesabe o preço de tudo, mas nada do seu valor”.5

    A CONJURAÇÃO DOS PAZZI

    A falsa estabilidade da República, sob a batuta mal dissimulada dos Médici, é rompidano dia da Páscoa, durante a missa na catedral onde estão reunidos os poderosos, a conjuraçãdos Pazzi desencadeia todo o seu ódio. Juliano de Médici, o irmão mais moço do Magnífico,assassinado com treze facadas. Lourenço consegue escapar com ferimentos leves, mas cheiode ódio e ressentimento. Os meses que seguem são dominados pela vingança, com gente mortenforcada, espancada em toda parte.

    Botticelli recebe a encomenda oficial da vingança, que consiste em fazer o retrato detodos os enforcados. Seus quadros são suspensos nas janelas da Signoria, na praça dossupliciados. O artista delicado que acaba de inventar a melancolia em pintura vive muito maesse acontecimento macabro, enquanto Leonardo demonstra uma inacreditável impassibilida– desde então um de seus traços dominantes – em meio às violências políticas, ao mesmo

    tempo em que morre de ciúme por esse companheiro mais velho que, sem parecer interessadé bem-sucedido em tudo o que faz. Paradoxalmente, esse ciúme reforça a estima e a amizadedos dois. Se as grandes encomendas nunca vêm para Leonardo, ele deve se conformar. Masnão consegue.

    Contenta-se então em trabalhar por nada, isto é, aproveitando o tempo “livre” paramelhorar suas técnicas, seguir novas intuições artísticas, lançar-se no estudo da filosofia. Eassim afasta-se ainda mais dos pintores oficiais e que estão na moda...

    PEQUENAS MADONAS

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    A Madona Litta e principalmente a Madona com criança e gato comprovam: ele tratacom muita familiaridade o Bom Deus e a madona, o que só pode chocar. Há algo deexcessivamente realista no movimento do Menino Jesus buscando escapar dos braços da mãepara pegar o gato: tudo se mexe nesse quadro. Leonardo teme ser mal acolhido por essestrabalhos talvez francos ou familiares demais, mas nesse caso obtém um sucesso inesperado.Surgem encomendas. Só que o tempo é de agitações políticas, e há uma nova ameaça deguerra.

    A cidade de Colle cai nas mãos da liga antiflorentina. Os Médici se alarmam. Leonardoaproveita a ocasião para lhes propor sua maior ambição: trabalhar em projetos militares. Aartilharia agora prevalece, a estratégia militar se modificou, é preciso encontrar novos meiosde fazer a guerra. Leonardo quer inventar a arma absoluta para ganhar todas. Imagina couraçaimpenetráveis, carros de assalto, subterrâneos labirínticos, bombardas, submarinos... Seuscroquis agradam, suas palavras convencem, mas não vão além disso. Nada lhe encomendam.Ele distrai, seduz, diverte e entusiasma na hora, sem que lhe deem confiança para passar àrealização.

    Ele também se lança na escultura, já que o estudo das ruínas antigas está na moda.Leonardo se apaixona pelo jardim de San Marco, espécie de museu a céu aberto de esculturaonde estão depositadas todas as peças coletadas pelos Médici. Não se contenta em copiá-lasmelhora-as. Dedica-se aos chafarizes, às complexidades hidráulicas que os movem, àbotânica... Tudo, realmente tudo o apaixona.

    Possui cavalos e os monta com ímpeto e ardor, frequentemente. Tem necessidade de arlivre, de velocidade, de esforço. Faz parte da sua paixão pelos animais: gatos – presentes emtodos os ateliês para caçar ratos –, cachorros, pelo prazer e a tranquilidade, macacos, entãoem moda... Mas ele vai também ao zoológico da República onde dois leões descansam – o

    leão é o emblema da cidade. Um macho e uma fêmea. Aproxima-se o mais que pode paradesenhá-los, esboçando assim ao vivo o leão deitado aos pés do seu São Jerônimo.Consegue uma autorização para assistir a dissecções no Hospital Santa Maria Nuova e

    observa com entusiasmo. Quer chegar ao visível do invisível. Escolhe a experimentação. Sãosuas primeiras tentativas de anatomista, que retomará regularmente ao longo da vida. Cada virá mais longe na penetração do detalhe, com uma extraordinária faculdade de autópsia, talcomo Leonardo entende o significado desse termo: ver com os próprios olhos. Ele não é oprimeiro; Masaccio e Pollaiolo, talvez, o tenham precedido. E o conjunto dos artistas doQuattrocento se interessa pela anatomia. É assim que a época passa do divino, que dominatoda a Idade Média, ao profano, que põe o indivíduo no centro do mundo. Penetrar osmistérios da vida, compreender, eis sua mais forte paixão! Mas essas paixões diversas malescondem uma terrível crise de dúvida, quando ele já se aproxima dos trinta anos: por queFlorença continua sem lhe oferecer os meios para que possa se medir aos maiores?

    SÃO JERÔNIMO

    Finalmente chega-lhe uma encomenda: um São Jerônimo que ele decide tratar com oleão em primeiro plano e num estado de transe eremítico. Só sobreviveu o esboço, que seencontra no Vaticano. É uma das raras peças que sempre foram atribuídas a Leonardo e que

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    nunca foram questionadas. Imagem assustadora, que aterrorizou bem mais seuscontemporâneos, aliás, do que nos aterroriza hoje.

     Numa solidão de cemitério, com um joelho no chão, o olhar perdido, o santo parecebater no peito com uma pedra, tão petrificado como ela, tendo por única companhia um leãoselvagem. O ascetismo é o verdadeiro tema desse primeiro sfumato da História. O sfumato éuma técnica que foi sendo elaborada aos poucos por Leonardo; consiste numa maneira deapagar os contornos, esfumando-os, certamente com a ponta dos dedos, donde a

    impossibilidade de copiar o menor esboço de Leonardo. Aqui o pintor busca demonstrar quesombra e luz são inseparáveis: “Pintor, não delimites os corpos com um traço, sobretudo ascoisas pequenas, pois elas não só não podem mostrar seus contornos laterais, mas também, adistância, suas partes mesmas serão invisíveis”.6 Eis como ele explica sua pesquisa com osfumato. E diz ainda: “Para que um objeto se integre com o que o cerca, ele deve incorporarum pouco as tonalidades vizinhas...”7 Assim, ele procura fundir a figura no espaçosobrepondo finas camadas de tinta para suavizar os contornos pela ilusão de um véu defumaça – o sfumato.

    Foi um choque para os florentinos, que imediatamente deduziram que Leonardo só podirepresentar com tal precisão os corpos porque os vira de muito perto, examinara cadáveres.Na época, a dissecção é ainda malvista. Além do mau cheiro, deve-se agir às escondidas, ànoite. Mas nada perturba Leonardo em sua busca, nem a clandestinidade nem o mau cheiro.

    O impacto do São Jerônimo é imenso; sua rejeição, não menos violenta. Irritado,Leonardo não termina esse quadro que permanecerá no estado de esboço. Definitivamente.

    Para se ocupar enquanto espera, ele executa para si mesmo madonas, paisagens,Anunciações. Treina, exercita-se. E o sucesso aí é imediato. Até surgir a encomenda com quesonhava.

    A ADORAÇÃO DOS MAGOS

    Em julho de 1481, o Convento San Donato em Scopeto, do qual seu pai é o notário,propõe-lhe enfim um grande formato (246 x 243cm) destinado a ornar o retábulo do altar-moE com um tema que ele esperava: a Adoração dos Magos. É um tema clássico sobre o qualtodo artista, sobretudo toscano, muito refletiu. Dão-lhe trinta meses para entregar a obra.

    Ele se lança com um projeto grandioso, ambiciona nada menos que renovar o gênero.Inverte as perspectivas, pondo no plano de fundo, como numa cena de batalha, um monte de

    personagens com traços precisos e detalhados. No primeiro plano emergem, de um sfumato ainda indefinido, a Mãe e o Menino. Nem pai, nem burro, nem boi... Nenhuma auréolatampouco, nada do sentimentalismo usual, das formas convencionais. Como ele podia esperao choque é considerável. Sua modernidade inquieta os patrocinadores e enche de admiração confraria, junto da qual ele se eleva entre os grandes.

    Os monges não se conformam, não é de modo algum o que encomendaram. Leonardo,que já gastou o que lhe haviam antecipado, dá-se o luxo de pedir mais dinheiro para transferio cartão a um painel. Os monges pagam, mas desta vez in natura: trigo, vinho etc... Que eletenha do que viver enquanto trabalha. Mas Leonardo consome tudo antes de começar. Osmonges se irritam, e Leonardo acabará abandonando a obra ao sentir o desprezo deles por se

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    cartão.Inacabada, a Adoração não fica no convento. Leonardo a confia a seus amigos Benci.

    Sabe a dose de inovação que ela contém, mesmo sob a forma de cartão, e faz questão deconservá-la. Já que os monges a recusaram, ela é dele.

    De todo modo, ele está convencido de que, mesmo terminada no prazo, os monges não teriam aceito: a obra não respeitava nenhuma das estruturas convencionais para esse tema tãocaro aos florentinos, e que remete às lendas medievais dos reis magos importadas do Oriente

    pelos cruzados.Os monges terão de esperar quinze anos antes de encontrar um artista digno de Leonarde capaz de realizar a Adoração. Será o filho de Lippi, Filippino, o melhor discípulo deBotticelli.

    Quem pode explicar por que, desde suas primeiras encomendas, Leonardo cultiva essedom para o inacabamento? Assim que passa a trabalhar por conta própria, não consegue maisconcluir suas obras, entregar suas encomendas no prazo nem mesmo depois. Não termina mainada. Seu São Jerônimo, que fez falarem dele, é abandonado num canto de ateliê: tão logosente que alcançou o que buscava, não tem mais a vontade, nem o gosto, nem a constância determiná-lo. No entanto, sua maior e mais constante angústia se percebe nestas palavras que enão se cansa de repetir: “Como o tempo passa em vão!”8

    As razões que levaram Leonardo a abandonar a Adoração, sua mais bela encomenda,permanecem ainda misteriosas. Mas esse abandono coincide precisamente com a decisão deLourenço de enviar os “melhores artistas de Florença a Roma para fazer a paz com Sisto IV decorar sua nova capela”. Questão de ciúme, de despeito, de um verdadeiro desgosto? PoisLourenço afirma ter escolhido os melhores, liderados por Botticelli. Os melhores comoembaixadores da cultura toscana. Os melhores, mas não Leonardo! Então ele decide fugir,

    desaparecer, abandonar a Toscana que, decididamente, não o merece. Uma terra que tem noseu comando Lourenço, o homem mais feio que Leonardo diz ter conhecido, indica bem agrande mentira que ela vive. Aliás, ainda hoje um mal-entendido cerca os Médici. Overdadeiro mecenas não é aquele que a história reteve sob a designação de Magnífico, massim seu sobrinho-neto, um Lorenzo de Médici obscuro, com o mesmo nome que ele, mas quefoi realmente quem encomendou obras a todos os artistas do Renascimento. O Magníficocontentou-se em colecionar pedras preciosas e em esbanjar o dinheiro da República em suasfestas. Não ajudou ninguém, nenhum escultor, nenhum artista. Atribuem-lhe as formidáveisintuições artísticas do sobrinho-neto porque, dos dois nomes homônimos, a história soubereter um só.

    PARTIR  OU FUGIR ?

    A corte da Lombardia sob Ludovico Sforza, que se autoproclamou duque de Milão, estáa caminho de se tornar a terceira de Europa. É para lá que Leonardo deve ir.

    Ele faz então uma das coisas mais incongruentes da sua vida – que, no entanto, nãocarece delas. Redige o que se assemelharia hoje a uma carta de candidatura espontânea, emtodo caso de autopromoção. Dez páginas para enaltecer seus méritos de arquiteto, deengenheiro militar, de tecnólogo, como diziam então, e para assegurar ao duque de Milão qu

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    com ele a seu lado, não perderia mais nenhuma guerra.Ele parte para representar Florença e a nova arte de viver que ela inventou? Ou foge

    como um pária, diante do insucesso constante que o persegue? O debate não terminou entreseus diferentes biógrafos, mas essa estranha carta faz pensar mais na fuga. Leonardo, beirandos trinta anos, está cansado de ser “um talento promissor”. Ele cita estes versos de Dante:“Não é deitado sob as plumas que se alcança a glória. E quem consome a vida sem ela [aglória] deixa na terra vestígio igual ao da fumaça no ar, da espuma na água...”9

    Alguns afirmam que esse mesmo Lourenço, que se negou a ser representado porLeonardo em Roma junto ao papa, o teria pessoalmente enviado a Milão para elevar os gostoque imagina grosseiros do neto de um condottiere que governa a Lombardia. Difícil acreditanisso hoje. Sobretudo após a leitura de sua “carta de apresentação” que postula um cargoqualquer junto ao duque...

    Aproveitando a partida de Bernardo Rucellai, nomeado embaixador de Florença emMilão, ele o acompanha então com armas e bagagens, animais e obras, e dois de seus acólitoamigos de sempre, seus melhores companheiros de festa e de gandaia.

    O primeiro, Tommaso di Giovanni Masini, que se faz chamar Zoroastro, é uma espéciede gêmeo grotesco de Leonardo. Farsante, atribui a si próprio uma ascendência secreta... eprincipesca. Bizantino na alma, donde o seu pseudônimo, engenheiro e bufão, alquimista eferreiro de gênio, astrólogo e charlatão, ele professa a magia e, sobretudo, forja metais quesabe trabalhar melhor que ninguém.

    Quanto ao segundo, cujos laços de amizade com Leonardo e as razões de trabalharemregularmente juntos se estenderão por mais de trinta anos, é o belo Atalante, o homem-orquestra, músico, cantor, dançarino, o suntuoso Atalante de Manette di Miglioretti. Os trêssão amigos de infância e ex-alunos de Verrocchio.

    Felizmente os dois colegas deram uma espiada na carta que Leonardo se apressa aapresentar a Ludovico, o Mouro, duque de Milão. Ali nada é dito do seu ofício de pintor, aprincipal de suas atividades, a única para a qual recebeu uma formação e, por duas vezes, umcomeço de reconhecimento. Assim, Zoroastro e Atalante o forçam a acrescentar, entre seus“talentos para tempos de paz”, os de pintor e escultor.

    Será que ele imagina, a caminho de Milão, que está deixando Florença por muitos emuitos anos?

    Cheio de ambição e vitalidade, não duvida que fará sucesso em Milão, só para voltar eseguida aureolado daquela glória vingadora com que sonha há tanto tempo. Está impaciente,só pensa em Milão. Lá estão a glória, a fortuna, a verdadeira vida...

    [1] Na Toscana, a escola do povo chama-se abaco, e as crianças a frequentam até os doze ou quinze anos de idade. Elaoferece um ensino de matemática aplicado às necessidades comerciais. As meninas também frequentam essa escola: assim,quando os maridos morrem, as esposas podem levar adiante seu negócio. Após estudar nessa escola rudimentar, mas sólida,

    Leonardo entrou diretamente para o ateliê de Verrocchio. Ele nunca frequentou a scuola delle lettre, na qual era ensinado olatim e o que mais tarde será chamado de humanidades.

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    [2] Qual é afinal a origem desse nome que tanto fez sonhar? A etimologia é mais humilde do que anuncia a eufonia. Em antigoitaliano, vinci significa vime. Nenhuma relação, portanto, com vitória ou vencedor como muitos imaginaram, mas com obras dcestaria. Vincio é também o nome do curso d’água ao longo do qual crescem o vime e o salgueiro utilizados pelos fabricantesde cestos. No século XIX, em Vinci, praticava-se ainda a tecelagem de cestos, o que deve ter fascinado o menino Leonardo. vida inteira ele conservará um fascínio pelos entrelaçamentos, pela complexidade dos nós, pelas tranças dos cabelos dasmulheres e, aparentados a elas, pelos turbilhões de água. Esses turbilhões vão obsedá-lo. “O turbilhão é como uma broca à qunada é bastante duro para resistir”, ele anota nos seus cadernos.

    [3] O século XV é conhecido como uma época de bastardos célebres. Em nenhuma outra época eles se destacaram tanto. Oerudito Alberti, Erasmo, Lippi filho, Ferrante, o rei de Nápoles, Sforza, duque de Milão, não foram de modo algum impedidos dexercer seu talento pela ilegitimidade de suas origens.

    [4] Francesca di ser Giuliano Lanfredini, membro de uma grande família toscana.

    [5] Alguns dizem que ele vai mais cedo, a fim de passar no ateliê de Verrocchio o tempo regulamentar de estudos, que é de seanos.

    [6] Quando, com mais de sessenta anos, ele conhece Francisco I, ambos ficarão surpresos com a altura do outro, por estaremacostumados a ser os únicos gigantes no seu meio. Os historiadores deduziram que o rei media 1 metro e 94, com base na suarmadura. Pode-se imaginar que nessa idade Leonardo estivesse um pouco curvado. Mas era um colosso, dizem todos. E oscronistas dizem o mesmo de seu pai.

    [7] O avô de Lourenço, chamado em sua morte de “o pai da pátria”, é o verdadeiro fundador dessa dinastia tanto mercantilquanto política.

    [8] Caixa redonda como um tambor, geralmente fixada nas paredes das igrejas, na qual eram introduzidas denúncias anônima

    [9] Sua bottega está situada na paróquia San Ambrogio, na porção oriental das muralhas. Verrocchio nasceu e cresceu ali.Embora tenha morrido em Veneza, seus restos mortais foram trazidos de volta a Florença e enterrados na sua paróquia. Seu pé fabricante de cal como o padrasto de Leonardo. O ateliê fica na via Ghibellina, perto da prisão de Stinche. Leonardo vai a pdo seu local de trabalho ao escritório do pai defronte ao Bargello. O ateliê é uma ampla peça no nível da rua, com habitaçõesanexas nos fundos e no andar de cima. O David  de Verrocchio, com cerca de um metro e vinte de altura, mostra um homemseco e nervoso; douraduras cobrem seus cabelos, suas botas e sua armadura. Teria Leonardo posado para o mestre ao chegano ateliê, aos catorze anos de idade? É o que geralmente se diz. Como há poucas imagens do adolescente no auge da suaenaltecida beleza, afirma-se, talvez com razão, que esse ragazzo de cabelos encaracolados, esbelto e gracioso, é Leonardo.

    [10] Um camponês de Vinci pediu a ser  Piero que lhe mandasse fazer um escudo, e este passou a encomenda ao filho, a quesustentava e que sabia pintar. Leonardo se encerra numa peça da casa do pai, ali acumula um grande número de lagartos, sap

    e outros bichos mortos ou em decomposição e, com a cabeça, as asas e as patas desses bichos, compõe um monstro híbridoassustador. Terminado o trabalho, chama o pai para vê-lo. Organiza a mise-en-scène, coloca o escudo na única luz da peça,deixando o resto no escuro, depois abre a porta como se fosse uma cortina de teatro. Dizem que o pai levou um tremendo susmas logo se apressou a fazer um excelente negócio com esse monstro, contentando-se em comprar, não muito caro, um escupronto para dar a seu camponês. A anedota é contada por todos os biógrafos de Leonardo.

    [11] André Chastel, em Renaissance italienne (Gallimard, col. “Quarto”, 1999), dá a seguinte definição do Renascimento:“Nas primeiras acepções desse termo (forjado um século depois de Leonardo), leva-se em conta a ressurreição das letras e dartes da Antiguidade redescoberta. Mas logo a seguir, ou simultaneamente, a mudança de perspectiva modifica o olhar que aépoca lança sobre o mundo. Ao colocar o indivíduo no centro do motivo, onde antes havia apenas Deus, o Ocidente começa sconquista do mundo. É a grande promoção do Ocidente e do seu pensamento. Graças às Cruzadas, este entrou em contato coos progressos dos árabes e dos chineses, e decidiu que era tempo de superar as contradições nas quais se enreda uma Europ

    com pretensões de hegemonia. Em 1600, a dominação do mundo pelo Ocidente está em marcha”.[12] Durante sua presença no ateliê ocorre a fabricação e, sobretudo, a instalação da grande peça de cobre da lanterna doDomo de Florença. Ele não só participa da fabricação, como também ajuda a determinar o modo de levá-la até o alto do domoLeonardo já possui então um bom conhecimento dos instrumentos e das técnicas da época.

    [13] Ele experimenta preparações de gesso e outros tipos de revestimento: “A madeira deverá ser de cipreste ou pereira, ousorveira ou nogueira, que revestirás de betume, de terebentina, duas vezes destilada, e de cal. Depois ela deve ser coberta deuma solução dupla ou tripla de arsênico ou de sublimado corrosivo no álcool; a seguir, de óleo de linho fervido para fazê-lapenetrar em toda parte e, antes que esfrie, deve ser bem esfregada com um pano para que fique seca; depois, aplica-se vernlíquido e lápis de alvaiade, lavando com urina quando estiver seco.” Assim preparado, o painel está pronto para a etapaseguinte, a transferência dos desenhos preparatórios para a superfície branca: geralmente se trata de um “cartão” (do italianocartone, grande folha de papel) do tamanho do conjunto da composição. Nos contornos há pequenos buracos; muitos desenh

    apresentam esse tipo de perfurações. O cartão é fixado sobre o painel e passa-se um saquinho cheio de finas partículas decarvão ou de pedras-pomes que deixa um vestígio em pontilhado sobre a superfície. O resultado é o que se chama então de u

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    “debuxo estresido” ( poncif , em francês), procedimento designado spolveratura em italiano. O pintor pode então colocar a coseguindo os contornos. A pintura a óleo está começando a se impor.

    [14] Poeta-boxeador, sobrinho de Oscar Wilde, segundo ele afirmava. Único e genial redator da revista de arte Maintenant ,que comentava os grandes salões de pintura do começo do século XX e da qual é extraída essa citação.

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    Segunda parte (1482-1499)

    MILÃO

    A partida de Leonardo para Milão é, sem dúvida, um dos acontecimentos maisdeterminantes de sua vida.

    Trezentos quilômetros de Florença a Milão. A cavalo, uma semana de viagem. No finalde fevereiro de 1482, Leonardo entra enfim na cidade pela Porta Romana, em pleno Carnavacomo a lhe sugerir que a vida em Milão é uma perpétua festa. Para um florentino, essa cidadedo norte representa uma grande mudança. Os hábitos, as paisagens, o clima, o modo de vida,mesmo a língua, tudo é diferente.

    O clima lombardo não é salubre, os invernos são úmidos, brumosos, afogados na pálidluz do norte que, no entanto, lentamente tomará posse da paleta de Leonardo. Cerca de oitentamil pessoas vivem ali, sob o punho dos Sforza. O atual dirigente é Ludovico, dito o Mouro.Desde a paz de Lodi[1] (1454), Milão é uma cidade em ascensão. Como diríamos hoje, está“de vento em popa”. Está na moda e sabe tirar proveito de sua situação geográfica,estratégica: ao pé dos Alpes, no cruzamento das vias de comunicação da Europa, tudo o quepassa por ali prospera. Toda a cidade crê no futuro. Ela é o futuro.

    O usurpador que exerce o poder, o Mouro, assim chamado por causa da cor da pele, doolhos e dos cabelos escuros, tem também, como dizem, o sangue quente. Suas conquistassempre atraem outras. Neto de condottiere: o avô, um lenhador que virou soldado, e soldadovitorioso, casou com a herdeira Visconti, proprietária natural da Lombardia. Normalmente, éramo primogênito, portanto o sobrinho dela, que deveria reinar. Só que este tem apenas sete

    anos à morte do seu irmão mais velho. Enquanto espera ter a idade e a razão, Ludovico Sforzgoverna a cidade, aumenta-a, invade os arredores, Ferrara, Pavia... Não se contenta em ganhterritórios, quer conquistar também os corações dos súditos, a glória, a fortuna, e também oque, desde os Médici, assegura a toda fama uma espécie de segurança póstuma: artistas paraenaltecer seus méritos, para fazer perpetuar seu nome por meio de obras por eleencomendadas.

    A corte de Milão está em plena expansão, e Leonardo, portanto, deve fazer-se consagrapor ela. Logo de entrada, o embaixador Rucellai, nomeado pelo Magnífico para representá-lna corte de Milão, se encarrega, talvez contra a vontade de Lourenço, de apresentar Leonardooficialmente.

    Mas não consegue introduzi-lo como artista no séquito do duque. Há ameaça de guerra,Ludovico só tem em mente ganhá-la, não sentindo a menor necessidade de um pintor, muitomenos toscano...

    A Itália é ainda composta de nações, feitas de pequenas cidades, às vezes muitopequenas. No entanto, elas se enfrentam como entre um império e outro. Além disso, há quassempre no interior de cada cidade uma força rival pronta a tomar o poder. Portanto, convémfazer alianças para esmagar a parte adversária. Nesse século feito de acordos efêmeros,

    traições e oportunismo, as alianças são instáveis e a situação é naturalmente confusa.

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    O começo de Leonardo em Milão é difícil. Não lhe dão atenção na corte. Nos primeiromeses, ele sobrevive à sombra do embaixador-mecenas Rucellai e de alguns ricos mercadorflorentinos que residem em Milão. Depois se integra ao ateliê de uma família de artistaslombardos, os Predis, beneficiando-se de encomendas graças à sua auréola de toscanomaldito. Em abril de 1483, ou seja, um ano após sua chegada, consegue finalmente umaencomenda séria, por intermédio de Ambrogio e Evangelista Predis. Trata-se do famosoretábulo da Virgem dos rochedos.

    A VIRGEM DOS ROCHEDOS

    Se o estilo de Leonardo trai ainda sua maneira florentina, sua interpretação já se libertodas prescrições usuais. Em vez de prender-se ao tradicional grupo estático de uma Virgemcom o Menino cercada de anjos e profetas, ele se lança na representação de uma antiga lendaque imagina o encontro do Menino Jesus com o jovem João Batista em pleno deserto. Lendabastante iconoclasta, embora até o momento ninguém se inquiete com ela. Essa encenaçãoaudaciosa, quase herética, permite a Leonardo pintar uma fabulosa paisagem de rochedos e

    maciços, a ponto de fazer dela o principal ator da cena, carregando-a de valor simbólicocomo no mito da caverna.A Imaculada funde-se com a maternidade virginal, o interior e o exterior se alternam em

    ambientes densos e úmidos, jogos de luz artificial mostram as trevas como uma luva viradapelo avesso. “O útero da terra que revelaria o mistério das forças vitais em suas cavidadespercorridas pelas águas fundadoras...”1, assim Leonardo concebe sua Virgem dos rochedos.

    Embora não seja o primeiro a pintar madonas dessacralizadas – foi Filippo Lippi quemprimeiro tratou a Virgem como mulher carnal, sensual e até mesmo excitante –, Leonardooferece a Maria o amor materno e a ansiedade que sempre o acompanham. Torna-a familiar,comovente e muito jovem, com aquele incrível sorriso misterioso que flutua sobre seuturbulento filho. Suas madonas vão servir de modelo aos pintores dos séculos vindouros.

    A influência de Leonardo sobre os irmãos Predis é clara. Ele introduz uma estranhapaisagem, angustiante, certamente ligada a suas primeiras impressões da Lombardia. E mais:além de expulsar para sempre o pai do Menino Jesus de sua obra, ele dá à Sagrada Famíliaaquele ar dramático que só pode desagradar os padres, que condenarão o quadro. O resultadé chocante, e a recusa imediata.

    Mas, pouco antes desse confronto, tudo se interrompe. A peste de 1485 devasta a

    Lombardia. Leonardo ama apaixonadamente a vida e assim obriga todos os seus amigos apartirem o mais rápido possível para algum lugar no campo vizinho. Ele já cruzou com a“Visitante”, como a chamam por superstição em Florença, para nunca nomeá-la, e sabe que aúnica receita para escapar dela é a de Bocácio: fugir para o campo imediatamente. Limita-seaplicá-la. Graças a isso, Zoroastro, Atalante e os irmãos Predis se salvam.

     Na volta, eles se apresentam com sua Virgem dos rochedos nos braços. A obra não só érecusada, como também os obrigam a executar uma segunda mais “conveniente”. Certamentea que se encontra hoje em Londres. A primeira está no Louvre. Ainda não se sabe exatamentequando foi realizada a segunda Virgem dos rochedos. O processo que opõe Leonardo e seusamigos aos patrocinadores é arbitrado por Ludovico, que provavelmente é o misterioso

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    adquirente da primeira Virgem recusada, que ele oferece para as bodas do imperadorMaximiliano com sua sobrinha, uma Sforza. Vinte anos mais tarde, quando o processofinalmente terminar, a região estará sob ocupação francesa, e a sentença penderá em favor dointeresses de Leonardo. Não se sabe muito bem como. Seja como for, seu começo em Milão realmente difícil.

    Mas a paixão de compreender o mundo nos seus menores detalhes nunca abandonaLeonardo e, para pensar noutra coisa e sobretudo para não ficar parado, ele se lança nessa

    pesquisa, nessa busca que o acompanhará até o fim: imitar o pássaro, voar, dar asas ao homee servir-se delas...A vida inteira Leonardo lutará contra sua preguiça em levantar-se de manhã. Mais do

    que isso, parece acometido de uma incapacidade de emergir do sono, que considera sagradoEle não cessa de reprovar-se, quer curar-se, mas, por mais que invente um monte de sistemasde despertadores, uns mais barulhentos que os outros, não há encomenda que o faça levantar-se facilmente, sobretudo no começo do trabalho. A perspectiva de uma segunda Virgem dosrochedos está longe de poder animá-lo. Voar, lançar-se no espaço? Isso o anima bem mais.

    ANOTAR  A VIDA

    Sabemos de tudo isso porque, a partir dessa primeira temporada em Milão, Leonardopassa a anotar sua vida, sua vida intelectual, seus projetos, seus devaneios, suas contasdomésticas diárias, seus aforismos, seus croquis de tudo, máquinas, esculturas, pinturas,objetos cujo sentido hoje nos escapa... Ele mesmo confecciona cadernos costurados à mão demodo que caibam no bolso, a fim de tê-los sempre consigo.[2] Enche-os com uma escrita quedeu muito o que falar e gerou sua reputação de feiticeiro ou de espião. Escrita dita especularou seja, legível apenas refletida num espelho. Certamente não é por segredo nem para melhordissimular o que escreve que ele usa essa escrita, mas sim porque, como canhoto jamaiscontrariado, essa maneira de escrever lhe parece fácil e natural.

    O ambiente de camaradagem dos ateliês lombardos e a admiração que Leonardo causaentre seus pares não tardam a degenerar em festa permanente. É também um de seus dons, omais espetacular de seus dons: a arte da festa. E também o pior. Ali ele consome suas noites,na companhia dos confrades e de todos os vadios da cidade. A confraria lombarda estáfascinada pelo homem Leonardo, mas sobretudo por ele fazê-la participar dos costumestoscanos e de uma licença artística e festiva até então desconhecida nesse lugar.

    Durante esses anos nada se sabe de seus amores, mas sim de incursões constantes aocontado, zona em torno das cidades onde proliferam os bordéis e os maus costumes.

    O MÚSICO

    Por sorte, o duque de Milão é apaixonado por música. Todo ano organiza concursos qureúnem a fina flor da Itália musical. Josquin des Prés sempre comparece. Leonardo, para quea música e o canto sempre se associaram a seu amigo Atalante, não pode perder. Precisaganhar esse concurso.

    É provavelmente então que ele pinta o retrato de Atalante, também chamado O músico.

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    Um de seus raros retratos de homens.A lira de braço – variante da viola de braço – é uma espécie de ancestral do violino.

    Cinco cordas melódicas presas por meio de cravelhas, inseridas numa haste em forma decoração, entram em vibração por fricção através de um arco e produzem diferentes notasconforme o lugar onde são pressionadas pelos dedos, junto com duas cordas soltas, oubordões, que produzem uma única nota e são pinçadas com o polegar da mão esquerda (nocaso de Leonardo, a direita). É o instrumento mais difundido para acompanhamento quando s

    recita. Mas a lira de braço de Leonardo é das mais estranhas. Tem a forma de um crânio decavalo rev