danilo arnaldo briskievicz bem simplesedição do autor belo horizonte – 2013 . 2 tout le monde...
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danilo arnaldo briskievicz
BEM SIMPLES
1
danilo arnaldo briskievicz
BEM SIMPLES Edição do Autor
Belo Horizonte – 2013
2
Tout le monde aime la simplicité, quelques-uns l'admirent, bien peu l'adoptent, et personne ne l'envie.
Madeleine de Puisieux. Les caractères, 1751.
3
Bem simples o tempo é tão simples
como o tao
o tempo é simples
como um mantra
ou uma manhã
eu que interfiro nele
arrastando-o
feito correntes
na alma ao invés de leve
levá-lo
4
Como a fotografia
para a fotografia
na parede exposta
o sol é o tempo
passando
clareando sua essência
tirando seu véu
no fundo a fotografia
é um papel branco
em ilusão de imagem
perfeita
5
Precipício: amor
pulei o precípio
para chegar
ao início
6
Pirex
o simples
como pirex
comporta
o simples
como index
exorta
7
Agora
ainda bem: passado
seria muito chato
somente agora
8
Cal
o cheiro de cal
no inverno
casa nova, afinal
9
Letramento
a cor dar
entreletras
colo[rir]
10
Ciclo
qual a direção
da tartaruga
deixada à beira-mar
pela mãe?
mar
nadar até
cansar e
voltar
11
Triste
se o dia
nascesse
sorriso: amaria
ah, maria
dia triste
vazia
12
Travessia
sou avião
para os peixes
se em barco:
travessia de rio
sou ilusão
para os seres
se em sonho:
apenas delírio
13
Pena imaginária
a pena desgrudou
do rabo da pomba
e nunca caiu: só voou
14
Cão tem passado
para o cão
vou virando
imaginação
se ele não pensa
como sabe de mim
na solidão?
15
Olho de peixe
o olho do peixe
entorta o mundo
e o rio: profundo
16
Sonar
depois do sono
resolvo se acordar
é concordar
sonar sonar sonar
17
Pare
stop!
top top top
to to to
t t t
18
rien
sê-lo
selo
telo
tê-lo
19
Ao fim
ao fim
final
durou
nada mal
começou
inicial
20
Livro
concentrar-se
ausência de tempo
absoluto
ler um livro
entregar ao texto
loucura
21
Sem documento
o vento bate na janela
sem rosto, sem identidade
sem passaporte, sem vontade
-não vou abrir a janela
22
Traça
a traça comeu o texto
analfabeta continuou
23
Conexão
conectado
voz em letra
alterado
voz chegada
de qualquer
parte do planeta
24
Corpo terrível
o corpo me dará
mais um dia
longuíssimo
o corpo me achará
em mais um domingo
longuíssimo
25
Outros olhos
a volta no quarteirão
com cachorro na guia
é ver o mundo com outros olhos
26
Parâ[metro]
parametrizar
o dia e descobrir
o que faço com as horas
27
Catolicisses
depois da hóstia
o joelho no chão
depois do terço
a mão noutra mão
depois do pecado
a voz rouca em sermão
depois da vida dura
a eterna perdição
28
Cinema
da página nova
fazer cinema
o livro me move
29
Ataraxia
exatamente
atar a mente
na realidade
30
Cruzamento
o cruzamento
tem vários lados
opostos sempre
só vê o mesmo
sentido quem
segue atrás
31
Livre
vou fechar o livro
voltar para o livre
32
37°
o ventilador não dissipa
o ar de dentro para sempre
reutilizado
o ventilador não minimiza
o calor das artérias sempre
a 37°
33
Blusa guardada
quando cai a temperatura
o cheiro da blusa úmida
acompanha o cenário
34
Vilma
vilma
vilmar
vil, má
viu mar
vilmar
vil, mar
vilma[r]
35
Vida
estou vencido
por mim mesmo
traído
estou quieto
por mim mesmo
certo
a vida passa
dentro de mim
vaza
36
Pulando
a pombinha rolinha
na minha janela
sem flores
pula de um degrau
para outro degrau
da grade
nem sempre voa
para chegar onde deseja
37
Janela
nem flor
nem dor
nem amor
minha janela
nada tem
nem horizonte
38
Acesso
o corredor
passa gente
o tempo todo
espremida
essa gente
pede acesso
39
Pensamento e silêncio
a garganta funciona
para a palavra
para o pensamento
silêncio
40
Papel e desenho
o desenho no papel
é imagem invertida
da retina ou é fiel
ao projeto mental?
41
Gosto de si
vou beber a saliva
sem gosto sem sabor
me alimentar de dentro
hoje o mundo
tem gosto de morte
42
Guerra
depois da guerra fria
as guerras perderam
a graça
abomino a guerra
quando ocorre
por nada
não há qualquer motivo
nobre em fazer uma guerra
43
Sobrenome
meu sobrenome
não tem qualquer
explicação para
meu nome
44
Refeição
prato perfeito
ato feito
45
Meio dia
ao meio dia
meu dia já é
um dia e meio
46
Sistema nervoso
o sistema nervoso
central em mim
gerencia emoções
periféricas
47
Dia nasceu
a luz atravessa a janela
mas para na retina dos olhos
congelando em memória
a sua mensagem: o dia nasceu
48
Miudeza
riacho
córrego
fonte
minha cidade miudinha
só tem miudinhos rios
daqueles de atravessar
em salto de criança esperta
49
Broto
o broto morre fácil
se vem uma formiga
faminta e corta
a árvore não morre fácil
só cai se vem raio do céu
ou a mão do homem
50
Despejo
e pensar que meu corpo
tem um tempo que não vejo
só a fotografia me vê assim
alma em despejo de corpo
51
Memória
a música velha
suspeita em mim
de ser atual
52
Silêncio absoluto
os livros silenciam
só falam
quando espero
os discos silenciam
só cantam
quando quero
no mais os objetos
cheios de palavras
são silêncio absoluto
53
Recheio
quando o coveiro
cava
faz uma cova no
queixo
quando o coveiro
morre
faz da cova aberta
recheio
54
Entre poemas
entre um e outro
poema de drummond
a montanha cresce
impavidamente
55
Escrita apressada
escrever dez versos
antes que toque o sino
da matriz anunciando
as dez horas da manhã
56
Bico de lacre
ainda que meu dedo
não seja seu pouso
para espiar a manhã
se de sol ou de chuva
admiro seu canto belo
entre as flores da roseira
57
Até hoje
a criança em mim
gosta de subir em árvore
até hoje
de pegar cachorro pelo rabo
e deixá-lo esgotado
no colo
de cantar no banheiro
como se fosse um astro
sem plateia
de espiar os bichos estranhos
em especial a aranha caçando
sem jeito
a criança em mim
ama ser criança
até hoje
58
Rastro
o rosto
não é o resto
o resto
é rastro
dentro
59
O bom da vida
o que ficou
roça fundo
na alma
há arma
quando solidão
disparo memória
quando tristeza
preparo o terreno
com a base do ontem
o bom da vida
é ter tido alegria
demais sempre
60
Academia
o que mais gosto
na academia
é o desajeitado
processo de dizer
sim ou não
61
Olho de morto
o olho do morto
não brilha
daí se sabe
sem vida
o olho do morto
não se abre
daí se sabe
não vibra
62
Saudade
após
o pó da estrada
a roupa suja
após
o nó na garganta
a vida dura
após
você apenas
sôdade
63
Sinal falso
carta era mentira
eu sempre soube
interpretara errado
seus sinais
foram demais
e a mais em mim
64
Dry martini
a azeitona no fundo
da taça do dry martini
faz borbulhas fundas
na noite
65
Impureza
depois da noite
vem a realidade
depois da verdade
vem a saudade
somos sempre impuros
66
Queijo
o queijo
depois de partido
lembra sempre
leite
capim
vaca rústica
altitude
bactéria
67
Enfim, a noite
enfim, a noite
pronta para ser
forte em mim
enfim, a noite
tonta para ter
sono em mim
68
Temperar
quisera lavar
os lençóis
antes de usar
quisera beijar
os lábios
depois desamar
mas sobraram
apenas frações
de temp[errar]
69
Violão noturno
enquanto o violão
dissipa notas
de dar dó
pela noite
eu me embrulho
na sua lembrança
70
Muito
quando eu me cansar
da noite: venha o raiar
do sol no horizonte
para me mostrar a colina
há sempre muito
depois do cansaço
71
Unha ferida
a unha direita
a menor de todas
está roxa de sangue
velho sangue de um dia
esquecido no chão
72
Cem anos de solidão
e depois do primeiro parágrafo
veio a luz da solidão despindo
todas as faces no tempo
e depois da família morta
de tristeza cada um
a seu modo
o livro fechou sua última página
73
Gato
o gato observa
debaixo da roseira
a incrível algazarra
dos bicos de lacre
ainda não foi dessa vez
74
Tatoação
maltrato
o trato
no ato
desato
sapato
no tato
75
Nome
o nome
não tem sangue
nem veia artéria
o nome
não faz bem
nem mais ou menos
o nome
apenas capta
o lado da coisa
76
Ipê amarelo
o ipê amarelo
no meio da calçada
entre carros acelerados
e pessoas sem tempo sempre
triste, contempla o fim das folhas
somente o galho seco restou, enfim:
hora de lançar para o mundo o dentro
o que há dentro vem cheio de cor
a verdade de dentro
sempre alegra em volta
77
Menos rezo
menosprezo
menos
prezo
rezo
78
Foi
ainda depois
é agora, pois
agora, depois
um dia foi
79
Chão
a última ilusão
se foi confusa
ao chão
80
Volta
espectadora da manhã
a formiga sabe a hora
certamente pra ela feita
de sair e voltar para casa
81
O mundo
o mundo não vai girar
enquanto aqui dentro
estiver parado
o mundo não vai pirar
enquanto aqui sinto
nada mudar
82
Situação
o surdo
não ouve
tudo mudo
o mudo
não fala
tudo surdo
83
Cedo dormir
hoje vou dormir
muito cedo
mais cedo
que minha alma
quero vê-la solitária
achando respostas
da intuição interior
84
Parecer
raso
tem gente
parece vaso
seco
tem gente
parece eco
85
Tempestade
fazer com a mangueira
uma tempestade tropical
quase amazônica:
coisas de jardim e manhã de domingo
86
Sopa
o vapor da panela
em sopa quente
enche a casa
de batatas
87
Tela
saber da beleza:
é ela, eu sei
a sustentar
a tinta na tela
88
Morte?
e depois do tempo
veio a frase final
mas depois do final
veio o que não esperava
o diálogo contínuo
prossegue sempre
89
Objeto
deixado na lixeira
cada objeto no saco
tem a sua história
90
Velho sentimento
o som da música
já velha
dispara o coração
já velho
91
Troca de tempo
a tarde
trocou de roupa
veio a noite
em broche de lua
92
Sem tempo
tenho quase tempo nenhum
mas ainda tenho tempo
para pensar no tempo
que me escapa
93
Ça vaut la peine?
o que vale a pena guardar?
papéis
fotografias
o que vale a pena descartar?
anéis
anomalias
94
Já ir
jair
ir já
se sair
voltar
se partir
guardar
95
Sabedoria de montanha
a andorinha
da igreja de santa rita
sabe na tempestade:
não se pousa em para-raio
96
Estrutura da palavra
subir a torre eiffel
o cristo redentor
a estátua da liberdade
confiar na estrutura
da palavra
97
Mapa astral
o mapa astral
riscada sobre a mesa
me mostra nascido
cosmológico
98
Filósofo
os filósofos
dispensam atenção
somente uma frase
repetida e pronto:
temos sua abstração
99
Centro de mim: imagem
o que me joga
para dentro?
a imagem
distorcida
mediada
o que me faz
meu centro?
100
Simples assim
simples assim:
feito um mês
passado
de seis em seis
dando um ano
101
Cor de sorvete
a cor do sorvete
me dá a fruta
na memória
102
Auxílio
meu olho
direito depende
do esquerdo
para ver inteiro
103
Por hora
depois eu converso
com você novamente
agora, por hora, fica:
silêncio
104
DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em Serro, no ano de 1972. Graduado,
pós-graduado e mestre em filosofia. É professor
do ensino médio e universitário (graduação e
pós-graduação) em Belo Horizonte. Autor de
livros e textos de história, de fotografia, de
filosofia e de poesia. Conserva, na poesia,
ligação umbilical com a cidade natal. Para se
ter com a grande aventura de ser brasileiro,
mineiro e serrano, evoca no seu eu poético um
regionalismo próprio. Todos os livros estão
disponíveis para download gratuito no site
oficial.
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Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz
Todos os direitos reservados. Permitida a cópia/citação, reprodução, distribuição, exibição, criação de obras derivadas desde que lhe sejam
atribuídos os devidos créditos do autor por escrito.
Imagens
Capa: Cabo Frio, 2013, Danilo Arnaldo Briskievicz Autor: Júlio Alessi
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