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3. A perspectiva hegeliana e suas antinomias « Le vrai est le tout. Mais le tout est seulement l’essence s’accomplissant et s’achevant moyennant son développement. » Hegel, 1941:19 Em uma época onde se fala de aceleração do tempo, de inter-relação entre sujeito e objeto, parece ser sempre útil voltar à obra filosófica de Hegel, que está centrada na idéia de dinamismo. Se Hegel é, sem dúvida, um filósofo moderno, de acordo com suas concepções do Absoluto e/ou da Verdade total final, ele se aproxima muito do pensamento da modernidade tardia, ao negar uma realidade fixa e imutável, apontando para a necessidade de se pensar esta realidade como dinâmica, ou seja, algo que está sempre em processo, em movimento. Da dialética do senhor e do escravo à célebre afirmativa na introdução da Filosofia do Direito, de que “o real é racional e o racional é real”, o legado de Hegel é tomado como inspiração pelas mais díspares tradições político-filosóficas contemporâneas. Com efeito, do totalitarismo da raison d’État ao comunismo, dificilmente se encontra uma teoria política que não partilhe princípios em comum com Hegel. 1 De Meinecke e Marx até os comunitaristas do início do século XXI, passando pelo existencialismo, pela Escola de Frankfurt, pela hermenêutica e, inclusive, por alguns setores da tradição liberal, todos em algum momento, uns mais outros menos, aproximam-se das idéias hegelianas. 2 1 Habermas chega a afirmar que, neste sentido, ainda somos todos Jovens Hegelianos. Cf. Habermas, 2001. Ver também Anderson, 1997. 2 Meinecke e Marx bebem diretamente na fonte da Filosofia do Direito e na Fenomenologia do Espírito, respectivamente. (para Meinecke, cf. Iggers, 1988). Os comunitaristas retiram do conceito hegeliano de Sittlichkeit sua inspiração para a crítica ao liberalismo (cf. Brown, 1992). O existencialismo tem profunda inspiração hegeliana, mesmo que tenha sido negada por Kierkegaard, principalmente com respeito à dialética do ser e do nada, que inicia a Ciência da Lógica (cf. Hyppolite, 1955). A Escola de Frankfurt tem como projeto reformar a filosofia hegeliana para superar seus impasses e aprofundar a crítica marxista da sociedade contemporânea. Diversos teóricos críticos redigiram obras sobre a filosofia hegeliana. Para citar os mais conhecidos: Adorno, 1994; Marcuse, 1972 e 1978; Horkheimer, 1974; Habermas, 2002 (cf. Nicholsen & Shapiro In: Adorno, 1994). A hermenêutica também compartilha pressupostos do hegelianismo, mesmo que indiretamente. Apesar de pretender superar a primazia do sujeito consciente, Gadamer considera a tradição hermenêutica herdeira legítima da dialética hegeliana. (cf. Gadamer, 1971:99; e Robert Pippin, “Gadamer’s Hegel”, 2002). Quanto à tradição liberal, Shlomo Avineri desenvolve uma interpretação clássica da filosofia política de Hegel, aproximando-o do institucionalismo liberal (cf. Avineri, 1972).

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Page 1: 3. A perspectiva hegeliana e suas antinomias - DBD PUC RIO · o Hegel da historicidade, e de outro, o do sistema, aquele da lógica dialética, e o da teleologia do saber absoluto

3.A perspectiva hegeliana e suas antinomias

« Le vrai est le tout. Mais le tout est seulementl’essence s’accomplissant et s’achevant

moyennant son développement. »Hegel, 1941:19

Em uma época onde se fala de aceleração do tempo, de inter-relação entre

sujeito e objeto, parece ser sempre útil voltar à obra filosófica de Hegel, que está

centrada na idéia de dinamismo. Se Hegel é, sem dúvida, um filósofo moderno, de

acordo com suas concepções do Absoluto e/ou da Verdade total final, ele se

aproxima muito do pensamento da modernidade tardia, ao negar uma realidade

fixa e imutável, apontando para a necessidade de se pensar esta realidade como

dinâmica, ou seja, algo que está sempre em processo, em movimento.

Da dialética do senhor e do escravo à célebre afirmativa na introdução da

Filosofia do Direito, de que “o real é racional e o racional é real”, o legado de

Hegel é tomado como inspiração pelas mais díspares tradições político-filosóficas

contemporâneas. Com efeito, do totalitarismo da raison d’État ao comunismo,

dificilmente se encontra uma teoria política que não partilhe princípios em comum

com Hegel.1 De Meinecke e Marx até os comunitaristas do início do século XXI,

passando pelo existencialismo, pela Escola de Frankfurt, pela hermenêutica e,

inclusive, por alguns setores da tradição liberal, todos em algum momento, uns

mais outros menos, aproximam-se das idéias hegelianas.2

1 Habermas chega a afirmar que, neste sentido, ainda somos todos Jovens Hegelianos. Cf.Habermas, 2001. Ver também Anderson, 1997.2 Meinecke e Marx bebem diretamente na fonte da Filosofia do Direito e na Fenomenologia doEspírito, respectivamente. (para Meinecke, cf. Iggers, 1988). Os comunitaristas retiram doconceito hegeliano de Sittlichkeit sua inspiração para a crítica ao liberalismo (cf. Brown, 1992). Oexistencialismo tem profunda inspiração hegeliana, mesmo que tenha sido negada porKierkegaard, principalmente com respeito à dialética do ser e do nada, que inicia a Ciência daLógica (cf. Hyppolite, 1955). A Escola de Frankfurt tem como projeto reformar a filosofiahegeliana para superar seus impasses e aprofundar a crítica marxista da sociedade contemporânea.Diversos teóricos críticos redigiram obras sobre a filosofia hegeliana. Para citar os maisconhecidos: Adorno, 1994; Marcuse, 1972 e 1978; Horkheimer, 1974; Habermas, 2002 (cf.Nicholsen & Shapiro In: Adorno, 1994). A hermenêutica também compartilha pressupostos dohegelianismo, mesmo que indiretamente. Apesar de pretender superar a primazia do sujeitoconsciente, Gadamer considera a tradição hermenêutica herdeira legítima da dialética hegeliana.(cf. Gadamer, 1971:99; e Robert Pippin, “Gadamer’s Hegel”, 2002). Quanto à tradição liberal,Shlomo Avineri desenvolve uma interpretação clássica da filosofia política de Hegel,aproximando-o do institucionalismo liberal (cf. Avineri, 1972).

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A influência hegeliana na prática política reflete a mesma amplitude da

teoria. Ernst Cassirer argumenta que, diferentemente da tradição filosófica que lhe

antecede, Hegel exerce profunda influência na prática política dos séculos XIX e

XX, e poderíamos acrescentar ainda, do início do XXI, tendo em vista o

desenvolvimento comunitarista da política do reconhecimento (Taylor, 1995). O

nome de Hegel é, então, associado desde o fascismo até o marxismo. Cassirer

chega mesmo a afirmar, de forma anedótica, que a Segunda Guerra Mundial

poderia ser definida como uma disputa entre hegelianos de direita e hegelianos de

esquerda (Cassirer, 1976:268).

Desta criatividade e multiplicidade que emana da obra filosófica de Hegel

pode-se chegar a um consenso mínimo: o que é inovador na filosofia hegeliana é a

forma de interpretar a realidade (Marcuse, 1978; Taylor, 1979; Cassirer, 1976).

São as perguntas formuladas por Hegel, e não suas respostas, que inspiraram seus

seguidores e seus críticos. Daí a afirmativa de Habermas de que a publicação da

Fenomenologia do Espírito em 1808 é um marco para a filosofia ocidental.

“Hegel inaugurou o discurso filosófico da modernidade. Introduziu o tema – acertificação autocrítica da modernidade – e estabeleceu as regras segundo asquais o tema pode ter variações – a dialética do esclarecimento. Ao elevar ahistória contemporânea ao nível filosófico, pôs em contato, ao mesmo tempo, oeterno e o transitório, o intemporal e o atual e, com isso, alterou de modo inéditoo caráter da filosofia” (Habermas, 2002:73).

Seguindo esta mesma lógica, Marcuse faz remontar a origem da teoria

social ao pensamento hegeliano (Marcuse, 1978).

Ao localizar a questão temporal no centro da sua reflexão filosófica, Hegel

inaugura toda uma tradição que dará especial ênfase ao aspecto da mudança na

filosofia, superando neste sentido a tradicional metafísica da eternidade. Shlomo

Avineri sustenta este ponto de vista, argumentando que Hegel é o primeiro

filósofo político moderno, porque substitui o tema da legitimidade, central à

filosofia clássica, pela questão da historicidade e da mudança, que a partir de

então se tornaram os focos da reflexão moderna. Nesse sentido, “for Hegel, all

discussion of political issues is immediately a discussion of history, (...) because

history, as change, is the key for meaning.” (Avineri, 1972:X).

Ao mesmo tempo, o desenvolvimento do pensamento hegeliano abre as

portas para a sistematização e consolidação de uma nova forma de saber: a

história. Tal saber já estava em gestação desde as idéias de Herder e Vico, no

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século XVIII, mas é somente a partir da ontologia histórica de Hegel que adquire

um status central no pensamento ocidental (Koselleck, 1997).

« Grâce à cette nouvelle articulation du passé et du futur, grâce à la qualitéhistorique que la catégorie de temps y a gagnée, la philosophie de l’histoire àainsi ouvert un nouvel espace d’expérience dont toute l’école historique senourrit depuis. » (Koselleck, 1997:51).

O que está em gestação nos escritos de Iena e que já aparece plenamente

desenvolvido na Fenomenologia do Espírito é uma nova concepção do homem,

não mais natural, bom ou mau, mas necessariamente histórico; daí sua ontologia

da historicidade (Marcuse, 1972). Este é o Hegel que será destacado neste

trabalho. Mas, conforme fora mencionado inicialmente, existem muitos Hegels.

As antinomias de seu pensamento são inúmeras e inevitáveis. De um lado, tem-se

o Hegel da historicidade, e de outro, o do sistema, aquele da lógica dialética, e o

da teleologia do saber absoluto.

Diante da amplitude de sua obra – que aborda desde questões religiosas até

a teoria política, passando pela estética – optou-se por selecionar quatro pontos

essenciais para o tema do reconhecimento, que será desenvolvido mais

sistematicamente no próximo capítulo. Da mesma forma, fez-se necessário centrar

a análise em três obras fundamentais para o tema: a Fenomenologia do Espírito, a

Filosofia do Direito e a Filosofia da História.

Portanto, buscando compreender melhor as idéias hegelianas e seu

encadeamento com relação ao tema do reconhecimento, é fundamental destacar

primeiramente a temática central de todo o esforço filosófico de Hegel: a tentativa

de síntese entre o particular e o universal. Em seguida, já direcionando a análise

para a questão da historicidade, observa-se a relação de Hegel com o tempo e

como sua reflexão insere a temporalidade no sistema. O terceiro tópico refere-se

diretamente à noção de historicidade, contrastando suas duas obras principais

sobre o tema, a Fenomenologia do Espírito e a Filosofia da História. Finalmente,

chega-se à sua Filosofia do Direito, onde aparece de forma mais sistemática seu

emprego do conceito de reconhecimento à esfera da teoria política.

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3.1A dialética do particular e do universal

A filosofia contemporânea a Hegel define uma divisão do ser entre sujeito

e objeto, herança da tradição dualista cartesiana. À teoria da consciência herdada

do idealismo kantiano, Hegel soma a tradição expressivista da teoria da linguagem

de Herder, onde o pensamento não pode ser separado do meio em que é gerado.3

A questão fundamental para Hegel é, portanto, buscar uma síntese entre a

necessidade de autonomia radical e a unidade expressiva do homem, sem ignorar

o primado da razão, ou seja, a fusão do ideal iluminista de racionalidade ao ideal

romântico de expressividade (Taylor, 1975).

O ímpeto para a (re)união deste ser dividido advém de uma situação

histórica da filosofia idealista, em crise diante da crítica cética. Kant já inicia o

processo de pensar a união, a despeito da tradição cartesiana. Mas Kant sustenta

uma união apenas no interior do ser, enquanto no exterior ele mantém a distinção

entre subjetividade e objetividade (Marcuse, 1972:25). Schelling lança, então, o

projeto de totalidade do ser, da união entre concreto e abstrato, entre natureza e

pensamento, mas estabelece uma identidade direta entre estes diferentes

momentos. Hegel volta-se para Aristóteles para identificar uma união entre ser e

pensamento que seja dinâmica, ou seja, que atenda aos ideais de expressividade de

Herder, que não isole um sujeito consciente abstrato e o mundo concreto em que

ele vive (Marcuse, 1972; 1978 e Taylor, 1975).

Esta união, que em Hegel é definida como absoluta, implica o fim do

dualismo sujeito/objeto, um ser pensante e um saber real. Mas ela só é possível

quando concebida como um processo, um movimento constante. Todos os

conceitos de união absoluta e de totalidade estão regidos pela característica da

mobilidade, do processo. A reconciliação entre sujeito e objeto, entre filosofia e

história são os estímulos predominantes no sistema filosófico de Hegel. Neste

3No Tratado sobre a origem da linguagem de Herder, a linguagem assume uma dupla função: é omeio através do qual o homem toma consciência do seu self e também a chave para oentendimento de suas relações externas. Atua como elemento que unifica e ao mesmo tempodiferencia os homens. Atua também como elo entre o passado e o presente, via tradição, emecanismo de perpetuação e enriquecimento desta tradição. Daí a noção de que a linguagemincorpora as manifestações de continuidade histórica e psicológica de uma determinadacomunidade. Esta idéia de tradição em Herder é, portanto, voltada para uma concepção de

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sentido, a verdade não é um atributo do pensamento, mas da realidade em

processo. Está sempre em movimento. Daí todos os conceitos hegelianos serem

ambíguos porque são modos do pensamento, são movimento:

“All fundamental concepts of the Hegelian system are characterized by the sameambiguity. They never denote mere concepts (as in formal logic), but forms or modesof being comprehended by thought. Hegel does not presuppose a mystical identity ofthought and reality because the latter, in its development, has reached the stage atwhich it exists in conformity with the truth.” (Marcuse, 1978:25).

O argumento está exposto já no prefácio da Fenomenologia do Espírito,

onde Hegel classifica o absoluto como totalidade da realidade, que está

necessariamente em processo. Portanto o próprio absoluto é processo, ou seja, ele

é “ la médiation entre son propre devenir-autre et soi-même” (Hegel, 1941:17). A

idéia que segue é aquela que o próprio Hegel classifica como pressuposto central

de todo seu sistema, ou seja, a de que a substância é sujeito:

« Selon ma façon de voir, qui sera justifiée seulement dans la présentation dusystème, tout dépend de ce point essentiel: appréhender et exprimer le Vrai, noncomme substance, mais précisement aussi comme sujet. (...) La substance vivanteest l’être qui est sujet... » (Hegel 1941:17).

O que Hegel está salientando nesta afirmativa é que, de um lado, como

sujeito, a substância contém os elementos em si (essência, interior) e para si

(mediação, exterior); não é estática. De outro, entretanto, tal afirmativa também

pode ser lida de uma perspectiva mais expressivista, onde o tema central da

filosofia não é necessariamente o sujeito cognoscente, mas a substância que o

envolve. Daí a afirmativa seguinte no prefácio da Fenomenologia, onde Hegel

destaca que “La conscience ne sait et ne conçoit rien d’autre que ce qui est dans

son expérience.” (Hegel, 1941:32). Nesse sentido, o saber racional é ele também

um processo, é movimento de reflexão em si e para si, onde o tempo é fator

constitutivo (Marcuse, 1978; Taylor, 1975:85). Assim, a realidade efetiva – a

união da essência e da existência, de tudo aquilo que é em si e para si – é

automovimento.

A dialética do particular e do universal, cuja síntese é o singular (ou

individual), é a aplicação desta tese da totalidade dinâmica da substância como

processo contínuo que funde o novo e o velho ao invés de um acumulado estático de crenças ecostumes. Ver Berlin, 1979 e Barnard, 1969.

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sujeito.4 Porque Hegel parte deste princípio, a dialética do particular e do

universal é inevitável, é o próprio fundamento do seu sistema, a relação

ontológica primordial que pauta o esforço filosófico de Hegel (Marcuse, 1978:71).

Segundo Michael Inwood, o universal, o particular e o singular são o que

Hegel chama de momentos do conceito (Inwood, 1997:316; Kolb, 1986). O

padrão triádico do universal, particular e singular repete-se incessantemente ao

longo de toda a obra hegeliana. Tudo aquilo que existe obedece a esse padrão de

desenvolvimento. O singular, ou a categoria que representa a síntese da união

entre o particular e o universal, é um momento essencial da transformação da

realidade, mas num instante posterior volta a exercer seu caráter universal,

reiniciando o ciclo dialético.

Todos os três momentos do conceito – universalidade, particularidade e

singularidade – estão inter-relacionados. Cada um existe e é pensado através dos

outros. Por não haver ordem de prioridade entre estes momentos do conceito, seus

conteúdos também estão inter-relacionados. Assim, separar o universal dos outros

dois momentos leva somente a uma concepção vazia e formal deste universal.

Esta interdependência entre os momentos do conceito é contrária a qualquer

tentativa de teleologia, pois não há um primeiro momento, tudo passa a ser

mediação (Kolb, 1986:70).5

Desta forma, na lógica hegeliana não se trata de desenvolver um conjunto

de categorias e depois aplicá-las ao mundo real, porque isso significaria a

existência de duas verdades, de dois mundos, o do sujeito e o do objeto. Este é um

dos principais pontos do prefácio da Fenomenologia do Espírito e da crítica de

Hegel a Kant. Para Hegel, a relação entre o pensamento e a realidade se dá em

4 Existe uma discordância quanto à tradução deste terceiro momento da dialética do particular e douniversal. No original alemão, a palavra utilizada é Einzelne, que literalmente significa singular.Normalmente, em traduções inglesas, ou em textos de autores anglo-saxões, a síntese do universale do particular é chamada de individual, chamando atenção para uma das formas que esta sínteseassume, o indivíduo. Já em textos e traduções francesas, é comum encontrar a denominação desingular. Em traduções e textos em português, não há um consenso estabelecido. Para evitarconfusão com o termo “indivíduo”, será adotado aqui o padrão francês, dando portanto preferênciaao vocábulo “singular”.5 Daí parecer-me insuficiente a idéia de um espírito cósmico hegeliano presciente, que conduz oprocesso histórico (Taylor, 1975: cap. XV). Em sua análise da dialética do universal e particular,Taylor dá demasiada ênfase ao aspecto universal, componente do espírito cósmico, em detrimentodos outros dois momentos do conceito (Taylor, 1975:114), acentuando a teleologia do sistemahegeliano. Para crítica mais ampla da interpretação de Taylor, ver Kolb, 1986 e Beiser, 1993.

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termos de movimento da forma absoluta, ou seja, universalidade, particularidade e

singularidade.

Esta interdependência entre o universal, o particular e o singular, o fato de

que o universal só se realiza através do particular, está exposta até mesmo nas

suas últimas obras, tidas como conservadoras. A universalidade, em Hegel, é

apenas a relação do pensamento, um autodesenvolvimento de um sujeito racional,

e não uma relação de existência concreta, porque qualquer existência é particular

(Marcuse, 1978; Inwood, 1997:314). Na Filosofia da História, onde a tese

teleológica da razão na história está mais abertamente exposta, Hegel afirma que

“... o universal está nos fins particulares, e realiza-se por intermédio deles. (...)O interesse particular da paixão é, portanto, inseparável da participação douniversal, pois é também atividade do particular e de sua negação que resulta ouniversal.” (Hegel, 1995:30-35).

Na Filosofia do Direito, a tese da singularidade está claramente definida:

“Every self-consciousness knows itself as universal, as the possibility ofabstracting from everything determinate, and as particular, with a determinateobject, content, and end. But these two moments are only abstractions; what isconcrete and true (and everything true is concrete) is the universality, which theparticular as its opposite, but this particular, through reflection into itself, hasbeen reconciled with the universal. This unity is individuality” (Hegel, 1991:41)

Volta-se, por conseguinte, ao leitmotiv da filosofia hegeliana, exposto no

início desta seção, ou seja, o esforço de união entre a razão universal abstrata

iluminista e a expressão concreta da particularidade da vida. Esta preocupação

com a síntese entre o abstrato e o concreto leva Hegel a designar a tríade como

universal abstrato/particular/universal concreto. Da mesma forma, a esta versão da

tríade do universal/particular/singular pode-se associar, respectivamente, as idéias

de identidade/diferença/alteridade. Ou imediaticidade/mediação e

oposição/reunião reflexiva. Ou ainda, indeterminação/determinação/realidade

humana. De uma maneira geral, todas estas tríades são derivações específicas do

padrão central da dialética: tese/antítese/síntese.

Na lógica hegeliana, qualquer definição deve expressar movimento do ser

que nega sua condição objetiva. Se sujeito e objeto compartilham a mesma

substância, isto é, se não há diferença ontológica entre sujeito e objeto, então

ambos estão submetidos ao tempo e possuem história – no sentido de que seus

conteúdos são definidos através de um processo. Daí a afirmativa de Marcuse de

que somente a história pode explicar a realidade: “In short, a real definition

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cannot be given in one isolated proposition, but must be elaborate the real history

of the object, for its history alone explains its reality.” (Marcuse, 1978:72). É

neste sentido que Hegel rompe com a idéia de conceitos fixos – e

conseqüentemente, com a lógica formal.

A dialética é sempre o movimento contínuo do particular e do universal

entre si. Todo o empenho de Hegel será mostrar como o indivíduo se torna

universal. Hegel reforma a lógica aristotélica. Sua inovação não está em

incorporar a dinâmica da realidade à lógica (o que já estava em Aristóteles), mas

em dar forma distinta a esta dinâmica.6

As concepções da substância como sujeito e da não distinção entre sujeito

e objeto têm como resultado a dialética da qualidade. Sendo a substância sujeito,

todo conteúdo passa a ser reflexão em si sobre si mesmo. Assim, a substância da

existência é sua igualdade para consigo mesma (igualdade enquanto não

qualificável, já que tudo existe, como intransitividade), posto que a desigualdade

para consigo mesma seria sua dissolução. Mas igualdade para si é abstração pura

(essência interior), abstração esta que é a reflexão. Ao incluir a qualidade (tipo de

existência) volta-se para uma determinação simples, à distinção entre os seres

existentes. Se a existência é definida pelo ser ‘para si’ que, entretanto, é apenas

uma abstração, ou seja, existe apenas como essência interior, esta existência

constitui-se, então, em reflexão.

Forma-se, porém, um paradoxo, pois a existência é, de um lado, reflexão

abstrata, e de outro, determinação simples. Aí se estabelece a diferença –

característica da filosofia moderna, desde o dualismo cartesiano até o idealismo

kantiano – entre essência e existência, que é a expressão ao nível do sujeito, da

dialética do particular e do universal. Entretanto, porque esta diferença é uma

tautologia, tendo em vista que essência e existência são momentos do mesmo ser,

a igualdade só se atinge através do movimento. Só há igualdade no movimento, e

6 A influência de Aristóteles no pensamento de Hegel parece ser consensual entre especialistas:“For, Hegel’s philosophy is in a large sense a re-interpretation of Aristotle’s ontology, rescuedfrom the distortion of metaphysical dogma and linked to the pervasive demand of modernrationalism that the world be transformed into a medium for the freely developing subject, that theworld become, in short, the reality of reason. Hegel was the first to rediscover the extremelydynamic character of the Aristotelian metaphysic, which treats all being as process and movement– a dynamic that had got entirely lost in the formalistic tradition of Aristotelianism.” (Marcuse,1978:42). Ver principalmente a discussão em Marcuse, 1972 e 1978; Taylor, 1975; Kolb, 1986; eBeiser, 1993.

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sendo esta igualdade o próprio conhecimento, este só se realiza em processo

(Hegel, 1941:47-49).

Se a essência da existência é reflexão, ela deve necessariamente possuir

um conteúdo concreto. Assim, existência passa a ser qualidade, é determinada

como espécie, como universalidade determinada e por isso é reflexão simples,

uma reflexão que se diferencia e que está em movimento. Deste modo, a

compreensão é um processo, é o caminho do universal (a razão, ainda uma

abstração), que se expressa através do particular (o sujeito) e retorna ao universal

após a experiência do particular concreto, provocando o movimento deste

absoluto inicial. Se o objeto é conceito, então o sujeito é também conceito, ou

seja, o ser é conceito a partir do momento em que a formação concreta (a

realidade efetiva) ao mover-se em si torna-se determinação simples (conceito).

Esse movimento é a existência concreta.

O conhecimento para Hegel é, assim, a experiência, a elevação da

consciência particular ao absoluto (ou universal), ou seja, o caminho da dúvida, da

negação desta diferença.7 Porém essa dúvida não deve ser negação geral do

conhecimento, mas uma negação determinada, o que proporciona o surgimento de

novas formas que serão negadas, estabelecendo-se um processo no interior da

consciência (Hegel, 1941:71). Neste sentido, todo conhecimento é ação, porque é

experiência da consciência – centro do método fenomenológico. Essa progressão

da consciência leva ao conhecimento. Tudo o que é limitado à vida natural (sem

consciência) não tem como ultrapassar sua existência imediata.

Assim, a negação é a qualidade definidora da lógica dialética. Implica

negar as categorias fixas do senso comum e conseqüentemente negar o caráter

fixo da realidade que estas categorias refletem. A idéia central é a de que o

absoluto traz em si a negação – ele próprio é movimento de superação constante

desta negatividade. A negação, além do caráter de movimento, implica também

poder de superá-la.

“The moving principle of the concept, which not only dissolves theparticularizations of the universal, but also produces them, is what I calldialectic.” (Hegel, 1991:60).

7 Para Hegel, o conhecimento não pode ser nunca crítico (cf. Kant), porque a própria atividade decriticar já implica separação entre sujeito e objeto. Haveria nesse caso duas verdades, a do sujeito ea do objeto. (Hegel, 1941:65).

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 82

A oposição não nega a igualdade, mas estabelece a identidade como

resultado de um processo onde as potencialidades se desenvolvem. Por isso, o

homem só encontra sua identidade a partir da relação com outros homens, ou seja,

da negação da sua particularidade. Este é o princípio da mediação, momento

fundamental do processo dialético. No percurso fenomenológico da consciência,

antes de ela ser para si, ou seja, antes de atingir a igualdade na alteridade

(tornando-se sujeito), ela é necessariamente um “ser para outro”. Dois momentos

se apresentam: o primeiro com aquilo que simples e imediatamente é, isto é, a

essência, o ser em si; e o segundo, o momento da não-essência e da mediação, do

que não é em si, mas somente através da mediação de outro, o ser para outro.

O momento da aparência, da existência concreta, é sempre o momento do

ser para outro. Daí poder-se concluir que a realidade concreta para Hegel é

essencialmente o momento da mediação entre estes “seres para outrem”. O ser,

para atingir seu conteúdo concreto, o ser para si, deve passar, portanto, por essa

mediação do outro, o que será a base da concepção de consciência de si e da teoria

do reconhecimento.

Duas conseqüências decorrem deste tema da mediação. Uma delas, a idéia

de mediação como intersubjetividade, ou seja, a negação da possibilidade de

existência isolada. A outra, atribui uma concepção temporal ao processo da

mediação, isto é, nada existe sem relação àquilo que existiu antes. É a relação

entre mediação e interiorização. Ambas culminam na concepção de consciência de

si, que, diante desta dupla tendência, traz em si os conceitos de intersubjetividade

e historicidade.

Segundo Marcuse, o ser hegeliano só existe no outro, como idêntico a si

mesmo na transformação (Marcuse, 1972). Isso porque o ser é a primeira síntese

que Hegel define como igualdade na alteridade. Por isso, o ser é negatividade,

separação. A divisão é o fundamento do ser como movimento. A mediação do ser

com sua alteridade é o mesmo que a igualdade em movimento. Mostra a

necessidade do ser de se afirmar (de manifestar-se). Finalmente, esta idéia de

igualdade na alteridade, de ser como movimento, nada mais é do que uma

concepção do ser dotado de vida. Vida, que é ao mesmo tempo, unidade e

distinção dos termos.

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 83

“Cette infinité simple, ou le concept absolu, doit être nommé l’essence simple dela vie, l’âme du monde, le sang universel qui, omniprésent, n’est ni troublé niinterrompu dans son cours par aucunne différence, qui est plutôt lui-même toutesles différences aussi bien que leur être supprimé...” (Hegel, 1941:136).

O conceito de vida é o primeiro conceito desenvolvido por Hegel que

propõe a união de contradições (Marcuse, 1978). O conceito de vida é o ponto de

partida para a historicidade e permite abandonar a metafísica da razão. O processo

da vida consiste em interiorizar as condições externas na subjetividade, através do

processo de mediação entre o sujeito e as condições objetivas. A vida é, pois, a

primeira forma de liberdade, porque aí a substância é concebida como sujeito. Da

mesma forma, é também a primeira dialética, porque é modelo real de união dos

opostos.

Esta idéia de vida como totalidade é comum a todo o romantismo alemão,

desde Goethe, passando por Herder e Schelling (Hyppolite, 1955). A originalidade

do pensamento hegeliano está na interpretação dialética da vida, em que a

particularidade não se dissolve na totalidade. A equivalência entre os conceitos de

vida e de infinitude (Hegel, 1941:135-141) reflete a tese da união contínua entre a

dialética do particular e do universal. Mesmo que o ser seja finito, sua

determinação primordial, as relações que ele estabelece, são infinitas, porque o ser

existe sempre como ser para outro, porque esta existência é mediada. A

singularidade do ser finito não é sua existência isolada, mas as relações que tem

com outros seres; ele só se transforma dentro de uma relação ontológica com

outro. Este processo de relações entre seres finitos é, por sua vez, infinito. É esta

concepção de finitude como infinitude (finitude do ser, infinitude do processo)

que permite a Hegel afirmar a historicidade do ser (Marcuse, 1972:70).

O movimento do ser (da consciência) no mundo da vida implica duas

conseqüências: a percepção de diversidade e o surgimento da contradição. A

resolução destes desafios à consciência é o estabelecimento de uma relação de

interdependência entre as contradições, onde o oposto é interiorizado, dando

origem ao sujeito (a igualdade na alteridade) – em resumo, é a tese do

reconhecimento. O corolário da dialética da vida é a concepção de uma realidade

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 84

continuamente em processo, porque o sujeito é em si processo, ele se define pelas

determinações da vida (a alteridade).8

Se este sujeito hegeliano é movimento, se ele é igualdade na alteridade, ou

igualdade em processo, em resumo, se este sujeito hegeliano é, na realidade, um

sujeito intersubjetivo, ele é também necessariamente um sujeito histórico. Antes

de entrar na discussão específica da historicidade atribuída ao sujeito por Hegel,

faz-se necessária uma breve incursão na idéia de tempo e de seu lugar no sistema

hegeliano.

3.2A dimensão temporal como elemento principal do sistema hegeliano

A noção de tempo no sistema hegeliano tem sido o centro da polêmica

entre seus diferentes intérpretes, e conseqüentemente, uma das principais marcas

das antinomias de seu pensamento. Como conciliar uma concepção de razão

construída em processo pelo sujeito, também em processo, e a idéia de um saber

absoluto, por definição não-temporal?9

Ao invés de solucionar este paradoxo, Hegel aprofunda-o ao conceber um

saber absoluto, que é oriundo deste processo histórico, ou seja, a historicidade do

espírito dá origem à não-historicidade do saber absoluto (Marcuse, 1972). Toda a

discussão sobre o fim da história está inserida neste paradoxo fundamental do

sistema hegeliano. Associada a este paradoxo também se encontra a discussão

mais especificamente relacionada à Filosofia do Direito e à Filosofia da História,

de que o sistema hegeliano seria uma glorificação do modelo político-social

prussiano, conforme alguns intérpretes o definem (Popper, 1974 e 1986, Taylor,

1975). Finalmente, a este tema relaciona-se a controvérsia sobre a teleologia do

sistema, tema sobre o qual o próprio Hegel disserta na Fenomenologia do

Espírito.

A temática do tempo produz ao menos três desenvolvimentos.

Primeiramente, pode-se pensar o tempo dotado de sentido, como inerente à

8 Tal concepção, de acordo com Hyppolite, invalida qualquer noção de um absoluto fora da vida edo sujeito, o que seria apenas uma noção abstrata de absoluto (que já é a própria crítica de Hegelao absoluto de Schelling). Cf. Hyppolite, 1955.9 Esta discussão sobre o papel do saber absoluto, apesar de central, não será abordada de formaaprofundada aqui, porque supera em muito o âmbito deste estudo.

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 85

teleologia. Pode-se inferir-lhe, contrariamente, um significado de transitoriedade,

mudança constante, que se desenrola em relativismo, sendo contrário à qualquer

idéia de algo único e total. Finalmente, pode-se concebê-lo como mediação, em

que tudo existe no tempo, mas o próprio conceito de tempo é não-temporal, ele é

absoluto porque ele existe eternamente (Kojève, 2002:319-361; Marcuse,

1972:159).

A relação entre tempo e verdade, que é o cerne da discussão da

hermenêutica hegeliana, reflete exatamente estes paradoxos da interpretação do

tempo. Neste sentido, a afirmativa de Adorno pode ser um guia:

“ Hegel’s truth is no longer in time, as nominalist truth was; nor is it above time,in the ontological fashion: for Hegel, time becomes a moment of truth itself.Truth, as a process, is a passage through all moments, as opposed to aproposition that contains contradictions, and as such, it has a temporal core”(Adorno, 1994:40).

Na introdução da Filosofia da História, Hegel define o tempo como

negação: “o tempo é, no sensível, a negação.” (Hegel, 1995:71). A associação

entre tempo e negação conduz a duas concepções complementares.

Primeiramente, associa tempo e sujeito, pois a negação é característica do sujeito

hegeliano, ou seja, aquele que traz em si a negatividade (“ comme sujet, elle est la

pure et simple négativité” – Hegel, 1941:18). Com efeito, mais adiante no

prefácio, Hegel define o próprio tempo como negatividade, como pura inquietude

da vida, processo de distinção absoluta (Hegel, 1941:40). Considerando-se que a

negação é responsável pelo movimento e pela potência, o sujeito hegeliano é um

sujeito transformador. Mas em Hegel, este sujeito está em diversos níveis.

Portanto, o indivíduo é sujeito, assim como o espírito e, fundamentalmente, a

substância (Taylor, 1975:98).

« L’esprit entier seulement est dans le temps, et les figures qui sont les figures del’esprit entier comme tel se présentent dans une succession temporelle. En effet,c’est seulement le tout qui a une effectivité propre et par conséquent la forme dela pure liberté à l’égard d’autre chose, forme qui s’exprime comme temps. »(Hegel, 1941:207).

De outra forma, pode-se vincular tempo e mediação, posto que o momento

da negação é o momento da mediação, da negação da diferença e da

reinteriorização da alteridade. Esta tese está diretamente ligada à concepção de

tempo inerente ao sujeito, conforme exposta acima. O tempo como mediação

revela a esfera da memória, pois o processo de interiorização está ligado à idéia de

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 86

assimilação da experiência na consciência e recordação. Etimologicamente, o elo

está mais claro quando se considera a tradução alemã para memória, Erinnerung,

onde ‘er’ é indicativo de movimento e ‘innen’ , de interior (Arendt, 2002:216).10

O conceito hegeliano de re-interiorização é categoria fundamental da

historicidade (Marcuse, 1972:80). A volta do ser em si refere-se à dimensão

permanente do passado-presente, ou seja, à essência.11 O retorno em si se dá pela

negação. Esta negação é o presente imediato, que é ultrapassado a todo o

momento. O ser só existe porque a todo o momento este presente imediato torna-

se passado, e o ser retorna em si, para a dimensão da essência. É uma categoria

ontológica universal, parte do movimento do ser. Esta idéia de movimento do ser,

de re-interiorização como essência do ser, transforma a categoria tradicional de

essência em uma categoria concreta, ligada à experiência no mundo real. Esta

essência é o passado, que não desaparece; está apenas superado, ultrapassado.

Aqui, a idéia de passado não adquire necessariamente um significado

temporal, conforme argumenta Marcuse, mas implica uma dimensão de avaliação

das experiências no interior, ou seja, com relação a outras experiências já vividas

e já avaliadas. Esta é a dimensão da universalidade do ser, e a volta à ação no

mundo exterior conclui o processo da individualidade.

“Si, d’une part, la première manifestation du nouveau monde (...) est lefondement universel de ce tout; d’autre part, pour la conscience, la richesse del’être-là précédent est encore présente dans l’intériorité du souvenir. » (Hegel,1941:13).

Não obstante, o meio termo entre este universal interiorizado e a

individualidade universal, aquilo que é comum a ambos, é a história mundial

(Hegel, 1941:247). É neste sentido que Hegel argumenta que o mundo, ou a

história do mundo, existe tanto em si e para si, quanto história do indivíduo. Daí a

definição de individualidade: « l’individualité est ce qu’est son monde » (Hegel,

1941:256).

O momento da mediação, conseqüentemente, implica uma reflexão sobre o

passado, sobre experiências anteriores. Se não constitui uma esfera temporal,

posto que permanente, é a esfera da reflexão (ou da auto-reflexão) sobre a

10 Não se trata de uma observação meramente formal com relação à palavra Erinnerung. Porqueem Hegel forma é igual a conteúdo, a forma de uma palavra certamente reflete seu conteúdointerior. Muitos conceitos são desenvolvidos por Hegel através desta dissecação de palavras. Daí adificuldade de traduzir sua obra do alemão original. (cf. Hyppolite, 1974).

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 87

temporalidade do indivíduo. Por isso, este movimento de re-interiorização é o

fundamento da historicidade. E é também o momento do reconhecimento, como

veremos no próximo capítulo.

O tempo possui, assim, uma dupla definição, como sujeito e como

mediação. Neste sentido, está ligado tanto ao indivíduo quanto ao espírito, pois

ambos são sujeito e mediação. Daí a afirmativa ainda em Iena, de que “ l’esprit est

le temps” (cf. nota Hyppolite 1941:40). Sendo este espírito a síntese das

individualidades universais – entretanto, como toda síntese, é mais que a mera

soma das partes – pode-se concluir que em Hegel, o próprio homem é o tempo

(Arendt, 2002:218). Uma vez que este homem é tempo, que o espírito é tempo,

enfim, que o tempo é sujeito, então o tempo é necessariamente transformação. Por

conseguinte, o tempo histórico é o tempo da mudança, e não mais da

continuidade. Porque a história é “a exteriorização do espírito no tempo...”

(Hegel, 1995:67), ela é transformação, posto que o espírito é em si transformação,

movimento contínuo (Hegel, 1941:12), é o tempo, ou inquietude da vida,

conforme definição da Fenomenologia.

Todavia, assim como o tempo, que é transformação, mas também eterno

enquanto conceito, o homem apresenta esta dupla determinação. É a idéia da

dialética da infinitude/finitude vista anteriormente. Se o indivíduo (ou o espírito) é

filho de seu tempo, portanto finito, suas relações compõem a infinitude do

processo histórico. Daí que “explicar a história significa descobrir as paixões do

homem, seu gênio, suas forças atuantes” (Hegel, 1995:20). A idéia de espírito

como tempo e tempo como transformação conduz ao processo de atualização,

elemento fundamental do sistema hegeliano.

A atualização é a capacidade de união do essencial e do existencial. É o

que Hegel chama de realidade efetiva (Wirklichkeit), que se forma através da

identificação progressiva entre essência e existência. Assim como o ser, que

apresenta uma bidimensionalidade, a realidade também – a Realität e a

Wirklichkeit, contingência e potencialidade. Não obstante, porque a igualdade só

se dá em movimento, a realidade também só existe como movimento. Daí a idéia

central de que a apreensão da realidade só se faz através de seu processo, ou seja,

o processo é parte do resultado (Hegel, 1941:07).

11 Cf. principalmente Marcuse, 1972, cuja análise está fundamentada nos dois primeiros livros da

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 88

A compreensão nunca é completa se ela não leva em consideração o

processo do objeto (que é o mesmo do sujeito, afinal possuem a mesma

substância).12 Esse é o princípio do método dialético, apreender a singularidade

através de suas contradições. Se não há necessariamente uma seqüência temporal

no método – afinal tese, antítese e síntese são geradas simultaneamente, numa

relação de reciprocidade contínua (Hegel, 1941:37) –, pensar este processo

implica pensar sua temporalidade. 13 Hyppolite chega a firmar que « sa

dialectique, avant d’être logique, est d’abord un effort de la pensée pour

appréhender le devenir historique et réconcilier le temps et le concept. »

(Hyppolite, 1968:34).

A conseqüência do método dialético, isto é, a intrínseca relação entre a

lógica e o resto do sistema, é uma ode à temporalidade (Marcuse, 1978). O

espírito só existe no processo temporal histórico. A dialética olha a realidade do

ponto de vista temporal, onde a negatividade é exercida pelo tempo, que é o motor

do processo do pensamento e da consciência. Deste ponto de vista, a filosofia da

história expõe o conteúdo histórico da razão.

Seja como temporalidade, seja como conceito absoluto, a reflexão sobre o

tempo encontra-se no centro do sistema hegeliano, e de suas maiores antinomias.

Desta reflexão sobre o tempo, originam-se duas concepções distintas de história.

A idéia de temporalidade conduz à noção de historicidade do sujeito, presente na

Fenomenologia do Espírito, enquanto que a de conceito do tempo, está vinculada

ao conceito de História, mais próximo da Filosofia da História e da teleologia,

como manifestação do espírito.14

Lógica.12 Segundo Marcuse, a idéia de realidade como comportamento (ser refletido em si) é adeterminação central em que se baseia toda a Lógica de Hegel. A realidade só existe como unidadeimediata numa determinada singularidade factual, mas ela só é real ao tomar esta determinaçãocomo negatividade e ultrapassá-la. O fato é o momento de repouso do real, é o resultado domovimento. (Marcuse, 1972).13 Ver também Foster, 1993.14 « Plus exactement, il semble que Hegel distingue um devenir temporel contingent dans certainesmanifestations, une science du savoir phénoménale (la Phénoménologie) et enfin, une philosophiede l’histoire, qui appartiendra au système proprement dit et sera vraiment l’histoire conçue en soiet pour soi. » (Hyppolite, 1946:38).

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 89

3.3Os conceitos de história em Hegel: Fenomenologia x Filosofia da História

O problema da atualização como elemento de compreensão constitui-se

num dos focos de críticas ao sistema hegeliano. Se a atualização é sempre

constante, então dificilmente pode conceber-se um absoluto. É o dilema da

temporalidade. Mas Hegel, que em Iena tinha definido o espírito como tempo,

altera sua definição já a partir da Fenomenologia, mas fundamentalmente na

Filosofia da História. Nestas obras, o espírito é história, e como a história é o

tempo racional, sem a interferência de contingências, ou melhor, onde estas

contingências já foram absorvidas pela lógica do processo, o espírito vai

adquirindo um sentido teleológico.15 À definição de espírito como história não é

inerente a idéia de teleologia, mas não se pode dizer o mesmo da definição de

história como exteriorização do espírito. Daí a crítica de Anderson de que o

sistema hegeliano como um todo só faz sentido se concebido a partir de uma

perspectiva de um processo histórico acabado, em que a razão é apreendida a

partir do processo do objeto (Anderson, 1997).

Em Hegel, seguindo a tradição de Herder, o tempo assume uma relação

com a experiência, negando assim a formulação kantiana em que o tempo era uma

forma pura da intuição interior (Koselleck, 1997:47). A associação entre tempo e

experiência conduz Hegel à noção de força, que une capacidade de ação e

singularidade histórica, substituindo o mecanicismo da causalidade pela idéia de

forças dinâmicas. A noção de singularidade de cada momento histórico também

redefine a relação da sociedade com o conhecimento histórico. Porque cada

momento histórico não possui paralelo com momentos passados, a idéia de

exemplaridade histórica se dissolve: “La temporalisation et la transformation de

l’histoire en un processus toujours singulier ne peuvent plus être étudiées pour

leur valeur d’exemple.” (Koselleck, 1997:50). O aprendizado histórico volta-se

para a necessidade de transformação do presente em direção a um futuro

determinado de acordo com as expectativas geradas pela visão da história

desenvolvida naquele momento dado. Em Hegel, esta negativa da exemplaridade

e a idéia de singularidade estão expostas na sua introdução à Filosofia da

História.

15 Cf. principalmente Marcuse, 1972 e 1978; Hyppolite, 1946, 1955 e 1968; Taylor, 1975.

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 90

O conceito de história, tal como o conhecemos hoje, é originário do final

do século XVIII, sendo resultado de dois eventos: a constituição de um coletivo

singular – a História –, um conjunto de histórias particulares; e a fusão dos

conceitos de Geschichte, de cunho mais evennementielle, e de Historie, voltado

para o conhecimento, o relato e a ciência histórica (Koselleck, 1997). A fusão

entre evento e conhecimento, que gera a moderna concepção de história, está

explicitada em toda a obra dos românticos, em Herder, e conseqüentemente

também em Hegel. Este, na elaboração de sua obra filosófica, apreende os dois

significados inerentes ao conceito de história: o lado objetivo (eventos) e o lado

subjetivo (conhecimento).

As principais marcas da filosofia hegeliana da história são herdadas de

Herder (concepção da história como processo universal da humanidade), de Kant

(do objetivo do processo histórico ser a liberdade identificada à razão moral do

homem), de Schiller (ponto culminante da história é o presente), de Fichte

(identidade entre liberdade e consciência, entre o desenvolvimento da liberdade e

da consciência) e, finalmente, de Schelling (história é ao mesmo tempo processo

humano e cósmico, onde o mundo se converte em consciência de si – espírito). O

que é original na concepção hegeliana de história é a forma como ele combina

todas estas tradições em um sistema único e coerente (Collingwood, 1981).

Na Filosofia da História, a junção entre filosofia e história é plenamente

atingida – e o conceito chave é o espírito. O movimento do espírito se dá tanto na

história como na filosofia. Assim, Hegel divide a historiografia em três gêneros: a

historiografia original, a reflexiva e a filosófica (Hegel, 1995). A história como

coletivo singular não é apenas o resultado de uma reflexão racional humana, mas

a forma de expressão do espírito, que se move no processo da história mundial.

Em termos hegelianos, este é o processo de realização da liberdade na

humanidade.

Mas Hegel não recai no absoluto relativismo que imobiliza o movimento

do processo histórico. Ao contrário, é em Hegel que se articula pela primeira vez a

crítica ao historicismo, retomada no início do século XX.16 O historicismo elimina

a tensão entre filosofia e história – entre o saber absoluto e a consciência humana

16 Principalmente através da sua crítica à escola histórica do Direito, representada por Savigny, queHegel formula principalmente na Filosofia do Direito.

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 91

–, entre o eterno e o temporal, ou seja, exatamente aquilo que era a dinâmica do

processo histórico.17

Segundo Beiser (1993) e Collingwood (1981), a grande originalidade da

filosofia hegeliana da história é sua historicização da filosofia. As correntes

filosóficas são, portanto, autoconsciência de uma cultura específica, articulação e

crítica de suas crenças e valores. Hegel transforma as diferentes perspectivas

filosóficas em reflexos das relações desenvolvidas entre os indivíduos e seu

respectivo tempo.

O capítulo da Fenomenologia sobre a consciência infeliz ilustra esta

perspectiva, demonstrando como o pensamento filosófico da humanidade estava

vinculado às condições históricas (Hyppolite, 1946). Com efeito, Collingwood

chega a afirmar que o verdadeiro legado metodológico de Hegel para a história

encontra-se nos oito volumes dedicados à história da religião, da filosofia e à

estética, sendo a Filosofia da História propriamente dita uma “excrescência

ilógica no corpo das obras de Hegel” (Collingwood, 1981:195).

Excessos à parte, partindo da tese hegeliana de identidade no processo

entre sujeito e objeto, a filosofia passa a ser possível somente quando histórica,

consciente de suas origens, contexto e desenvolvimento. Este é um dos

significados que podem ser atribuídos à afirmativa na Filosofia do Direito de que

“ Philosophy is its own time comprehended in thought” (Hegel, 1991:21). Esta

idéia de filosofia historicizada pressupõe uma concepção orgânica de sociedade,

onde as partes formam uma união sistemática. Esta é a tese central da teoria

política hegeliana cujo foco é a Sittlichkeit, o que será visto mais adiante. O

importante aqui é que essa idéia de um todo social impede a separação entre

filosofia e história. É uma herança direta da noção de tradição de Herder como um

elo entre o passado e o presente. É função do filósofo assimilar esta tradição e

transformá-la de acordo com o contexto de sua própria época.

Hegel divide a história em três tipos: original, reflexiva e filosófica – que

correspondem à máxima do universal imediato, abstração mediada e universal

concreto, mediado (Hegel, 1995).

17 As correntes que se seguem à obra hegeliana dividem-se entre aqueles que enfatizam a históriaem detrimento da filosofia – historicismo – e aqueles que, inversamente, privilegiam a filosofiasobre a história, constituindo uma teodicéia. Muitos autores vêm em Hegel o primeiro teórico dateodicéia – cf. Binoche, (1994).

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 92

No primeiro tipo, a história original, o autor é o narrador do evento cuja

descrição já faz parte deste evento e é um documento histórico, porque narrador e

evento compartilham a mesma época. É, entretanto, por demais restrita, falta o

caráter universal. É então superada pela história reflexiva, onde o autor é o

historiador, que faz uso de idéias gerais aplicadas a épocas históricas, retirando

significado de suas análises. Sua fraqueza, não obstante, está na separação entre

sujeito e objeto, e a conseqüente imposição da perspectiva do autor ao objeto. A

história filosófica representa, portanto, a reunião e superação destas duas esferas

através da restauração da união original entre sujeito e objeto mediante uma

perspectiva universal reflexiva. Tal reunião se faz, no método de Hegel, através da

fenomenologia, que permite a conciliação da metodologia filosófica (idéias) com

a histórica (empiria).

Uma vez que o método é fenomenológico, a matéria-prima da história

passa a ser a consciência de si das nações (ou espírito das nações – Volkgeist), ou

mais precisamente, a dialética que conduz a esta consciência de si. Ao seguir este

caminho, Hegel retoma as lições de Herder. Mas o problema do conhecimento

histórico se mantém. Sendo o homem finito, nunca é possível a total compreensão

da cultura passada, mas somente aquilo que foi potencializado, ou seja, aquilo que

passou para a esfera do espírito absoluto, que é imortal (Hegel, 1995:72). Porém,

esquivando-se desta terminologia teleológica característica de Hegel, este é ainda

o dilema do conhecimento histórico, que por definição não prescinde da

experimentação e, no entanto, advoga-se científico (Beiser, 1993:287).

É tarefa do historiador-filósofo, portanto, a análise das culturas passadas

de acordo com suas próprias crenças, valores e ideais. Porque toda cultura é um

processo dialético entre sua realidade e sua potencialidade, ela está sempre em

movimento, com o objetivo de equiparar essência e experiência. Esse movimento

constante é o que permite o historiador do presente compreender culturas

passadas. É o próprio princípio do conhecimento histórico como ciência humana.

O fato de a filosofia ser a compreensão de seu próprio tempo implica

necessariamente, por conseguinte, um conhecimento do passado. O presente, visto

como um processo, passa a ser a evidência da existência de um passado (Hegel,

1995:72).

Muitas críticas são feitas à tese da filosofia da história de Hegel. Com

efeito, é uma das mais criticadas obras do filósofo. Uma das críticas mais comuns

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 93

é aquela que acusa Hegel de transformar a história numa grande metafísica, posto

que diferentemente do que pensava Hegel, os homens não seriam produto de um

conceito, mas do sistema produtivo em que estão inseridos (Beiser, 1993:279).

Em geral, esta é a visão da crítica marxista.

Mas, para além da terminologia do absoluto e do objetivo primordial de

realização da razão, a noção fundamental em Hegel é que os homens pertencem a

determinados sistemas sócio-culturais, aí incluídas as determinações de ordem

econômica. Assim, em Hegel a história é necessariamente a história da cultura,

seja cultura artística, econômica, política etc., e não apenas uma história dos

modos de produção. Não há uma determinação original da economia sobre as

outras esferas da vida social, mas um todo social onde as esferas se relacionam

reciprocamente, sem ordem de prioridade.

Uma segunda crítica é que Hegel, na Filosofia da História, limita sua

análise às ações dos Estados, às ações políticas, abandonando, de certa forma,

outras esferas da sociedade. Daí a crítica ácida de Collingwood, que sublinha a

necessidade de não se restringir a história à política, mas de conceber as

transformações históricas no plano da economia, das artes, da filosofia e da

religião. Em Hegel, entretanto, o Estado é uma totalidade cultural e não somente

uma instituição política, e isso escapa um pouco da crítica de Collingwood. Daí

sua análise dos elementos de formação dos povos. É o Volkgeist que interessa, e o

Estado é visto como agente que potencializa este espírito nacional.

Todavia, em ambas as críticas, fica evidente um incômodo comum: a

inerente teleologia que adquire o sistema na Filosofia da História. De fato, o

único sujeito da história em Hegel é o espírito mundial. Para Marcuse, este

espírito mundial é substituto metafísico do sujeito real, é metáfora para um Deus

calvinista (Marcuse, 1978:234), que assume forma real no reino da liberdade no

Estado. Nesse sentido, o Estado é a institucionalização do espírito mundial, daí a

aplicação de Hegel da tipologia aristotélica para a história mundial. Na mesma

perspectiva, as histórias nacionais devem ser entendidas de acordo com a história

mundial; o Estado deve ser avaliado de acordo com a definição de liberdade

daquele período.

Mas esse espírito mundial assemelha-se a uma entidade metafísica superior

que coordena o processo. Diferentemente da Fenomenologia do Espírito, onde a

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 94

metafísica surge da dialética do concreto, na Filosofia da História toda a realidade

é julgada a partir desta metafísica. Daí a noção de Marcuse, de que a Filosofia da

História de Hegel representa uma ode ao processo de libertação da classe média

(Marcuse, 1978).

Independentemente disso, o que diferencia as duas obras e que leva a esse

diferente papel da metafísica, é o papel da dialética no sistema. Na

Fenomenologia, o negativo, o momento da negação – em última instância, o

momento da mediação, ou seja, da existência – era o centro do sistema. Já na

Filosofia da História, Hegel passa a dar maior ênfase ao momento da superação,

da síntese, isto é, do retorno da essência na existência, o universal concreto.

Assim, enquanto na Fenomenologia do Espírito, Hegel fala da “ puissance

prodigieuse du négatif, l’énergie de la pensée” (1941:29), na Filosofia da

História, ele define história como “conciliação [que] só pode ser alcançada pelo

conhecimento do afirmativo, no qual desaparece o negativo” (1995:21). Não é

mais uma questão de transformação, de negação das condições reais, e sim de

aceitação da vontade do espírito consciente de si. Neste ponto, torna-se impossível

fugir da idéia de teleologia, e o próprio Hegel trata da providência como motor da

história e não mais a consciência (Hegel, 1995:63).

Ao final, a crítica marxista se mantém, quando vista de uma perspectiva

mais ampla. O mesmo, entretanto, não pode ser aferido à tese da historicidade,

conforme ela emerge da Fenomenologia do Espírito.

Historicidade é conceito desenvolvido no interior da tradição historicista,

que busca se contrapor à idéia de atingir a verdade através da metafísica. É a

tentativa de enfatizar a experiência histórica como única via humana de acesso ao

conhecimento da verdade. A origem da reflexão de historicidade está em Herder,

mas só foi sistematizada por Dilthey e Heidegger. Herder desenvolve o conceito

de historicidade (por ele denominado de humanidade e singularidade) como

característica positiva do homem.18 O adjetivo “histórico” deixa seu conteúdo

negativo, quando comparado à eternidade da divindade, para se definir como

característica essencialmente humana. É uma conseqüência da crítica de Herder ao

racionalismo radical do Iluminismo, que concebe a abstração do homem racional

universal. Em Herder, tal idéia é ainda embrionária. Faltava pensar o sentido da

18 Cf. Gadamer, 1988; Barnard, 1969; e Berlin, 1979.

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história do mundo como o objetivo final da história sem, entretanto, dissolver as

diversidades históricas. Tal tarefa será desenvolvida à exaustão por Hegel.

Para Gadamer, o esquema histórico de Hegel é necessariamente

teleológico porque compreende a totalidade do processo histórico de acordo com

sua finalidade. Não obstante, sua originalidade está em conceber algo que é

próprio do homem sem, no entanto, conferir algum tipo de positividade ou

qualidade à consumação da história. Por conseguinte, não se trata de um fim da

história. A única essência imutável na história é a da própria necessidade de

transformação e atualização da consciência humana. A teodicéia histórica

desenvolvida por Hegel, que concebe a idéia da singularidade dos fatos históricos,

aliada à dialética, o movimento que busca a reconciliação dos contrários, confere

ao conceito de verdade uma significação histórica.19 Em Hegel – quem primeiro

utilizou o substantivo “historicidade” para referir-se aos gregos –, a estrutura da

historicidade é a mesma do autoconhecimento.

“Graças a Hegel, o significado da história como tal foi pela primeira vezcolocado no centro do pensamento filosófico, tornando-se simétrica e homólogada teodicéia cosmológica. O debate bem conhecido sobre o fim da história,travado no interior da escola hegeliana e no campo adversário, permanece a estetítulo como curioso mal-entendido, uma vez que Hegel foi justamente o primeiroa justificar o autêntico valor ontológico da história com os meios da reflexãofilosófica” (Gadamer, 1988:105).

A base da historicidade é o elo entre a história e o ser da vida humana.

Para a teoria da historicidade hegeliana, o conceito de vida deve estar dentro de

sua historicidade e ser o conceito fundamental da ontologia. Segundo Marcuse,

Hegel se apropria do conceito de união transcendental e o reformula de tal forma,

que a vida – essencialmente histórica – passa a ser o fundamento do ser

cognoscente, até então ahistórico. Ela é, então, designada como modo de ser da

realidade, do mundo – característica de toda a realidade. É um todo dividido

infinitamente, mas que se mantém unido. A vida é a primeira determinação do

modo do ser, pois antes de refletir, é preciso existir, é preciso viver. A reflexão é

outro momento do ser, o momento da separação, mas não implica um abandono

da vida.

19 Ver Gadamer, 1988; Binoche, 1994; e Collingwood, 1981.

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O elo entre vida finita e infinita, entre universal e particular se faz no

momento em que a vida é vivida como espírito (Marcuse, 1972:220). Neste

sentido, a reflexão, como modo de ser da vida, é um processo real, da vida total.

Neste momento, Marcuse aponta duas tendências que pautam a filosofia de

Hegel. Ambas estão relacionadas através do conceito de vida, idéia mentora

original, posteriormente superada pela idéia de saber. Nos escritos de juventude, o

espírito aparece definido a partir da vida. Já com a filosofia de Iena, é a vida que

aparece como modo do espírito (Hyppolite, 1955). Hegel, neste sentido, está

definindo a vida como conhecimento e, portanto, conduzindo sua ontologia para o

campo da vida humana. Como atividade de conhecer, o deslocamento da vida é,

assim, o deslocamento do homem. A história torna-se modo de ser da vida

humana.

Entretanto, sendo a vida conhecimento, a historicidade acaba ausente da

história da vida. A verdade da vida é dada como saber absoluto e não histórica. A

Fenomenologia é a primeira e última tentativa de reunir as duas tendências

contraditórias em uma comunhão original, com vistas a fundar, historicamente, a

não historicidade do saber absoluto – como vida que é histórica traz em si a

possibilidade de ser não-histórica. Esta última tendência é a que prevalece na

Filosofia da História, onde Hegel não considera mais a historicidade como

determinação do ser da vida, mas analisa a história de forma não-histórica, a partir

do saber absoluto (Marcuse, 1972:234-235; Beiser, 1993).

A Fenomenologia do Espírito é, ao lado da Lógica, a obra que contém o

conceito original de vida e de história como historicidade interna ao espírito

(Marcuse, 1972). Nelas, a reinteriorização e a exteriorização são movimentos

decisivos do processo histórico. A conservação e superação do passado e o

desenvolvimento do futuro com base no passado são formas que assume o

“movimento dotado de saber” da consciência de si. Exatamente porque é histórica

e devido à sua historicidade, a vida pode se tornar espírito.

A vida é conceito central na Fenomenologia porque é o local onde a

consciência de si encontra seu objeto, ou seja, ela mesma (Marcuse, 1972;

Hyppolite, 1946). A vida é o meio em que os seres estabelecem uma mediação

entre si, por isso é autonomia infinita. A consciência de si é um modo desta

autonomia (um modo de vida). Porque tudo é vida, então, a relação entre

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consciência e objeto não é mais de sujeito x objeto, mas a relação autonomia x

não-autonomia. Daí a vida ser uma totalidade em processo.

Conforme visto anteriormente, a vida é sempre “para outro”, porque

reflete a reciprocidade entre indivíduos autônomos. Neste sentido, é essencial à

vida o momento do reconhecimento, porque só aí ela se torna vida. Assim, o

processo de descoberta da alteridade – ilustrado pela dialética do senhor e do

escravo – é determinação ontológica da vida (Marcuse, 1972:247). É aquilo que

origina o processo da experiência da vida no mundo concreto em duas direções: o

desejo e o reconhecimento. Estes são determinações ontológicas da vida humana

em sua historicidade no processo concreto do mundo.

A consciência de si repete o movimento do processo da vida: o processo

da individualidade primeiramente imediata, como desejo, e posteriormente

refletida, como reconhecimento. Aí se atinge a alteridade, que adquire, diante

deste movimento duplamente dividido, duas direções: como desejo, onde a

relação é entre sujeito e objeto; e como reconhecimento, onde é uma relação entre

sujeitos.

O desejo é o modo de ser da consciência, uma relação imediata inautêntica

que conduz à perda de essência (Hegel, 1941:146-147). O passo decisivo é a

passagem do desejo ao reconhecimento, à noção de realidade do ser não mais com

relação a objetos, mas a outras consciências, outros sujeitos. Esta noção de

processo da vida composto da dialética do “nós”, da oposição e da reciprocidade

entre consciências de si é o que introduz a dimensão da historicidade da vida.

Dimensão esta que está explícita no conceito de espírito – a substância que

permite a união refletida do ser e do nós (Marcuse, 1972:254-255).

Segundo Marcuse, o conceito de historicidade da vida é a necessidade

material de Hegel, uma vez que seu sujeito não é mais a consciência

transcendental de Kant e Fichte, mas um sujeito que experimenta o mundo. A

historicidade é enfatizada a partir do momento em que a consciência de si só é

plenamente real quando afirmada, sempre no movimento de se tornar realidade.

Assim, a consciência depende do estado atingido pelo desenvolvimento do

espírito mundial. A realização efetiva do espírito depende de conscientização

daquilo que já se afirmou, ou seja, tal como a consciência, o espírito também é

filho de seu tempo.

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A realidade efetiva do ser, que é realidade da consciência e ao mesmo tempo

consciência dela mesma, é o espírito. A passagem da consciência racional ao

espírito é o desenvolvimento verdadeiro, oriundo do processo histórico, da

realidade efetiva da vida. O espírito é a totalidade da existência, ele é o mundo da

consciência de si se realizando. É a união da vida como consciência e como

objeto. O povo livre é a figura em que a vida se realiza como mundo espiritual

(totalidade). É aquilo que confere existência e realidade efetiva (racional) às ações

individuais. É a universalidade concreta; a transformação da consciência de si em

consciência universal. É a primeira figura do espírito como desenvolvimento

efetivamente real.

Assim como o indivíduo sujeito, o espírito sujeito apresenta os momentos

de negação e mediação, ambos ligados ao tempo. Somente quando o espírito

apreende, assimila e supera as figuras passadas, isso é, as suas diferentes

exteriorizações, ele pode atingir o conhecimento da consciência de si e de sua

verdade. Da mesma forma que o indivíduo, a reinteriorização demonstra a

historicidade necessária do espírito, que é renúncia e transformação.

Daí a lei interna da historicidade: toda forma de vida se origina da

renúncia e auto-reflexão das formas de vida anteriores (Marcuse, 1972:325). Ela

permite agitação e transformação constante do espírito, mas também um sentido

de desenvolvimento, porque se acumula conhecimento. O mundo dos diferentes

espíritos constitui uma sucessão que não se desfaz no tempo, mas que, para Hegel,

é superada no tempo pelo espírito absoluto, que por sua vez supera o próprio

tempo (Marcuse, 1972:326). Daí a determinação essencial da história para Hegel:

a revelação do conceito absoluto. Mas a configuração do espírito absoluto ao final

da Fenomenologia não invalida a dialética do indivíduo como parte integrante e

ativa do espírito que o envolve.

A problemática da historicidade nasce, portanto, da centralidade que o

conceito de vida assume na ontologia hegeliana. Como meio universal ou

substância onipresente, a vida coloca imediatamente o problema da historicidade a

partir do momento em que tudo se realiza no tempo, a natureza, as leis, o espírito.

Neste sentido, a historicidade é o próprio fundamento do conhecimento, a base da

filosofia. Marcuse (1972) sustenta, com efeito, que este é o sentido profundo da

ontologia hegeliana. Ela dissolve completamente no processo histórico tanto o

conceito abstrato de homem, quanto o sistema natural.

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 99

3.4A dimensão política: a Filosofia do Direito

Principalmente com Herder, a reflexão histórica passa de uma reflexão

orientada pela moralidade absoluta à noção de moral temporalizada, ou seja, a

história é concebida como um processo (Koselleck, 1997). Daí a frase síntese de

Schiller: “A história mundial é o tribunal mundial” ( Die Weltgeschichte ist das

Weltgericht.) – citada por Hegel na Filosofia do Direito. A constituição da história

como tribunal expõe a idéia de uma justiça (mundial) que se realizaria pela

história, e esta relação entre o processo histórico e o Estado é o principal centro

nervoso da Filosofia do Direito, de acordo com a perspectiva adotada neste

estudo.

O propósito de Hegel, ao escrever o seu tratado sobre a política, era “to

comprehend and portray the state as an inherently rational entity” (Hegel,

1991:21). O Estado está, portanto, no centro de sua preocupação política, e não

mais o indivíduo, como era característico da tradição jusnaturalista de Hobbes,

Locke e Grotius. Neste sentido, Hyppolite, ao analisar os primeiros trabalhos de

Hegel, afirma que o indivíduo em Hegel é apenas uma abstração, pois a

verdadeira unidade orgânica – ou o universal concreto – era o povo (Hyppolite,

1968). Assim, o povo ocupa o lugar da conciliação entre objetivo e subjetivo, o

consciente e o inconsciente. É somente na esfera do povo que a intuição

intelectual se torna real, somente aí que a moral se realiza. Em resumo, o povo é o

tempo no espaço.

O espírito do povo é aquilo que reconcilia o dever ser com o ser, uma

realidade história que supera o indivíduo. Daí a idéia de que o Estado é uma

totalidade temporal, porque está necessariamente associado ao espírito do povo. O

Estado em Hegel é, antes de tudo, uma comunidade ética.

“Essa totalidade temporal é uma essência, o espírito de um povo. Os indivíduospertencem a ele; cada um é o filho de seu povo e, igualmente, um filho de seutempo – se o seu Estado se encontra em processo de desenvolvimento. Ninguémfica atrás no tempo e muito menos o ultrapassa. (...) O espírito de um povo é umespírito particular e determinado, e é também, como acabamos de dizer,determinado pelo grau de seu desenvolvimento histórico” (Hegel, 1995:50).

Ao definir o povo como sujeito de sua teoria política, Hegel se coloca

entre o individualismo e o cosmopolitismo, pois a idéia central que ele desenvolve

é a de que a humanidade (o universal) só se realiza através dos povos distintos (o

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singular).20 A noção de espírito assemelha-se à de comunidade religiosa. Com

efeito, Hyppolite argumenta que esta é a origem da noção de Sittlichkeit que

sintetiza as idéias éticas na teoria política hegeliana (Hyppolite, 1968). Mas longe

de advogar aqui a tese da divinização do Estado, o que cabe ressaltar é que esta

noção de espírito permite superar a esfera original do contrato como pilar da teoria

política em voga no século XVIII. Aqui, mais uma vez, Hegel encontra-se mais

próximo de Herder, que associa à nacionalidade as idéias de linguagem, costumes

e cultura comuns.

Nos seus primeiros escritos políticos, onde está em gestação o conceito de

Sittlichkeit, nada é superior ao espírito do povo.21 Mesmo a religião e a arte, que a

partir da Fenomenologia do Espírito, incorporam o espírito absoluto, estão

incluídas nesta totalidade (Hyppolite, 1968). A idéia da comunidade ética é que

ela possa transcender a discussão entre racionalismo e empirismo, cara ao

Iluminismo. A crítica ao empirismo é particularmente interessante para este

estudo, porque está direcionada diretamente às teorias da natureza humana e do

estado de natureza.

Em ambos dos casos, o Estado surge como oposição à natureza, como algo

imposto do exterior. É esta oposição que Hegel quer superar, através da idéia da

totalidade orgânica, o fundamento ontológico do indivíduo, aquilo que une a

particularidade da natureza e a universalidade do espírito. Quanto ao segundo

caso, do estado de natureza, a crítica é essencialmente lógica. Segundo Hegel, se o

estado de natureza é uma determinação absoluta, uma unidade absoluta original,

então, independentemente do Estado que se imponha do exterior, “ their [men’s]

only relationship consists in being many (...) they are destined to be mutually

opposed and in absolute conflict with one another” (Hegel, 1999:112). Se o

Estado é exterior, ele não resolve o dilema do estado de natureza. Ademais, este

estado de natureza é um a priori cuja determinação está no próprio a posteriori.

Ou seja, em última instância, é a conseqüência que determina a causa.

“In the state of nature or the abstraction of man, the isolated energies of theethical realm must be thought of as embroiled in a war of mutual annihilation.For precisely this reason, however, it is easy to show that, since these qualities

20 É este meio termo entre individualismo e cosmopolitismo que chamou a atenção dos teóricosatuais para a filosofia política hegeliana. Os comunitaristas, como eles se denominam, destacamem especial a tese da Sittlichkeit. Cf. sobretudo Benhabib, 1994 e Taylor, 1995.21 Cf. Hegel, 1999; e 1979.

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are purely and simply opposed to each other and consequently purely ideal, theycannot survive in this ideality and separation as they are supposed to do, butcancel each other out and reduce each other to nothing.” (Hegel, 1999:112).

Com relação ao cosmopolitismo, a crítica de Hegel volta-se diretamente

contra o universalismo kantiano, afirmando que este perde totalmente o contato

com a realidade, passa a ser apenas uma tautologia, uma vez que se isola a

determinação de seu contexto, retirando-lhe sentido, e submete-a à forma mais

geral (Hegel, 1999; Hyppolite, 1968). É o dilema dos impérios: extensão x

profundidade. Quanto mais extenso o domínio, menos articulado ao cotidiano dos

cidadãos, menor a legitimidade, portanto.

Diante das insuficiências da teoria política moderna, apontadas por Hegel,

a Filosofia do Direito constitui uma proposta alternativa à teoria do Estado

moderno (Taylor, 1975; Avineri, 1972). A concepção de Estado ético, que emerge

da obra, simboliza a dupla crítica de Hegel à filosofia empirista de Hobbes, com

seu corolário do Estado utilitarista – devido à associação entre interesse e bem,

razão e cálculo, sendo objetivo do Estado a harmonia de interesses – e ao

idealismo formal de Kant, cuja doutrina da autonomia radical moral, baseada

(assim como o empirismo hobbesiano) no ideal de natureza humana, é vazia, sem

conteúdo. Daí a crítica ao formalismo kantiano, como um vácuo onde, ao final, a

racionalidade não é imanente, mas externa. É a universalidade formal imposta ao

homem onde só a idéia de liberdade negativa é possível (Taylor, 1975).

Toda a estrutura da obra – direito abstrato, moralidade, vida ética –

evidencia a versão hegeliana do processo dialético de formação do Estado

moderno. É neste sentido que Hegel define-a como uma abstração racional do

processo histórico de formação do Estado. Com efeito, Hyppolite argumenta que

uma das grandes críticas a esta obra é que não se sabe se ela é uma descrição

idealizada do Estado ou uma descrição histórica do seu processo de formação

(Hyppolite, 1968). De acordo com a metodologia exemplificada na

Fenomenologia, trata-se de ambas as descrições; afinal, lembrando o paradoxo

hegeliano da historicidade do espírito absoluto (Marcuse, 1972), trata-se de uma

formulação do conceito de Estado de acordo com a história de sua formação.

O que é relevante para o tema do reconhecimento, no entanto, é que toda a

obra, todas as passagens entre direito abstrato e moralidade, e desta à vida ética (e

inserida neste último momento, entre família e sociedade civil, e posteriormente

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 102

Estado) está fundamentada no pilar do reconhecimento, seja com relação à

propriedade e ao desejo (como no direito abstrato e na sociedade civil) –

momentos por definição insuficientes – seja à alteridade e ao reconhecimento

recíproco da interdependência entre consciências de si (principalmente a

passagem da moralidade à vida ética e da sociedade civil ao Estado).

Na Fenomenologia, a consciência de si era primeiramente desejo, isto é,

uma relação destrutiva com a alteridade, relação de satisfação absoluta. Este é o

efeito da primeira tomada de consciência de uma alteridade: o desejo de

particularidade, negação da alteridade. Mas é apenas o primeiro momento. Por

conseguinte, a existência só se realiza efetivamente na luta entre consciências, na

dialética do senhor e do escravo. O resultado da luta é sempre um impasse porque

o ser para si (o senhor) não pode abstrair-se de sua existência, que é

necessariamente para outrem. Aí se recupera o movimento do reconhecimento em

direção à incorporação da alteridade através do trabalho e da cultura. Daí a

afirmativa de Hyppolite de que a dialética do reconhecimento tem como produto

uma individualidade incompleta, que necessita da outra individualidade, ou seja, o

resultado é uma intersubjetividade.

Neste sentido, na Filosofia do Direito está implícita a idéia de que apenas

no Estado o indivíduo atinge sua plena autonomia, ou seja, onde ele é unidade na

alteridade. É um Estado visto como esfera que aglutina as experiências de trabalho

e cultura (Bildung) dos diferentes indivíduos, isto é, não é uma instituição superior

ou externa aos indivíduos, mas o conjunto da própria comunidade; é o espírito

daquela comunidade objetivado na realidade, é a chamada Sittlichkeit, ou vida

ética. Não é, entretanto, um Estado totalitário como alguns críticos o designam,

porque mesmo sendo espírito, ele está objetivado, não está na sua essência

(porque o momento da existência é aquele da mediação, da negação, da não-

essência). Por conseguinte, não pode ser um Estado absoluto; seu direito não pode

ser absoluto porque neste caso imobilizaria o próprio processo histórico. De fato,

Hegel afirma categoricamente, e diversas vezes ao longo do texto, que o direito do

Estado está sempre submetido ao processo histórico mundial.

“ The right of the state is therefore superior to the other stages: it is freedom in itsmost concrete shape which is subordinate only to supreme absolute truth of theworld spirit” (Hegel, 1991:64).

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 103

Hegel define o direito essencialmente como espírito, e assim sendo, como

vontade (1991; §04); porque a base do direito é o espírito, seu ponto de partida

passa a ser a vontade (inerente ao espírito). Uma vez que vontade e pensamento

desenvolvem uma relação dialética, pois são superficialmente distintos, mas partes

de um mesmo todo (espírito), ela permite a atualização do direito na realidade,

representa o elemento ativo do processo, o elemento particular, que refletido no

universal (espírito), produz o singular, o direito: “ the theoretical is essentially

contained within the practical (...) It is equally impossible to adopt a theoretical

attitude or to think without a will, for in thinking we are necessarily active”

(Hegel, 1991:36).

Mas vontade é diferente de arbítrio: “arbitrariness is contingency in the

shape of will” (Hegel, 1991:48). A liberdade não deve ser confundida com

arbitrariedade, pois a contingência é o conteúdo do arbítrio, conseqüentemente o

“eu” deste arbítrio também é dependente desta contingência exterior, portanto não

é livre. De fato, a relação arbitrária é imediata. Neste sentido, passa a ser conteúdo

da ciência do direito a transformação das inclinações, impulsos (“ drives”) em um

sistema racional de vontades determinadas. A vontade só é livre através do

processo de mediação da consciência de si, ou seja, via reflexão. A consciência de

si refletida em si diferencia-se da contingência e constitui princípio do direito, da

moralidade e da ética.

Na Filosofia do Direito, a esfera da vida ética é definida como síntese

(conseqüentemente, superação) da esfera do direito abstrato e da moralidade.

Segundo a lógica dialética de Hegel, o primeiro momento, ou o direito abstrato,

supera seu imediatismo através da penalidade, voltando-se para a esfera subjetiva

da moralidade. Não se encontra aí, como argumenta Marcuse (1978:200), um

mecanicismo; afinal, o erro, através da penalidade, é o componente dialético desta

passagem. Assim, o direito, que era vontade imediatamente objetivada na

realidade no primeiro momento, retorna em si através do processo de mediação e

auto-reflexão, transformando-se em vontade subjetiva, lócus do interesse e da

conscientização da diferença. Neste momento de moralidade, o direito, que era

proibição na imediaticidade do direito abstrato, mantém-se como obrigação mas

ainda não passa à esfera do mundo objetivo. Essa passagem dialética da

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 104

moralidade subjetiva para o mundo objetivo marca a base da vida ética, ou seja, o

processo de objetivação da vontade particular refletida no universal:

“The sphere of right and that of morality cannot exist independently; they musthave the ethical as their support and foundation. For right lacks the moment ofsubjectivity, which in turn belongs solely to morality, so that neither of the twomoments has any independent actuality.” (Hegel 1991:186)

Aqui fica claro que, através da concepção de individualidade incompleta

ou intersubjetividade que permeia sua noção de sujeito, Hegel desloca o pólo de

gravidade da filosofia política, do indivíduo para a comunidade. Os indivíduos são

definidos pela comunidade a que pertencem. Mas é sempre importante lembrar

que, assim como Hegel nega o utilitarismo do Estado, ele também o faz com

relação à visão utilitarista dos indivíduos como instrumentos para realização do

Estado (Taylor, 1975). A relação entre indivíduo e Estado não é a de meios e fins,

mas uma relação orgânica: seres humanos só são humanos em uma comunidade

cultural – é a dialética da consciência de si e do reconhecimento. A cultura passa a

ser a esfera definidora do ser humano e de sua sociedade; ela molda tanto as

experiências públicas quanto privadas. Assim, “ this universality, as the quality of

being recognized is the moment which makes isolated and abstract needs, means

and modes of satisfactions into concrete, i.e. social ones.” (Hegel, 1991:229).

De fato, a esfera da vida ética é aquela em que a idéia de liberdade como o

bem real cuja vontade e conhecimento faz parte da consciência de si e cuja

atualidade está engendrada na ação autoconsciente: “ Ethical life is accordingly

the concept of freedom which has become the existing world and the nature of self

consciousness” (Hegel, 1991:189). Esta idéia de liberdade manifesta-se

primeiramente na família, sendo então imediata e, portanto, não essencial,

posteriormente na sociedade civil, aí como liberdade negativa, pois é a esfera da

propriedade (e do desejo), e finalmente como liberdade mediada, refletida, no

Estado.

A substância ética atinge seu direito através dos costumes e o direito, sua

validade também via costumes, porque é aqui que oposição entre consciência

particular e consciência da comunidade (ética) se dissolve a partir da mediação

(processo mediado e não imediato) – Hegel 1991: §152. Somente no mundo

exterior, ou seja, na esfera da vida ética, podem os indivíduos atingir a liberdade

real por eles postulada na esfera da moral (aí ainda abstrata). Por isso, vida ética

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 105

supera a moralidade e indivíduo atinge seus direitos somente através do

pertencimento a um Estado (Hegel, 1991: §153).

A noção de Sittlichkeit propõe, por conseguinte, que a moralidade atinge

sua acepção completa somente na esfera da comunidade. Aqui, Hegel recupera e

flexibiliza o conceito de moral kantiano. Ao historicizar o conceito de imperativo

categórico no conceito de Sittlichkeit, Hegel propõe um equilíbrio entre razão e

sensação (Wood 1993). Segundo a filosofia hegeliana, os conceitos de indivíduo e

subjetividade só atingem significado concreto no sistema social da vida ética.

Considerando que a vida ética se objetiva na liberdade do ser, é através de uma

ordem social racional que a dimensão ética se realiza plenamente. Esta liberdade

só pode ser atingida socialmente colocando a ética não como uma esfera

coercitiva diante das vontades humanas, mas como esfera libertária (Wood

1993:229).

Porque o reconhecimento é o elemento central da definição hegeliana de

Sittlichkeit, não pode estar separado da noção de Estado, que em Hegel é a esfera

síntese da vida ética. Segundo Avineri, o momento ético que representa o Estado é

a união entre a consciência subjetiva e a ordem objetiva, por isso o

reconhecimento é a base do Estado ético, já que a ação humana tem origem na

vontade subjetiva (Avineri 1972:178). Conseqüentemente, o conceito de

reconhecimento também se faz central na teoria da soberania de Hegel, crucial

para sua concepção de relações internacionais.

A idéia de soberania de Hegel está vinculada à noção de individualidade.

Neste sentido, ele afirma que:

“Sovereignty, which is initially only the universal thought of this ideality, canexist only as subjectivity, which is certain of itself and as the will’s abstract (...)self-determination in which the ultimate decision is vested. This is the individualaspect of the state as such, and it is in this respect alone that the state is itselfone” (Hegel, 1991: §279).

Em Hegel, o Estado depende dos indivíduos, pois a liberdade concreta

depende da individualidade pessoal e de seus interesses para se realizar. Assim, o

universal não atinge validade e reconhecimento sem o interesse, a vontade e o

conhecimento do particular. No entanto, indivíduos ao reconhecerem-se como

interdependentes desenvolvem não somente sua subjetividade, mas também sua

objetividade, ou seja, seu universal, por isso agem conscientemente para este fim

(Hegel, 1991:§260).

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 106

Assim, a teoria da soberania em Hegel está subdividida em duas. A

soberania interna realiza-se quando os momentos do espírito e sua atualização, o

Estado, desenvolvem-se em sua necessidade e subsistência como membros da

totalidade do Estado. Mas o espírito é também ser para si, ou seja, além da

unidade, é constituído pelo elemento de exclusividade. Neste sentido, o Estado

tem individualidade (Hegel, 1991:§321). A soberania externa reflete a posição

negativa da individualidade – a mediação e a negação. Na Filosofia do Direito,

estes dois momentos representam, respectivamente, a diplomacia e a guerra.22 Em

Hegel, a reflexão sobre a guerra como momento ético chama bastante atenção,

relegando a um segundo plano sua idéia de soberania.

A análise sobre a dimensão internacional da realidade social está

subdividida na Filosofia do Direito no momento da guerra e na idéia de soberania.

Esta, por sua vez, subdivide-se em duas: a soberania interna e a externa. Mas

porque a soberania em Hegel está associada à noção de individualidade do Estado,

ambas as soberanias são relativas, ou seja, dependem do reconhecimento de

outrem. Aí a associação deve ser feita com o processo de construção da

individualidade descrito na Fenomenologia. Daí a argumentação de Shlomo

Avineri de que, assim como ocorre com a consciência de si, somente através do

reconhecimento externo de sua soberania o Estado pode ser definido enquanto tal.

Daí que: “there is nothing more dialectical than Hegel’s assertion that is

precisely in the moment of sovereignty which appears as power unlimited by any

other factor, that the ultimate limitation of the State’s action is inherent” (Avineri

1972:204).

Mas Hegel define expressamente a esfera internacional como o campo da

contingência, do estado de natureza (Hegel, 1991: §333). Embora a dimensão

internacional esteja definida como sistema de costumes onde se alternam

momentos de guerra e de paz, ela é ainda um lócus de contingência. Todavia é

preciso analisar com cuidado a definição de estado de natureza utilizada por

Hegel.

“But since the sovereignty of states is the principle governing their mutualrelations, they exist to that extent in a state if nature in relation to one another,and their rights are actualized not in a universal will with constitutional powersover them, but in their own particular wills” (1991: §333).

22 Para a reflexão sobre a guerra como momento ético de atualização do Espírito ver § 323-324 daFilosofia do Direito. Avineri (1972) e Hyppolite (1968) apresentam sínteses da visão hegeliana daguerra.

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 107

Na realidade, as relações internacionais constituem-se em estado de

natureza porque não existe um poder coercitivo superior capaz de impor-se sobre

a vontade dos Estados particulares. Assim, para Hegel o estado de natureza que

caracteriza a esfera internacional não é um princípio metafísico pré-social, como é

típico da definição de estado de natureza no jusnaturalismo. Esta definição de

estado de natureza como etapa pré-social é amplamente criticada por Hegel em

seu ensaio sobre o direito natural (Hegel, 1999). Como fora visto no capítulo

anterior, Norberto Bobbio (1991) considera este ensaio um dos elementos

responsáveis pelo fim da tradição jusnaturalista.

Além disso, Hegel define a soberania estatal como a força que coordena as

relações entre Estados no plano internacional. Mas como fora visto anteriormente,

a soberania é definida por Hegel como individualidade, portanto, pressupõe um

processo de conscientização e afirmação diante de outras individualidades, no

caso, de outro Estados, ou seja, pressupõe um processo de reconhecimento.

Assim, o estado de natureza ao qual Hegel se refere para definir as relações

internacionais trata-se antes de um estado de luta pelo reconhecimento, processo

similar à constituição das consciências como individualidades, descrito na

Fenomenologia.

Hegel é bastante criterioso ao definir o internacional. Ele localiza a

dialética do particular e do universal através dos processos de reconhecimento que

se estabelecem no plano internacional, podendo constituir guerra ou tratados. Daí

a afirmativa que mesmo em períodos de guerra, o reconhecimento se mantém

porque é ele que permite a própria existência da guerra (1991: §338). Deste modo,

na Filosofia do Direito, mesmo que os Estados sejam definidos como totalidades,

estes, ao atuarem no sistema internacional, agem como individualidades. Daí ser

necessária a esfera da alteridade, do reconhecimento externo, assim como ocorre

com as consciências (Avineri, 1972).

A apologia da guerra no final da Filosofia do Direito poderia levar

erroneamente à conclusão de que o Estado hegeliano é expansionista e autoritário,

em resumo, uma teorização do Estado prussiano. Com efeito, esta é a conclusão

de uma série de críticos (Marx, 1970; Taylor, 1975; Marcuse, 1978; Popper, 1974;

Cassirer, 1976). Mas fazendo analogia ao processo de reconhecimento, que é a

base da ontologia hegeliana, assim como há luta pelo reconhecimento, há

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A perspectiva hegeliana e suas antinomias 108

constituição de uma cultura e hábitos intersubjetivos que conferem realidade às

consciências. O mesmo ocorre no plano internacional.

3.5 Conclusão

O sistema hegeliano está, portanto, fundamentado em uma ontologia da

historicidade. Porque Hegel concebe o homem como ser histórico e social, o

processo de conscientização só se completa por meio da dialética do

reconhecimento. Isto permite a construção de uma lógica de pensamento que é em

si dinâmica, pois parte do princípio da dialética do universal e do particular. Tudo

na filosofia hegeliana está definido em termos de universal, particular, singular. É

a relação constante entre estes momentos do ser que permite o dinamismo

característico de seu sistema. O processo de reconhecimento evidencia estas

passagens constantes. A partir dele é possível pensar individualidade e alteridade

através da idéia de intersubjetividade que é latente no pensamento hegeliano.

Diferentemente da noção de História como exteriorização do espírito, idéia

esta que traz em si a teleologia do saber absoluto, a noção de historicidade é

dinâmica e permite associar continuidade e transformação. Ela está, enfim,

associada diretamente à noção de reconhecimento, pois, conforme será visto no

capítulo seguinte, o reconhecimento é composto de dois momentos, o auto-

reconhecimento e o reconhecimento recíproco. Ambos são cruciais para a relação

de intersubjetividade e historicidade que formam o sujeito hegeliano.

No plano da filosofia política, as noções de historicidade e reconhecimento

são a base da concepção de Sittlichkeit, ou vida ética. O Estado é assim concebido

como uma das instituições da vida ética, ao lado da família e da sociedade civil. A

forma como esta institucionalização se dá também pode ser lida via a lógica do

reconhecimento e, de fato, assim o será no próximo capítulo. O que é relevante

neste momento é que diferentemente do jusnaturalismo característico das análises

da Escola Inglesa, na ontologia hegeliana está voltada para o caráter social e

histórico que pautam as ações humanas. Daí ser a origem da teoria social, de

acordo com a análise de Marcuse (1978).

Como fora visto no capítulo anterior, a esfera do reconhecimento

internacional é componente essencial da idéia de sociedade internacional. A

ontologia hegeliana, uma vez centrada sobre esta idéia primordial de

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reconhecimento, partilha este princípio com a definição original de sociedade

internacional. Portanto a idéia de sociedade internacional e a lógica do

reconhecimento não estão fundamentadas em princípios opostos entre si. Ao

contrário, a associação destes dois conceitos permite uma leitura dialética da

sociedade internacional espaçando, conseqüentemente, do imobilismo.

O reconhecimento implica tanto conflito, quanto reconciliação. Assim, o

movimento deste reconhecimento se faz por meio da cultura diplomática, que

pode levar a conflito (guerra) ou reconciliação (direito). No plano internacional,

este processo encontra-se em aberto, diferentemente do plano individual. A

sociedade internacional está, por conseguinte, pautada sempre por conflito e

reconciliação. Isto conduz à noção de Sittlichkeit. Possíveis instituições de uma

sociedade internacional podem ser pensadas em termos de Sittlichkeit, pois esta é

a esfera em que se institucionaliza o processo do reconhecimento. Em última

instância, estas instituições refletem o processo histórico de reconhecimento entre

as nações.

É em direção a estes temas, com o intuito de incorporar a noção de

reconhecimento ao conceito de sociedade internacional, que este trabalho volta

agora.

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