03_o curso filosófico_jean françois lyotard
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O CURSO FILOSOFICO - ~rean-François Lyotard
(Tradução de Renata Maria Parreira Cordeiro)
A dar crédito ao prospecto desses Encontros, o que
.·'' _está em jogo, aqui, em. nossa reflexão, é a formação .
filosófica dos docentes, admitindo-se que "educar e instruir
são atos filosóficos".
Não sei o que significa "ato filosóf i co". Darei à
palavra ~ um sentido estrito, que a opõe à potência. E
direi que a filosofia não é uma entidade, uma potência, um
corpo de saberes, de saber-fazer ("savoir-faire"), de s aber-
sentir, mas que ela é somente em ato. Acrescento que educar
e instruir parecem-me atos filosóficos do mesmo modo que
banquetear ou equipar um navio. A filosofia não é um terreno
recortado na geografia das disciplinas. Todos sabemos disso.
Digo "curso filosófico" como se diz " fio do tempo".
Sabemos que em torno da palavra formacão, " Bildunir", e,
portanto, em torno da pedagogia e da reforma, j oga-se, na -
reflexão filosófica, desde Protâgoras D Platão , desde
Pitágoras, uma partida maior. Partida essa que tem por
pressuposto que o espírito dos homens. não lhes é dado de
maneira adequada e tem que ser re-formado. O monstro dos
filósofos é a infância. ~também seu cúmplice. A infância
lhes diz que o espirito não é dado. Mas que é possivel.
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Formar quer dizer •J.Ue um mestre vem ajudar o
espirito possível, à espera na infância, a se cumprir. Os
· senhores conhecem o circulus yitiosus; mas, e o próprio
mestre? Como se emancipou de sua monstruosidade infantil?
Educar os educadores, reforma!.' os reformadores: segue-s·e a
aporia de Platão por Kant, até Marx. Serà preciso, como para
a psicanálise, dizer: da mesma forma que houve uma auto-
análise fundadora, teria havido uma autoformação fundadora?
Um autodidata, pai de todas as didáticas?
Uma diferença entre os filósofos e os psicanalistas
é que os primeiros têm muitos pais, muitos em demasia, para
admitirem lllD..a paternidade. Em compensação filosofar é,
antes de tudo, uma autodidática.
É isso o que quero dizer, primeiramente, por curso
filosófico. Não se pode ser um "maitre" (mestre),
"maitriser" (dominar) o cur;30. Não se pode expor uma
questão, sem se expor a el~. Interrogar ·Um "sujet"
(sujeito/assunto) (a formaç.io, por exemplo) sem ser
interrogado por ele. Sem reata::-, portanto, com a estação de
infância, que é a dos possiveis do espirito.
E preciso re-começa~. Não pode ser filósofo o
espírito, incluído o espírito do professor de fi~osofia, que
chega abastado sobre a· questão e que, em sala de aula, não
comeca. Que não retoma o curso pelo comece. Sabemos todos,
em primeiro lugar, que esse ·crabalho tem que ocorrer por
oç:asião de qualquer questão ou de qualquer "sujet"
(sujeito/assunto) e, em SEgundo lugar, que começar não ;. r t·: .. .
significa tomar genealogicamen·~e (como se a genealogia e, em
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., .;. ó·-:.0: .·:! .. . . : . ~ i i · ~ ··
particular, a serialidade/diacronia historiadora, fosse sem
interrogações). O monstro criança não é o pai do homem; está
no meio do homem, é seu de-curso, sua deriva possível,
ameaçadora 1( é, no me i o do homem, seu de-c urso, sua deriva
possivel, ameaçadora; há, no n:eio do homem, seu de-curso,
sua deriva possível, ameaçadora). Começa-se sempre pelo
meio. f: por isso que o projete de um currículo filosófico,
projeto tomado às ciência~ exatas, parece votado ao
fracasso.
Do mesmo modo, ·:autociidata" não significa que não
se aprende nada dos outros. Hae. , somente que não se aprende
nada deles, se eles não fazem com que se aprenda a
desaprender. O curso filosóficc não se propaga como um saber
se transmite. Por aquisição.
Isso fica evidente nc caso da leitura filosófica,
que fornece o essencial do diélogo que temos conosco sobre
um "sujet" (sujeito/assunto). Tal leitura não é filosófica
porque os textos lidos são filosóficos _ podem ser de
artistas, de cientistas, c omo também de políticos, e pode-se
ler textos filosóficos sem filosofar ela só o é
(filosófica) se é autodidática. Se é um exercício d e
desconcertação em relação ao texto, um exercício de l t.
paciência. O longo curso da leitura filosófica não ensina ., ~~
' somente o que é preciso ler, rr.as que não se acaba nunca de
ler, que só se começa, que n~o ee leu o que ee leu. Tal
leitura é um exercicio da escuta.
Formar-se para a escuta na leitura, é formar-se
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para o retorno, perder a boa forma. Reexaminar os
pressupostos, os subentendidiclos, no texto e na leitura do
texto. O essencial daquilo a que chamamos elaboração, que
acompanha e desdobra a escuta paciente, consiste na
anamnese , na procura do que permanece ainda impensado,
quando já foi pensado. É por isso que a elaboração
filosófica não tem nenhuma relação com a teoria, nem a
experiência dessa elaboração com a aquisição de um saber
(mathema). É igualmente por essa razão que a resistência que
se encontra ao trabalho de escuta e de anamnese é de
natureza diferente daquela que se pode opor à transmissão de
conhecimentos.
O curso trabalha a d ~ta realidade. Depura-lhe os
critérios. Suspende-a. Se um dos principais critérios da
realidade e do realismo é ganhnr tempo, o que é, -. parece-me,
o caso~ atualmente, então o curso filosófico não é adequado
à realidade de hoje. Nossas d~ficuldades de professores de
filosofia advêm, essencialmentH, da exigência de paciência. \ 1
Que se tenha de suportar o f<tto de não se progredir
maneira calculável, visivel), de só sempre começar, isso
contrário prospectiva, aos valores amb :.entes de
(de
é \ de
desenvolvimento, de meta, de performance , de rapidez, de
contrato, de execução, de go;;o. Quando eu lecionava nos
estabelecimentos secundários, lembro-me desta constante:
estávamos "afogados", os alunos e eu, durante todo o
primeiro semestre. O curao começava, ou melhor, o começo
comecava, com oe eobreviventeu, em janeiro. Era preciso, é
preciso resistir à infância do pensamento. Sei que as
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"condições", como dizem, não Báo mais as mesmas. Chego ao
ponto.
Não lhes ensino nada lpor hipótese). Sabemos to-dos
que o curso de filosofia existH ao,mesmo título que o curso
filosófico. A titulo de transm~tir, sobre temas impostos ou
não do programa, não somente e1:emplos desse trabalho de r e-
começo tirados da bibliografia filosófica, ou dos sighos
desse mesmo trabalho tomados ét hist6r ia das ciências, das
técnicas, das artes, das políticas, __ portanto não somente
de fazer com que se conheçam tais exemplos e tais signos,
apresentando-os como aquilo de que se trata, como os
referentes do discurso escolar, mas de inscrever o
trabalho de escuta, de ananmese, de e laboração, diretamente
na sala de aula, pragmaticamen-ce. De inscrever ··atualmente''
no pequeno mundo de nomes próprios, onde durante duas horas,
joga-se o jogo do curso naquele dia. E que o jogo consiste
sempre, precisamente, em que esse trabalho de pensamento
ocorra, tenha curso, em aula, aqui e agora.
Essa exigência não é "pedagógica". Não determina
nenhum método de ensino. Não há ciência a esse respeito.
Pelo contrário: de que o curso filosófico se dê no curso de
filosofia, resulta que c ada cla.sse, cada conjunto de nomes,
de datas, de lugares, elabore Beu idioma, o idioleto em que
o trabalho se faz. Há uma af:Lnidade do autodidata com o
idioleto.
Eet~ ' singularidade do curso de ' filosofia, quero
dizer: neste curso e que lhe caracteriza o curso, é a mesma
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que caracteriza o curso filosófico '. Quero dizer, escrever um
texto filosófico, sozinho ou à mesa (ou andando ... ),
ocasiona o mesmo paradoxo. Eso::reve-se antes gue se saiba o
que há a se dizer e como, e para sabê-lo, se possível. A
escritura filosófica está adiantada em relação ao que
deveria estar. Como uma criança, é prematura, inconsistente.
Recomeçamos, ela não é confiável para atingir o pensamento,
lá no fim. Mas o pensamento está aqui, embal'aç·ado com não-
pensamento, tentando desembaraçar a má língua da i·nfância.
A primeira vista, portanto, não se percebe
diferença de natureza entre filosofar e ensinar filosofia.
Kant diz: não se aprende filosofia, aprende-se, na melhor
das hipóteses, somente a filosofar (pbil osopbieren)
(Arquitetônica da Razão Pura): Esteja uma pessoa só ou eritre
muitas outras, ela é autodidat.:~., no sentido de que é preciso
filosofar para se aprender a fllosofar.
Chego a meu segundo P·::>nto. Kant in tu i, no entanto,
a diferença entre o concei t·J escolar ( Schulbegriff) da
filosofia e seu conceito mund3.no (Weltbegriff). Na escola,
filosofar é esse exercício de paciência a que se chama
dialética tanto em Kant qu3.nto em Aristóteles. Porém,
largada no mundo, a filosofia ·tem que assumir, diz Kant, uma
responsabilidade segunda. Não somente experimenta o que é
pensar, mas é confrontada com um ideal, com o ideal do
filósofo tipo que é, escreve Kant, "o legislador da razão
humana". A filosofia posta no mundo tem por encargo \ relacionar os conhecimentos, todos os conhecimentos, ãs
finalidades essenciais da raz.:io humana. Eis a demanda que
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chega do mundo: ao interesse especulativo (o trabalho de
resistência de que falei) vem juntar-se um inte.resse prático
e popular da razão na filosofi~ no mundo. E como os senhores
sabem, e como Kant explica na dialética da primeira Crítica,
tais interesses são contraditórios.
O professor de filos~fia, hoje, pertence ã escola
ou ao mundo? A modernidade, as luzes, a própria reflexão
kantiana, puseram a escola no centro do interesse popular e
prático da razão. Faz dois séculos que, na França sobretudo,
e de um outro modo na Alemanha, o jogo desse interesse tem-
se chamado formação do cidadão na república. A___t:efa J
:~~:::::::o te::::---a-:-:~o é ~2~:;;~~~~~"7;~::d~;~:::::~ : ! razão de desdobrar e de cumprir os fins, a salvo de qualquer
pathos. Tal seria o legislador da razão humana.
Há nessa perspectiva "moderna" o pressuposto
seguinte: o
\ l praticamente
mundo demanda filosofia que
e politicamente_ Não· lhes ensino nada i\
não nos perguntamos (não nos demandamos) hoje, se
legisle
dizendo:
o mundo
tem ou não razão e~ dirigir essa demanda ao professor de
filosofia (ele que está no mundo pela escola moderna há dois
séculos), perguntamo-nos (demandamo-nos) se o mundo lhe
dirige ainda alguma demand,-;t desse gênero. Alguma demanda
pura e simplesmente.
Se é verdade que o curso de filosofia segue um
curso filosófico, se é verdade que filosofar, a sós ou em
sala de aula, obedece a uma demanda de retorno â infância do
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pensamento, o que acontece se o pensamento já não tem mais
infância? Se os que são tidos como crianças ou como
adolescentes deixam de ser c meio incerto do homem, a
possibilidade dás idéias? Se oe interesses estão fixados? Os
docentes do secundário na França, ao que sei, no que diz I
respeito à filosofia pelo menoe, não têm necessidade -de· ser
formados para filosofar. Eles o são, quer dizer que não o
i serão jamais, e é _bem assim. Mas não podem atualizar o curso
\ filosÓfico de que são capazes, porque os alunos não estão
dispostos à paciência, à ana~1ese, ao recomeço.
Não vejo remédio pedagógico para isso que não seja
pior do que o próprio mal. Instruir os professores no
sentido de que eles têm que ser convidativos, preconizar a
sedução, prescrever que elee captem a benevolência das
crianças, por propostas demagóEicas ou prestidigitações, é
pior do que o próprio mal. Todcs tivemos em nossas salas de /
aula alguns Alcibíades que nos vinham tentar por esse lado,
a quem foi necessário, cede ou tarde, fazer com que
compreendessem, como fez Sócretes, que se prestavam a uma
troca entre tolos, querendo targanhar a sua sedução pela
nossa sabedoria, que é nulE. O cúmulo seria que se
recomendasse aos professores ~e filosofia transformarem-se
nos Alcibíades de seus alunos. O trabalho de anamnee.e e de
elaboração em ato numa sala de aula, seja ele alegre ou
austero, não deve nada ao aliciamento.
A dificuldade presente não deixa de lembrar aquela
que o Estrangeiro de Eleia enccntra em O Sofista (217c sg.,
246c). ~ preferivel argumentar por perguntas e respostas se
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\ \ \
;,
o parceiro não opõe dificuldades e se tem as rédeas soltas
(enenlos, de ~. o freio). Se tal não é o caso, é
preferível argumentar sozinhc. Pode-se dia logar com os
Amigos das formas, eles eão .mais bem domesticados
(bemérôteroi) do que os materialistas que reduzem t udo ao
corpo. Quanto a estes últimos , faz-se o trabalho de anamnese
in absentia, inteiramente a sés e em seu lugar. Fecha-se a
escola.
O declínio dos ideais modernos acrescentado á
persistência da instituição escolar republicana, que se
apoiava neles, tem o efeito de. lançar no curso filosófico
espíritos que nele não entram. A resistência deles parece
invencível, precisamente porq1.;e não tem pega. ·Eles falam o
idioma que lhes ensinou e lhee. ensina "o mundo " e o mundo
fala rapidez, gozo, narcisiemo, competitividade, êxito,
realização. O mundo fala so~ a regra da troca econômica,
generalizada a todos os aspectos da vida, incluídas as
afeições e os prazeres. Eese idioma é completamente
diferente daquele elo curse filosófico, ele lhe é
incomensurável. Não há juiz para resolver esse "différend".~
O aluno e o professor sào vítimas um do outro. A dialética
ou a dialógic a não pode ter curso entre eles, somente a
agonistica.
Três observações para finalizar:
Em primeiro lugar, não tiro, do que precede, a
conclusao de que é preciso formar os docentes de filosofia
para a guerra (de palavras, é evidente). Mas lembro-me, n o
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.. ltt-w~~~~-r-:M~fi::t~~;..-~ .. -.v-~.-~·::.,; ~~::~ .. --~:-~;.H .. ··
._
entanto, de que o motivo maior invocado por Aristóteles para
se estudar a retórica e a dia ]_ética consiste em que aquele
que tem razão na escola pode muito bem ser vencido na ágora.
Ora, a ágora está, s e não me engano, na escola, atualmente. ~-~-------------~-------------~-- -- --------- -'------------------~
E que Kant descreve o filósofo (não o professor, c oncedo-o),
como um guerreiro sempre alert.:t, que cruza o ferro c ontra os
mercadores de aparência transc 8ndental. Devemos ser capazes
- de enfrentar a opinião maciça, malévola. Mas
[:~::::::mo: . noss.':...:.""." l~o.: ... '·=~~"_ :~·~ de é preciso
que adianta
---~-----Em seguida, há a solução platônic a: sele cionar os
espíritos com os quais o curso filosófico pode ser
processado. Solução pitagóriCé,: separ am-se os mathematikoi
dos pol itikoi. Isso s ignifica, hoje, romper com o
democratismo em favor de wna ~epública dos espíritos. E
deixar a outros o c uidado de ge rir o ~- A filosofia
\ I
torna-se matéria opcional, ou é relegada ao superior, ou
ensinada somente em alguns astabelecimentos secundários.
Tudo leva a uma saída desse gü1ero, apesar de nós. Ainda,
nesse c aso , devemos elaborar uma conduta d e pensamento,
avaliar o que está em jogo.
Enfim, é preciso n ã o negligenciar isto: a demanda
de anamne s e, de desc once rtação , de elaboração não
desapareceu; está, talvez, rarefeita; está, sobretudo,
diferida. Em Vincennes, e stamc. s presenciando a vinda de um
público ouvinte constituído de homens e de mulheres que, na
vida ativa, exercem as mais diversas profissões. Ainda,
-nesse c aso, é a Agora, ma~ benévola. Essa demanda de
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filosofia tem por motivo não tanto a sufocação da profissão
quanto a obscuridade dos fins profissionais. Trata-se de
profissões qualificadas, altamente qualificadas, . ...----------·--·-·-·-···-~-···· ··· ··-·- ··
científicas, jurídicas, médicas, ar,tísticas, jor:nalísticas.
A elevação geral da qualificação das tarefas traz com ela
uma espécie de vanguardismo, questões sobre a essência da
atividade cumprida, um desejo de re-escrever a instituição.
A filosofia, ou o filosofar, deve desdobrar seu curso ao
encontro desses questionament•.)S esporádicos. É, por exemplo,
o que tenta fazer o Collêge lnternational .de. Philosopbie. O
pensamento tem, talvez, mais infância disponível aos trinta
e cinco anos do que aos dezoito, e fora dos currículos do
que dentro.
1. O conceito é aqui intraduzivel pois comporta dois sentidos do verbo "di ffét·et·" (di fet· it·': adia1· e dive1;gi1•.
LYOTARD, J. F. "Le Cours Philosophique". In: DERRIDA, J. ét alii. LA GREYE nES PHILOSOPHES. Paris, Osiris, 1986.
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