revista matéria prima

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PRIMA MATÉRIA Dona Lúcia Órgão laboratorial do curso de Jornalismo da FA7 - disciplina Planejamento e Edição de Revistas. 5ª edição. 94 anos de história e sabedoria de Lucas Lima e Ítalo Gutyerrrez na luta por acessibilidade Coração Solidário renova vida de transplantados Fortaleza - CE, janeiro de 2012

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Revista do curso de Jornalismo da Faculdade 7 de Setembro - Fortaleza, Ceará.

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Page 1: Revista Matéria Prima

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Primamatéria

Dona Lúcia

Órgão laboratorial do curso de Jornalismo da FA7 - disciplina Planejamento e Edição de Revistas. 5ª edição.

94 anos dehistória e

sabedoria de

Lucas Lima e Ítalo Gutyerrrezna luta por acessibilidade

Coração Solidáriorenova vida de transplantados

Fortaleza - CE, janeiro de 2012

Page 2: Revista Matéria Prima

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bOutros olhares sobre o mundo

expediente

p O físico Albert Einstein é considerado o mais no-

tável cientista do século 20, o pai da teoria da relativida-de. Genialidades e teorias à parte, Einstein deixou tam-bém outro legado: a obra fi-losófica ‘Como vejo o mundo’. Nela, procura destacar seu ponto de vista sobre o mun-do e suas ideias em questões fundamentais relacionadas à formação do homem, como o sentido da vida, o fundamen-to da moral, a liberdade indi-vidual e o lugar do dinheiro. Foi o ‘gancho’ que orientou o tema desta Matéria Prima: como vejo o mundo e o mun-do pelo meu olhar.

Este número da revista, produto laboratorial produ-zido pela disciplina Planeja-mento e Edição de Revistas, procurou o diferencial no ân-gulo da pauta, projetando o conteúdo temático para o futuro. O importante foi bus-car a valorização das perso-nagens, as perspectivas de vida e a relação com o ou-tro. Assim, os estudantes de jornalismo da Faculdade 7 de Setembro (FA7) foram às ruas para descobrir histó-rias de vida, de quem soube, e sabe, dar a volta por cima, superando barreiras e en-frentando preconceitos.

São 12 histórias sobre o mundo, de superação, de re-tomadas e desafios como a da professora que deixou o ma-gistério para ser cobradora de ônibus esbanjando alegria; de dois jovens deficientes visuais, que sonham com arte e poe-

“sia; de uma mãe, avó e amiga, referência aos 94 anos de ida-de; da nova vida de um trans-plantado do coração; de um jovem que se autodefine como ‘soldado do bem’; do jornalista que sonha com notícias boas; da parteira que acompanhou o nascimento de mais de cinco mil bebês; um jovem homosse-xual que pede ajuda a mulhe-res nos terminais de ônibus; o controle alimentar e combate à gordura na rotina de obe-sos; a superação de um pa-ratleta; um artista travestido que faz sucesso no youtube; e a visão de mundo de um índio Pitaguary.

Por último, além de de-sejar boa leitura, há outras novidades. O processo de edição desta revista acon-teceu, pela primeira vez, em uma redação experimental do curso de Jornalismo da FA7. Professores e alunos, integrados em texto, foto-grafia e design, se dedica-ram para fechar todas as matérias. E a revista tam-bém está disponível no site da FA7 – www.fa7.edu.br. Saiba, agora, como as pes-soas vêem o mundo.

(ponto de vista) (bula)

DOna LúCia Dummar, 94 anOS, e muitO POr fazer

Jeane, a PrOfeSSOra que é CObraDOra

Vai e Vem De rObertinha DO PaPiCu

12

4 16Pauta POSitiVa De

SOutO PauLinO

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Diretor Geral: Ednilton Soárez; Diretor Acadêmico: Ednilo Soárez; Vice-Diretor: Adelmir Jucá; Coordenação do Curso de Jornalismo: Dilson Alexandre; Professor Orientador e Editor: Miguel Macedo; Projeto Gráfico e Edição de Arte: Andrea Araujo; Edição de Fotografia: Jari Vieira; Participaram desta edição os alunos:Textos: Anna Regadas, Felipe Sena, João Bosco Maropo, Augustiano Xavier, Laís Brasil, Liane Alencar, Gabriela Farias, Virgínia Farias, Anderson Paixão, Mavio Braga, Thiago Jorge, Tiago Fernandes e Yara Barreto; Design das páginas: Almir Moreira, Diana Valentina, Erica Bravo, Jaciara Lima, Lúcia Lima, Nely, Taíssa Julião. Fotos: Alunos que participaram no dia Fotojornalismo: Antonio Atibones, Fernando Magnus, Giuliano Vandson, Livia Campos, Luana Oliveira, Kildare Rennan, Raoni Sousa, Rodrigo Barros, Soriel Leiros, Vicente Neto e Wirton Igor.

(3)(2)

SãO 13 hiStóriaS de superação,

de retomadas e desafios nesta

edição

Page 3: Revista Matéria Prima

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Sempre

alegre

(cobradora e pedagoga)

texto e fotos - felipe SenaDesign - erica bravo

Page 4: Revista Matéria Prima

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(cobradora e pedagoga)

Professor, profissão do passado?

(7)(6)

Pesquisa realizada pela Fundação Vic-tor Civita, em parceria com a Fundação Carlos Chagas, mostra que apenas 2% dos jovens do terceiro ano do ensino médio pretendem cursar Pedagogia ou alguma Licenciatura.

Falta de paciência, baixa renumera-ção e falta de vocação, foram pontos destacados por alunos de escolas parti-culares e publicas em oito cidades bra-sileiras, para o desinteresse em seguir a profissão de docente.

Esses números preocupam, pois, se-gundo o Ministério da Educação (MEC), há cerca de 600 mil professores que atuam na educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio), mas que não têm preparo necessário para a função.

A diminuição da procura para lecionar é vista em dados divulgados pelo pró-prio MEC. Na modalidade presencial, de 2005 a 2009, o número de alunos de licenciatura caiu cerca de 19 % (de 1,2 milhões para 978 mil) e de Pedagogia em aproximadamente 15% (de 288 mil para 247 mil).

Mas, o que leva um jovem a seguir essa carreira? E o que mais leva a pro-curar outro curso superior?

Segundo Dayane Lima, estudante do curso de Pedagogia da UFC, o curso é apaixonante. “Poder ensinar e transmi-tir conhecimento para os outros é muito bom. É apaixonante”.

Já para a estudante Fabiane Freitas, do terceiro ano do colégio José Milton Dias, em Maracanaú, a questão salarial

Sempre com um sorriso aberto, uma cobradora de ônibus, que é pedagoga, transmite alegria aos passageiros da linha Parangaba – Papicu (Via aeroporto) e a todos que estão ao seu redor

Sempre com um sorriso aberto, uma cobradora de ônibus, que é pedago-

ga, transmite alegria aos passageiros da linha Parangaba – Papicu (Via Ae-roporto) e a todos que estão ao seu redor.

O Sistema Integrado de Transporte de Fortaleza conta com o trabalho de aproximadamente dois mil cobradores de ônibus. Cada um deles tem sua his-tória de superação, de lutas, de vitó-rias e de derrotas. Em cada catraca há uma história para ser contada. Mas, poucos deles devem viver uma alegria tão constante e contagiante quanto Jeane Mara Lima da Silva, 37 anos.

Cobradora da empresa Dragão do Mar há pouco mais de um ano, Jeane

é divorciada e mora com as duas filhas, Jéssica, três anos, e Kricia, 11 anos, além da mãe, Dona Maria, 82 anos, no Conjunto Ceará.

Formada em Pedagogia, foi professo-ra durante 19 anos do ensino primário e fundamental em colégios particulares de Fortaleza e também era professora substituta do estado. Resolveu dar um tempo na carreira em maio de 2010, para ficar mais próxima das filhas. “Trabalhava de segunda à sexta-feira em dois horários. No sábado, fazia cur-sos de qualificação pagos pelo colégio que ensinava. E, no domingo, além de cuidar dos afazeres domésticos, tinha que planejar as aulas da semana”, re-corda Jeane.

Quando saiu do colégio em que en-sinava no ano passado, não havia pla-nejado nada. Procurou algumas oportu-nidades em áreas diferentes, mas só achava emprego para lecionar. Depois de receber a última parcela do segu-ro, uma amiga ligou e comentou sobre as vagas para cobradora, que a Dragão do Mar estava oferecendo. “Queria um emprego que não trouxesse trabalho para casa. Um emprego que, quando eu batesse o ponto, só lembrasse dele no outro dia. Aí apareceu a vaga de cobra-dora. Gostei muito. Acho que cobrador de ônibus não é uma profissão, mas, sim um cargo de confiança”.

Sempre feliz com a vida, Jeane re-cebe (todos) os passageiros da mesma

e a falta de vocação são os principais fatores para a sua escolha por outro curso. “Não tenho vocação para pro-fessor. Além de trabalhar muito e ga-nhar muito pouco”.

A afirmação de Fabiane é infeliz-mente verdade. Segundo pesquisa da UNESCO, com 38 países desenvolvi-dos ou em desenvolvimento, o Brasil tem o terceiro pior salário do mundo, ficando a frente apenas do Peru e da Indonésia.

Um professor no Brasil recebe anu-almente em média U$ 11 mil, enquan-to um professor na Argentina ganha U$$ 22 mil; na Alemanha U$$ 30 mil; em Portugal U$$ 50 mil e na Coréia do Sul U$$ 60 mil.(fonte: http://www.fvc.org.br/)

forma: com um belo sorriso no rosto, independente se o passageiro está de mau humor, a trate mal, ou friamente. “Alegria é um estado permanente em mi-nha vida. Tratar os outros com um sorri-so é sempre bom”.

Um dia ela pensa em voltar a dar aula, mas só quando os professores forem mais valorizados. “Todos precisam dos professores. Para ser qualquer coisa na vida, vocês passam nas mãos dos pro-fessores. Nós (professores) só somos valorizados da boca pra fora. Infelizmen-te é assim. Penso em voltar também porque gosto de lecionar”, ressaltou.

Essa desvalorização também é lem-brada por ela na hora de avaliar o ensi-no que a filha recebe na escola pública. “Quando ensinava, procurava sempre fa-zer algo diferente para movimentar meus alunos. Algo novo. Não vejo isso no ensino

da Jéssica. Sempre mandava trabalhos para casa aos meus alunos. Ela chega a casa com o caderno sem qualquer tare-fa. Eu que passo alguma coisa para ela fazer”, critica.

Ela vê o mundo como um lugar onde Ela vê o mundo como um lugar onde nada mais tem valor. Tudo é banalizado demais. “O mundo hoje está meio per-dido. Vejo crianças que, nem mesmo sa-bem o que é sexualidade, mudando de opção sexual. Pessoas perdendo a vida por quase nada ou até por nada mesmo. Isso realmente é muito triste”.

Mas, logo depois, o sorriso volta ao rosto de Jeane. “Não consigo ficar triste. Posso chorar por algum motivo, mas, cinco minutos depois, já estou rin-do de novo”.

Assim é Jeane Mara, alegre e cobra-dora, brasileira e lutadora, mãe e profes-sora, mas, acima de tudo, vencedora.

CObraDOr de ônibus não é uma

profissão, mas sim, um cargo de

confiança

Page 5: Revista Matéria Prima

( 9 )( 8 )(8)

Vencer

trinta segundos. esse é o intervalo que o bip sonoro do semáforo toca. tempo que os deficientes visuais têm para atravessar a avenida bezerra de menezes e chegar ao instituto hélio Góes, mais conhecido como instituto dos Cegos de fortaleza. é lá que estudam Lucas Lima e Ítalo Gutyerrez. Para chegar à escola, os rapazes, dependem, inúmeras vezes, do aviso ressonante para cruzarem as oito pistas da avenida com segurança.

o impossíveltexto e fotos - mavio bragaDesign - taíssa Julião

(fora preconceito)

Page 6: Revista Matéria Prima

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Perceber o mundo de uma maneira diferente. Esse é o desafio proposto a quem visita o Instituto dos Cegos, ins-tituição que recebe todas as quartas--feiras alunos de faculdades, escolas públicas e particulares.

Descalços, os visitantes entram numa sala completamente escura. O percurso é guiado por um deficiente vi-sual. A primeira lição é orientar-se pelo toque das mãos: enquanto uma toca a parede, a outra identifica os obstácu-los, antes do próximo passo. O chão às vezes parece ser de areia, outras vezes de lona, panos e até folhas espalhadas.

Na completa escuridão a audição fica mais aguçada. No meio da sala uma mesa cheia de objetos, bichos de plásticos e de pelúcia: sapos, aranhas, ursinhos. Os gritos ou risos do grupo revelam sensações de medo, coragem... surpresa. Na porta de saída o reconfor-to de ver, novamente, a luz.

tanto para ir à escola, quanto ao trabalho, Ítalo usa ônibus. Quando

vem de casa, desce na Bezerra, ave-nida que precisa atravessar para che-gar à Padre Anchieta, rua onde fica o Instituto. O cruzamento conta com o farol com dispositivo sonoro. Uma ex-ceção, já que em Fortaleza existem apenas 11 semáforos deste tipo.

No percurso de volta, a calçada torna-se uma ameaça. Ítalo tem que passar por oito postes, uma banca de bombons e um telefone público, até chegar à parada de ônibus. A calçada na Avenida Bezerra de Menezes não é tátil, apesar de ter sido reformada pela prefeitura, ainda em 2010. Aces-sibilidade, esse não é o único desafio dos deficientes visuais. O preconcei-to ainda é um obstáculo. Lucas sabe bem disso. Ele acredita que fora essa a razão de não ter sido aceito em um curso de radialista.

O simples ato de se colocar no lu-gar do outro pode acabar com o pre-conceito. Basta usar da empatia. Ser empático, lembrar o tempo de criança. Quem, nunca brincou de “tá quente tá frio”? De olhos vendados, guiando-se pelo toque nos objetos à volta; um participante devia encontrar os ou-tros amiguinhos, enquanto eles davam dicas, na medida que se aproximava ou se distanciava do alvo. A brincadeira talvez seja a experiência que mais se aproxime da incapacidade de ver, reali-dade vivida por 11,8 milhões de brasi-leiros com deficiência visual, dos quais cerca de 160 mil possuem incapacida-de total de enxergar, de acordo com estudo realizado pelo IBGE.

A informação é outra grande arma contra o preconceito. A educação é fundamental para que esses jovens consigam ter uma vida autônoma e in-dependente. Fundado em 1942, o Ins-tituto dos Cegos tem 236 alunos. Al-guns deles de boa visão, mas a grande maioria dos estudantes são pessoas de baixa visão e deficientes. Dois mil e onze é o último ano dos amigos Ítalo e Lucas na escola, já que este ano eles concluem o ensino fundamental.

Lucas até bem pouco tempo tinha

Enxergar, segundo o dicionário é: ver de modo claro; entrever; divisar; ob-servar; adivinhar; pressentir; entender de um assunto. Os deficientes visuais enxergam. Nem menos nem mais, mas simplesmente de uma maneira diferen-te da maioria das pessoas. Engana-se quem porventura pensa que o maior desejo desses meninos seja ver o mun-do, assim como as pessoas de boa vi-são vêem.

Ver, não seria esse o pedido de Lu-cas ou Ítalo, caso encontrassem o gê-nio da lâmpada mágica e esse lhes con-cedesse três pedidos. Os estudantes pediriam saúde, paz, amor. Deficiente visual desde pequeno, Ítalo diz não ter vontade de ver o mundo. Quando, às

vezes, pensa nisso, as únicas coisas que gostaria de contemplar seriam o pôr do sol, a lua, as estrelas, a nature-za. “As coisas feitas por Deus”, explica o rapaz. “Consigo ver além. Vejo a alma das pessoas” – completa.

Ítalo e Lucas enxergam longe. Além dos estudos, os meninos também tra-balham. São, ambos, estagiários do programa Primeiros Passos, proje-to social da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Governo do Estado do Ceará. Outras atividades em comum unem os amigos que comparti-lham o gosto pela música e pela escri-ta. Nas horas vagas, os jovens gostam de escrever seus pensamentos, con-tos e poesias.

111,8 milhões se dizem com algum grau

de deficiëncia visual

Ver além

novassensações

2160 mil

se declaram

cegos

Vida de Vidro Vivo só em minha casaEnfrentando meus fantasmasSó esperando a hora de umamor chegar

Não sei bem o que eu queroIsso ainda é um mistérioVivendo e morrendo, nãoaguento mais

Ítalo Gutyerrezbaixa visão, hoje a perdeu por comple-to. Ele é enfático ao dizer: “Eu me sinto mais realizado do que antes”. Uma de suas vitórias é ter trazido para o Ceará, duas medalhas de bronze, por seu de-sempenho em provas de atletismo das Paraolimpíadas Escolares, na edição de 2011. A competição aconteceu na cida-de de São Paulo, em agosto.

(fora preconceito)

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( 13 )( 12 )(12)(12)

(retrato falado)

Dona Lúcia Dummar:

é na mansão Castelo, entre flores, pássaros e muito verde, que mora Dona Lúcia Dummar. um sítio às margens da lagoa de messejana, com belo jardim que pertencera à família rocha Dummar . neste ambiente acolhedor são mantidas vivas histórias de uma época de ouro, dos filhos já crescidos e de um jornal bem sucedido

94 anos de amor e dedicação

texto: Virginia fariasDesign: Diana Valentinafotos: humberto neto

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( 15 )( 14 )

“a muLher tem que ser independente e, para ser

independente, tem que saber de tudo um pouco”

aos 94 anos bem vividos, Dona Maria Lúcia Rocha Dummar é

abençoada por uma memória espetacu-lar e uma disposição sem igual. Rodeada por 12 empregados, eles auxiliam desde a sua locomoção até a organização do sítio. Há empregados que vivem lá há, pelo menos, 40 anos. Zé, por exemplo, chegou à mansão ainda jovem, sem sa-ber ler nem escrever o próprio nome, mas com o conhecimento de mundo de um sertanejo. Ele sabe nome de pássa-ros apenas pelo canto e cuida da fauna e da flora do sítio como um especialista. E por falar em fauna e flora, o sítio tem exatos 75 tipos diferentes de frutas, 57 árvores e 104 espécies de pássa-ros. Dona Lúcia diz com carinho que, os animais são muito bem cuidados e, por isso, eles vão chegando e vão ficando.

Ao falar da família, demonstra ad-miração. Conta um pouco da época em que era jovem e que seu pai, Demócri-to Rocha, o fundador do jornal O Povo, sempre incentivou a independência das filhas. “Papai sempre disse que a mu-lher tem que ser independente e que, para ser independente, tem que saber de tudo um pouco”. Ela e a irmã, Albani-sa Rocha Sarasate, sempre estiveram presentes na vida do pai em relação ao jornal, apoiando, ajudando no que fosse preciso. Tanto é que no período da Se-gunda Guerra Mundial, era ela que fa-zia as traduções das informações que chegavam. Revela que o pai a incenti-vou a estudar inglês, apesar de naquela época a língua mais procurada fosse o francês. O tradutor das notícias que vi-nham da guerra teve que voltar imedia-tamente para os Estados Unidos após um chamado. Então, foi Dona Lúcia, a única que entendia inglês naquela épo-ca, que ficou responsável pela tradução das informações.

Depois da guerra, em 1944, casou--se com João Dummar, o precursor da rádiodifusão no Ceará, com quem teve seis filhos: Demócrito Dummar, João Dummar Filho, Lúcia Maria, Lúcia Elena, Carmem Lúcia e Albaniza Lúcia. “Criei todos os meus filhos aqui nessa casa. Quando eles começaram a se formar, fui para o Rio de Janeiro. Só ficaram aqui os mais novos, o Demócrito e a Lúcia Maria”, recorda.

Em uma casa anexa na Mansão Cas-telo, ela guarda a história do jornal O Povo, que o pai fundou. Trata-se do Me-

morial da Família Rocha Dummar, uma espécie de museu, que conta toda a trajetória da família. Cada comparti-mento tem um homenageado, seus per-tences, fotos com amigos, objetos e lembranças que ajudam a contar a his-tória de cada um. Também há um rico acervo do jornal, todos os exemplares, desde o primeiro número, estão lá. A organização e os detalhes são impres-sionantes. Ela cuida de tudo com muito carinho e é quem organiza (com a ajuda dos empregados). Separa foto por foto, cartas, objetos pessoais e os organiza com cuidado, sem deixar faltar nada.

No ambiente que conta a vida do seu marido, por exemplo, há todos os dis-cos dele, o microfone da rádio onde tra-balhava, livros, fotos etc. Já no espaço reservado para seu filho, Demócrito, que morreu em 2009, o acervo é bem maior. Além de fotos, quadros e livros, há objetos pessoais dele, como os celu-lares, notebook, placas de prêmios e, o mais curioso, o último terno que usou, que está exposto dentro de um armário de vidro.

Dona Lúcia não hesitou em respon-der como surgiu a ideia de montar o memorial: “Foi depois da morte do De-mócrito. Fiquei muito abalada, com rai-va das pessoas, não tinha vontade de fazer mais nada. Aí, vi que eu não podia continuar assim, que ninguém tinha cul-pa do que havia acontecido”. Ela conta que o sonho de Demócrito era ir morar no sitio. Tinha comprado até material para construir uma casa lá, mas a es-posa, Vânia, não queria.

Resolveu, então, que precisava de algo que ocupasse a mente. Começou a organizar sua casa com coisas que lem-brassem o Demócrito. Um quadro com a foto dele, bem grande na parede, foi o início. O memorial foi construído com o material que seria da casa que ele que-ria fazer no sítio.

D. Lúcia relembra os momentos que antecederam a morte do filho e conta que, mais ou menos, um mês antes, havia conversado com ele sobre um programa religioso na Rede Vida que havia assistido. No programa, conta-vam a história do jornalista Monteiro de Barros, presidente da emissora. Ele tinha o sonho de montar uma TV e pediu para o Divino Pai Eterno, que se conseguisse realizar esse sonho, iria até a cidade de Trindade, em Goi-ás, pagar a promessa. Dona Lúcia con-

No ar puro da Mansão Castelo, há histórias de momentos felizes, de uma família unida, de aconchego. De pessoas como a Dona Lúcia, humilde, sonhadora e que tem muita fé. Só veste branco e possui, espalhados pelo sítio, 26 ima-gens de santos, todos em santuários ou capelinhas. A devoção dela é grande e vem do tempo de sua avó.

Cada santo que lá está, foi dado de presente. E é ela que, cuidadosamente, escolhe o local em que cada um ficará. Muitos santos, muitas histórias, mui-tas crenças... convite para percorrer os arredores da Mansão Castelo.

75tou essa história para Demócrito, que também tinha o sonho de criar a TV O Povo.Mãe e filho fizeram a promessa. Dona Lúcia conta que encomendou uma imagem do santo, mas demorou tanto a chegar, que pensavam que nem vinha mais. No dia em que a encomenda che-gou, recebeu a notícia da morte do seu filho amado, Demócrito Dummar.

Era ele quem dirigia o jornal O Povo e viu sonho da TV O Povo ser realizado, mesmo após sua morte. “Eu criei o De-mócrito para ser o sucessor de papai”, diz a mãe Dona Lúcia, com carinho e amor, que sempre pautaram a vida des-sa mulher e mãe de muita fibra, ao lado da família, dos amigos e da natureza que preserva na Mansão Castelo.

26 razões para ter fé

tipos diferentes de frutas,

57 árvores e 104 espécies de

pássaros

(retrato falado)

Page 9: Revista Matéria Prima

( 17 )( 16 ) (17)(16)

outro lado do

terminal esbanjando elogios e risadas, robertinha circula pelas filas

do terminal do Papicu divertindo quem passa por ali. é a forma que encontrou para sobreviver.

texto: Yara barreto daSilvaDesign: Jaciára Lima

foto: anderson Paixão

O(pela sobrevivência)

Page 10: Revista Matéria Prima

( 19 )( 18 ) (19)(18)

8é O númerOS de vezes

que Robertinha passou por abrigos.

Ônibus entrando e saindo, buzi-nas ensurdecedoras, zumbido

de apitos cortando as plataformas, pessoas cruzando de um lado para o outro. Essa é a rotina dos terminais de ônibus de Fortaleza. Nesse corre--corre constante circulam crianças, adolescentes e idosos em busca de alguns trocados. Eles percorrem as filas dos ônibus famintos, sujos e com um semblante de cansados, derrotados sem motivos para sorrir e achar que a vida vale a pena. E é nessa rotina agitada, que aparece um jovem diferente dos muitos que circulam nos terminais. Apesar de todo o sofrimento, dos dissabores, ele está sempre fazendo uma pes-soa sorrir.

Francisco Felipe Ferreira, 20 anos, mais conhecido por Roberti-nha do Papicu. Natural de São Luís, Maranhão, chegou a Fortaleza com 18 anos, quando decidiu fugir de casa. Robertinha, como prefere ser chamada, diz que sua vida era feliz, alegre como a de toda criança deve ser. A família era bem estruturada: a mãe, dona de loja; o pai, professor, atualmente mora em Manaus, e a irmã se casou e foi morar na Itália. Essa tranqüilidade, porém, mudou quando passou a ser violentado pelo padrasto. Uma das vezes, na fren-te da mãe, que não tomou qualquer providência diante da violência. Che-gou a ficar com depressão e, então, decidiu fugir de casa.

Ao chegar na cidade sem família e sem amigos, a única opção foi morar na rua. Já passou por oito abrigos, e em todos ocorria o mesmo proble-ma - era violentado pelos colegas. “Mulher, não tinha jeito,, eu ficava só no meu cantinho, mas eles sem-pre vinham bulir comigo, porque eu era a única menina da casa”, conta Robertinha. Apesar de ter passado momentos ruins dentro dos abrigos, Robertinha diz que lá é um bom es-paço, pois sempre há comida, cama, local para brincar e ainda oferece

cursos. “É um local onde formamos uma quase família, pois na rua não temos nin-guém”, diz. Na rua, Robertinha explica que já se prostituiu, teve início de DST, mas que já foi tratado. Há quatro meses é usuário de crack.

“No terminal, todo mundo me conhe-ce. Sou o único menino de rua que pode entrar na administração do terminal, mas isso porque sou diferente dos ou-tros”, esclarece Robertinha. Comporta-da, educada, gentil e esbanjando sorriso é o que a faz ser diferente dos outros que moram na rua. Robertinha se des-creve assim. Não fica com raiva das pes-soas que olham para ela com cara feia, e nem porque não querem dá dinheiro. Pelo contrário. Ela solta elogios para todas as mulheres do terminal, mas falar com homem, de jeito nenhum, “porque nunca

vi uma raça tão ruim”, afirma Roberti-nha. Apesar de não gostar de pedir di-nheiro para homens, ela explica que não tem raiva deles, mas queria que eles o enxergassem como uma pessoa normal, “pois ser homossexual não é problema”, diz. Mas são as mulheres que dão apoio, que dão conselho, e é assim que acaba se sentindo mais importante.

“Sorrir é o que existe de melhor na vida. É a única coisa que as pessoas não podem tirar de mim”, avalia Robertinha. E é com um sorriso, buscando alegria com as pessoas, que ela consegue en-xergar um mundo melhor. Conhece bem os problemas da vida, mas diz que se for encarar tudo de cara feia, a vida só vai piorar. “Muitas pessoas viram a cara pra mim, principalmente os homens. Por eu ser gay, eles não querem se aproximar, mas é com isso que tiro forças para se-guir em frente”, diz ela.

Apesar de todas as dificuldades, Ro-bertinha tem esperanças de um futuro melhor, e espera que tudo melhore, para ela e para todas as pessoas que moram na rua. Mas ressalta que as coisas só podem melhorar se a pessoa fizer por onde, do contrário, tudo fica na mesma.

Ser gay, morador de rua e usuário de drogas, não faz com que Robertinha per-ca as esperanças de uma vida melhor. Pelo contrário pretende se tratar em uma clínica de dependentes químicos, e depois trabalhar com telemarketing ou auxiliar de escritório. Durante sua pas-sagem pelos abrigos, Robertinha fez os cursos de profissionalização, o que lhe deixa muita orgulhosa.

Mas o que mais deseja é o reencon-tro com a mãe. Só quer que isso acon-teça, porém, quando conseguir dá a vol-ta por cima. “Quero mostrar à minha mãe que sou capaz de vencer as dificul-dades da vida”, diz. O desejo de Rober-tinha lhe exigirá muita força de vontade, coragem e determinação. O que o fu-turo lhe reserva? Qual será o seu des-tino? Só o tempo poderá responder. O passado Robertinha não poderá apagar jamais, mas o futuro pode ser reescrito a partir de agora.

Vida passada a limpo Lá estava ele, em frente à catraca da bilhe-

teria pedindo centavos por centavos para interar o dinheiro da passagem, e assim poder entrar no terminal da Parangaba. É dessa for-ma que Fransisco Estônio da Silva, de 16 anos, faz todos os dias, às 14 horas, para entrar no terminal e começar a rotina: circular fileira por fileira atrás de dinheiro, para ajudar a mãe e as três irmãs mais novas.

Estônio, que também tem seu nome de guer-ra, Priscila Ketly, vive pelos terminais de Fortale-za desde os 10 anos, quando decidiu pedir dinhei-ro. Diz que não aguentava mais ver a situação da família e, principalmente da avó, falecida. Ter um apelido, pedir dinheiro apenas a mulheres e ser vaidosa são os traços que herdou da amiza-de com o Felipe-Robertinha. Hoje, não se falam mais, por motivos que não quis revelar, mas a vaidade das duas foi o ponto ‘x ‘para o fim da amizade.

Estônio diz que na rua ninguém tem amigos e só percebeu, depois da morte da avó, que era sua fiel amiga. Só soube da morte dela sema-nas depois, e isso fez com que ele tomasse novo rumo na vida e começar a enxegar o mundo por outro ângulo. “Só agora percebi o que quero e tenho capacidade de ter uma vida melhor. Minha avó sempre falava isso e nunca quis ouvir”, co-menta Estônio, com um tom mais sério. Apesar de ter passado dois anos direto nas ruas, hoje o jovem refaz uma nova rotina para ajudar a família.

Divide o dia em três momentos: pela manhã, ajuda a mãe no trabalho doméstico e cortando ponta de linha de roupas da empresa em que ela trabalha; à tarde, vai ao terminal pedir dinhei-ro; e, à noite estuda na Escola Municipal Cláu-dio Martins, na avenida João Pessoa. “Pra mim, depois que fui pras ruas, nada tinha sentido, só pensava naquele dia, e pronto. Agora, depois que comecei a tomar decisões, a vida começou a ter novo sentido. Parar de pedir dinheiro no terminal é o que mais quero”, revela Estônio, que não pa-rava de jogar os cabelos de um lado para o outro. O jovem ainda comentou que deseja que as pes-soas não o chamem de Priscila Ketly. Essa fase da vida, quer deixar no passado, porque agora o futuro é a palavra que ele mais pensa. Trabalhar e proporcionar uma vida melhor para a família é o próximo passo.

(pela sobrevivência)

Page 11: Revista Matéria Prima

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um soldado

do bem

texto: Gabriela fariasDesign: Lucia medeiros

( 21 )( 20 )

(nas ondas da rádio)

Page 12: Revista Matéria Prima

( 23 )( 22 )

Não foi só pelo trabalho de almoxarife na Secretaria de Justiça que o ex-presidi-ário Cornélius Ókdili encontrou reinserção na sociedade. Esse caminho foi percorrido por fé e força de vontade. O nigeriano que cumpriu pena de quase cinco anos numa penitenciária do Ceará, como reincidente por tráfico de drogas, sofreu com a lín-gua limitada e a escassez de visitas. So-mente quando veio de Pernambuco para cumprir a pena no Ceará, foi que ele de-cidiu ser alfabetizado em português, com ajuda da Pastoral Carcerária. “Quando me vi naquela situação mais uma vez, pensei ‘tenho que fazer alguma coisa para mudar a minha realidade’”, afirma Cornélius, ao lembrar-se de como o estudo o ajudou na recuperação de sua identidade.

fui PenSanDO em uma unidade prisonal como um

lugar cheio de bandidos, pessoas más

projeto, as histórias são inúmeras. Mas um momento especial que a rádio proporcionou foi em um natal, onde se transmitiram mensagens de paz e esperança por parte dos próprios servidores da Secretaria de Justiça e, em especial, de uma mãe de um dos detentos. “Imagine uma mãe dizer para um filho onde, duas mil pessoas estavam ouvindo, algo como: ‘meu filho, mesmo você errando, vou continuar te amando e eu acredito na sua mudança’”, ainda ressalta: “Na condição de preso, a família é muito importante, é a única coisa que eles realmente respeitam”.

Neste exercício solidário de se colocar no lugar do outro, Rodrigo conheceu melhor as esferas sociais e emocionais que envolvem os detentos. “Existe certa lei entre eles. O que você fala você tem que cumprir. Porque eles já são tão frustrados em relação a sua vida que possuem uma necessidade de resgatar isso. Aprendi com eles o respeito ao próximo e o verdadeiro significado de liberdade”, completa. Segundo ele, grandes realizações e pequenas atitudes contribuem para um mundo melhor. E onde este “soldado do bem” está inserido é nesse batalhão de pessoas que acreditam sempre num futuro melhor. “Sou jovem, tenho minhas loucuras e defeitos. Mas não decidi me enveredar por esse caminho. Eu decidi ir a um presídio e ajudar pessoas”.

Levar liberdade, que o conhecimento e a informação possuem, a detentos da Casa de Privação Provisória de Liberdade II (CPPL II), em Itaitinga. Esta é uma das atitudes que motivam o jovem Rodrigo Brito de Moraes, 28 anos, a se ver na sociedade como um soldado do bem. Para chegar a esta estágio, ele hoje é o diretor da “Rádio Livre”, o veículo de comunicação que se propõe a libertar os detentos de suas prisões individuais. Por meio da rádio comunitária, Rodrigo propõe quebrar o clima hostil entre detentos e funcionários e sintonizá-los em uma só frequência. “Entendo que o detento é privado do direito de ir e vir, mas ele não é privado do acesso à comunicação, do útil e da notícia”, diz, orgulhoso do trabalho. A Casa de Privação Provisória e o projeto da Rádio Livre são, no entanto, apenas a ponta do iceberg para quem, desde cedo, aprendeu a olhar para o próximo.

O menino precoce que se envolveu com ações sociais para ajudar moradores de rua, usuários de droga e detentos, porém, nem sempre foi assim. Essa história foi escrita desde sua adolescência, quando aos quinze anos, ainda em sua cidade natal, Recife, os pais de Rodrigo se separaram. “Estava realmente desestruturado e sem referencial, me enveredando pra um caminho que não ia ser positivo (...), então fui resgatado”, relata. O seu “resgate” aconteceu por um convite para um evento religioso, onde o fez refletir e confortar o seu coração diante dos acontecimentos. “Escutei verdades que confrontaram com os meus pensamentos, naquele complexo de adolescente de pensar que não me amavam... E, então, pude saber que tenho Deus”.

Tudo começou quando o adolescente Rodrigo, por uma necessidade de que todos pudessem se sentir tão confortados quanto ele, ingressou na instituição “Jovens Com Uma Missão”, o JOCUM. A organização que empenha jovens de todas as nações para a obra missionária possibilitou uma experiência significativa em Curitiba e no Paraguai, para o jovem voluntário. Levar incentivo e esperança por meio

da palavra para os flagelados foi a sua primeira missão.

Aos 19 anos, Rodrigo entrou em contato pela primeira vez com o sistema prisional. “Fui pensando em uma unidade prisional como um lugar meio temeroso, cheio de bandidos, pessoas más (...) mas quando cheguei nessa unidade, me deparei com outra realidade”, que assm pôde compreender que nem todas as pessoas que estavam naquela situação possuíam má índole, mas, sim que, muitas foram impulsionadas pela ganância e pelo dinheiro. Foi quando começou a pôr em prática o exercício de se colocar no lugar dos outros. “Pra mim, isso que é compaixão”, afirma.

O pernambucano que abraçou a cidade de Fortaleza há algum tempo, encontrou espaço na instituição religiosa Igreja Batista Central (IBC), onde continuou a realizar trabalhos onde pudesse, dessa vez, “restaurar” as pessoas. O programa bíblico Celebrando Restauração (CR) é baseado em oito princípios e doze passos onde, a partir de encontros, os participantes do programa encontram ajuda para se recuperarem de seus vícios, traumas e maus hábitos. Ao realizar essas ações, Rodrigo acredita estar também crescendo e melhorando junto com todos aqueles que precisam de um acompanhamento: “Me sinto assim. Com defeitos, com falhas de caráter e também com maus hábitos, mas vivendo um dia de cada vez”.

Há dois anos, o jovem Rodrigo, com 26 anos e já formado em publicidade, recebeu a proposta para montar uma rádio comunitária na CPPL II. Ele estaria então, mais uma vez, diante daquela realidade que teve a oportunidade de conhecer quando adolescente, mas agora faria parte de uma contribuição para a recuperação da identidade e da esperança de detentos provisórios. A Rádio Livre faz parte do projeto Renascer, que tem como objetivo a pacificação dos detentos através de sua reeducação, para tirá-los do clima de ódio e para contribuir com sua reinserção na sociedade. Inicialmente, o projeto começou com um grupo de seis detentos, logo passou para trinta e hoje, dos 1.127 detentos no CPPL II, 925 optaram pela pacificação.

Ao longo desses dois anos do

Cornélius ókdiliParticipou do concurso de redação

“Escrevendo a Liberdade”, para pre-sidiários onde 7.800 detentos foram inscritos. Das trinta redações ven-cedoras, uma delas era de Cornélius, onde ele dissertou sobre a alienação da liberdade e o sistema carcerário. “Saí das grades para entrar em outro tipo de prisão”, fala da sua falta de oportunidades. Depois deste primei-ro passo, o nigeriano cursou o ensino fundamental, médio e superior dentro da prisão, tornando-se logo mais, um bacharel em teologia. Hoje, Cornélius promove o livro que escreveu sobre tudo o que viveu dentro do sistema chamado “Penas mais rígidas: justiça ou vingança”.

( 23 )( 22 )

(nas ondas da rádio)

Divulgação

Page 13: Revista Matéria Prima

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CoraçãoSolidário

a vida reserva muitas surpresas, algumas boas e outras ruins.

Nem sempre as pessoas estão pre-paradas para enfrentar as “ciladas” que aparecem em seus caminhos. Há valores, como um simples sorriso de um amigo, que fazem toda a diferen-ça, mas que na correria do cotidiano não é dada a real importância.

Francisco Antônio Mourão de Fa-rias, 53, passou por uma dessas ci-ladas. Farias, como é conhecido, vivia viajando de uma cidade para outra. Trabalhava como pecuarista e cuidava da sua fazenda. Mas, a luta não para-va por ai. Formado em Engenharia Ci-vil, Farias atuava também no ramo da construção civil. E, nessa vida inten-sa, seu coração não aguentou! Sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC).

O problema com o coração vinha de muito tempo atrás. Foi em 1982 que Farias descobriu a doença. Como o tratamento em Fortaleza ainda era deficiente, viajou para São Paulo. Lá, os médicos constataram a necessi-dade de uma cirurgia. Farias não deu

Com a sensibilidade de quem superou uma doença cardíaca, farias dedica sua vida a ajudar as pessoas que necessitam de transplante de coração

“ouvidos”. E assim foi adiando. So-mente em 2000, após o AVC, foi que decidiu fazer a cirurgia. Os médicos implantaram uma prótese metálica, uma espécie de válvula, que ajuda no funcionamento do coração.

Após a cirurgia, Farias achou que estivesse curado e continuou na correria de sempre. Mas, o coração novamente reclamou e, em 2007, a doença atingiu as cordas vocais. Farias ficou sem falar. Os médicos, porém, disseram que o coração dele estava bem. Ele recuperou a voz, com tratamento de fonoterapia.

Em 2008 o problema voltou. Ele perdera a voz novamente. Era o coração já sem aguentar, que tra-balhava forçado. Os médicos cons-tataram que o coração dele estava crescido e o encaminharam para o Hospital de Messejana. Lá, passou por uma junta médica que realizou todos os exames e foi para a lista de espera do transplante. Nesse inter-valo, fez novo tratamento de fono-terapia e a voz voltou. Estava então

3O brasil é o terceiro

país do mundo no ranking de realização de

transplantes. Ao todo são 598 estabelecimentos de saúde e 1.376 equipes

autorizadas a transplantar.

texto: ana regadasDesign: Jaciára Limafotos: humberto neto

(solidariedade e esperança)

Page 14: Revista Matéria Prima

( 27 )( 26 )

apto para o transplante, já que todos os outros órgãos funcionavam corretamen-te. Mesmo diante desse quadro, Farias não perdeu o senso de humor. Seu dese-jo era se curar.

Para a realização do transplante, o paciente passa por uma junta médica. É entrevistado por uma assistente social e psicólogo. A mente também precisa estar bem. Mas Farias não gostou muito da entrevista. “De psicólogo não preci-sava, não tinha nada na cabeça. Queria era ficar bom do coração”.

E, na espera pelo coração, ficou em casa recebendo todo o amor e apoio da família. Foi um simples toque de celular, que deu a Farias a esperança de uma nova vida. Após 59 dias angustiantes, apareceu um doador. No dia 30 de maio de 2009, ele realizou o transplante.

A recuperação foi rápida. Em apenas cinco dias, já estava andando pelo hos-pital. “O meu maior desejo era passar o Natal de 2009 com minha família”. Com 18 dias internado, respondeu bem à cirurgia e recebeu alta.Farias nun-ca perdeu a esperança de ter uma vida mais saudável. “Quando indicado para o transplante, veio logo aquela sensação: agora vou voltar a ser o que eu era an-tes. Estava um pouco debilitado, mas minha cabeça só pensava em ficar bom e foi o que aconteceu. Hoje estou curado. Graças a Deus, tudo que quero fazer, eu faço”.

A vida dele sempre foi marcada pelo trabalho árduo e, mesmo quando estava doente, desejava a cura para dar conti-nuidade as suas atividades. “O meu de-sejo era poder ir à fazenda e retomar o trabalho que ficou largado por conta do problema que eu estava passando”. E foi essa a primeira atividade dele após a recuperação.

Algum tempo depois, foi convidado para ser o presidente da Associação dos Transplantados Cardíacos do Ceará. “Quando recebi o convite para ser pre-sidente, sabia da responsabilidade que tinha de assumir. Hoje, desenvolvemos um trabalho em função das pessoas ca-rentes, que precisam de auxilio para a realização do transplante”. Após passar pelo sofrimento da doença e da fila de espera, ele adotou como missão ajudar as pessoas carentes que passam pelo mesmo drama.

Quem vê Farias hoje, não imagina o

que passou. Homem ativo, que pratica esporte e, além de presidir a Associa-ção, cuida dos negócios da fazenda. Sua única restrição é quanto à alimentação, que deve ser bastante balanceada e com pouco sal.

Quer agora educar bem seus filhos, deixando para eles o legado da honesti-dade, respeito e dignidade. “Tento pas-sar para eles, os verdadeiros princípios da vida, pois hoje sei que é possível mu-dar e procurar fazer o melhor. Basta querer”.

O futuro para Farias é recuperar o tempo perdido. “O que vejo é muito tra-balho, para recompensar o tempo que fi-quei parado. O mais importante, porém, é aproveitar cada minuto ao lado da fa-mília, viajar e comemorar esse recomeço da vida”.

A vida tem agora um valor muito es-pecial para Francisco Antônio Mourão de Farias. Aprendeu a dar mais valor aos pequenos detalhes do cotidiano, a amar o próximo, lhes amparando quando mais precisam de ajuda. Como dizia Charles Chaplin: “Pensamos demasiadamente. Sentimos muito pouco. Necessitamos mais de humildade, que de máquinas. Mais de bondade e ternura que de in-teligência. Sem isso, a vida se tornará violenta e tudo se perderá”.

quanDO inDiCaDO para o transplante, veio logo aquela sensação: agora

vou voltar a ser o que eu era antes. estava um pouco debilitado, mas

minha cabeça só pensava em ficar bom.”

hOJe, desenvolvemos um trabalho em

função das pessoas carentes, que

precisam de auxilio para a realização do

transplante.

“A Associação dos Transplantados

Cardíacos do Ceará funciona como uma casa de apoio aos pacientes do interior e de outros estados que não têm condi-ções de pagar hospedagem em Fortale-za. A casa possui três quartos, seis ca-mas, dois banheiros e uma área externa bem espaçosa. Tem varanda e é bastan-te ventilada. A estrutura é bem aco-lhedora e remete ao clima de interior. É arborizada e tem plantação de jerimum. Como a demanda é grande, está sendo reformada para aumentar o número de quartos.

As despesas e as contas de luz, tele-fone e internet são pagas com o dinhei-ro de doações e da renda obtida de uma lanchonete, que fica no Hospital de Mes-sejana. Já a alimentação fica por conta

dos pacientes. Eles se juntam e fazem a feira. Cada paciente tem direito a um acompanhante, que fica responsável pela alimentação e limpeza da casa, além de cuidar do paciente. Atualmente, estão hospedadas na casa seis pessoas, entre elas três acompanhantes, um paciente transplantado e dois na fila de espera.

897número que levou o

Estado do Ceará a bater o recorde no número de

transplantes realizados. É uma referência nacional.

927total de pessoas que

estão hoje na de espera. Apesar de ter aumentado o número de doações, ainda

não é o suficiente para suprir a demanda.

518número de pessoas

esperando pelo transplante de córneas. É o maior

número de espera, o menor é o de pâncreas.

Associação dos Transplantados Cardíacos do CearáRua Domingos Rayol-216, Bairro Messejana (85) 3459.00.86

SerViçO

Cardiologista João David, coordenador de Tansplantes do Hospital de Messejana e Farias: respeito e gratidão

(solidariedade e esperança)

Page 15: Revista Matéria Prima

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O quê da

notícia

todos os dias leitores vão a ban-cas de jornais e revistas em

busca de novas notícias. Essa é a função de um jornal. Mas, quando se para nas bancas percebe-se que grande parte dessas notícias são negativas. O assalto na pa-daria do Seu Joaquim, a agressão física sofrida pela estudante e, claro, morte, muitas mortes. Há quem não ligue, há quem goste e há quem luta diariamente para mu-dar essa realidade.

Construir uma imprensa de paz. Esse passou a ser o lema e a meta do jornalista e professor Francisco Souto Paulino, 65. Com esperan-ça neste desejo, ele e amigos se juntaram e, depois de muitas reu-niões, chegaram à conclusão de que queriam fazer algo diferente. Mesmo colocando no papel todas as dificuldades que iriam enfrentar, levaram em conta que a desistên-cia seria pior, e o sonho desse gru-po tornou-se realidade em 2007, ano de fundação da Agência da Boa Notícia (ABN) – A paz pela comu-nicação.

Hoje, a Agência possui sede própria em Fortaleza, e é gerida por uma diretoria, funcionando dia-riamente com a estrutura de dois jornalistas, uma secretária e es-tagiário. Aposentado, Souto Pau-lino está no terceiro mandato da presidência. E dedica os seus dias em prol dessa causa. “Queremos que todos os estados tenham uma Agência também, pois assim a paz ficará cada vez mais fortalecida”, vislumbra Souto. A sede da ABN foi emprestada por um dos direto-res e os gastos básicos são arre-cadados pelos colaboradores.

texto - Liane bragafoto- Priscila feitosaDesign - taíssa Julião

Com a visão de um mundo mais justo e igualitário, o professor Souto Paulino sonha com um jornalismo de notícias positivas e de interesses sociais através da agência da boa notícia

Com a larga experiência e sen-so crítico, Souto avalia a imprensa que nos bombardeia de notícias. E acredita que estamos atrasados perante a tecnologia que é dispo-nível. “Hoje recebemos notícias de todos os meios. Mas, nem todas as pessoas têm a capacidade de captar tudo. Precisamos de uma imprensa mais social e acessível”, deseja o professor, que é casado com a também jornalista Lêda Maria, colunista do jornal Diário do Nordeste.

Por ter ajudado a fundar o Cur-so de Jornalismo de uma faculda-de localizada em Fortaleza, Souto também faz avaliação sobre os cursos de comunicação social de todo o Brasil. “Eles estão atrasa-dos. Os futuros profissionais ain-da possuem disciplinas que eram dadas antigamente, e não existem disciplinas que aprofundem mais esses alunos sobre os problemas da atualidade, como por exemplo o meio ambiente”, lamenta.

Com gestos lentos e voz digna de orador, o professor conta como é feito o trabalho da agência, que sur-giu com o intuito de transformar a sociedade, para torná-la mais justa e igualitária. Todos os dias chegam à Agência, em torno de 20 boas no-tícias. Os jornalistas responsáveis checam todos os dados, ligam para as fontes, e escolhem as pautas que passarão por um aprofunda-mento na apuração. Em seguida, as pautas aprofundadas são enviadas para cerca de 7.500 e-mails. São endereços de jornalistas, estudan-tes de comunicação, órgãos de co-municação e pessoas interessadas que se cadastram no site.

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(mídia positiva)

Page 16: Revista Matéria Prima

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Prêmio Gandhi de

Ao entrar no escritório do professor Souto Paulino, a primeira visão é para um belo quadro, que retrata a imagem serena e sábia: o memorável Mahatma Gandhi. O líder foi escolhido como exem-plo disseminador da paz e homenageado pela ABN, com o nome de um projeto. É o Prêmio Gandhi de Comunicação, que tem por objetivo incentivar os estu-dantes e profissionais da comunicação a elaborarem conteúdos que falem de coisas boas, fortaleçam a paz e tragam contribuições para a sociedade. Aconte-ce anualmente e há várias categorias. As premiações são feitas com troféus (uma miniatura do Gandhi) e valores em dinheiro, arrecadados por meio de pa-trocínio dos colaboradores.

quero que chegue o dia em que irei

abrir o jornal e me deparar com várias

notícias positivas

SerViçO

Agência da Boa NotíciaAvenida Desembargador Moreira, 2120, Sala 1307 – Bairro Aldeota - Prédio Trade Center CEP: 60170-002 - Fortaleza - Ceará Fone/Fax: (85) 3224.5509 E-mail: [email protected] - Site: http://www.boanoticia.org.br

a pauta é enviada toda checada, ca-bendo aos interessados marcar

encontro com as fontes e produzir a matéria. Hoje o trabalho passa a ser conhecido e valorizado. Mas, quando surgiu, era visto como concorrência por alguns meios de comunicação. “As empresas achavam que queríamos fa-zer oposição e concorrência. Hoje sa-bem o nosso verdadeiro desejo: somos os assessores de imprensa das boas notícias. Queremos atingir os profis-sionais para que eles façam um jorna-lismo mais social”, comemora Souto.

Realmente, há motivos para come-moração. Muitos veículos de comuni-cação diminuíram o uso do sensacio-nalismo, e são parabenizados por isso. “O programa Barra Pesada, da TV Jangadeiro, por exemplo, já mudou um pouco seu estilo. Após várias pautas mandadas e muitas fiscalizações, hoje o programa foca mais em notícias so-ciais do que em sangue. Eles levaram em consideração que nem todo mun-do gosta de sensacionalismo”. Souto

também é convidado frequentemente por rádios cearenses para participar de debates sobre a cultura de paz.

Com maior conhecimento e reconhe-cimento desse trabalho, o site da Agên-cia da Boa Notícia é cada dia mais visita-do. Os acessos são também de outros países como Portugal, Espanha, Estados Unidos e Argentina. A partir de 2012, o site será adaptado para a versão bilín-gue, podendo ser acessado também em espanhol. O comprometimento da ABN é tão grande que várias pautas já foram

enviadas para o exterior, sendo divulga-das por grandes jornais mundo afora. O oposto também é feito. Semanalmente a equipe da Agência reúne-se para montar o boletim “Boas Notícias do Mundo”, ou seja, as boas notícias, que são divulga-das nos jornais de todo o mundo, são reunidas no boletim e enviadas para to-dos os contatos da Agência.

Outro trabalho da ABN é a produção de cursos e fóruns sobre a paz. Esses eventos geralmente ocorrem em facul-dades, e têm como objetivo uma medida educacional. É uma tentativa de mos-trar aos alunos o trabalho que a Agência faz, potencializando um jornalismo ético, positivo, plural e humanitário.

“O mundo sempre é o mesmo, a hu-manidade é quem muda”, essas são as palavras que Souto Paulino pensa para o futuro. Ele sonha em ver um mundo melhor, mais igual e verdadeiro. Nem mesmo o assalto que sofreu em 2007 o fez mudar de ideia. O professor luta para que os profissionais de comunicação e estudantes aprofundem-se mais em assuntos de interesse social. E claro, as boas notícias com ênfase em todos os meios de comunicação. “Queremos transformar a sociedade. Queremos pessoas mais preocupadas em fortale-cer a paz do que combater a violência. Quero que chegue o dia, em que irei abrir o jornal e me deparar com várias notí-cias positivas”, conclui Souto, um amigo da paz.

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a Diretoria da agência da boa notícia tem a seguinte composição:

Presidente: Souto Paulino; Diretor Financeiro: Luís Eduardo Girão; Diretora de Comunicação: Ângela Marinho; Diretor Institucional e de Projetos: Eduardo Bandeira Araújo; Secretário Geral: Moacir Maia.

O Conselho Fiscal é formado por Fernando Lobo, Érico Silveira e Odilon Camargo.

No site da ABN há dicas de livros, filmes e artigos ligados à ação.

Comunicação

(mídia positiva)

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Cuidadoras, de fato!

"eu nasci para sofrer e tu nasceu pra viver. Porque tu vives, todo dia tu está dando vida ao mundo, todo

dia tu está dando vida pra esse povo". De Patativa do assaré para mãe inês.

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(vida de parteira)

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Desde a antiguidade, há registros da arte de partejar. O papel delas sempre foi o de ajudar no nascimento, assistindo às mães no parto. Desde os primórdios, portanto, as parteiras não medem esforços quando o assunto é ajudar a trazer mais um ser humano ao mundo. Na maioria, são mulheres humildes, que vivem por diferentes lugares e enfrentam muitas dificuldades. Tudo para dar apoio e suporte às futuras mamães na hora em que mais precisam.

Mas, como essas mulheres, guerreiras, que lutam para ajudar outras, percebem o mundo atual? Suas esperanças são fortalecidas sempre que acolhem uma criança em seus braços? Essas são apenas algumas das muitas questões que Mãe Inês, uma jovem senhora de 71 anos, que desde os 14 atua como parteira, irá revelar.

Inês das Neves de Oliveira, Mãe Inês, como gosta de ser chamada, nasceu em Juazeiro do Norte, no dia 18 de julho de 1940. Filha de Manuel Bezerra de Oliveira e de Maria José de Oliveira veio para Fortaleza em 1958, quando estava cursando a Faculdade de Direito. Ao chegar à capital, porém, não conseguiu dar continuidade aos estudos.

Foi ajudando a tia que Mãe Inês realizou seu primeiro parto. "Minha tia estava sofrendo pra descansar. Aí, peguei na mão dela e ela pediu para eu não sair de lá. Disse que não podia ficar. Então, ela disse: “Minha filha, saia daqui não”. Isso me vestiu de uma força, de um jeito que não sei quem eu era. Naquele momento o parto aconteceu. Fiz o parto, fiz tudo. Só fui "acordar" quando estava entregando o bebe para minha tia”, lembra Mãe Inês.

Sofrendo muitos preconceitos, Mãe Inês chegou ao ponto de ter de abandonar a escola, devido aos partos que realizava. "Sofri muito. As pessoas não aceitavam uma garota de 14 anos fazendo o que eu fazia. Tive até que sair da escola”, lembra.

Com aproximado de cinco mil partos já realizados, Mãe Inês diz que cada parto é uma ocasião diferente, especial, e que

sempre se emociona quando acolhe um bebe que chega. "É a melhor coisa do mundo. Quando ele chora, e olha pra gente, é tão lindo", diz emocionada.

Defensora do parto natural, Mãe Inês diz que é a melhor forma de dar a luz, uma vez que a mãe tem uma recuperação mais acelerada e com mais tranquilidade. "Com o parto natural, depois que o bebê nasce, a mãezinha já fica de pé, uma hora depois. Ela se levanta alegre e satisfeita, esse é o parto natural. É aquele que amanhã a mulher já está bem e fica naturalmente boa", destaca.

Mãe Inês acredita que o parto é um momento mágico na vida de qualquer mulher. "As mulheres têm o direito de ter alguém da sua família na hora do parto. Isso é um direito delas e deve ser respeitado", defende.

Mesmo com toda a dedicação das parteiras, Mãe Inês conta que existem alguns médicos que não as aceitam como profissionais importantes na hora

do parto. "Eles acham que as parteiras não têm a teoria que eles têm. Que não têm a sabedoria deles. Acham que as parteiras são atrevidas, enxeridas e curiosas. Por que estudaram pelo livro? Eu estudei pela mentalidade, pela teoria e sabedoria. E tudo de parto eu sei. Minha faculdade foi feita por Deus", diz Mãe Inês.

Religiosa, Mãe Inês diz que assim que vê o bebê nascendo e chorando, a primeira coisa que faz é aben-çoar e pedir para que seja uma boa pessoa. "Deus te abençoe e te faça um ser humano de moral e de vergonha, que você consiga tudo que precisa na vida, sem fazer mal a ninguém”.

Comprometida com muitas questões, Mãe Inês tem esperança em dia melhores, que o mundo poderá, sim, ter um futuro bem melhor. Mas isso só aconte-cerá se os pais e a sociedade entenderem o seu papel para com as crianças que chegam a nossas vidas, fazendo com que se tornem seres humanos com ca-ráter e dignidade. "Não vejo algo muito diferente, um mundo melhor, se não nos empenharmos na missão de ser pai e mãe de verdade. As autoridades têm de entender que é pela educação que o mundo ficará me-lhor", ensina Mãe Inês.

A sensibilidade dela se mistura com a dedicação de uma profissional que desde muito tempo sabe a dimensão e a importância de seu ofício para a socie-dade. Os partos feitos por Mãe Inês vão além de téc-nicas médicas. Ela estabelece forte relação com as mães e suas famílias, bem como com a comunidade da qual faz parte. Assim é Mãe Inês que, como já dizia Patativa do Assaré, vai dando vida ao mundo. Todo dia ela está dando vida para esse povo.

No Brasil, o número de partos por cesariana em hospitais particulares é cinco vezes maior do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde, chegando ao alarmante índice de 80%. Além disso, os casos de violência são uma triste realidade. Um estudo denominado “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, aponta que 27% das mulheres que deram a luz na rede pública e 17% da-quelas que pariram em rede privada relataram alguma forma de violência durante seu parto.

O Brasil possui uma forte rede de pessoas que lu-tam pela Humanização do Parto e do Nascimento. O trabalho das parteiras tende a minimizar as interven-ções desnecessárias durante o parto, de acordo com dados do movimento Marcha das Parteiras.

texto: augustiano XavierDesign: Lucia medeirosfotos: Caio túlio, Gabriela maciel e Jari Vieira

meu Pai não concordava muito, mas em primeiro lugar estavam as

mãezinhas e os partos e, em segundo, todo o

resto.

hOJe O munDO é completamente

diferente do que era antigamente.

Por partos mais humanizados

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(vida de parteira)

Page 19: Revista Matéria Prima

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sob um olhar deO futuro

peso Patrícia e ricardo não se conhecem, mas

partilham de uma mesma condição física que, não poucas vezes, os tornou vítimas de preconceito e

incompreensão: a obesidade

texto: tiago fernandes Design: almir moreira

imagens: fernando botero

(acima do peso)

Page 20: Revista Matéria Prima

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O despertador toca geralmente às 5:30. O professor de inglês Ricardo Probo, 41, nem sempre se dá ao luxo de tomar o café da

manhã, pois para chegar ao trabalho precisa pe-gar o ônibus antes que esteja lotado. Isso deixaria atitudes simples como passar a roleta e sentar-se ao lado de outra pessoa algo ainda mais penoso e constrangedor. Para a publicitária Patrícia Cor-deiro, 27, o trajeto até a empresa onde trabalha é menos penoso, pois faz o trajeto de carro. No entanto, já cedo se sente cansada e seus joelhos começam a reclamar das escadas que a levam até a sua sala.

Dificuldades a parte da sua condição de obeso, Ricardo é um daqueles caras inteligentes, diverti-dos e comunicativos. Tem sempre uma frase que faz todos rirem. E mais, não lhe faltam palavras e gestos para apoiar e cuidar de quem precisa. Não por acaso, sua companhia é disputada pelos ami-gos e familiares.

Patrícia é uma mulher linda, vaidosa, batalha-dora. Normalmente maquila-se e veste-se impeca-velmente. É de sorriso fácil. Lágrimas também. Foi na mesa de um café da cidade que Patrícia falou por mais de uma hora. Entre sorrisos discretos e olhos muitas vezes marejados ela narrou um pouco da sua trajetória e suas perspectivas de futuro.

Aos seis anos Patrícia começou a ter consciên-cia da sua obesidade. Foi quando começou a fre-quentar, levada pela mãe, consultórios de endocri-nologistas, nutricionistas e psicólogos. O pai, por sua vez, não via qualquer problema na garotinha. “Ele achava lindo me ver comendo. Sempre me di-zia que eu era linda do jeito que eu era”, relembra, com olhar saudoso, a publicitária de 25 anos. Há cinco anos ela perdeu o pai.

Como a maioria das crianças obesas, Patrícia teve um infância difícil: era a última a ser escolhida nas brincadeiras e jogos da infância ou adolescên-cia ou simplesmente era deixada de fora. Os apeli-dos depreciativos eram corriqueiros.

Para Ricardo, a consciência da obesidade só veio aos 35 anos, mais ou menos. A insistência das pessoas em convencê-lo da sua condição foi decisiva. “Até então, eu não me via como obeso. Apenas como alguém que estava acima do peso”, conta. Foi nesse mesmo período que passou a exe-cutar com dificuldade atividades simples como le-vantar da cama e amarrar o tênis.

Certa vez, ele estava num bar com um grupo de amigos e conhecidos. Todos haviam combinado de, em seguida, continuarem a noite em outro es-tabelecimento. Percebeu, então, certo constran-gimento no grupo. Um amigo confessou que pelo fato de ser gordo, o professor não poderia ir no carro, pois ocuparia muito espaço. “Aquela ainda é uma noite difícil de esquecer”.

Ir às compras costuma ser uma atividade praze-rosa para a maioria das pessoas. Mas quem nunca experimentou o desconforto de ser mal atendido,

“imPOSSÍVeL Ser magro, mas preciso

ser saudável. eu quero durar”.

“Gordos têm dificuldades em

encontrar parceiros. Ser gordo não é ser

gente”.

medo é repetir a violência moral a que foi submetido pelos pais. Refere-se às ofensas que sofreu por ser gay e, mais tarde, por ser obeso.

O desejo de constituir família é uma realidade. O futuro enfermeiro, no en-tanto, parece não ter muitas esperan-ças. “Gordos têm dificuldades em en-contrar parceiros. Ser gordo não é ser gente”. Certa vez, um dos seus paque-ras sugeriu que ele emagrecesse, pois, “ficaria perfeito”. Mesmo que Ricardo concordasse, não daria tempo. O paque-ra sumiu. “Parece até que para muitos, perde-se a humanidade quando se é obe-so”.

As convenções sociais e seus efeitos nocivos estão fortemente presentes no discurso de Ricardo. Acredita que difi-cilmente haverá um futuro próximo onde a sociedade estará preparada para con-viver com a obesidade. Segundo ele, há um modelo vigente em que o magro é o belo e gordo é o feio.

Antes de falar sobre a possibilidade de emagrecer no futuro, mais silêncio. Suspiros, olhar inquieto. A dificulda-de em responder é notória. Uma coisa é certa, dificilmente fará uma cirurgia bariátrica (redução de estômago). Para ele, poucos se mantêm magros. Outros morrem e alguns desenvolvem a Síndro-me de Dumping (ver coordenada). “Im-possível ser magro, mas preciso ser saudável. Eu quero durar”.

Patrícia é casada há três anos. Conta que o próximo passo é ter filhos, mas só depois de emagrecer. Com o peso atual, teria uma gravidez muito mais complica-da. “Quando eu tiver filhos, farei de tudo para que eles não passem pelo que eu já passei e ainda passo”.

O sonho dela é abrir o próprio ne-gócio. Quer uma loja de moda feminina. Para isso, iniciou uma pós-graduação e faz cursos na área de gestão e marke-ting. Vê nesse sonho, contudo, o desa-fio de emagrecer. O peso pode impactar diretamente na vida profissional, pois compromete o desempenho físico. Além do mais, confessa, “a gordura deixa a pessoa feia”.

Diferentemente de Ricardo, Patrícia vê o futuro com mais otimismo. Para ela, é mais fácil ser obeso hoje, pois o preconceito é menor. A mídia, opina, fala muito sobre o assunto e isso ajuda a di-minuir o preconceito. “Mas eu preciso encontrar um novo caminho para ema-grecer. Já conheço muitos”.

“por qualquer motivo, em algum estabe-lecimento comercial? Se a má qualidade do atendimento for motivada pela obesi-dade, pode ser ainda pior. Numa loja de roupa feminina, ao abordar a vendedora, a jovem publicitária recebeu como res-posta um sonoro: “Ah, não temos roupa pra você aqui.” Sentindo-se humilhada, agradeceu e saiu.

quanto ao futuro...Indagado como enxerga o seu futu-

ro, Ricardo silencia. Corta, então, mais um pedaço do bolo que está em cima da mesa. “Sei apenas que se eu falhar no meu presente terei um futuro ainda mais nebuloso”. E o que ele chama de falhar. “Falhar”, responde, “é não conseguir ser útil e relevante para a sociedade”.

Estudante do 4º período do curso de Enfermagem, seu objetivo é concluir a graduação, ingressar imediatamente em uma pós-graduação e trabalhar em um hospital de referência ou mesmo, apro-veitando sua fluência na língua inglesa, trabalhar na Europa ou Estados Unidos. Ricardo não escolheu o curso de Enfer-magem aleatoriamente. Sua vocação, assegura, é cuidar.

Desde cedo ajudou na criação dos so-brinhos mais velhos. Hoje, se divide en-tre o desejo e o receio de ser pai. Seu

(acima do peso)

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(esporte sem limites)

O mundo de

Silgenetexto: thiago Jorge

fotos: Vicente neto

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a vida dela poderia ser diferen-te, se não fosse uma séria lesão que sofreu na coluna

no momento de nascer quando, num movimento brusco, a parteira a trouxe ao mundo. Nos primeiros meses, o bebê Silgene não havia ainda manifestado as sequelas que viria a apresentar futuramente, mas, algum tempo depois, diante de tantos médicos e inúmeros exa-mes, o problema foi gradativamente sendo descoberto. Começou a fazer várias sessões de fisioterapia para amenizar as consequências do par-to. Para surpresa do médico, apre-sentou apenas danos físicos como espasticidade e encurtamento de tendões, bem como a incapacidade de manter o equilíbrio.

Desde a infância, foi constan-temente instruída por sua mãe de que não seria igual às outras crian-ças, que elas iriam vê-la com olhar penoso e que Silgene sempre teria de explicar o que realmente havia acontecido com ela, que se acos-tumasse com essa vida, e que iria precisar de muletas para se loco-mover. “Cresci vendo o mundo de pessoas “normais” como diferen-tes, como pessoas que precisavam entender que eu era feliz e o fato de ter quatro “pernas” não me tornava incapaz”.

Na escola, os estudos foram ini-ciados aos 7 anos de idade e, logo no primeiro dia, lembra Silgene, fi-cou sozinha. Nos finais de semana costumava dormir na casa de ami-gas e até viajar com as famílias. Não tinha a mínima ideia de que o fato de aceitar a vida como ela era, fa-zia com que todos a encarassem de forma natural e sem sinais de pre-conceito. “Acho que todas as crian-ças especiais deveriam crescer as-sim, sabendo que a vida é diferente para todos. A melhor parte disso, no entanto, é fazer das diferenças a força para realizar os sonhos”.

Com limitações físicas ou não, a ado-lescência é o período mais difícil de qual-quer jovem. É nessa idade que as emo-ções e os desejos ficam mais fortes. A rebeldia vez ou outra toma conta e os conflitos são constantes. Não foi dife-rente com Silgene. Os rapazes olhavam as meninas de forma diferente. Algumas nem queriam mais brincar de boneca, e sim ir às festas e aproveitar a noite.

Nesse tempo, um episódio marcou muito a vida dela: ao dançar com um ga-roto numa festa, antigamente chama-da de tertúlia, Silgene caiu no chão por não saber equilibrar-se corretamente em pé. Ficou sem reação. Ao tentar se levantar foi ajudada por alguns colegas de turma, mas logo depois percebeu que as outras pessoas da festa a olhavam com desdém, como se a chamassem de “coitadinha”, por não saber andar bem e dançar normalmente como os outros jo-vens de sua idade. Imediatamente, saiu da festa e foi direto para casa.

Ao chegar, a mãe de Silgene ficou sa-bendo o que aconteceu na festa e disse--lhe algo que ficou na memória para sem-pre. “Você tem duas opções; passar a vida sozinha lamentando o que não tem ou tirar o melhor proveito daquilo que Deus te deu”, recorda.

A partir desse momento, a jovem Silgene passou a ver o mundo de uma forma mais ampla, aproveitando cada oportunidade que lhe aparecia. “Sou o que sou. Quem quisesse fazer parte do meu grupo era bem vindo, quem não me

aceitasse, ficaria de fora. Com os adul-tos adotei a mesma estratégia de crian-ça, paciência com todos para explicar e aceitar o fato de não me entenderem”, diz ela, com entusiasmo. Dessa forma, aprendeu inglês, japonês, primeiros so-corros e também a fazer bonecas no es-tilo “reborn”.

Aos 46 anos, Silgene hoje é telefonis-ta em uma rede internacional de hotéis no Brasil. Trabalha de domingo a domin-go, com uma folga a cada sete dias. Ela acredita que as condições de trabalho são favoráveis, mas que podiam melho-rar bem mais.

Alguns aspectos e detalhes do hotel foram modificados para que ela pudesse ter acesso às ações mais básicas do dia a dia do trabalho, como bater o ponto ou

subir uma rampa. O aparelho do ponto eletrônico foi estrategicamente coloca-do a uma altura na qual ela possa inserir o dedo de forma confortável e, na en-trada de funcionários do hotel, há uma pequena rampa para que ela possa subir e descer sem dificuldades.

Silgene tem outros planos e outras ocupações. Nas horas vagas, ela vai tra-balhar na Lan House que mantém junto com sua família. Em casa, ela também fabrica os bebês chamados “reborn”. Fa-zer um Bebê Reborn é criar uma boneca com as características de um bebê hu-mano dando a máxima realidade possível.

O cabelo que pode ser de fibra sinté-tica, cabelo humano ou tirado do pelo da cabra angorá que é conhecido mundial-mente por ser forte e brilhoso é tratado

e colorido para depois ser implantado fio a fio com uma agulha especialmen-te produzida para isso. O implante é um processo delicado que exige téc-nica, paciência e tempo para terminar uma só cabeça. Há também a opção da peruca para quem deseja um bebê com mais cabelo.

Mas o amor por bonecas reborn não é por acaso. Silgene sempre foi muito apegada a crianças. Na adoles-cência, cuidava de seus irmãos mais novos com muito carinho. “Sempre gostei muito de cuidar de crianças, e meu amor por elas se estende às bonecas. A primeira que fiz se chama Aiko e é o meu grande amor”.

Silgene acha que a forma como o mundo vê os deficientes já melhorou muito, mas ainda falta muito mais para que direitos e respeito sejam iguais. Quanto as suas expectati-vas futuras, ela sonha em algum dia adotar uma criança e se tornar uma mãe, assim como ela fabrica e cuida de seus bebês reborn.

“a melhor parte é fazer das diferenças a força para realizar

os sonhos”

“Sempre gostei de cuidar de crianças e

meu amor por elas se estende às bonecas”

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força de vontade e

supe ração

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O desentendimento entre uma en-fermeira com algumas pessoas,

na fila de um posto de vacinação, em Sobral, mudou para sempre a vida de Claudemir Duarte de Farias. Como con-sequência, ele deixou de ser vacinado contra poliomielite, ou paralisia infantil, aos oito meses de idade.

A enfermeira discutiu com uma das mulheres que estavam na fila e deci-diu não vacinar mais qualquer criança naquele dia, e disse para voltarem no dia seguinte. Claudemir e sua mãe vol-taram, então, para a cidade onde mo-ravam, Cariré, próxima de Sobral e a 287 km de distância de Fortaleza. Mãe e filho não voltaram ao posto no dia se-guinte, porque não tinham condições de alugar, mais uma vez, um carro para os levarem até o posto.

Uma semana depois de não ter sido vacinado, o pequeno Claudemir teve fe-bre. A mãe começou a tratá-lo como se fosse uma febre normal, como qual-quer outra. Mas a febre não cessava. Resolveu, assim, levar o filho para um hospital. Descobriu que ele estava com paralisia infantil. Os médicos queriam amputar as pernas do menino, mas a mãe fugiu do hospital, antes que isso pudesse acontecer.

Com um ano de idade, Claudemir e a família se mudaram para Fortaleza. A partir de então, passou a ser tra-tado por um casal de médicos, que cuidou dele até a adolescência. Do pri-meiro ano de nascido aos dez anos, fez quatro cirurgias. “Quando voltava pra casa, ficava com o gesso. Em cada ci-rurgia passava quase um ano com ele. Todo mês colocava e tirava o gesso.” Ele recorda também que não teve in-fância porque permanecia muito tempo no hospital. “Passava seis meses do ano no hospital.”

Tinha preconceito com a sua própria paralisia e achava que não ia ter con-vívio com as pessoas por esse motivo.

Por causa disso, até 15 anos, os amigos eram os da sua rua, apenas. A partir daí, começou a frequentar o Centro So-cial César Cals (CSU) e os amigos, ago-ra, também eram de lá. Foi no CSU que descobriu a paixão pelo esporte, mais precisamente pelo basquete, que há 20 anos pratica. “Tenho o esporte como uma lição de vida e não deixo de prati-car. Só quando meu corpo não aguentar mais. Às vezes, até brigo com minha es-posa, porque ela não quer que eu vá trei-nar, mas digo que ela já me conheceu no esporte. É algo que eu não abro mão”. No basquete para cadeirantes, o atleta precisa ter muita força nos braços. Ele nunca teve qualquer lesão relacionada ao esporte.

O time de basquete que Claudemir participa não tem patrocínio fixo. Eles têm ajuda do governo do estado, da pre-feitura e um convênio com a Expresso Guanabara, que patrocina 20 atletas com um salário mínimo. “Somos funcio-nários da Guanabara, mas não trabalha-mos pra ela, nosso trabalho é treinar. Uma vez por mês somos chamados pra uma reunião. Participamos dos eventos da empresa, e vamos divulgar o trabalho social que ela faz”.

Hoje, aos 35 anos, Claudemir sonha em poder ter uma equipe, criar um clube grande, dar ajuda financeira para que os deficientes possam treinar. Antigamen-te as dificuldades para os cadeirantes, eram bem maiores. Tanto em relação à arquitetura da cidade e aos ônibus, quanto às pessoas. “Em uma praça, se há uma rampa, alguém vai e estaciona o carro na rampa, impedindo os cadei-rantes de usarem a praça. Há um es-paço todo, mas o motorista estaciona na rampa. Você já percebeu isso?” Para ele, um dos piores lugares para o defi-ciente físico é o Centro da cidade. São muitas calçadas altas e desestrutura-das. Algumas vezes ele precisa da ajuda de pessoa, e, quando precisa, não tem

vergonha de pedir e nem de agradecer. Hoje, já existem muitos ônibus com

elevador e mais rampas na cidade, facilitando assim a vida dos deficien-tes, que já podem passear em praças, shoppings e outros lugares públicos. Diferentemente de alguns anos atrás, quando as pessoas com deficiência só podiam sair de carro, táxi e na com-panhia de alguém. O cadeirante deseja que se amplie, mais ainda, o número de coletivos adaptados. Gostaria mesmo que, aliás, tudo fosse acessível, que não fosse mais preciso andar no meio da rua, e que os deficientes tivessem mais acesso à praia.

Uma vontade de Claudemir é conti-nuar os estudos, (ele só estudou até o 3º ano do ensino médio), fazer facul-dade de Educação Física e ser técnico de basquete.

Fora seu amor pelo esporte, tam-bém ama a família. Está casado há dez anos e tem um casal de filhos. Ele teve todo o cuidado com a vacinação dos filhos. Não só com a vacinação, mas tem cuidado de deixá-los e pegá--los no colégio sempre que pode. “Eu que fico com eles durante o dia, dou banho, cuido do almoço, coloco pra dormir. “Faço a mãe. A noite é a vez da mãe deles.”

No tempo livre, gosta de assistir a filmes em casa, e ir à praia. “Sou um pouco reservado. Não gosto muito de sair. Já fui de sair muito”. Atualmen-te atua no ramo de monitoramento de empresa de segurança, mas já traba-lhou como cobrador de ônibus, caixa de supermercado e no suporte de in-ternet.

Claudemir espera que, com a Copa do Mundo, a situação fique melhor, já que Fortaleza será um dos palcos do Mundial. “Espero que a situação me-lhore e que não seja somente durante a Copa”, disse o paratleta com espe-rança no futuro.

a decisão precipitada de uma enfermeira em não vacinar contra poliomielite mudou para sempre o destino do pequeno Claudemir. Desde então, ele enfrenta o preconceito praticando esporte para superar os limites da paralisia.

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“ fico com eles durante o dia, dou banho, cuido do almoço, coloco pra dormir,

“faço a mãe.”

“ tenho o esporte como uma lição de vida e não

deixo de fazer, só quando meu corpo não agüentar

mais.”

“existem algumas pessoas deficientes que se sentem

presas, não sabe se expressar com as pessoas, eu observo muitas pessoas deficientes não sabe pedir

um obrigado.”

texto: Lais brasil Design: almir moreira foto: Lais brasil

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(esporte sem limites)

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Verônica Valentino:

Performática, carismática e talentosa. Verônica Valentino, personagem travestido de Jomar Carramanhos é a prova confessa de como uma realidade adversa pode moldar e redesenhar a alma de um artista, superar preconceitos, quebrando paradigmas por meio da universalidade inerente na música e no humor.

texto: João bosco

Design: Diana Vakentina

fotos: Divulgação

talento x preconceito

(estilo de arte)

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tem uma trava’. Essa mídia, creio que é conquistada. Mas, enfim, acho que tudo pode ser manuseado”.

Um ponto a destacar é que Verônica diz que não pretende ser reconhecida por suas “p.”, mas diz que hoje pela “p.” chega e diz que é “aquela travesti do ví-deo” e consegue mostrar seu trabalho.

A luta da personagem é fazer com que o público que gosta do seu traba-lho consiga respeitar a figura o travesti. “Não importa o que faço, não importa no que creio, não importa do que vivo, você tem que me respeitar pelo que sou”, ressalta. Sobre a família, Verônica diz que após tempos complicados, hoje sua mãe é tranquila e chega até a ajudá-la com seu material de montagem, pois ela continua sendo evangélica e encara que o seu filho é um artista e vive disso, não se traveste para fazer um programa.

Largam o estudo cedo, na 6ª ou 8ª série. Alguns frequentaram a escola e, em geral, foram ridicularizados por cole-gas e professores. Dizem que se prosti-tuem pelo dinheiro “fácil” - ganham até R$ 4.000 por mês -, e garantem que largarão essa vida depois de juntar mui-to dinheiro.

A vida deles é marcada por falta de aceitação, preconceito e, às vezes, se-gredos. A imagem da travesti é comu-mente relacionada à prostituição. Essa ligação tem um pé na realidade: mui-tas travestis se prostituem. Contudo, esse dado precisa obrigatoriamente ser acompanhado de outro, tão importante quanto. É difícil, para a travesti, encon-trar espaço no mercado de trabalho. O preconceito, embora nem sempre ex-plícito, é real. Aquelas que conseguem transpor essa barreira também têm um destino traçado. Com raríssimas exce-ções, tornam-se cabeleireiras, diaristas e cozinheiras.

A falta de espaço no mercado leva muitos travestis a se entregarem à vida “fácil” da prostituição, onde terão opor-tunidade de ganhar dinheiro para se man-ter, sem sofrer preconceito pelo que são - já que os que buscam normalmente es-tão cientes da sexualidade do ser.

travestis e a prostituição

Banda Verônica Decide MorrerGênero: Rock’n’Roll Rhythm BluesContato: Malu MachadoTel: (85) 87223837 -Emaill: [email protected]

“é SOnhO, cara, e se é aquilo que te move, tu

tem que ir”

“Sua trajetória começa em 2004,

quando ainda jovem e perten-cente a uma comunidade evangéli-ca, fruto de convicções familiares, participava ativamente de atividades artísticas: dança, música e teatro com professor. Aos 20 anos, após aprovação no curso de artes cênicas no IFCE, ocorre o primeiro choque e decepção com seus companheiros de culto, os quais o incentivaram a lar-gar o curso, já que ele atrapalharia o andamento de suas atividades na igreja e também pela taxativa discri-minação com a área.

Esse episódio foi decisivo para o seu desligamento das tradições reli-giosas. Em uma viagem com colegas do curso para o festival de teatro de Guaramiranga, Verônica se permitiu conhecer a si mesma por completa: “Decidi fazer tudo que considerava errado: fumei meu primeiro cigarro, bebi minha primeira bebida, beijei meu primeiro homem”, diz o artista.

Nessa jornada de auto-descoberta no último período da faculdade rece-beu convite do diretor Silveiro Pereira para o espetáculo “Cabaré da Dama”.

Na peça, ovacionada pela platéia, en-carnou Edith Piaf, símbolo da época de ouro da música francesa, onde fez sua primeira experiência travestido. Foi seu primeiro trabalho na noite teatral, onde teve contato com grandes artistas do cenário local e teve a primeira experiên-cia de “montagem”.

Logo após uma temporada fazendo o “Cabaré da Dama”, foi convidada para atuar no “Engenharia Erótica”, onde Ve-rônica tinha músicas que eram execu-tadas ao vivo. Realiza, então, um sonho antigo de interagir com o público musi-calmente. Nessa época com o sucesso advindo de suas apresentações, entrou em contato com Jonas Dário, que já era seu amigo de longa data, e a partir disso

surgiu a ideia de formar uma banda de rock.

“Verônica decide morrer” é uma alu-são escachada do próprio personagem por essa distorção do imaginário que como travesti, ela teria uma pegada mais puxada para o pop. Desmente a ideia de que o nome da banda seja uma referência à obra do escritor Paulo Co-elho.

A personagem ficou famosa com a vinculação de um vídeo no youtube deno-minado “Glossário sobre Travesti”, que lhe rendeu uma participação no progra-ma da Eliana nas tardes de domingo. Seu maior desejo como artista é desvirtuar a ideia associada ao travesti com pros-tituição e ser reconhecida e amparada somente pelo seu trabalho.

Veronica diz que um de seus objeti-vos é mostrar o humor gay para as pes-soas, sem usar da discriminação como ferramenta. Sobre a banda, a persona-gem diz: “Acho que tudo é conquistado. [...] A gente tem uma visibilidade bacana pra muito pouco tempo. Aquelas que não viram, já ouviram falar, aquelas que não ouviram falar, vão saber porque alguém vai dizer ‘ah, tem uma banda de rock que

é o número de visualizações no site YouTube do vídeo

mais famoso de Verônica, o Glossário.

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SerViçO

(estilo de arte)

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futuro

Pita

guary

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(nação e identidade)

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não é de agora que os índios estão lutan-do para não perder seus costumes e sua

cultura, e para se adaptar ao mundo atual. A história registra que eles foram obrigados a se adequar ao mundo que não os pertencia. Com os índios Pitaguary não foi diferente. A luta co-meçou há muito tempo, desde quando saíram da Parangaba atrás de novas terras. Eles ba-talharam muito até chegar ao sopé da serra da Aratanha, em Pacatuba, lugar onde hoje habi-tam. Foram tratados de forma desumana, nas palavras do pajé Barbosa, 43 anos. Como não sabiam ler, nem escrever, eram tratados como sem alma, sem espírito.

Só queriam manter, na verdade, sua língua, cultura e religião. “Dá até vontade de chorar quando lembro que tínhamos a nossa própria lín-gua e tivemos que aprender o português e dei-xar pra trás toda a nossa história”, lamenta. Os índios Pitaguary vivem de personagens. Têm que se vestir como homem branco para não sofrer represália nas ruas. “Quando saio da aldeia, não sou mais o pajé Barbosa, sou o Raimundo Carlos da Silva, funcionário da prefeitura”, ressalta.

E é com o pensamento no futuro da aldeia e das crianças indígenas, que eles pretendem mudar a realidade. Os Pitaguary, do município de Pacatuba, estão dando atenção especial para as crianças. Elas são fundamentais para manter a cultura que ainda existe e passar adiante às próximas gerações indígenas. Até pouco tempo, os índios mais velhos se reuniam embaixo dos cajueiros e castanholeiras para ensinar os pequenos. O lanche eram os cajus e as castanholas que caíam das árvores. Após muitas batalhas, idas e vindas aos governantes, com muito esforço e obstinação conseguiram instalar, em 2009, em parceria com o Governo do Estado do Ceará a Escola Diferenciada de Ensino Fundamental e Médio Ita-Ara, na aldeia Pitaguary, em Pacatuba.

Desde quando a escola Ita-Ara foi pensada, o objetivo foi expandir o atendimento à população indígena, para beneficiar as etnias presentes no território cearense. São ensinadas as disciplinas regulares como português, matemática, ciências e, também, as de cultura e religião indígena e a língua mãe, o Tupi.

A escola conta também com um laboratório

textos e fotos: anderson PaixãoDesign: Lucia amaral

de informática educativa, onde os alunos da educação infantil, jovens e adultos têm a oportunidade de conhecer o mun-do tecnológico. Para o pajé, as crianças vão poder agora ter liberdade educati-va, “que elas não podiam ter em esco-las normais, pois tinham que se adaptar a viver como os brancos. Na Ita-Ara, tanto preparamos para o futuro, para passar num vestibular, para trabalhar em empresas públicas e privadas, como também resgatamos o nosso passado, que é fundamental para nos mantermos como índios”.

Na aldeia dos Pitaguary há, atualmente, três mil e trezentos índios e muitos deles ainda não sabem ler. Tinham medo das escolas convencionais, dos professores e da repressão que sofreriam. Outro diferencial da escola Ita-Ara é a inclusão. São aceitas qualquer criança, independente de cor, raça, religião: negros, índios, brancos e crianças com necessidades especiais, mantendo sempre o respeito com a diversidade de cada um. O pajé é a favor também da criação da disciplina de relações humanas nas escolas, ensinando a todos, como se adaptar às outras culturas, respeitando o próximo, caminhando para um futuro mais civilizado. “Temos que ter um espaço aberto para nós, índios, mostrarmos a nossa cultura”, defende.

Saúde indígenaSão muitas as mudanças que os ín-

dios querem para poder ter um futuro mais digno e melhor. Quando buscam continuidade às lutas indígenas, estão cada vez mais atuantes no governo. Junto com a Fundação Nacional do Ín-dio (Funai) criam organizações para en-frentar os poderosos e lutar por seus ideais. O Conselho Distrital Indígena, do qual o pajé Barbosa faz parte, junto com a Funai, criaram a Secretaria Especial de Saúde Indígena, com o objetivo de administrar e fazer com que o processo de gestão do subsistema dê a atenção necessária para a saúde indígena. Para o pajé, a criação da Secretaria é o pri-meiro passo para uma saúde mais digna para os índios. “No futuro, quero trazer

A Fundação Nacional do Índio (Funai) é o órgão do governo brasileiro que, junto com os índios, desenvolve ações em defesa dos direitos indígenas. Promove a educação básica dos índios, demarca, assegura e protege as terras por eles tradicionalmente ocupadas, estimula o desenvolvimento de estudos e levantamentos sobre os grupos indígenas.

1a desigualdade sempre vai haver, mas os índios têm que ser mais vistos

2temos que ter um espaço aberto para nós, índios,

mostrarmos a nossa cultura

3Se o mercado de trabalho

já está ruim para os brancos, imagine pra nós

índios

para a nossa comunidade um hospital diferenciado, que junte as mais avan-çadas formas de medicina mundial com os nossos saberes indígenas, que in-teragindo possa dar mais esperança e conforto para o nosso povo. Um hospi-tal todo adaptado, onde possa ser res-peitada a nossa cultura”. No projeto do hospital diferenciado, está a implan-tação de uma farmácia com remédios naturais indígenas, redes, ao invés de camas, a participação das rezadeiras e do pajé como um complemento à medi-cina tradicional. “A desigualdade sem-pre vai haver, mas nós, índios, temos que ser mais vistos”.

Mercado competitivo“Se o mercado de trabalho já está

ruim para os brancos, imagine pra nós, índios.” É assim que o pajé vê o cenário atual. Para ele, os índios têm que se capacitar para se engajar nesse mercado competitivo. Mas, na aldeia Pitaguary, é diferente. Ele mesmo incentiva os índios maiores de dezoito anos, a procurarem cursos profissionalizantes, melhorando, assim, sua qualificação e ficando mais fácil de, no futuro, se inserir no mercado de trabalho. Considera também a relação com os grandes empresários. “O homem branco vem ao encontro dos índios querendo progresso, mas a forma de progresso que eles querem, destruindo a natureza, criando indústrias e mais indústrias, vai acabar com o mundo”, ensina pajé Barbosa.

Direitos iguais

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(nação e identidade)

Pajé Barbosa: luta por melhores condições de vida para os povos indígenas

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