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  • MICHAEL MOORCOCK

    ELRIC DE MELNIBONE

    Elric of Melnibone

    © Copyright 2010 Michael Moorcock

    Publicado originalmente em 1972

    Traduzido por Juvêncio Fernandes

    Versão para E-Book sem fins lucrativos

    Cultura Digital / Sebo Digital

    osebodigital.blogspot.com

    http://osebodigital.blogspot.com/

  • ÍNDICE

    Prólogo................................................................................................................... 4 LIVRO UM ............................................................................................................ 5 1. Um rei melancólico............................................................................................. 6 2. Um príncipe ambicioso ..................................................................................... 13 3. Um passeio matinal a cavalo ............................................................................. 19 4. Prisioneiros ....................................................................................................... 25 5. Uma batalha...................................................................................................... 32 6. Perseguição ....................................................................................................... 45 LIVRO DOIS ...................................................................................................... 53 1. As cavernas do rei do mar................................................................................. 54 2. Um novo imperador e um imperador renovado................................................ 60 3. Uma justiça tradicional...................................................................................... 68 4. A invocação do senhor do Caos........................................................................ 78 5. O Barco que navega sobre mar e terra .............................................................. 85 6. O que o deus da terra cobiçava ......................................................................... 97 7. O rei Grome ................................................................................................... 103 8. A cidade e o espelho ....................................................................................... 114 LIVRO TRÊS .................................................................................................... 132 1. Além do Portal das Sombras........................................................................... 133 2. Na cidade de Ameeron ................................................................................... 140 3. O túnel para a Caverna dos Lamentos ............................................................ 148 4. Duas espadas negras ....................................................................................... 157 5. A misericórdia do rei pálido ............................................................................ 168 Epílogo............................................................................................................... 174 SOBRE O AUTOR............................................................................................ 176

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  • Prólogo

    Esta é a historia de Elric antes de ser chamado assassino de mulheres e

    antes do colapso final de Melniboné. Esta é a historia da rivalidade com seu primo

    Yyrkoon e de seu amor por sua prima Cymoril, antes que esta rivalidade e este

    amor provocassem o incêndio de Imrryr, a Cidade dos Sonhos, saqueada pe1as

    hordas dos Novos Reinos. Esta é a historia das espadas negras, Stormbringer e

    Mournblade, de como foram descobertas e de seu papel no destino de Elric e de

    Melniboné, um destino que iria influenciar outro ainda maior: o destino de seu

    próprio mundo. Esta é a historia de quando Elric era um imperador, o mestre

    máximo dos dragões, frotas e de todos outros componentes da raça semi-humana

    que havia regido o mundo durante dez mil anos.

    Esta é a historia de Melniboné, a ilha do dragão. É uma historia de

    tragédias, de emoções monstruosas e ambições elevadas. Uma historia de feitiçarias,

    traições e altos ideais, de grandes agonias e prazeres, de amargos amores e doces

    ódios. Esta é a historia de Elric de Melniboné, e grande parte dela seria recordada

    pelo próprio Elric em seus pesadelos.

    Crônicas da Espada Negra.

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  • LIVRO UM

    No reino de Melniboné, todos os antigos rituais ainda são observados, porém o poder

    da nação se desvaneceu há quinhentos anos atrás, e agora, seu modo de vida se conserva somente

    através do comercio com os Novos Reinos, e é um fato que graças a isso a cidade de Imrryr se

    converteu em um centro de encontro de mercadores. Mas será que os antigos rituais não são mais

    úteis? Será que eles podem ser esquecidos e o destino pode ser ludibriado? Aquele que deseja reinar

    no lugar de Elric prefere pensar que não. Afirma que Elric trará a destruição a Melniboné por ter

    deixado de respeitar todos os antigos rituais (apesar de que na verdade Elric respeita muitos deles).

    E agora se inicia a tragédia que terminará dentro de muitos anos e precipitará a destruição deste

    mundo.

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  • 1. Um rei melancólico:

    A corte se esforça para honrá-lo

    SUA PELE é da cor de um crânio desbotado, e é branco como leite o

    longo cabelo que lhe escorre até abaixo dos ombros. Da bela cabeça afunilada

    espreita um par de olhos rasgados, vermelhos e taciturnos, enquanto das mangas

    largas da toga amarela surgem duas mãos delicadas, também da cor dos ossos,

    repousando cada uma sobre o braço de um trono esculpido de um único e enorme

    rubi.

    O olhar escarlate sobressalta-se e, de vez em quando, a mão ergue-se e

    tateia o elmo que assenta levemente nas madeixas brancas: um elmo feito de uma

    liga escura, esverdeada, e moldado com requinte à imagem de um dragão prestes a

    levantar vôo. Na mão que acaricia a coroa encontra-se um anel encravado com uma

    pedra rara de Actorios, cujo âmago se move e se transforma devagar como se fosse

    uma fumaça inteligente, tão agitado na preciosa masmorra quanto o jovem albino

    no seu Trono Rubi.

    Lança um olhar do topo da longa escadaria de quartzo em direção ao

    lugar onde a corte se diverte, dançando com tamanha fragilidade e graça

    sussurrante que bem podia tratar-se de uma corte de fantasmas. Na sua mente

    debate questões morais, e é precisamente esta atividade que o separa da vasta

    maioria dos seus súditos, pois tal multidão não é humana.

    Este é o povo de Melniboné, a Ilha dos Dragões, que dominou o mundo

    por dez mil anos, apenas para ver o poder esvair-se ao longo dos últimos séculos.

    Um povo cruel e inteligente, para quem princípios morais significam pouco mais

    que o devido respeito pelas tradições de uma centena de séculos.

    Para o jovem, o quadringentésimo vigésimo oitavo descendente direto

    do primeiro Feiticeiro Imperador de Melniboné, tais suposições soam tão ridículas

    quanto arrogantes; é evidente que a Ilha dos Dragões perdeu grande parte do poder

    que tinha e que em breve estará ameaçada, talvez dentro de um ou dois séculos, por

    6

  • conflitos diretos com as nações humanas emergentes, as quais os melnibonianos

    chamam, com alguma condescendência, Novos Reinos. Na verdade, várias armadas

    piratas já lançaram investidas sem sucesso contra Imrryr a Bela, a Cidade dos

    Sonhos, capital de Melniboné, a Ilha dos Dragões.

    Ainda assim, mesmo os amigos mais íntimos do imperador recusam-se a

    discutir a eventual queda de Melniboné. Desagrada-lhes qualquer menção à esta

    idéia, encarando tais observações não apenas como impensáveis, como também de

    uma extraordinária falta de bom gosto.

    Por isso, sozinho em seu trono, o imperador medita. Lamenta que o pai,

    Sadric LXXXVI, não tenha gerado mais filhos, pois assim talvez houvesse um

    monarca mais apto a ocupar o Trono Rubi. Sadric morrera a um ano, acolhendo

    com um murmúrio de gratidão o que quer que tenha vindo para lhe reclamar a

    alma. Durante toda a sua vida, Sadric jamais teve outra mulher que não a sua

    esposa, pois a Imperatriz morrera ao dar à luz o seu único e anêmico rebento.

    Sadric amara a esposa com as emoções típicas de um habitante de Melniboné

    (estranhamente diferentes das dos recém-chegados humanos), e viu-se incapaz de

    encontrar prazer em qualquer outra companhia, mesmo a do filho que a matara e

    que era tudo quanto restava dela. Através de poções mágicas, entoações rúnicas e

    ervas raras, o rapaz foi crescendo, sua força conservada artificialmente por toda a

    arte conhecida dos Reis Feiticeiros de Melniboné. E sobreviveu — e ainda

    sobrevive — tão somente graças à feitiçaria, já que é franzino por natureza e, sem

    as suas drogas, mal conseguiria erguer os braços durante a maior parte de um dia

    normal.

    Se o jovem imperador encontrou alguma vantagem na sua fraqueza de

    sempre, talvez seja devido a ter-se dedicado, por necessidade, à leitura. Antes dos

    quinze, já tinha devorado todos os livros na biblioteca do pai, alguns mais que uma

    vez. Inicialmente transmitidos por Sadric, os poderes mágicos que detém agora são

    maiores que os de qualquer dos seus antepassados desde há várias gerações. O seu

    conhecimento do mundo para além das costas de Melniboné é profundo, ainda que

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  • continue por adquirir a experiência direta.

    Se assim o desejasse, ele seria capaz de ressuscitar o antigo poderio da

    Ilha dos Dragões e governar a nação e os Novos Reinos como um tirano

    invencível. No entanto, a leitura também lhe tinha ensinado a questionar os usos e

    motivos do poder, e se devia sequer exercer a sua autoridade, independentemente

    da causa. A leitura conduziu-o a esta moral, que, apesar de tudo, ainda lhe era difícil

    compreender. Assim, tornou-se um enigma para os súditos, e para alguns até uma

    ameaça, já que não pensa nem age como um verdadeiro melniboniano (e muito

    menos como imperador). Ouviu-se mais de uma vez, por exemplo, que seu primo

    Yyrkoon disse duvidar do seu direito imperial de governar o povo de Melniboné.

    — Esse frágil intelectual será a nossa desgraça! — confessou uma noite a

    Dyvim Tvar, o Senhor das Cavernas dos Dragões.

    Dyvim Tvar, sendo um dos poucos amigos do imperador, logo o

    informou da conversa, porém o jovem rejeitou os comentários como sendo nada

    mais do que uma traição insignificante, ao passo que qualquer um dos seus

    antepassados teria premiado tais sentimentos com uma intensa e dolorosa execução

    pública.

    A atitude do imperador é ainda mais complicada pelo fato de Yyrkoon,

    que continua a fazer muito pouco segredo de suas opiniões sobre quem devia

    governar, é irmão de Cymoril, uma das amigas mais chegadas do albino, e que virá

    um dia a ser imperatriz. Ao fundo do salão, pode observar-se o príncipe Yyrkoon,

    trajado nas melhores sedas, peles, jóias e brocados, dançar sobre o chão de mosaico

    com uma centena de mulheres, que ao que consta já foram suas amantes numa

    altura ou outra. O rosto escuro, simultaneamente elegante e saturnino, cercava-se

    de longos cabelos negros, ondulados e ensebados, e a expressão é, como sempre,

    sardônica, enquanto o porte exala arrogância.

    O pesado manto de brocado oscila de um lado para o outro, atingindo os

    demais dançarinos com alguma força. Yyrkoon enverga-o quase como se fosse uma

    armadura, ou talvez uma arma. Muitos dos cortesãos nutrem mais que um pouco

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  • de respeito pelo príncipe. A arrogância ofende poucos, sendo de conhecimento de

    todos que Yyrkoon é, ele próprio, um feiticeiro notável. Isto para além de ser o

    comportamento que a corte espera e admira em um nobre melniboniano; e é o que

    esperariam encontrar no imperador.

    Mas o imperador sabe disso. Anseia agradar a corte que se esforça por

    honrá-lo com dança e espírito, mas não se consegue se convencer a tomar parte no

    que considera uma irritante e enfadonha série de atitudes rituais. Neste aspecto,

    talvez seja mais arrogante que Yyrkoon. Das galerias, a música sobe em tom e

    complexidade enquanto os escravos, cada um especialmente treinado e

    cirurgicamente operado para cantar uma única nota perfeita, são incitados a um

    desempenho mais ardente. Até o jovem imperador se comove com a sinistra

    harmonia do canto, que vagamente se assemelha a alguma melodia entoada por

    uma voz humana.

    Como pode todo este sofrimento inspirar tamanha beleza? Interroga-se.

    Ou será que toda a beleza é produto da dor? Será esse o segredo da arte máxima,

    seja humana ou melniboniana?

    O imperador Elric fecha os olhos.

    Dá-se um alvoroço no salão inferior. Os portões abrem-se e os cortesãos

    dançantes interrompem os passos, afastando-se e fazendo vênias exageradas

    quando entram os soldados. Estes envergam uniformes azuis-claros, elmos

    cerimoniais fundidos em formas fantásticas, e lanças largas ornamentadas com jóias

    em fitas. Escoltam uma mulher jovem cujo vestido azul condiz com os uniformes.

    Cinco ou seis pulseiras de diamante, safira e ouro cingem-lhe os braços

    descobertos. No cabelo enrolam-se fiadas de diamantes e safiras. Não traz qualquer

    desenho pintado sobre as pálpebras e malares, ao contrário da maioria das mulheres

    da corte. Elric sorri. É Cymoril. Os soldados são a guarda particular cerimonial que,

    por tradição, a acompanha à corte. Sobem os degraus que levam ao Trono Rubi.

    Elric levanta-se devagar e estende as mãos.

    — Cymoril. Julguei que tinha resolvido não nos honrar com a sua

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  • presença esta noite. Ela devolve-lhe o sorriso.

    — Meu imperador, decidi que afinal estava com disposição para

    conversar.

    Elric está grato. Cymoril sabe o quanto o imperador se aborrece nestas

    ocasiões, e sabe também que é uma das poucas pessoas em Melniboné cujas

    conversas lhe interessam. Se o protocolo o permitisse, Elric oferecer-lhe-ia o trono,

    mas sendo assim ela terá de se sentar no degrau mais alto a seus pés.

    — Sente-se, por favor, doce Cymoril.

    Elric retorna ao trono e inclina-se para frente enquanto Cymoril se senta

    e o fixa nos olhos com um misto de humor e ternura. Enquanto os soldados se

    retiram para os lados da escadaria e se misturam com a guarda de Elric, ela

    sussurra-lhe:

    — Fugiria comigo para a região selvagem da ilha, amanhã, meu amo?

    Há assuntos para os quais devo dar atenção...

    A idéia atrai-lhe. Tinham decorrido semanas desde a última saída da

    cidade na companhia de Cymoril, a escolta mantendo uma distância prudente.

    — São urgentes? Elric encolhe os ombros.

    — Que assuntos são urgentes em Melniboné? Ao fim de dez mil anos, a

    maior parte dos problemas resolve-se sempre da mesma maneira. — Elric sorri

    quase de esguelha, como o sorriso de um colegial que faz planos para faltar às aulas.

    — Pois bem, partiremos amanhã cedo, antes de todos acordarem.

    — O ar longe de Imrryr vai estar fresco e limpo. O sol vai estar quente

    para a época. O céu, azul e sem nuvens.

    — Que grande feitiço deves ter lançado! — ri-se Elric. Cymoril baixa o

    olhar e traça um padrão no mármore do estrado.

    — Bem, talvez um pouco de magia. Tenho alguns amigos entre os

    elementais mais fracos...

    Elric estica-se para lhe acariciar os cabelos claros e delicados.

    — Yyrkoon sabe? — pergunta.

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  • — Não.

    O príncipe Yyrkoon proibira a irmã de se ocupar com assuntos mágicos.

    Yyrkoon tem amigos apenas entre os seres sobrenaturais mais tenebrosos, e

    conhece bem os perigos de se lidar com eles; logo, assume que todas as transações

    mágicas acarretam um fator de perigo semelhante. Além do mais, detesta pensar

    que outros possam ter o mesmo poder que ele. Talvez seja isso o que o príncipe

    mais odeia em Elric.

    — Vamos esperar que toda a Melniboné precise de bom tempo para

    amanhã — diz Elric. Cymoril olha-o com curiosidade. É demasiado melniboniana.

    Nunca lhe ocorreu que a sua feitiçaria pudesse incomodar alguém. Encolhe então

    os encantadores ombros e toca o imperador levemente na mão.

    — Esta culpa que sente... — diz. — Esta sua busca por uma consciência.

    O meu raciocínio simples não consegue entender.

    — Nem o meu, confesso... — responde Elric. — Parece não ter

    qualquer função prática. E, no entanto, mais de um dos nossos antepassados previu

    uma mudança na natureza do mundo. Uma mudança tão espiritual quanto física.

    Talvez sejam reflexos dessa mudança, estes pensamentos tão estranhos e contrários

    à maneira de ser dos melnibonianos?

    A música aumenta e diminui de volume. Os cortesãos continuam a

    dança, embora muitos olhares pairem sobre a conversa entre Elric e Cymoril no

    topo do estrado. Lavra a especulação. Quando se decidirá Elric a anunciar Cymoril

    como futura imperatriz? Irá Elric restaurar a tradição, interrompida por Sadric, de

    sacrificar doze noivas e os respectivos noivos em honra dos Senhores do Caos e

    assim assegurar um bom matrimônio para os soberanos de Melniboné? Era óbvio

    que a recusa de Sadric em permitir que o costume continuasse lhe tinha trazido

    desgraça, a morte da mulher e um filho doente, ameaçando a própria continuidade

    da monarquia. Elric precisa restabelecer a tradição. Até Elric deve temer a repetição

    do destino que se abatera sobre o pai. Contudo, há quem diga que Elric nada fará

    de acordo com a tradição, ameaçando não só a própria vida, como também a

    11

  • existência de Melniboné e tudo quanto a nação representa. E aqueles que falam

    nestes termos são muitas vezes vistos mantendo boas relações com o príncipe

    Yyrkoon, que continua a dançar, aparentemente desconhecedor da conversa no

    topo da escadaria, ou mesmo que a irmã fala tranquilamente com o primo sentado

    no Trono Rubi; o primo sentado na beira do trono, absorto de toda a dignidade, e

    sem exibir nenhuma da ferocidade e altivez que, no passado, marcaram

    praticamente todos os imperadores de Melniboné; o primo que, em amena

    languidez, se esquece que toda a corte dança para alegrá-lo.

    É então que, de súbito, o príncipe Yyrkoon gela durante um movimento

    e ergue o olhar negro na direção do imperador. A atitude dramática e calculada de

    Yyrkoon chama a atenção de Dyvim Tvar, num dos cantos do salão, e o Senhor das

    Cavernas dos Dragões franze a testa. A mão recai sobre onde a espada

    normalmente estaria, contudo não há lugar para armas num baile da corte. Com

    cautela, Dyvim Tvar observa o corpulento nobre enquanto este começa a escalar os

    degraus que levam ao Trono de Rubi. Vários olhares acompanham o primo do

    imperador, e agora quase ninguém mais dançava, apesar da música continuar a

    crescer em intensidade enquanto os donos dos escravos musicais os incitam a

    esforços cada vez maiores.

    Elric levanta os olhos e depara-se com Yyrkoon no degrau logo abaixo

    daquele onde Cymoril se senta. Yyrkoon faz uma vênia que é também um insulto

    velado.

    — Apresento-me ao meu imperador — disse.

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  • 2. Um príncipe ambicioso:

    Enfrentando seu próprio primo

    — COMO esta o baile, primo? — perguntou Elric, consciente de que a

    apresentação melodramática de Yyrkoon tinha como objetivo pega-lo desprevenido

    e, se possível, humilha-lo.

    — Esta música é do seu agrado? — Yyrkoon baixou seus olhos e em

    seus lábios se formou um breve sorriso.

    — Tudo está conforme meu gosto, meu senhor. Mas o que houve

    contigo? Não participas do baile... Há alguma coisa que não o agrada?

    Elric levou um pálido dedo ao queixo e contemplou seu primo, que lhe

    sustentava o olhar.

    — Quando estou no baile, primo, desfruto a festa. Suponho que é

    possível me regozijar como o prazer dos demais, não é verdade? — Yyrkoon

    pareceu realmente surpreendido. Levantou os olhos e encarou Elric. Este notou

    uma ligeira sacudida e afastou o olhar, sinalizando para os músicos com um

    lânguido gesto de sua mão.

    — Ou quem sabe a dor dos outros é o que me dá prazer. Não se

    preocupes comigo, primo. Estou à vontade e apreciando muito. E agora que sabe

    que seu imperador esta desfrutando do baile, pode continuar com suas danças.

    Mas Yyrkoon ainda não havia desistido de alcançar seu objetivo.

    — Não obstante, para que seus súditos não saiam daqui tristes e

    preocupados por não saberem ter agradado a seu monarca, o imperador deveria

    demonstrar sua complacência...

    — Devo lembrá-lo, primo... — replicou Elric em voz baixa — Que o

    imperador não tem nenhuma obrigação para com seus súditos, exceto governar-los.

    São eles que têm deveres para comigo. Tal como manda a tradição de Melniboné.

    Yyrkoon não havia previsto que Elric utilizaria tais argumentos contra

    ele, e recorreu a seguinte observação:

    13

  • — Com certeza, meu senhor. O dever do imperador é governar seus

    súditos. Talvez seja esta a razão porque muitos deles não desfrutem tanto deste

    baile como deveriam.

    — Não compreendo você, primo.

    Cymoril havia ficado de pé e permanecia com as mãos juntas no degrau

    superior ao de seu irmão. Estava tensa e nervosa, preocupada com o tom atrevido

    de seu irmão e seu ar desdenhoso.

    — Yyrkoon... — suplicou. O príncipe pareceu reconhecer a sua

    presença.

    — Irmã... Vejo que compartilhas do desagrado de nosso imperador por

    este baile.

    — Yyrkoon... — murmurou ela — Está indo longe demais. O imperador

    é muito tolerante, mas...

    — Tolerante? Ou indiferente? Por acaso ele não será indiferente às

    tradições de nossa grande raça? Não mostra desdém diante deste orgulho racial?

    Dyvim Tvar aguardava o momento de intervir. Era evidente que ele

    também compreendera que Yyrkoon havia escolhido aquele momento para

    submeter à prova o poder de Elric.

    Cymoril estava estupefata e murmurou em tom alarmado:

    — Yyrkoon, se quer continuar vivo!

    — Não me importa viver se o espírito de Melniboné perece. E a

    preservação do espírito de nossa nação é responsabilidade do imperador. Que

    acontecerá se tivermos um imperador que não cumpre com esta responsabilidade,

    um imperador que seja fraco, um imperador que jamais se preocupe com a

    grandeza da Ilha do Dragão e seu povo?

    — Esta é uma pergunta hipotética, primo. — Elric havia recuperado sua

    compostura e sua voz gelada arrastava as palavras. — Pois nunca se sentou um

    imperador assim no Trono Rubi, e nunca se assentará.

    Dyvim Tvar juntou-se ao grupo e segurou o ombro de Yyrkoon.

    14

  • — Príncipe, se aprecia sua dignidade e sua vida...

    Elric levantou sua mão:

    — Isso não é necessário, Dyvim Tvar. O príncipe Yyrkoon só estava

    tendo um debate intelectual comigo. Temeroso de que eu estivesse entediado com

    a música e o baile — e eu não estou — pensou em proporcionar-me um tema para

    uma discussão estimulante. E estou seguro de que agora todos nos sentimos muito

    mais estimulados, príncipe Yyrkoon.

    Elric deixou que uma expressão de condescendente calidez emanasse de

    sua última frase. Yyrkoon enrijeceu de ódio e mordeu seu lábio.

    — Mas, por favor continue, querido primo Yyrkoon... — falou Elric. —

    Estou muito interessado. Por que não continua com seus argumentos?

    Yyrkoon olhou ao seu redor, como que buscando apoio. Mas todos seus

    partidários estavam no saguão do palácio. Próximos dele só estavam os amigos de

    Elric: Dyvim Tvar e Cymoril. No entanto Yyrkoon sabia que seus partidários

    estavam ouvindo cada palavra sua, e que ele perderia o apoio deles se não

    respondesse. Elric notou que Yyrkoon havia preferido retirar-se desta confrontação

    e escolher outro dia e outro terreno para continuar a batalha, mas isso já não era

    mais possível. O próprio Elric não desejava mais prosseguir com esta estúpida

    peleja que, por mais que fosse disfarçada, não era melhor que uma disputa de duas

    meninas sobre quem brincaria primeiro com os escravos. Assim ele decidiu colocar

    fim ao episodio.

    Yyrkoon começou a responder.

    — Então, deixe-me sugerir que um imperador fisicamente fraco poderia

    ser também fraco em sua vontade para governar como está estabelecido e... Elric

    levantou sua mão.

    — Você já disse o suficiente, querido primo. Mais do que suficiente.

    Decidiu suscitar esta discussão quando, na verdade, preferirias estar dançando.

    Sinto-me comovido por sua solicitude, mas também me sinto alarmado por suas

    preocupações — Elric fez um sinal para seu velho criado, Tanglebones, que

    15

  • permanecia no outro extremo do trono, entre os soldados.

    — Tanglebones, minha capa! Levantou-se e falou:

    — Te agradeço de novo por sua solicitude, primo. — depois se dirigiu

    para toda a corte em geral: — Me diverti muito. Mas agora preciso ir embora.

    Tanglebones trouxe uma capa de arminho e a colocou sobre os ombros

    de seu amo. Tanglebones era muito idoso e muito mais alto que Elric, embora

    tivesse as costas arqueadas e todas suas extremidades pareciam nodosas e retorcidas

    sobre si mesmas, como as ramas de uma velha e robusta arvore.

    Elric atravessou o estrado e desapareceu atravessando a porta situada no

    fundo deste, que conduzia a seus aposentos privados por um largo corredor.

    Yyrkoon ficou diante do trono, encolerizado. Deu uma brusca meia volta

    no estrado e abriu a boca como se quisesse se dirigir aos cortesãos que o

    observavam. Alguns, que não o apoiavam, sorriam abertamente. Yyrkoon cerrou os

    punhos e lançou olhares fulminantes. Olhou para Dyvim Tvar e abriu seus finos

    lábios para dizer algo. Dyvim Tvar lhe devolveu o olhar com frieza, desafiando-o a

    dizer algo mais.

    Então, o príncipe ergueu sua cabeça até que seus cabelos enroscados e

    ungidos encostaram-se em suas costas. E então Yyrkoon gargalhou.

    O áspero som encheu o salão. A música parou. A gargalhada continuou.

    Yyrkoon deu mais alguns passos até alcançar o estrado e, puxando sua capa,

    envolveu seu corpo com ela.

    Cymoril se aproximou dele.

    — Yyrkoon, por favor, não...

    O príncipe a deixou pra trás com um gesto de seu ombro. Yyrkoon

    avançou com passos tensos até o Trono Rubi. Tornou-se evidente que ele queria

    sentar-se nele, levando a cabo um dos atos de traição mais pérfidos no código de

    honra de Melniboné. Cymoril correu os breves passos que a separavam de seu

    irmão e o puxou pelo braço. A risada de Yyrkoon subiu de tom.

    — É Yyrkoon que eles desejam ver no Trono Rubi. — disse para sua

    16

  • irmã. Esta engoliu em seco, e olhou horrorizada para Dyvim Tvar, cuja expressão

    era de fúria. Dyvim Tvar fez um sinal para um guarda e, imediatamente, duas filas

    de homens armados se interpuseram entre Yyrkoon e o trono. Yyrkoon voltou-se

    para o Senhor das Cavernas do Dragão.

    — Terá sorte se morrer junto com seu amo. — sussurrou.

    — A guarda de honra te escoltará pra fora do salão. — respondeu

    Dyvim Tvar em tom sereno. — Todos nós ficamos estimulados por sua discussão

    desta noite, príncipe Yyrkoon. Yyrkoon parou, olhou friamente para ele, e então

    relaxou. Depois, murmurou:

    — Haverá muito tempo. Se Elric não abdicar, terá que ser deposto. O

    esbelto corpo de Cymoril ficou rígido. Seus olhos se encheram de lágrimas.

    Voltou¬se para seu irmão e disse:

    — Se fizeres alguma coisa contra Elric, te matarei com minhas próprias

    mãos, Yyrkoon. Ele levantou suas finas sobrancelhas e sorriu. E neste momento

    pareceu odiar mais sua irmã do que a seu primo.

    — Sua lealdade a esta criatura assegurou a sua própria condenação,

    Cymoril. Eu prefiro te ver morta que gerando um filho para ele. Não desejo que o

    sangue de minha casa se dilua, manche, ou sequer seja tocado pelo dele. Cuida de

    sua própria vida, minha irmã, antes de ameaçar a minha.

    E ele desceu a escadaria, abrindo caminho entre aqueles que vinham

    congratulá-lo. Ele sabia que havia sido derrotado e o murmúrio de seus cúmplices

    só o estavam irritando ainda mais.

    As grandes portas do salão foram abertas e fechadas. Yyrkoon já havia

    ido embora.

    Dyvim Tvar ergueu os dois braços.

    — Continuem com a dança, cortesãos. Aproveitem tudo que o baile têm

    a lhes oferecer. Isto é o que mais alegrará o imperador. Mas era evidente que não

    se dançaria mais nesta noite. Os cortesãos já estavam ocupados com profundas

    conversações, onde debatiam excitadamente os acontecimentos. Dyvim Tvar foi

    17

  • até Cymoril.

    — Elric se recusa a compreender o perigo, princesa Cymoril. A ambição

    de Yyrkoon pode trazer tragédia para todos nós.

    — Incluindo o próprio Yyrkoon. — suspirou Cymoril.

    — Sim, incluindo Yyrkoon. Mas como podemos evitar isso, Cymoril, se

    Elric não ordena a prisão do seu irmão?

    — O imperador acredita que pessoas como Yyrkoon devem poder dizer

    aquilo que pensam. É parte de sua filosofia. Eu entendo isso muito vagamente, mas

    parece um aspecto fundamental de sua maneira de pensar. Se ele destruísse

    Yyrkoon, destruiria a base em que se sustenta sua lógica. Isso, pelo menos, é o que

    ele tentou explicar-me, Senhor dos Dragões.

    Dyvim Tvar suspirou franzindo o cenho. Não conseguia compreender

    Elric, e temia, em alguns momentos, compartilhar dos pontos de vista de Yyrkoon.

    Ao menos, os motivos e argumentos do príncipe eram relativamente claros e

    diretos. Porém conhecia demasiado bem o caráter de Elric para crer que este agira

    levado por debilidade ou lassitude. O paradoxo era que Elric tolerava a traição de

    Yyrkoon porque era forte, na verdade ele tinha o poder para destruí-lo quando

    quisesse. E o caráter de Yyrkoon era o que colocava a prova constantemente a

    força de Elric, pois ele sabia instintivamente que, se este se mostrasse fraco e

    ordenasse mata-lo, Yyrkoon teria vencido. Era uma situação complicada e Dyvim

    Tvar desejava ardentemente não ter se envolvido nela. Mas sua lealdade à linhagem

    real de Melniboné era poderosa, e sua fidelidade a Elric era forte. Pensou

    insistentemente na idéia de assassinar Yyrkoon secretamente, mas sabia que um

    plano assim não levaria a nada. Yyrkoon era um feiticeiro de imenso poder e, sem

    duvida, estaria preparado contra ameaças a sua vida.

    — Princesa Cymoril... — disse Dyvim Tvar. — A única coisa que posso

    fazer é rezar para que seu irmão acabe envenenado por sua própria cólera.

    — Me juntarei a você nestas orações, Senhor das Cavernas dos Dragões.

    Juntos, os dois abandonaram o salão.

    18

  • 3. Um passeio matinal a cavalo:

    Um momento de tranquilidade

    A LUZ DA manhã banhou as altas torres de Imrryr e as fez cintilar.

    Cada torre era de uma tonalidade diferente, e gerava mil cores suaves. Haviam

    rosados intensos, amarelos cor de pólen, púrpuras e verdes pálidos, malvas e

    marrons e alaranjados, vagos azuis, brancos e dourados. Tudo parecia belo à

    primeira luz do dia. Dois cavaleiros deixaram para trás a Cidade dos Sonhos e

    atravessaram suas muralhas em direção aos verdes prados até um bosque de

    pinheiros onde, entre os troncos sombrios, parecia ter permanecido um pedaço da

    noite. Os esquilos se assustavam e as raposas se escondiam em suas tocas;

    cantavam os pássaros e as flores silvestres abriam suas pétalas e enchiam o ar de

    um delicado perfume. Alguns insetos vagavam a deriva. O contraste entre a vida

    nos arredores da cidade e aquela bucólica ociosidade era notável e parecia um

    espelho dos contrastes que estavam na mente de um dos cavaleiros, ele que agora

    desmontava e puxava as rédeas de seu cavalo entre um maciço de flores azuis que

    lhe chegava até a cintura. O outro cavaleiro, uma mulher, deteve sua montaria, mas

    não desmontou. Ao invés disso se apoiou distendidamente sobre sua sela de

    montar melniboniana e sorriu para o homem, seu amante.

    — Elric? Vamos parar tão perto de Imrryr? Ele olhou sobre o ombro e

    lhe devolveu o sorriso.

    — Nossa cavalgada foi muito apressada. Quero colocar meus

    pensamentos em ordem antes de continuar.

    — Como você dormiu ontem à noite?

    — Muito bem, Cymoril, Acho que sonhei sem saber, pois haviam

    pequenos temores em minha mente ao despertar. Mas era de se esperar, pois o

    encontro com Yyrkoon não foi nada agradável...

    — Acha que ele conjurou algum feitiço contra você?

    19

  • — Se ele tivesse empregado algum sortilégio poderoso contra mim, eu

    saberia. — disse Elric encolhendo os ombros. — Ele conhece bem meu poder.

    Duvido que se atreva a usar magia.

    — Ele tem razões para acreditar que você não usaria seu poder. Ele se

    estuda sua personalidade há muito tempo... Não será perigoso duvidar de suas

    capacidades? Ele não poderia testar sua feitiçaria assim como testou sua paciência?

    Elric franziu o cenho.

    — Sim, suponho que existe esse perigo, mas por enquanto ele é

    inofensivo...

    — Ele não ficará feliz enquanto não destruí-lo, Elric.

    — Ou destruir a si mesmo, Cymoril. Elric se abaixou, pegou uma flor e

    sorriu outra vez.

    — Seu irmão é inclinado a extremos, não é verdade? Como o fraco

    odeia a fraqueza! Cymoril compreendeu a que ele se referia. Desmontou e se

    aproximou dele. Sua túnica etérea combinava quase que perfeitamente com a cor

    das flores entre quais caminhava. Ele lhe ofereceu a flor e ela a aceitou, roçando as

    pétalas com seus lábios perfeitos.

    — Assim como o forte odeia a fortaleza, meu amor. Yyrkoon é

    sangue do meu sangue e, por esta razão, te dou este conselho: utiliza sua força

    contra ele.

    — Não posso matá-lo. Não tenho o direito de fazer isso. O rosto de

    Elric encheu-se de rugas de preocupação.

    — Você pode exilá-lo.

    — Não é o exílio igual à morte para um melniboniano?

    — Você mesmo tem falado em viajar para as terras dos Novos

    Reinos...

    Elric riu amargamente.

    — Mas talvez eu não seja um verdadeiro melniboniano. Yyrkoon já

    disse isso várias vezes, e muitos outros também compartilham dessa idéia.

    20

  • — Ele te odeia por que você é contemplativo. Seu pai também era

    assim e ninguém nega que ele foi um bom imperador.

    — Meu pai decidiu não aplicar as suas próprias ações os resultados de

    sua contemplação. Ele governou como um imperador deveria governar. Yyrkoon,

    devo admitir, também seria um bom imperador. E ele teria a oportunidade de

    devolver a grandeza de Melniboné. Se fosse imperador, ele embarcaria em uma

    campanha de conquista para restaurar nosso comércio aos níveis de outrora, para

    estender nosso poder através da terra. Isso é o que maioria de nosso povo deseja.

    Será que tenho o direito de negar-lhes esse desejo? —Tem o direito de fazer o que

    quiser, pois é o imperador. Todos os que são leais a você pensam dessa forma.

    — Talvez a sua lealdade esteja sendo desperdiçada. Talvez Yyrkoon

    tenha razão e eu estou traindo esta fidelidade trazendo a ruína sobre a Ilha do

    Dragão. — Seus olhos rubros e taciturnos olharam diretamente para os dela. —

    Talvez eu devesse ter morrido ao sair do útero de minha mãe. Assim, Yyrkoon teria

    sido imperador. Não poderíamos contrariar o destino?

    — O destino não pode ser contrariado. Tudo que já aconteceu, só

    aconteceu porque o destino quis assim... Isso se realmente existe tal coisa, e se as

    ações dos homens não são somente uma resposta aos atos de outros homens. Elric

    respirou profundamente e olhou para ela com uma expressão de ironia.

    — Sua lógica se aproxima da heresia, Cymoril, se temos que acreditar

    nas tradições de Melniboné. Talvez fosse melhor você esquecer sua amizade

    comigo.

    — Você esta parecendo meu irmão! — respondeu ela com um

    sorriso. — Está colocando a prova meu amor por você, meu senhor?

    Elric se dispôs a montar de novo.

    — Não, Cymoril, mas te aconselho que você mesmo o coloque a

    prova, pois pressinto que em nosso amor esta implícita uma tragédia.

    Ela sorriu de novo e virou a cabeça em um gesto de negação enquanto

    subia para a cela de seu cavalo.

    21

  • — Você enxerga tragédias em tudo. Por que não aceitas as dádivas que

    estão a sua disposição? Elas não são muitas, meu senhor...

    — Ah, sim! Nisso estamos de acordo.

    Já em suas montarias, se viravam para trás ao escutar um barulho de

    cascos se aproximando. Viram a certa distância uma coluna de cavaleiros vestidos

    de amarelo que galopava desordenadamente. Era sua guarda, a qual haviam deixado

    para trás na cidade, para poderem cavalgar sozinhos.

    — Venha! — gritou Elric — Vamos atravessar o bosque e as colinas que

    ficam a mais frente, lá eles jamais nos encontrarão.

    Esporearam seus cavalos através do bosque iluminado pelos raios do sol

    e subiram as íngremes encostas da colina, descendo a toda velocidade por uma

    outra encosta até uma planície cheia de arbustos retorcidos cujos frutos, opulentos

    e venenosos, brilhavam com uma azul púrpura, uma cor tão noturna que nem a luz

    do dia podia desvanecer. Havia muitas frutas e ervas peculiares em Melniboné, e à

    algumas delas Elric devia sua própria vida. Outras eram usadas em certas poções

    mágicas e haviam sido plantadas há muitas gerações atrás pelos ancestrais de Elric.

    Agora, poucos melnibonianos se arriscavam a deixar Imrryr para colhê-las.

    Somente escravos visitavam a maior parte da ilha em busca das raízes e arbustos

    que faziam os melbonianos terem sonhos esplendidos e monstruosos, pois era nos

    sonhos que a maior parte dos nobres de Melniboné encontravam mais prazer; eles

    sempre haviam sido uma raça taciturna e introvertida, e foi este hábito que fez com

    Imrryr ficasse conhecida como a Cidade dos Sonhos. Ali, até o menos valioso dos

    escravos mascava ervas para esquecer seu estado, assim eles eram mais fáceis de

    dominar, pois ficavam totalmente dependentes de seus sonhos. Somente Elric se

    recusava a usar estas drogas, talvez por já depender de tantas outras apenas para se

    manter vivo.

    A guarda vestida de amarelo se perdeu atrás deles logo que eles

    atravessaram a planície de arbustos venenosos, Elric e Cymoril diminuíram a

    marcha e finalmente chegaram ao mar.

    22

  • As águas resplandeciam e batiam languidamente nas brancas praias

    abaixo dos rochedos. As aves marinhas traçavam círculos no ar diáfano e seus

    grasnidos soavam tão distantes que acentuavam ainda mais a sensação de paz que

    Elric e Cymoril agora sentiam. Em silencio, os dois amantes guiaram suas

    montarias por uma trilha que se dirigia até a orla. Ali desmontaram e começaram a

    caminhar pela areia com os cabelos — brancos dele, e negros os dela — ondulando

    no vento que soprava do leste.

    Encontraram uma caverna seca e grande, que recolhia o barulho do mar

    e o repetia em um eco sussurrante. Despojaram-se de suas roupas de seda e fizeram

    amor com ternura na penumbra da caverna. Depois permaneceram abraçados

    enquanto o dia esquentava e o vento diminuía. Por fim, se banharam no mar e

    encheram o vazio do céu com suas risadas.

    Já estavam secos quando, enquanto se vestiam, notaram que o horizonte

    escurecia. Elric disse:

    — Vamos nos molhar de novo antes de chegar a Imrryr. Por mais rápido

    que cavalgarmos, a tempestade ainda nos alcançará.

    — Talvez pudéssemos ficar na caverna até que passe. — sugeriu ela,

    apertando seu corpo suave contra o dele.

    — Não. — respondeu Elric. — Devo voltar depressa, preciso tomar

    poções em Imrryr para que meu corpo mantenha seu vigor. Se não fizer isso dentro

    de duas horas, meu começara a enfraquecer. E você já me viu neste estado antes,

    Cymoril.

    Ela acariciou seu rosto se seus olhos se mostraram compassivos.

    — Sim, já te vi enfraquecido, Elric. Vem, vamos pegar nossos cavalos.

    Quando chegaram em suas montarias o céu já estava cinzento sobre suas

    cabeças e cheio de densas nuvens negras. Escutaram o som de um trovão e viram o

    clarão de um relâmpago. O mar se agitava como se estivesse contagiado pela

    histeria do firmamento. Os cavalos estavam inquietos, ansiosos para regressar.

    Ainda não haviam terminado de montar quando grandes gotas de chuva

    23

  • começaram a cair sobre suas cabeças e a resvalar sobre suas capas.

    Então, logo eles estavam galopando de volta para Imrryr o mais rápido

    que podiam, enquanto os relâmpagos estalavam e os trovões rugiam como a voz de

    um gigante furioso, como se algum antigo e poderoso Senhor do Caos tentasse

    invadir o reino da Terra.

    Cymoril contemplou as pálidas feições de Elric iluminadas durante um

    segundo por um clarão de fogo celestial, e sentiu um calafrio. E seu calafrio não era

    causado pelo vento e nem pela chuva, e sim porque durante este segundo de

    resplendor, ela pareceu ver aquele tranquilo pensador que tanto amava,

    transformado pelos elementos em um demônio surgido do inferno, em um

    monstro que apenas guardava algum aspecto de humanidade. Seus olhos rubros

    haviam brilhado na brancura de seu rosto como chamas surgidas do inferno mais

    profundo; seu cabelo estava espalhado, como o penacho de um sinistro elmo de

    guerra e, por um efeito da luz, seu rosto havia parecido torcer-se em uma expressão

    de fúria e agonia.

    E então, Cymoril compreendeu.

    Ela compreendeu, profundamente em seu ser, que aquele passeio matinal

    havia sido o último momento de paz que ambos iriam experimentar. A tempestade

    era um sinal dos próprios deuses, um aviso de outras tempestades que se

    aproximavam.

    Olhou para seu amado. Elric estava rindo. Havia voltado seu rosto aos

    céus e a cálida chuva caía sobre sua face, salpicando sua boca aberta. Sua risada

    soava como a gargalhada fácil e espontânea de uma criança feliz.

    Cymoril tentou rir junto com ele, mas teve que esconder seu rosto para

    que Elric não o visse. Porque ela estava chorando.

    E ainda estava chorando quando avistaram Imrryr, que ao longe era

    como uma silhueta negra e grotesca recortada contra uma linha de fulgor e luz que

    era o imaculado céu do oeste.

    24

  • 4. Prisioneiros:

    Seus segredos lhes são arrancados

    OS HOMENS DE armaduras amarelas vieram a Elric e Cymoril quando

    o casal se aproximava do menor dos portais que se abria para o leste.

    — Por fim nos encontraram. — sorriu Elric embaixo da chuva — Mas,

    chegaram um pouco tarde, não é Cymoril?

    Cymoril, ainda abatida pela premonição que a havia assaltado, se limitou

    a consentir e tentou retribuir o sorriso. Elric confundiu seu gesto com uma

    expressão de desapontamento, nada mais, e chamou sua guarda:

    — Homens, logo estaremos todos secos outra vez!

    Mas o capitão da guarda galopou rapidamente até ele, gritando:

    — Solicitam a presença de meu senhor imperador na Torre de

    Monshanjik, espiões foram apanhados!

    — Espiões?

    — Sim, meu senhor. — O capitão tinha o rosto branco como cera. A

    chuva lhe caía de seu elmo e escurecia sua capa. Tinha dificuldades para dominar

    sua montaria, que avançava de lado entre os charcos de água do caminho, que

    precisava ser reparado com urgência. — Eles foram capturados no labirinto esta

    manha. São bárbaros do sul, segundo se deduz por suas roupas. Estão presos na

    torre até que o próprio imperador possa interrogá-los. Elric fez um gesto com a

    mão e respondeu:

    — Então vamos para lá, capitão. Vamos a ver estes valentes estúpidos

    que se atreveram a penetrar no labirinto marinho de Melniboné.

    A Torre de Monshanjik levava o nome do mago-arquiteto que havia

    projetado o labirinto marinho milênios antes. O labirinto era o único meio de

    chegar ao grande porto de Imrryr e seu segredo sempre havia sido guardado

    cuidadosamente, pois era a melhor proteção contra um ataque imprevisto. O

    labirinto era muito complicado e alguns navegadores foram treinados especialmente

    25

  • para guiar as naves por seus canais. Antes de se construir o labirinto, o porto havia

    sido uma espécie de laguna interna, alimentada pelo mar que passava por um

    sistema de cavernas naturais abertas entre os impressionantes rochedos que se

    alçavam entre a laguna e o oceano. Haviam cinco rotas distintas através do labirinto

    e cada navegador só conhecia uma delas. Na parte exterior dos rochedos havia

    cinco entradas. Aqui os navios dos Novos Reinos aguardavam até que subisse a

    bordo um navegador melniboniano. Então se abria o portão de uma das cinco

    rotas, depois de haver tomado a precaução de tapar os olhos de toda a tripulação

    durante a passagem, que também deveria permanecer sob o convés. O timoneiro e

    o chefe dos remadores ficavam no convés, mas deviam cobrir-se também com

    pesados elmos de aço, e auxiliavam o navegador limitando-se a lhe obedecer as

    complicadas manobras que ordenava, sem poder ver por onde passavam. E se

    acontecia de um navio dos Novos Reinos desobedecer alguma destas instruções,

    acabava se despedaçando contra os muros de pedra... O povo de Melniboné não se

    lamentava por isso e todos os tripulantes sobreviventes terminavam seus dias como

    escravos na Ilha do Dragão. Todos os interessados em comerciar com a Cidade dos

    Sonhos compreendiam os riscos que isso significava, mas grande quantidade de

    mercadores vinha mensalmente vencer os riscos do labirinto e trocar seus pobres

    produtos pelas esplêndidas riquezas de Melniboné.

    A Torre de Monshanjik se levantava sobre o porto e sobre o imenso

    monte que adentrava até o centro da laguna. Era uma torre verde mar, baixa e

    robusta em comparação com a maioria das torres de Imrryr, mas ainda assim

    resultava em uma edificação formosa e destacada, com amplas janelas de onde se

    podia avistar-se todo o conjunto de instalações portuárias. Na Torre de Monshanjik

    se levavam a cabo quase todos os tratos comerciais do porto e, em seus aposentos

    inferiores, se guardavam os presos que haviam quebrado alguma das inumeráveis

    regras que governavam o funcionamento do comércio. Deixando Cymoril para que

    esta voltasse ao palácio escoltada por um guarda, Elric penetrou na torre e

    atravessou a cavalo o grande arco de sua entrada principal, dispersando uma

    26

  • quantidade notável de comerciantes que aguardavam a permissão necessária para

    iniciar suas transações, pois todo o andar inferior do edifício estava cheio de

    marinheiros, mercadores e funcionários de Melniboné dedicados aos assuntos

    comerciais, embora ali não fosse o lugar onde se comerciavam realmente as

    mercadorias. A grande balbúrdia de milhares de vozes empenhadas em inúmeras

    discussões sobre contratos a serem fechados, foi lentamente baixando de

    intensidade à medida que Elric e sua guarda a cavalo arrogantemente atravessavam

    o salão, rumo a um arco sombrio, no extremo oposto da sala. Este arco se abria

    para uma rampa inclinada e curva que conduzia as entranhas da torre.

    Os cavaleiros desceram pela rampa, passando por escravos, criados e

    funcionários que rapidamente ficavam de pé, prestando grandes reverencias, assim

    que reconheciam o imperador. Enormes tochas iluminavam o corredor, enchendo

    de sombras distorcidas as lisas paredes de obsidiana. O ar era gélido e úmido, pois a

    água do mar banhava os muros exteriores abaixo dos desembarcadouros de Imrryr.

    O imperador continuou avançando pela rampa que seguia descendo entre a rocha

    cristalizada. E então, uma onda de calor chegou até eles logo que avistaram una luz

    bruxuleante um pouco mais a frente. Penetraram em uma câmara cheia de fumaça e

    do fedor do medo. Do teto baixo pendiam numerosas correntes, e presas em oito

    delas, Elric viu quatro pessoas. As roupas lhes haviam sido arrancadas, seus corpos

    estavam cobertos de sangue proveniente de pequenas, mas precisas e dolorosas

    feridas realizadas por um artista que, de pé e com um escalpelo na mão,

    supervisionava sua obra prima.

    O artista era um homem alto e muito magro, quase um esqueleto

    coberto de roupas brancas manchadas de sangue. Tinha os lábios finos, os olhos

    fundos, os dedos pequenos e seu cabelo era curto e fino. O escalpelo que levava em

    sua mão era também muito fino, quase invisível, exceto quando refletia a luz do

    fogo que ardia no outro extremo da câmara.

    O artista era chamado Doutor Alegria e sua especialidade era mais uma

    habilidade que uma arte em si (embora ele defendesse o contrário com grande

    27

  • convicção), era a arte de extrair segredos daqueles que os guardavam. O Doutor

    Alegria era o chefe dos interrogadores de Melniboné. Quando viu Elric entrar, se

    voltou para ele com um gesto tortuoso, sustentando o escalpelo entre seu dedo

    polegar e o indicador de sua mão direita; permaneceu assim erguido e expectante

    por um instante, quase como um bailarino, e depois fez uma profunda reverencia.

    — Meu amado imperador!

    Sua voz era fina e surgia de sua garganta como que suplicasse para sair

    dela, fazendo com que as pessoas duvidassem de realmente ter escutado suas

    palavras, pois soavam breves e rápidas.

    — Doutor, estes são os espiões do sul que foram capturados esta

    manha?

    — Certamente são eles, meu senhor. — respondeu o aludido com outra

    tortuosa reverencia — Para vosso prazer.

    Elric inspecionou friamente os prisioneiros. Não sentia a menor simpatia

    por eles, pois eram espiões e seus atos os haviam levado aquela situação. Eles

    sabiam o que aconteceria a eles se fossem capturados. Mas, um deles era um

    menino e o outro era uma mulher; pelo menos era o que pareciam, eles se agitavam

    tanto, presos nos grilhões, que era difícil reconhece-los a primeira vista. Era uma

    visão penosa. A mulher mostrou os poucos dentes que ainda lhe restavam e disse:

    — Demônio! Elric deu um passo para trás.

    — Eles já falaram o que faziam no labirinto, doutor?

    — Não, seguem exasperando-me com divagações. Tem um elevado

    conhecimento de arte dramática, coisa que aprecio. Em minha opinião, tentavam

    traçar uma rota para que uma frota invasora possa cruzar o labirinto. Todavia, eles

    ainda não me revelaram os detalhes. Assim é o jogo deles, e nós sabemos como

    joga-lo.

    — Então, quando acha que eles irão falar, Doutor Alegria?

    — Oh, logo, meu senhor.

    — Seria bom saber se devemos esperar um ataque. Quanto mais cedo

    28

  • soubermos, menos tempo perderemos nos livrando dos atacantes, não concorda

    doutor?

    — Com certeza, meu senhor.

    — Muito bem.

    Elric estava irritado com aquele imprevisto. Ele havia esquecido o prazer

    de seu passeio a cavalo e tinha voltado muito cedo para suas responsabilidades.

    O Doutor Alegria voltou para seu trabalho, e estendendo o braço,

    agarrou com a mão que estava livre o pênis de um dos prisioneiros, o escalpelo

    brilhou por um momento e ouviu-se um gemido de dor. O Doutor Alegria lançou

    alguma coisa ao fogo. Elric se sentou em uma cadeira preparada para ele. Os

    métodos usados para obter informações dos prisioneiros, não só o desgostavam

    como o aborreciam; os gritos estridentes, o retinir das correntes, os leves sussurros

    do Doutor Alegria, tudo contribuía para destruir a sensação de bem estar que havia

    conservado até a entrada na câmara. No entanto, assistir a estes rituais era um de

    seus deveres reais, e tinha que suportar tudo até que lhe fosse apresentada à

    informação obtida; então agradeceria ao chefe dos interrogadores e daria as ordens

    oportunas para enfrentar o ataque; e quando todo estivesse pronto teria que

    conferenciar com almirantes e generais, provavelmente durante o resto da noite,

    escolhendo entre as opções disponíveis e decidindo a disposição de homens e

    navios. Com um bocejo mal disfarçado, se reclinou na cadeira e observou o Doutor

    Alegria enquanto este usava o escalpelo e aplicava ganchos e tenazes no corpo dos

    espiões. Elric então se dedicou a meditar em outros assuntos, em problemas

    filosóficos que não conseguia resolver.

    Isso não significava que Elric era inumano, mas sim que era antes de

    tudo um melniboniano, e estava acostumado com estes espetáculos desde que era

    criança. Mesmo que desejasse, ele não poderia salvar os prisioneiros, pois isso

    significaria passar por cima de todas as tradições da Ilha do Dragão. E neste caso,

    se tratava simplesmente de uma ameaça a qual teria que enfrentar da melhor

    maneira possível. Elric havia se acostumado a reprimir os sentimentos que

    29

  • entravam em conflito com seus deveres como imperador. Se houvesse algum

    benefício em libertar os quatro desgraçados que agora dançavam de dor no

    escalpelo do Doutor Alegria, ele o teria feito com prazer. Porém tal atitude não o

    ajudaria em nada, e inclusive os prisioneiros ficariam assombrados de receber um

    tratamento diferente deste que estavam recebendo agora. Quando se tratava de

    dilemas morais, Elric era sobretudo prático e resolvia as coisas em função das

    possíveis ações que poderia tomar. Mas nesse caso concreto, não podia adotar

    nenhuma ação. Esta atitude havia se transformado em sua segunda natureza. Seu

    desejo não era reformar Melniboné, mas sim reformar-se a si mesmo; não desejava

    tomar iniciativas, mas sim estudar o melhor modo de responder as ações dos

    outros. Aqui era fácil tomar uma decisão. Um espião era um agressor, e o reino

    devia defender-se dos agressores da melhor maneira possível. E nesse caso, os

    métodos empregados pelo Doutor Alegria eram os melhores.

    — Meu senhor...

    Elric olhou para ele com um ar ausente.

    — Já temos a informação, meu senhor.

    A fina voz do Doutor Alegria ressoou no extremo oposto da câmara.

    Dois pares de correntes estavam agora vazios e alguns escravos recolhiam restos

    humanos do chão e os lançavam nas chamas. Os dois corpos disformes que

    restavam, pareciam para Elric como pedaços de carne meticulosamente preparados

    por um cozinheiro. Um dos corpos ainda se agitava debilmente, mas o outro já

    estava imóvel.

    O Doutor Alegria guardou seus instrumentos em uma caixa que levava

    atada ao cinto. Sua branca indumentária estava quase toda coberta de sangue.

    — Parece que já houve outros espiões antes destes. — disse o Doutor

    para seu mestre. — Os que capturamos agora vieram apenas para confirmar a

    primeira rota. Caso eles não regressassem, a frota inimiga iria atacar.

    — Mas então, com certeza eles agora sabem que os estamos

    aguardando? — perguntou Elric.

    30

  • — Provavelmente não, meu senhor. Espalhamos o rumor entre os

    mercadores e marinheiros dos Novos Reinos, de que quatro espiões foram vistos

    no labirinto e foram mortos com lanças quando tentavam escapar.

    — Compreendo. — Elric franziu o cenho e acrescentou — Então, o

    melhor plano será fazer uma armadilha para estes invasores.

    — Com certeza, meu senhor.

    — Sabemos qual rota haviam escolhido?

    — Sim, meu senhor. Elric se voltou para um dos guardas e lhe ordenou:

    — Envie mensagens informando todos nossos generais e almirantes. São

    quantas horas?

    — Acaba de anoitecer, meu imperador.

    — Diga-lhes que se apresentem diante do Trono de Rubi duas horas

    depois do crepúsculo.

    — Elric ergueu-se rapidamente — Como sempre, fez um bom trabalho,

    Doutor Alegria.

    O delgado artista fez uma profunda reverencia, dobrando-se quase

    totalmente pela cintura, e respondeu ao elogio com um suspiro sutil e um tanto

    untuoso.

    31

  • 5. Uma batalha:

    O rei mostra sua capacidade militar

    YYRKOON FOI O primeiro a chegar, vestido da cabeça aos pés com

    um elegante uniforme de guerra e acompanhado por dois enormes guardas, cada

    um dos quais segurando um dos ornamentados estandartes de guerra do príncipe.

    — Meu imperador! — O grito de Yyrkoon soava orgulhoso e cheio de

    desdém. — Me permitiria comandar os guerreiros? Posso me encarregar deles já

    que, sem duvida, meu senhor terá muitas outras questões que ocuparão seu tempo.

    — Tem muita consideração, príncipe Yyrkoon, mas não deves temer por

    mim. — replicou Elric impacientemente — Eu irei à frente dos exércitos e

    esquadras de Melniboné, pois este é o dever do imperador.

    Yyrkoon lhe dirigiu um olhar colérico e se recolheu a seu lugar quando

    entrou no salão Dyvim Tvar, Senhor das Cavernas do Dragão. O recém chegado

    não estava acompanhado de nenhum guarda e parecia ter-se vestido

    apressadamente. Porém levava seu elmo embaixo do braço.

    — Meu imperador, trago noticias dos dragões.

    — Obrigado, Dyvim Tvar, mas peço-lhe que aguarde até que cheguem

    todos os meus comandantes. Assim estaremos todos a par de suas noticias. Dyvim

    Tvar fez uma reverencia e se dirigiu ao lado contrario do salão em que se

    encontrava o príncipe Yyrkoon.

    Pouco a pouco, foram chegando os guerreiros até que a todos os

    principais comandantes estavam reunidos ao pé da escadaria que conduzia ao

    Trono Rubi, onde estava sentado Elric. No entanto, este ainda usava as roupas que

    havia utilizado no passeio matinal a cavalo. Não havia tido tempo para se trocar,

    pois até poucos momentos atrás estivera consultando os mapas do labirinto, eram

    mapas aos quais somente ele tinha acesso e que, em circunstâncias normais,

    estavam ocultos através de magia para todo aquele que tentasse procura-los.

    — Os povos do sul querem se apoderar das riquezas de Imrryr e matar

    32

  • todos nós. — disse Elric — Acreditam ter encontrado uma rota para atravessar

    nosso labirinto marinho. Nesse momento, uma frota de cem navios de guerra

    avança para Melniboné. Amanhã aguardarão até que anoiteça e, então navegarão

    através do labirinto e tentarão nos invadir. A frota inimiga quer alcançar o porto a

    meia noite e tomar a Cidade dos Sonhos antes do amanhecer. E eu lhes pergunto:

    eles irão conseguir isso?

    — Não! — Muitas gargantas gritarão em uníssono a breve resposta.

    — Não! — gritou Elric sorrindo — Mas, então como desfrutaremos

    melhor desta pequena batalha que eles nos oferecem? Como sempre, Yyrkoon foi

    o primeiro a responder, vociferante:

    — Saiamos agora mesmo ao seu encontro com os dragões e os navios de

    guerra. Vamos perseguir o inimigo até sua própria terra e levaremos a guerra para

    lá. Atacaremos suas nações e incendiaremos suas cidades! Os conquistaremos e

    com isso, asseguraremos nosso próprio bem estar!

    Então Dyvim Tvar o interrompeu laconicamente:

    — Não temos dragões. — disse ele.

    O que? — Yyrkoon perguntou — Como?

    — Não temos dragões príncipe. Estão todos dormindo. Os dragões

    dormem em suas cavernas, esgotados pela última missão que cumpriram para você.

    — Para mim?

    — Você os utilizou no conflito com os piratas de Vilmir. Eu o havia

    avisado que era preferível poupa-los para ameaças de maior envergadura, mas você

    levou-os contra os piratas. Os usou para incendiar seus pequenos navios, e agora os

    dragões dormem.

    Yyrkoon franziu a testa e olhou para Elric.

    — Eu não poderia prever... Elric levantou a mão.

    — Não utilizaremos nossos dragões até que seja realmente necessário.

    Este ataque da frota meridional não é nada, mas mesmo assim conservaremos

    nossas forças e aguardaremos o momento certo para atacar. Vamos deixá-los

    33

  • pensar que nos pegaram desprevenidos. Deixemos que entrem no labirinto. Uma

    vez que todos os cem navios estejam lá dentro, nós os cercaremos, bloqueando

    todas as rotas do labirinto, tanto as de entrada como de saída. Assim que a frota

    estiver capturada, nós os destroçaremos.

    Yyrkoon mantinha os olhos fixos nas pontas de seus pés, com um ar

    irritado. Era evidente que tentava encontrar algum ponto fraco no plano. Magum

    Colim, o enorme e idoso almirante da frota, se adiantou até a escadaria envergando

    sua armadura verde mar e fez uma reverencia.

    — Os navios dourados de guerra de Imrryr estão preparados para

    defender a cidade, meu senhor. Precisaremos de tempo para manobrá-los até que

    estejam em posição. Não é seguro que todos entrem no labirinto ao mesmo tempo.

    — Então envie imediatamente uma pequena frota para fora do labirinto

    e a mantenha escondida atrás dele, perto da entrada. Ali elas aguardarão os

    possíveis sobreviventes que possam escapar a nosso ataque. — ordenou Elric.

    — Um plano muito astuto, meu senhor. — assentiu Magum Colim, ao

    mesmo tempo em que fazia uma nova reverencia e retrocedia até o grupo de

    comandantes. O debate sobre os planos de guerra se prolongou por mais algum

    tempo. Quando tudo já estava preparado e se dispunham a sair, o príncipe Yyrkoon

    elevou de novo sua voz para dizer:

    — Repito minha oferta ao imperador. Sua pessoa é demasiado valiosa

    para arriscar-se em uma batalha. Eu não tenho valor nenhum. Deixai-me comandar

    seus guerreiros, tanto em terra como no mar. Enquanto isso, o imperador

    permanecera no palácio sem preocupar-se com a batalha, na confiança de que o

    inimigo será derrotado. Talvez o imperador possa até ter tempo de terminar de ler

    algum livro...

    Elric respondeu com um sorriso:

    — Agradeço de novo sua preocupação, príncipe Yyrkoon, mas um

    imperador deve exercitar tanto seu corpo como sua mente. Amanha irei à frente

    dos guerreiros.

    34

  • Quando o imperador voltou para seus aposentos, verificou que

    Tanglebones já havia se encarregado de preparar seus artefatos de guerra, negros e

    pesados. Ali estava a armadura que havia servido a mais de cem de imperadores de

    Melniboné; uma armadura forjada com magia para ter uma resistência sem igual em

    toda a Terra, capaz de resistir, segundo se dizia, até aos golpes das lendárias espadas

    mágicas, Stormbringer e Mournblade, que haviam sido empunhadas pelos mais

    valentes e bravos governantes de Melniboné até que caíram nas mãos dos Senhores

    dos Mundos Superiores, que as ocultaram para sempre em um lugar, em que até

    mesmo estes Senhores raramente se aventuravam.

    O rosto do criado se alegrava enquanto acariciava cada peça da armadura

    e cada uma das armas, perfeitamente balanceadas, com seus dedos largos e

    nodosos. Seu rosto sulcado de rugas estava voltado para Elric e seus olhos

    estudavam as feições preocupadas do imperador.

    — Oh, meu senhor, meu rei! Agora conhecerás a alegria do combate!

    — Com certeza, meu bom Tanglebones. E esperemos que eu realmente

    desfrute da alegria do combate.

    — Eu te ensinei tudo que sei meu senhor. A arte da espada e do punhal,

    a arte do arco da lança, tanto a pé como a cavalo. Tu as aprendeste bem, mesmo

    que alguns digam que és fraco. Em toda Melniboné, só existe um espadachim

    melhor que o imperador.

    — E este que pode superar-me é o príncipe Yyrkoon. — disse Elric

    pensativamente. — Não é?

    — Eu disse “somente um”, meu senhor.

    — E este “um” é Yyrkoon. Bem, quem sabe um dia eu possa colocar

    isso a prova. Antes de vestir a armadura, tomarei um banho.

    — Seria melhor apressar-se, meu amo. Pelo que ouvi falarem, haverá

    muito a fazer.

    — Depois do banho, irei dormir. — anunciou Elric, para consternação

    35

  • de seu velho servidor. — Será o melhor a fazer, já que não poderei comandar

    pessoalmente a colocação dos navios. Eu serei necessário para dirigir o combate e,

    para isso, é melhor que tenha descansado adequadamente.

    — Se tu acreditas que é o melhor, meu senhor rei, assim será.

    — Vejo que minha decisão te surpreendeu. Meu bom Tanglebones, você

    está demasiado impaciente em ver-me dentro desta armadura, pavoneando-me

    como se fosse o próprio Arioch...

    O criado levou sua mão à boca como se tivesse sido ele, e não seu amo,

    quem havia pronunciado aquelas palavras e quisesse reprimi-las. Tinha os olhos

    arregalados.

    Elric soltou uma gargalhada.

    — Meu pobre amigo... Acredita que disse uma heresia, não é? Bem, já

    disse coisas bem piores sem que me tenha sobrevindo nenhum mal. Em

    Melniboné, meu querido servo, são os imperadores que controlam os demônios, e

    não o contrario.

    — És tu quem o disse, meu senhor.

    — E é a verdade. Elric saiu da sala e chamou seus escravos. A febre da

    guerra queimava dentro de seu ser e ele se sentia jubiloso.

    Por fim, Elric estava enfiado em sua negra armadura com um enorme

    peitoral, cotas de malha, grandes cotoveleiras e manoplas articuladas. Presa ao cinto

    levava sua grande espada que, segundo se conta, havia pertencido a um antigo herói

    mortal chamado Aubec. Apoiado contra o convés dourado da primeira ponte do

    navio, estava seu grande escudo de batalha, adornado com um emblema de um

    dragão atacando. E, cobrindo seu rosto, o imperador usava um elmo negro com

    uma cabeça de dragão no alto, asas de dragão estendidas até atrás e uma cauda de

    dragão caindo-lhe sobre os ombros. Todo o elmo era negro, mas em seu interior, se

    notava uma sombra branca de onde sobressaia um par de olhos de uma intensa cor

    vermelha. Dos dois lados do casco, algumas mechas de cabelo, brancas como a

    neve se agitavam ao vento como colunas de fumaça que escapavam de um edifício

    36

  • em chamas. E, quando a cabeça coberta pelo elmo voltou-se para a escassa luz da

    lanterna colocada na base do mastro principal, a viseira levantada converteu a

    sombra branca de seu interior em um rosto de finas e elegantes feições: um nariz

    reto, lábios curvos e olhos amendoados e oblíquos. O rosto de Elric, imperador de

    Melniboné, perscrutava a escuridão do labirinto a espera dos primeiros sons da

    frota invasora.

    Elric aguardava sobre a elevada ponte de comando da grande galera

    dourada que, como todas as outras de sua classe, pareciam um zigurate flutuante

    equipado com mastros, velas, timões e catapultas. O navio tinha o nome de Filho

    de Pyaray e era o principal da frota. Junto a Elric se encontrava o Grande

    Almirante. Magum Colim. Este, assim como Dyvim Tvar, era um dos íntimos

    amigos do imperador. Conhecia Elric desde que este havia nascido e lhe havia

    estimulado a estudar tudo que fora possível sobre o comando dos barcos de

    combate e a disposição das frotas de guerra. Porém, em seu íntimo, Magum Colim

    temia que Elric fosse demasiado intelectual e introspectivo para governar

    Melniboné, mas aceitava o direito de Elric reinar e se mostrava furioso e impaciente

    com os comentários dos seguidores de Yyrkoon. O príncipe Yyrkoon também

    estava a bordo do nau capitania, e estava no convés inferior, inspecionando as

    máquinas de guerra.

    O Filho de Pyaray estava ancorado em uma enorme gruta, era um dos

    cem navios que foram escondidos nos muros do labirinto, muros que foram

    construídos quando este foi projetado, com o claro propósito de ocultar una galera

    de combate. A gruta tinha a altura certa para que passassem os mastros, e largura

    suficiente para que pudessem mover os remos sem impedimentos. Todos os navios

    dourados da frota eram dotados de filas de remos, cada uma das quais levava de

    vinte a trinta remos em cada costado. As filas de remos tinham quatro, cinco e até

    seis níveis de altura e muitos navios, como o próprio Filho de Pyaray, contavam

    com três sistemas de controle para avançar ou recuar. As embarcações, todas elas

    banhadas em ouro, eram praticamente indestrutíveis e, mesmo com seu imponente

    37

  • tamanho, podiam avançar em grande velocidade e manobrar com delicadeza

    quando a ocasião o exigia. Não era a primeira vez que aguardavam o inimigo

    naquelas grutas, e tampouco seria a última (e a próxima vez em que fariam isso

    seria em circunstancias muito diferentes). Nos últimos tempos, as galeras de

    combate de Melniboné não saiam mais para navegar no mar aberto. Mas, em outras

    épocas haviam percorrido os oceanos do mundo como temíveis montanhas

    flutuantes de ouro, semeando o terror onde eram avistadas. Então nesses dias, a

    frota era mais numerosa, contando com centenas de navios. Agora, dispunham de

    apenas quarenta navios. Mas eles seriam o bastante.

    Agora na úmida escuridão, eles aguardavam o inimigo. Escutavam o

    monótono bater das águas contra os costados do navio, Elric desejou ter tido

    tempo de pensar em um plano melhor que aquele. Embora estivesse seguro de que

    sua estratégia daria resultado, ele se lamentava pela perda inútil de vidas, tanto

    melnibonianas como bárbaras, que iria ocasionar. Talvez fosse melhor encontrar

    um modo de atemorizar os bárbaros, ao invés de massacrá-los no labirinto

    marinho. Talvez porque ninguém mais se aventurara fora da Cidade dos Sonhos, a

    frota dos homens do sul não fora a primeira que havia se convencido de que os

    melnibonianos haviam entrado em decadência e não eram mais capazes de

    defender seus tesouros. Por isso, os invasores deviam ser destruídos para que a

    lição ficasse bem clara: Melniboné ainda era muito poderosa. O suficiente, na

    opinião de Yyrkoon, para recuperar seu domínio anterior do mundo. Sim,

    Melniboné continuava poderosa, pelo menos no que se referia a feitiçaria, mas não

    no número de tropas.

    — Ouça! — O almirante Magum Colim se inclinou até a frente da ponte

    — Não foi o ruído de um remo?

    — Acho que sim. — disse Elric.

    Chegaram até eles alguns sons de remadas em intervalos regulares, como

    se fossem filas de remos entrando e saindo da água. Por fim, escutaram o barulho

    de madeira, os invasores do sul estavam chegando. O Filho de Pyaray era o navio

    38

  • mais próximo da entrada do labirinto e seria o primeiro a mover-se, mas só faria

    isso quando tivesse passado o último dos navios invasores. O almirante Magum

    Colim se inclinou e apagou a lanterna, e então rapidamente e em silencio, desceu o

    convés para informar a tripulação da chegada do inimigo.

    Um pouco antes, Yyrkoon havia utilizado sua magia para invocar uma

    peculiar neblina que ocultava as douradas galeras da vista dos inimigos, mas que

    permitia aos melnibonianos ver através dela as naves que se aproximavam. Elric via

    agora as tochas acendidas no canal situado à frente deles. Os barcos invasores

    avançavam cuidadosamente pelo labirinto. No transcurso de poucos minutos, dez

    galeras haviam passado diante da gruta. O almirante Magum Colim regressou a

    ponte para junto de Elric, com quem já estava o príncipe Yyrkoon. Este também

    levava um dragão em seu elmo, um pouco menos esplendido que o de Elric, pois o

    imperador era o mais importante entre os poucos Príncipes do Dragão que ainda

    restavam em Melniboné. Yyrkoon sorria na escuridão e seus olhos refulgiam de

    expectativa ante a perspectiva de uma batalha sangrenta. Elric preferia que o

    príncipe Yyrkoon estivesse em outro navio que não o seu, mas era um privilegio do

    príncipe ir a bordo da nau capitania, e isso não podia ser negado.

    Cerca de cinqüenta embarcações inimigas já haviam passado.

    A armadura de Yyrkoon rangia enquanto o príncipe impaciente pela

    espera, passeava pela ponte com sua mão segurando o punho de sua espada.

    — Logo... — repetia para si mesmo — Logo...

    E instantes depois, quando havia passado diante deles o último navio

    inimigo, a corrente da ancora começou ser puxada e os remos entraram na água. O

    Filho de Pyaray surgiu impetuoso da gruta, se lançou no canal e atingiu uma galera

    inimiga bem no centro, partindo-a em duas.

    Uma grande confusão se levantou na tripulação inimiga, cujos homens

    fugiram desesperados em todas as direções. Nos restos do convés, tochas iam e

    vinham desordenadamente nas mãos dos homens que tentavam salvar-se de cair

    nas águas escuras e geladas do canal. Alguns valentes lanceiros atacavam os lados

    39

  • da galera de Melniboné, que abria caminho entre os escombros do naufrágio que

    ela mesma tinha criado. Mas então os arqueiros de Imrryr retribuíram o ataque, e os

    poucos sobreviventes foram mortos.

    O som deste conflito rápido era o sinal para os outros navios. Em ordem

    perfeita eles entraram por ambos os lados das paredes de pedra altas, e parecia aos

    bárbaros surpresos que os grandes navios dourados tinham emergido de dentro da

    pedra sólida, como navios fantasma cheios de demônios que descarregavam lanças,

    flechas e fogo sobre eles. Agora todo tortuoso canal era uma confusa mescla de

    gritos de guerra que ecoavam aumentados. O estrondo de aço contra aço era como

    o sibilar selvagem de uma serpente monstruosa, e logo a própria frota invasora se

    assemelhou a uma serpente feita em cem pedaços pelos imponentes e implacáveis

    navios dourados de Melniboné. Navios que pareciam quase serenos quando se

    moviam contra os inimigos, enquanto os ganchos de abordagem brilhavam a luz

    dos incêndios, ao serem lançados sobre as coberturas de madeira e grades, para

    depois puxa-los e dar passagem para guerreiros que terminariam a destruição das

    galeras.

    Mas os povos do sul eram valentes e mesmo depois da surpresa inicial

    ainda mantinham a calma. Três das suas galeras navegavam em direção ao Filho de

    Pyaray, reconhecendo ele como a nau capitânia. Flechas incendiárias foram

    lançadas e caíram na parte da cobertura de madeira que não estava protegida pela

    armadura dourada, incendiando tudo ou então trazendo uma morte ardente aos

    homens atingidos por elas.

    Elric elevou o escudo sobre sua cabeça e duas flechas resvalaram no

    metal, caindo, ainda chamejando em uma cobertura de madeira. Ele saltou em cima

    da grade, seguindo a trajetória das flechas, e saltando até a cobertura mais larga e

    exposta onde os guerreiros estavam se agrupando para enfrentar as galeras

    agressoras. As catapultas estrondearam e bolas de fogo azul assobiaram na

    escuridão, falhando por pouco em atingir as três galeras. Outra salva se seguiu e

    uma massa de chamas atingiu o mastro da galera inimiga e estourou na cobertura,

    40

  • espalhando chama. Nesse momento, os ganchos de abordagem agarraram a

    primeira galera, puxando a para perto da nau capitania e Elric estava entre os

    primeiros a saltar sobre o convés inimigo. E então abriu caminho para o local onde

    ele viu o capitão, coberto com uma armadura sem adornos e brandindo uma

    enorme espada com ambas as mãos, ordenando aos seus homens para resistir aos

    cachorros de Melniboné.

    Quando Elric chegou à ponte, três bárbaros armados com espadas

    curvadas e pequenos escudos redondos vieram até ele. As faces deles estavam

    cheias de medo, mas também de determinação, como se eles soubessem que iriam

    morrer, mas que deviam causar tanta destruição quanto pudessem, antes das suas

    almas serem levadas.

    Apertando com força as alças que prendiam o escudo sobre o braço,

    Elric levantou a espada de gume duplo com as duas mãos e se lançou contra os

    marinheiros, usando a borda do escudo para jogar um deles ao chão enquanto

    esmagava com a espada a clavícula do outro. O bárbaro restante saltou para o lado

    e brandiu sua espada curvada em direção à face de Elric. Este conseguiu se esquivar

    por pouco, e a extremidade afiada da espada arranhou seu rosto, tirando uma gota

    ou duas de sangue. Elric levantou a espada longa como uma foice e a enterrou

    profundamente na cintura do bárbaro, quase o cortando em dois. Ele ainda lutou

    por um momento, sem acreditar que estava morto até que Elric arrancou a espada e

    então ele fechou os olhos e caiu. O homem que tinha sido golpeado pelo escudo de

    Elric estava cambaleando aos seus pés, Elric se virou e ao vê-lo se arrastar

    agonizante, golpeou com a espada o seu crânio. Agora o caminho para a ponte

    estava livre. Elric começou a escalar a escada de mão, notando que o capitão o

    tinha visto e estava esperando por ele no topo.

    Elric levantou seu escudo para receber o primeiro golpe do capitão.

    Entre a gritaria, julgou que ouvia os gritos deste homem, que lhe dizia:

    — Morra, maldito demônio albino! Morra! Você não tem mais nenhum

    lugar nesta terra!

    41

  • Ao ouvir estas palavras, Elric quase esqueceu de se defender. Elas

    tocaram fundo em sua alma. Talvez ele realmente não tivesse mais nenhum lugar na

    terra, talvez fosse por isso que Melniboné estava desmoronando lentamente, e os

    sinais eram claros... Por que cada vez menos crianças nasciam a cada ano? Por que

    eles já não estavam mais criando dragões?

    Ele sentiu o capitão golpear seu escudo novamente, e então tentou

    golpear as pernas do homem. Mas o capitão tinha se antecipado ao movimento e

    saltou para trás. Porém, isto deu a Elric tempo suficiente para subir os poucos

    degraus restantes, ficando de pé na cobertura e em frente ao capitão.

    A face do homem quase estava tão pálida quanto a de Elric. Ele estava

    suando e arquejando, e seus olhos revelavam uma angustia e um medo selvagem.

    — Você deveria ter nos deixado em paz. — Elric se ouviu dizendo. —

    Nós não lhe fizemos nenhum mal, bárbaro. Quando foi a última vez que

    Melniboné velejou contra os Novos Reinos?

    — Você nos faz mal apenas com sua presença, demônio branco. Vocês

    têm suas feitiçarias, suas alfândegas e sua arrogância.

    — É por isso que você veio aqui? Seu ataque foi motivado apenas pelo

    ódio contra nós? Ou será que você se interessou por nossa riqueza? Admita

    capitão, foi sua ganância que o trouxe a Melnibone.

    — Pelo menos a ganância é uma qualidade humana e compreensível.

    Mas vocês são criaturas inumanas, ou ainda pior: vocês não são deuses, entretanto

    se comportam como se fossem. Seus dias terminaram e vocês deveriam ser varridos

    da face da terra, sua cidade destruída e suas feitiçarias esquecidas.

    Elric acenou com a cabeça.

    — Talvez você tenha razão, capitão.

    — Eu sei que tenho razão. Nossos homens santos também dizem assim.

    Nossos videntes predizem sua queda. Os próprios Deuses do Caos a quem vocês

    servem provocaram esta queda.

    — Os Deuses do Caos já não têm qualquer interesse nos assuntos de

    42

  • Melnibone. Eles tomaram o poder de nós há quase mil anos. — Elric estudava o

    capitão cuidadosamente, medindo a distância entre eles. — Talvez seja por isso que

    nosso próprio poder diminuiu. Ou talvez nós somente tenhamos nos cansado do

    poder.

    — Seja qual for a razão... — O capitão disse, enquanto esfregava a sua

    sobrancelha suada — O seu tempo terminou. Vocês devem ser destruídos de uma

    vez por todas. — E então ele gemeu, pois a espada de Elric tinha entrado debaixo

    da sua armadura, atravessando seu estômago e pulmões. Um joelho dobrou, uma

    perna estirou atrás dele, e Elric começou a retirar a espada longa, enquanto

    observava a face do bárbaro que tinha assumido uma expressão de reconciliação

    agora.

    — Isso não foi uma luta justa, demônio branco. Nós estávamos

    conversando e você se aproveitou de minha distração. Você é muito hábil. Espero

    que você se retorça de dor eternamente nas profundezas do inferno. Adeus.

    E então sem saber o porquê, depois que o capitão caiu com a face na

    cobertura, Elric golpeou duas vezes o pescoço até que a cabeça dele rolou ao lado

    da ponte e foi chutada então pra fora do navio, afundando nas profundezas da água

    gelada.

    E então Yyrkoon subiu atrás de Elric, e estava sorrindo.

    — Você lutou bem, meu imperador. Aquele homem morto tinha razão.

    — Razão? — Elric se voltou para seu primo. — Razão?

    — Sim, quando ele avaliou sua coragem. — E, rindo, Yyrkoon foi

    supervisionar os seus homens que ainda estavam lutando com os poucos guerreiros

    sobreviventes.

    Elric não conseguia entender por que tinha se recusado a odiar Yyrkoon

    antes. Mas agora ele o odiava profundamente. Naquele momento ele o teria matado

    com prazer. Era como se Yyrkoon tivesse olhado profundamente dentro da alma

    de Elric e expressado desprezo pelo que viu lá.

    De repente Elric foi abatido por uma grande angustia e desejou com

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  • todo seu coração não ser mais um melniboniano, nem um imperador e que aquele

    maldito Yyrkoon jamais tivesse nascido.

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  • 6. Perseguição:

    Uma traição premeditada

    COMO IMPONENTES Leviatãs, os grandes navios de guerra dourados

    navegaram pelos destroços da frota invasora. Alguns navios queimavam e outros

    ainda estavam afundando, mas a maioria já tinha afundado nas profundezas

    insondáveis do canal. Os navios ardentes produziam sombras estranhas que

    dançavam contra as paredes úmidas das cavernas, como se os fantasmas dos

    mortos oferecessem uma última saudação antes de partir para o fundo do mar,

    onde se dizia que reinava um Deus do Caos, que incorporava às suas frotas aqueles

    que morriam em batalha em qualquer um dos oceanos do mundo. Ou talvez eles

    tivessem um destino melhor, indo servir Straasha, Deus dos Espíritos da Água que

    reinava no mar.

    Mas alguns tinham escapado. De alguma maneira, os marinheiros do sul

    conseguiram manobrar através do cerco dos grandes navios de guerra, velejaram de

    volta através do canal e agora já deviam ter alcançado o mar aberto. Isto foi

    informado à nau capitânia onde Elric, Magum Colim e o Príncipe Yyrkoon estavam

    novamente juntos na ponte, inspecionando a destruição que eles tinham causado.

    — Então nós os perseguiremos e acabaremos com eles. — disse

    Yyrkoon. Estava suando e sua face morena brilhava, os seus olhos estavam febris.

    — Nós temos que persegui-los.

    Elric encolheu os ombros. Ele estava fraco, e não tinha trazido nenhuma

    droga extra para renovar suas forças. Queria voltar para Imrryr e descansar. Ele

    estava farto daquele banho de sangue, farto de Yyrkoon e principalmente, farto de

    si mesmo. O ódio que sentia pelo primo estava esgotando suas forças, e ele odiava

    se sentir assim, isso era a pior parte.

    — Não! — ele disse. — Deixe-os ir.

    — Deixa-los ir? Impunes? Vamos meu rei e senhor! Isso não é nosso

    costume! — o Príncipe Yyrkoon voltou-se para o velho almirante. — Isso é nosso

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  • costume, Almirante Magum Colim?

    Magum Colim encolheu os ombros. Ele também estava cansado, mas em

    seu íntimo concordava com o Príncipe Yyrkoon. Um inimigo de Melnibone deveria

    ser castigado por até mesmo ousar pensar em atacar a Cidade dos Sonhos. Ainda