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ÍNDICE Apresentação 2 Prefácio 3 Introdução 7 Guirlande Pour Louis Braille 9 I - José Alberto Leitão Barata 10 II - Marco Aurélio Maltez Branco 14 III - Ana Maria de Almeida Fontes 16 IV - Fernando Manuel Abreu Matos 21 V - Claudino Arieira Pinto 23 VI - Graça Maria Martins de Brito Gerardo 28 VII - José António Lage Salgado Baptista 31 VIII - José Fernandes da Silva 35 IX - Maria Antónia Rodrigues de Carvalho Moreira Pereira 39 X - Francisco Manuel Rodrigues Alves 41 XI - Henrique Pires Ribeiro 45 XII - Maria Amália dos Santos Meira 48 XIII - Carlos Jorge Barata Gonçalves 51 XIV - Isidro da Eira Rodrigues 54 XV - Susana Alexandra Marques Cordeiro 57 XVI - José Joaquim da Silva Batista 61 XVII - José António Saraiva De Oliveira 65 XVIII - Augusto Deodato Guerreiro 71 XIX - José Adelino Figueira Guerra 75 XX - Joana Belarmino de Sousa 78 XXI - Vítor Reino 83 XXII - Jerónimo Nogueira da Silva 86 XXIII - Pedro Zurita 90 XXIV - Tim Cranmer 95 Notas 98 APRESENTAÇÃO Mãos que lêem corações que escrevem aquilo que a alma lhes dita. São pouco mais de duas dezenas de pessoas que testemunham a sua gratidão pelo muito que o Sistema Braille lhes deu.

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ÍNDICE

Apresentação 2Prefácio 3Introdução 7Guirlande Pour Louis Braille 9I - José Alberto Leitão Barata 10II - Marco Aurélio Maltez Branco 14III - Ana Maria de Almeida Fontes 16IV - Fernando Manuel Abreu Matos 21V - Claudino Arieira Pinto 23VI - Graça Maria Martins de Brito Gerardo 28VII - José António Lage Salgado Baptista 31VIII - José Fernandes da Silva 35IX - Maria Antónia Rodrigues de Carvalho Moreira Pereira 39X - Francisco Manuel Rodrigues Alves 41XI - Henrique Pires Ribeiro 45XII - Maria Amália dos Santos Meira 48XIII - Carlos Jorge Barata Gonçalves 51XIV - Isidro da Eira Rodrigues 54XV - Susana Alexandra Marques Cordeiro 57XVI - José Joaquim da Silva Batista 61XVII - José António Saraiva De Oliveira 65XVIII - Augusto Deodato Guerreiro 71XIX - José Adelino Figueira Guerra 75XX - Joana Belarmino de Sousa 78XXI - Vítor Reino 83XXII - Jerónimo Nogueira da Silva 86XXIII - Pedro Zurita 90XXIV - Tim Cranmer95Notas 98

APRESENTAÇÃO

Mãos que lêem corações que escrevem aquilo que a alma lhes dita.São pouco mais de duas dezenas de pessoas que testemunham a sua gratidão pelo muito que o Sistema Braille lhes deu.Muitos e muitos milhares - talvez milhões - de outras pessoas, noutras línguas, em diferentes estilos, em todo o mundo, há mais de 175 anos poderiam manifestar o mesmo sentimento expresso neste livro.Também eu na qualidade de pessoa cega recordo sempre com emoção aquele dia 15 de Janeiro de 1942 em que, pela primeira vez, tacteei um livro escrito em braille.De então para cá, este sistema de leitura e escrita tem sido uma constante na minha vida e hoje, na qualidade de Presidente da Comissão de Braille, permito-me em meu nome e em nome de todos quantos comigo têm participado nas diversas Comissões de Braille e grupos de trabalho, criados para tratar desta matéria, manifestar um testemunho colectivo de gratidão pelo muito que Luís Braille fez pelos cegos de todo o mundo.

Não adianta que alguns, felizmente poucos, ignorantes ou mal intencionados pretendam fazer crer que o braille é um factor de separação entre os cegos e os que vêem. Não adianta que esses mesmos pretendam associar o braille e a bengala branca a estigmas traumatizantes da cegueira. Pelo contrário, esses dois instrumentos são como que os olhos dos que não vêem e permitem-lhes que partilhem o mundo com os demais cidadãos, como gente de corpo inteiro.Bem haja pois, Luís Braille, pela sua sublime invenção!Ao conceber a publicação deste livro a Comissão de Braille pretende manifestar o seu perene testemunho de gratidão ao inventor do sistema que constitui a razão de ser da sua própria existência.

O Presidente da Comissão de Braille

Orlando Monteiro

PREFÁCIO

Quando aceitei escrever uma breve introdução a este volume comemorativo dos cento e cinquenta anos da morte de Louis Braille ignorava por completo a sua natureza e, muito menos ainda, o teor dos depoimentos que o compunham. Terá sido, pensarão alguns, uma aceitação irreflectida ou, pior ainda, presunçosa, se eu estivesse convicto de que poderia acrescentar algo ao que já estava escrito.

Direi em minha defesa simplesmente que, por razões profissionais, me tenho aproximado cada vez mais do mundo dos cegos e não quis deixar fugir a oportunidade de saldar duas dívidas. A primeira é a da ignorância, pois eu, como infelizmente uma larga fatia da sociedade, desconhecia por completo uma realidade que até há algum tempo só tocava a epiderme das minhas preocupações. A segunda nasceu da leitura dos textos que integram este livro e é a dívida da gratidão pelo que aprendi e, mais do que isso, pelo modo como o aprendi. É que o que aqui está escrito irradia um calor humano único que me aqueceu a alma de uma forma imprevista e inesquecível. No fundo a dívida não se amortizou mas, pelo contrário, cresceu.

***

Há mais de vinte e cinco anos, mais precisamente em 1975, estava eu ainda em Nova Iorque trabalhando na Universidade de Columbia, vi-me envolvido num projecto experimental destinado a criar uma prótese visual. Era um trabalho discreto, conduzido por um cientista genial, Bill Dobelle, que desenhara um protótipo que consistia numa câmara de televisão montada num par de óculos, ligada a um computador, por sua vez conectado a uma placa de eléctrodos que quando excitados produziam um pequeno ponto luminoso.

Desde o início se reconheceu que provavelmente o poder de resolução deste sistema não iria permitir reconhecer uma fisionomia ou ler um jornal. Procurava-se apenas garantir autonomia e independência nas actividades do dia-a-dia. Os resultados dessa investigação persistente, ao longo de mais de duas décadas de um notável

aperfeiçoamento da tecnologia, são agora bem conhecidos e todos nós que continuamos envolvidos no projecto, admitimos que o sonho está próximo de se tornar uma realidade.

O que não é sabido é que, no início da nossa investigação, trabalhávamos simultaneamente num outro projecto que pretendia explorar a possibilidade de transformar o estímulo visual em percepção táctil. Para tal aplicavam-se placas contendo pequenos eléctrodos em zonas do corpo como o abdómen ou o antebraço. Aqueles estavam incluídos uma pequena placa de teflon e dispostos em três filas de três elementos como as teclas de um telefone digital. A experiência consistia não só em determinar o limiar de intensidade do estímulo - de modo a não chegar a um choque doloroso - mas também a distância entre os pontos, a fim de serem percebidos de forma independente. Tal como na escrita Braille procurava-se assim criar letras ou números, e eu passei largas horas como voluntário nesta experiência na tentativa de criar um "novo" Braille. Devo dizer que era um processo de aprendizagem complexo, tal como sucede, com a leitura e escrita Braille. Suponho que no início a aprendizagem destas deve confundir os sistemas neuronais porque isto de escrever da direita para a esquerda, para depois ler da esquerda para a direita puxa certamente pelo miolo. É certo que Leonardo da Vinci também escrevia desse modo mas para ler a sua escrita servia-se, ao que consta, de um espelho...

***

Tenho ensinado que na minha profissão a mão serve três propósitos. Em primeiro lugar para segurar utensílios, no meu caso instrumentos cirúrgicos. Em segundo, para investigar, através da palpação da superfície ou do toque das cavidades acessíveis. Finalmente, e esta função tem sido cada vez mais esquecida, serve também a mão para consolar e afagar.

A mão que se celebra nestas página é a segunda das três, também chamada mão "noética" ou do conhecimento. Eu, que pensava que tinha todas três bem domesticadas, quando acabei de ler este volume resolvi passar timidamente os dedos pelos caracteres inscritos no topo da carta que o acompanhava. Percebi então que os meus pobres dedos não estavam preparados sequer para separar os caracteres, quanto mais para discriminar um sentido naquilo que eu percebi apenas como uma erupção de vesículas sem regra.É claro que na minha profissão de médico se utilizam quatro sentidos. O quinto, o do gosto, caiu em desuso, embora há alguns séculos atrás cabesse aos provadores de urina o diagnóstico do excesso de açúcar da diabetes. Ao longo destes anos tenho cuidado sobretudo das moléstias que afligem os nervos da audição e da visão. Se, na aparência apenas, me é possível talvez imaginar o mundo da escuridão, mais difícil é perceber o mundo do silêncio "É um mundo diferente, este do silêncio", dizia-me uma doente na manhã a seguir a uma intervenção que a deixara irremediavelmente surda. Talvez por isso me tocaram particularmente os depoimentos de quem não via e não ouvia. Um deles assinalava como o Braille lhe tinha permitido escrever um diário, no fundo a expressão escrita mais pura do diálogo íntimo com nós próprios. Mas também, não raramente, tenho aliviado o sofrimento de quem, por lesão da medula espinhal ou dos nervos da periferia tem entorpecido o sentido do tacto.

A íntima associação dos sentidos da visão e do tacto, uma sinestesia de singular eficácia, é reconhecida há muito. Bichat, um dos fundadores da anatomia, escrevia que

"em anatomia as nossas sensações devem nascer tanto do tacto como da visão". É sabida a tendência proibida que temos, quando contemplamos uma pintura ou uma escultura, para as percorrermos também com as polpas dos dedos. Bernard Berenson, um dos mais famosos historiadores de arte, dizia que o pintor só podia levar a cabo a sua tarefa emprestando valores tácteis às impressões retinianas. Fernando Gil, um eminente filósofo, escreveu que "o tacto percebe as variações da textura das mesmas superfícies que reflectem a luz e a informação visual está, também ela, contida nestas descontinuidades". Os textos que constam deste livro são, além da homenagem justíssima ao homem que devolveu a liberdade a quem a natureza a tinha subtraído, são também a celebração deste sentido discreto, afectivo e eficaz. Por isso cito aqui a observação de Dom Francisco Manuel de Melo referida num dos textos: "sem tacto não é vivente porque a vida está mais formalmente em este sentido que em outro."

***

Confesso que parti para a leitura deste livro com a suspeita que ela era apenas um açucarado exercício hagiográfico. Mas o que afinal encontrei foram testemunhos de vida, a afirmação biográfica de uma luta e de um triunfo, o que muito me consolou pois sou muitas vezes forçado a aceitar a derrota. Todos, sem excepção, estão impregnados de um invencível e contagiante gosto de viver; todos sacudiram a resignação cabisbaixa.

Há um outro traço biográfico que os une. Em todos a cegueira começou cedo. Para alguns a expressão tão bela que usamos para o acto de nascer - "dar a luz" - não se aplica, porque nunca a viram. Outros, perderam-na pouco depois, por um brutal acaso. A todos eles, contudo, se aplica a frase do Padre António Vieira: "fizeram dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro".Ponto comum nestes testemunhos, que a mim igualmente me tocou profundamente foi o gosto manifestado pela leitura. Costumo dizer que fui educado mais com livros do que com brinquedos. Tal como eu, eles sentiram decerto a diferença que se observa naqueles que não lêem: podem ser cheios de bondade e plenos de bom senso, mas vivem num mundo pequenino. Num dos textos mencionavam-se autores que igualmente me encantaram, Salgari e o seu Sandokan, Simenon e o seu Maigret, Jorge Amado e o seu cortejo de baianas. Li-os todos. Admirei também a espontaneidade do comentário a uma obra do "desgraçado" do Aquilino, um mestre áspero da literatura portuguesa, "que ia desenterrar às profundezas da língua portuguesa cada palavra mais comprida e complicada".

Foram para mim particularmente interessantes os comentários acerca do risco de substituir o livro pelas novas tecnologias. De facto muito se perde quando se perde o livro, objecto quase corpóreo, com o qual se cria uma intimidade que, no caso dos cegos, se reveste, como aqui se escreve, "de uma clareza e luminosidade impressionante". Mas esta intimidade exprime-se também na capacidade escrever nas suas margens notas que assinalam as pegadas da nossa passagem, que é o diálogo que sustentamos com o autor.

Finalmente este livro é também um documento impressionante de gratidão. Todo o ensino é uma dádiva gratuita de nós mesmos cujo valor muitas vezes nos escapa no tempo em que acontece. Aqui, não há que expiar o feio pecado do esquecimento.

O Padre António Vieira, que tanto pregou sobre a cegueira, real e metafórica, dizia que "a natureza quando tira o sentido da vista deixa o sentido da cegueira". Este é um sentido que brota da inteligência e da alma de quem a sofre e que consegue encontrar nas raízes de si mesmo, a força redentora que o liberta. Assim nós, os outros, saibamos aprender com esta lição.

João Lobo AntunesAgosto 2002

INTRODUÇÃO

A invenção do Sistema Braille1 (1825) veio possibilitar aos cegos de todo o mundo libertarem-se do analfabetismo e da ignorância em que vinham vivendo e começarem a ascender a patamares de educação e de cultura cada vez mais relevantes, melhorando assim, acentuadamente, a sua condição social. Foi também graças a este notável invento que, poucas décadas volvidas, já se afirmavam entre os deficientes visuais cultos destacadas personalidades, algumas das quais haveriam de ficar na História. Não surpreenderá, portanto, que a Comissão de Braille2, quando se completam 150 anos sobre a morte do inventor deste Sistema, Louis Braille (1809-1852), tenha querido homenagear a sua memória, publicando uma colectânea de testemunhos de alguns utilizadores do braille3, sobre a importância que este Sistema assumiu no processo da sua realização pessoal, nos planos educativo, profissional, cultural, afectivo, interpessoal, etc. É essa colectânea que agora aqui se apresenta.

Os depoimentos nela contidos correspondem aos convites aceites, dentre os que a Comissão de Braille dirigiu a algumas dezenas de potenciais participantes de língua portuguesa, entre os quais se conta uma universitária brasileira. A par destes testemunhos decidiu a Comissão de Braille integrar outros textos, de três autores estrangeiros - dois já falecidos - cujos conteúdos se harmonizam perfeitamente com a matéria versada, ao mesmo tempo que conferem à colectânea uma dimensão histórico-geográfica mais alargada, contribuindo também, deste modo, para ampliar a dimensão e o significado da homenagem.

A Comissão de Braille procurou reunir testemunhos de um conjunto de indivíduos que reflectisse uma participação equilibrada, representativa por sexo, idade e profissão. Dos vinte e três autores de língua portuguesa, dezasseis são do sexo masculino, pertencendo ao sexo oposto apenas sete. Dois não atingiram ainda os vinte e cinco anos, dois estão compreendidos entre os vinte e cinco e os quarenta, quinze situam-se entre os quarenta e os sessenta, ficando quatro acima dos sessenta. Profissionalmente, estes utilizadores do braille apresentam-se distribuídos por actividades como o ensino, o exercício de psicologia, a formação de formadores, a prestação de serviço de leitura, a produção de livros braille, a interpretação musical, o serviço de telefonista e a actividade doméstica. Dois destes utilizadores do braille encontram-se aposentados.

Os textos de autores estrangeiros não foram escritos para figurar nesta colectânea. Mas a Comissão de Braille, convenientemente autorizada, decidiu integrá-los, não só porque se ajustam perfeitamente à intenção que ditou esta publicação e ao espírito que norteou a sua preparação, como por constituírem também um inegável contributo para a sua

valorização. Assim, e para manter uma perspectiva histórica, a colectânea abre com o último soneto de "Guirlande Pour Louis Braille", uma série de dez sonetos escritos por Firmin Le Guével em homenagem a este genial inventor, algum tempo depois da sua morte. A finalizar encontram-se os outros dois textos de autores estrangeiros. Um, na forma de carta aberta a Luís Braille endereçada pelo espanhol Pedro Zurita, em 1996, de Montevideu, no decurso da realização de um Fórum para a Alfabetização promovido pela União Mundial de Cegos. Pedro Zurita é uma personalidade bem conhecida em todo o mundo, visto ter sido Secretário-Geral desta Organização Internacional desde a sua fundação, em 1984. Anteriormente, já havia exercido idêntico cargo durante muitos anos no Conselho Mundial para a Promoção Social dos Cegos, uma das duas organizações que se fundiram, em Riade, em 1984, para criar a União Mundial de Cegos. O outro texto é constituído por um apanhado de fragmentos de dois artigos escritos pelo americano Tim Cranmer (1925-2001), que foi Presidente do International Braille Research Center e Director para a investigação na National Federation of the Blind, NFB, dos Estados Unidos. Foi um dos seus mais dinâmicos e esclarecidos impulsionadores no domínio da tiflologia4, um notável pensador e um destacado inventor no campo das ajudas técnicas. Escreveu em várias revistas, participou em grande número de conferências e congressos, proferiu conferências em várias Universidades, nos EU e no estrangeiro. Infelizmente, por motivo de doença não pôde corresponder a dois convites enviados de Portugal, que amavelmente aceitara. Um, da Comissão de Braille, para contribuir com o seu reputado testemunho para esta colectânea. O outro, da ACAPO, para participar na Conferência sobre "A Sociedade da Informação e a Deficiência Visual", que esta Associação promoveu em 19 de Novembro de 2001. Fez-se representar. Mas a Conferência em que esperava estar representado já não decorreu durante a sua vida. Quatro dias antes do início, em 15 de Novembro, a morte pôs termo à doença de Tim Cranmer.

A Comissão de Braille não pode deixar de manifestar aos autores e seus representantes, bem como à Association Valentin Haüy, o mais caloroso reconhecimento pelas colaborações recebidas, tão pronta e incondicionalmente prestadas, que tornaram possível a publicação desta sequência de testemunhos, bem demonstrativos da importância do papel que o braille continua a desempenhar para os deficientes visuais, como meio natural de literacia, capacidade imprescindível ao seu desenvolvimento e integração educacional, familiar, profissional e social.

GUIRLANDE POUR LOUIS BRAILLE

Firmin Le Guével

X

Braille ainsi ne goûta, du festin de la vie,Que des mets par les autres dîneurs repoussés:Le jour, béni à peine, ôté aux yeux blessés;Une existence austère et jusqu'aux bords remplie;

Et, pour en voir finir les jours si tôt passés,Quelque chambre anonyme en une infirmerie;Enfin la tombe étroite et pas souvent fleurieDans l'enclos villageois, parmi ses trépassés.

Mais, sachant où trônait l'unique récompenseQu'eût jamais ambitionnée son espérance,De la gloire d'en bas il dédaignait le lot.

Elle veillait pourtant, débitrice fidèle,Et c'est son vol qui court lui porter d'un coup d'aileLa bénédiction secrète des yeux clos.

I - JOSÉ ALBERTO LEITÃO BARATA

Nasceu no começo da década de 50. Após um grave descolamento de retina que lhe sobreveio quando frequentava a 3ª classe, iniciou-se no braille com nove anos no Centro Infantil Helen Keller. Professor de História no Ensino Secundário há cerca de 25 anos, nutre uma paixão especial pela investigação histórica, particularmente no domínio da Expansão Portuguesa.

OS PONTINHOS DE UMA VIDA

Para mim, o braille teve um rosto e um nome. Deveria talvez antes dizer que, para mim como para tantas outras crianças da minha geração, o braille teve um perfume próprio, uma voz meiga; foi uma presença, uma mão amiga que soube conduzir as nossas sobre aquele emaranhado confuso de pontinhos que se amontoavam na superfície rugosa do papel. Para mim, como para elas, o braille chamou-se Déline; Dona Déline.

Todas as manhãs lá estava ela, a dona Déline, à nossa espera. Sentava-se connosco à mesma mesa, naquela sala grande, iluminada por três imensas janelas que se rasgavam sobre o verde das árvores do jardim. Nunca se zangava; nunca levantava a sua voz, (uma voz fresca e doce que soubera cantar, quando jovem), mais do que uma senhora deve fazê-lo; dona Déline era uma senhora.

Um pontinho é um a; Dois já fazem um b. E já dava para escrever aba. E se fossem os seis pontinhos, todos juntos, era um e agudo; e já se podia escrever bébé!

O problema era só que, para se poder ler da esquerda para a direita, tinha que se escrever da direita para a esquerda; e lá ficavam os pontinhos todos ao contrário! Mas não era nada que não se pudesse aprender, com um pouco de paciência... Por isso: ao trabalho!...

E lá voltava o ruído monótono dos ponsons (dona Déline disse sempre em Francês; e tinha razão, que punção5 não é palavra que se ensine a uma criança!), furando o papel para dentro dos buraquinhos das pautas6, sobre a mesa: tuk, tuk, tuk... E os dedos iam aceitando, com o tempo, aquela aspereza, compreendendo a linguagem dos pontinhos que começavam a agrupar-se, obedientes, em letras primeiro, em palavras depois, desembocando por vezes em frases, em ideias. Lentamente, regressando quantas vezes atrás, para abarcar o tamanho todo das palavras mais compridas, iam os dedos tentando abrir caminhos entre as linhas que começavam, finalmente, a ser rectas.

E, no entanto, aquela palavra braille, não fora fácil de pronunciar, lá em casa; sei-o agora; ou melhor: posso adivinhá-lo, hoje, que sou pai, por minha vez. Como deve ter

sido comprida aquela tarde em que a professora chamou a mãe à escola, para lhe dizer que o garoto parecia mostrar algumas dificuldades na leitura; que, talvez estivesse a perder a visão... que convinha avisar o médico... Depois, as consultas multiplicando-se; os meses passados em casa, os olhos tapados, como que para tentar guardar lá dentro a luz que parecia querer escapar-se, numa procura desesperançada de evitar o que se adivinhava: o descolamento da retina; (é curioso como esta expressão ainda hoje me soa estranha, como se não tivesse nada a ver comigo!)Depois, foi a viagem ao estrangeiro; a operação; aquele tempo todo longe da escola, a saudade dos amigos... E, ao regressar, a decisão que tinha que ser tomada: Era melhor transferir desde logo a criança para a sala do braille; a adaptação seria simples; afinal a escola era a mesma, era apenas uma questão de mudança de sala!

Para mim, foi verdade: foi tão somente entrar na sala de Dona Déline; a tal, das janelas grandes, dando para o verde do jardim. Lá em casa, deve ter sido mais do que isso: o miúdo ia aprender braille... Já não se podia fechar mais os olhos: atrás da palavra braille seguia, de perto, aquela outra, mais curta e portuguesa: cego; como deve ter custado a pronunciar, a princípio...

Mas, afinal, não há nada a que uma pessoa se não habitue... Nem que seja por amor... Ora, por sorte minha, (que sorte a minha!), era a minha mãe dessas pessoas que, falando pouco em amor, têm o jeito de o praticar todos os dias, mesmo sem dar por isso; o jeito, e a inteligência, que também é uma coisa que convém que se tenha!

E assim, com inteligência e amor, lá se foram abrindo as várias portas: depois da da sala de braille, muitas outras. Algumas provações chegariam ainda. Por exemplo: a bengala, foi muito mais difícil do que o braille... E, quem diria, hoje é uma boa amiga, vai sempre à minha frente, onde quer que eu vá! Mas houve tempos em que tive medo, em que senti vergonha, em que a escondia sempre que pudesse! Pois é: nem sempre é fácil fazer uma amizade... Quanto ao braille: esse, mostrou desde logo o que podia fazer por mim: lembro-me ainda bem da alegria que foi poder levar para férias o meu primeiro livro. Podia agora sentar-me ao lado da minha irmã, nos degraus daquelas escadas compridas (eram 23, os degraus; sempre gostei muito de números!) que levavam à varanda, por onde se entrava para a cozinha; ela lendo o seu livro; eu, lendo o meu! Nunca esquecerei o título: O Romance da Raposa; do enredo, francamente, já não me lembro; é que o desgraçado do Aquilino ia desenterrar às profundezas da língua portuguesa cada palavra mais comprida e complicada! Na realidade, creio que não escrevia para crianças da minha idade, muito menos iniciando-se no braille; mas... o que fazer, se era a única coisa que havia disponível, lá na imprensa do Porto7?! Não sei, de facto, o que aconteceu à raposa; mas lembro-me ainda bem da alegria que foi chegar ao fim da leitura, virar a última página do livro!

Muitos outros livros se seguiriam; e depois, vieram as máquinas de escrever: a de braille8 e a outra; e o tuk tuk dos ponsons transformou-se num mecânico e rápido tchak tchak. E depois, chegou a cassete, e o livro gravado; tão prático, tão sonoro... boa parte dos livros das livrarias, esses livros que eu tanto gostava de tocar, de sentir, de folhear e de cheirar, estava agora ao meu alcance; podia agora ouvir três livros, por cada um que lia dantes!

E estava quase a esquecer-me do meu velho braille, quando recebi, da minha namorada, (a primeira namorada), uma das mais doces prendas que alguém jamais me deu.

Estava quase a chegar aquele dia em que ela ia partir. Ia atravessar o mar, regressar à sua terra; e eu sabia, ela suspeitava, que jamais regressaria; mas nenhum de nós queria dizê-lo. Foi então que me pediu que lhe ensinasse a escrever em braille. E dizia: Depois, aquelas cartas muito grandes, em que eu contar tudo o que for acontecendo, pedes à tua irmã que te as leia; mas, de vez em quando, mando-te uma mais pequenina, em braille, só para ti!

E um dia chegou a primeira das tais cartas mais pequeninas. Fechei a porta do quarto, sentei-me em cima da cama, e comecei a ler a primeira das duas páginas: dearest ze9...; (era verdade: tinha-me esquecido de lhe ensinar a escrever as letras acentuadas!) No fim, as lágrimas puderam correr à vontade, sem testemunhas... Tínhamos ambos aprendido, (em braille ou a negro, pouco importava), uma nova palavra: a saudade!

Ainda guardo essa primeira carta de amor; ainda a releio, de vez em quando; mas os pontinhos dearest ze... estão quase apagados... O tempo passou; muito tempo; com o tempo, tenho vindo a ler cada vez menos em braille; quase já não escrevo. É agora ao computador, que redijo estas linhas, para recordar... Mas... se já não escrevo; se já mal leio, é no entanto ainda em Braille que penso... e será sempre! As minhas ideias serão sempre registadas, na minha cabeça, em pontinhos. Os pensamentos dos outros, podem, eventualmente ser chatos; os meus, serão sempre em relevo! Por isso, ainda hoje, cada vez que penso, estou cantando um hino de gratidão: quantas dívidas, que nunca poderei pagar... para com minha mãe; para com dona Déline; para com a minha boa Wilma, também; para com tantas outras pessoas; tantas, que não caberiam nestas linhas... Ah, sim... para com Luís Braille, sem dúvida, também!

III - ANA MARIA DE ALMEIDA FONTES

Começou a aprender braille aos sete anos, no Instituto António Feliciano de Castilho, onde concluiu o 5º ano do liceu. Completou num colégio os estudos liceais e licenciou-se em Filologia Germânica. Dedicou-se depois à docência vindo a transferir-se mais tarde para os Apoios Educativos.

CARTA ABERTA A LUÍS BRAILLE

Caríssimo Sr. Luís Braille,

Sou há mais de quatro décadas utilizadora assídua do sistema de leitura e escrita em relevo que o senhor inventou e é hoje conhecido no mundo inteiro pelo seu nome. Suponho que vai gostar de saber quanto ele tem influído na minha vida.

Cega de nascença, comecei a aprendê-lo aos sete anos e meio. Corria o ano de 1954. Naquela época, mais ainda do que na sua, a idade de sete anos marcava uma viragem histórica na vida de quase todas as crianças: passávamos sem transição da disciplina mais ou menos flexível vigente no seio da família para o cumprimento rígido de horários impostos pela escola, e o tempo das brincadeiras descontraídas via-se grandemente encurtado em favor de tarefas intelectuais sedentárias. Os espíritos esclarecidos dos anos 60, justiça lhes seja feita, já sustentavam que se devia ministrar aos alunos cegos os mesmos programas de todas as disciplinas (excepto desenho) em vigor para os outros; mas entendiam que tanto os métodos de ensino como o ritmo das aulas tinham de divergir dos praticados com educandos cujo sentido mais solicitado é precisamente o da vista. Consagravam, portanto, a escola especial como o lugar próprio para instruir e educar eficazmente portadores da mesma deficiência.

Em nome deste entendimento, durante cerca de um século muitas crianças foram, como eu, transplantadas do seu habitat rural para um edifício que passou a servir-lhes de lar na cidade grande, distante e estranha. A excitação das novidades anestesiou-me contra a dor da separação, mas seria consolo de pouca dura: com o tempo foram rareando, devoradas pela rotina e pela contrariedade da clausura. As últimas horas em casa no fim das férias em breve se me tornaram um suplício! A despedida sempre me foi difícil. Sentia-me partida em duas; a comida enrolava-se-me na boca por causa das lágrimas retidas a custo. Mas passado o momento crítico do adeus, vinha-me à memória o convívio inigualável com as minhas amigas e tudo voltava à normalidade.

Uma normalidade austera e peculiar à qual não podíamos fugir, pois aqui em Portugal só existia uma escola para meninas deficientes visuais. Nos internatos da época os alunos eram todos do mesmo sexo, com pouca liberdade, sujeitos a regulamentos autoritários. Pensava-se que a escola servia em primeiro lugar para aprender, só depois para conviver. O lema era adquirir conhecimentos o melhor possível, pelo que os métodos de ensino apelavam sistematicamente às nossas faculdades intelectuais e ao nosso espírito de sacrifício. Como o saber livresco prevalecia sobre o contacto directo com a realidade, éramos obrigados a memorizar muitas frases, até sobre factos que nem sempre compreendíamos. A sala de aula e o recreio eram dois compartimentos quase estanques.

Nesta conjuntura pedagógica, a minha iniciação ao braille naquela escola onde muitas das professoras tinham sido alunas foi a doer! Em vez da embalagem de ovos, das bolinhas e da régua com saliências móveis hoje usadas para que as crianças apreendam mais facilmente a posição relativa dos pontos, a mim mostraram-mos logo, reais, em tamanho natural, embora substituindo o papel por folhas de lata a fim de os tornar mais perceptíveis aos meus dedos ineptos.

Decorar o código foi pêra doce, por ser pequeno e lógico. Escrever custava mais: doíam-me os músculos do braço direito, de repente submetidos a tanto esforço. Quando reparei que tinha de escrever à esquerda o que lia à direita, e vice-versa, gerou-se uma

enorme confusão na minha mente com problemas de lateralidade ainda por resolver. E como faltava à minha mão direita perícia para picar os pontos no sítio certo, quando a professora andava ocupada longe de mim lá ia, sorrateiro, o dedo indicador da esquerda juntar-se aos da direita para os conduzir. Contente com os meus progressos, a professora deu-me textos para copiar que incluíam, além das letras, pontos para mim difíceis de discernir porque lhes ignorava o significado. Depois, intrigada com a minha lentidão e com os erros que eu dava, não tardou a apanhar-me em flagrante. Que remédio senão voltar à primeira forma, sob vigilância mais severa, ver-me atrasar um ano em relação às colegas da turma. Mal sabia então que a luta penosa contra aqueles obstáculos me estava a desenvolver o tacto, as capacidades intelectuais e a força de vontade.

Porfiei, alcancei. Recordo a alegria que senti ao começar a ler o livro da primeira classe! O Sistema Braille deu-me acesso à arte dos sons, indirectamente ao tricô e a outros trabalhos manuais. Passou a servir-me não só para o estudo, como também para o lazer. Nas férias escrevia longas cartas a uma amiga que não tinha rádio contando-lhe o enredo de peças de teatro que eu ouvia. A correspondência distraía-me, as revistas despertavam-me curiosidade, ganhei e perdi em jogos de cartas e dominó, esqueci por instantes a realidade absorta em novelas vindas do Brasil.

Por essa altura já a escrita de todas as palavras na íntegra me era morosa e fatigante de mais para tudo o que eu queria comunicar. Então, incentivada pelo exemplo de colegas mais adiantadas, lancei-me à conquista da estenografia10. Eu crescia: aprendi francês, inglês, entrei nos meandros da álgebra e da geometria. Estes métodos, a que me submeteram desde a infância, adestraram-me para dactilografar satisfatoriamente logo no sexto ano de escolaridade, apesar de a máquina não me dar nenhuma informação sobre o que estava a escrever.

Aos 19 anos, no centro de reabilitação, conheci a máquina de escrever braille. Mais rápida do que a pauta, de facto, mas um luxo que só quando estudante universitária me foi dado possuir, aliás como oferta. Com a pauta frequentei os dois últimos anos do liceu num colégio normal; (fui para filologia germânica porque a professora não sabia como ensinar-me o alfabeto grego); com a pauta tirei apontamentos nas aulas da faculdade (nunca ousei levar a máquina para não incomodar com o barulho que faria), já em abreviaturas11 inglesas e alemãs. O aprendizado de dois códigos estenográficos diferentes quase em simultâneo impôs-se-me logo no colégio. Para não fazer esperar a turma escrevia sempre em contra-relógio, em papel fino; e mesmo assim os meus apontamentos resultavam cheios de lacunas. O senhor concorda certamente que uma pessoa cega, por mais veloz que seja a escrever braille não consegue, sem usar abreviaturas, sequer aproximar-se de uma outra a escrever a tinta. O investimento que fiz nesse estudo extra foi ínfimo comparado com o lucro: melhores apontamentos, livros e livros que bibliotecas estrangeiras me emprestaram anos a fio, salvando-me assim muitas vezes de recorrer à alternativa precária das gravações.

O meu sonho de menina encaminhava-se para a sua realização. Sabia que, se enquanto estudante o que fizesse e não fizesse me afectaria só a mim, quando fosse professora o meu empenho e desempenho repercutir-se-iam sobre seres humanos que me competia ajudar a crescer e não deviam ser prejudicados pelas minhas limitações. Para enfrentar este tremendo desafio joguei todos os trunfos.

Antevia muitas dificuldades, mas não tantas quantas as que se me depararam. Fui apanhada de surpresa pela teoria então no seu auge de que o professor devia explicar o vocabulário novo gesticulando, desenhando, expondo gravuras no quadro, criando situações na própria língua estrangeira, só em último recurso na língua materna. Parece óbvio quanto a prática desta metodologia me era hostil; ainda assim foi-me prescrita pelos orientadores de estágio.

Esta moda passou, como todas as modas, e eu corria por gosto. Mas ficou a barreira da comunicação escrita entre os meus alunos e eu, materializada nos trabalhos deles, na minha dificuldade em usar o quadro, nas mudanças frequentes de manuais... Ao fim de 15 anos cansei. Os seus contemporâneos que queriam manter a escrita em relevo de caracteres vulgares desvalorizando a sua como factor de segregação ver-se-iam aqui retratados. Só para os fazer sorrir, diga-lhes que em tempos me deu gozo poder deixar tranquilamente papéis escritos assim em cima da secretária, inclusive cartas de amor.

Chegada à idade adulta, a obtenção de uma maior autonomia implicou que os seis pontinhos se instalassem definitivamente no meu dia-a-dia: com eles faço agendas, identifico papéis escritos a negro, documentos, frascos, cassetes, etc., o que faz a diferença entre um arquivo e um caos.

Sabe, Sr. Braille, agora as crianças cegas sem outra deficiência raramente vão para a escola especial. Vigora o pressuposto de que afinal é melhor para elas frequentar escolas normais, apoiadas por docentes com preparação específica e por centros de produção de material didáctico. Trabalho num deles. Graças ao avanço impressionante da tecnologia dispomos agora de uma máquina sofisticada a que chamamos computador, que funciona com base numa ciência para cuja designação inventámos a palavra informática. Tem um teclado semelhante ao da velha máquina de escrever; mas podemos ligar-lhe um sintetizador de voz e/ou um terminal braille que nos transmitem o que escrevemos, além de outras informações visíveis num ecrã. O computador levou o seu código de origens humildes para a alta roda das impressoras, veja só! E possibilita aos mais afortunados de entre nós tirar apontamentos em blocos de notas electrónicos - uma aliança feliz entre a máquina tradicional e o progresso tecnológico. Foi necessário juntar dois pontos aos seis originais12, é verdade, mas o princípio básico permanece há 150 anos inalterado.

Se por aí lhe disserem que as novas tecnologias dispensam as pessoas cegas de dominar o seu Sistema, perdoe-lhes. Eles não sabem o que dizem. Na verdade ambos se complementam, para nosso maior benefício. Por outro lado, a pauta e a régua terão sempre o seu lugar próprio mesmo nesta nossa era tecnológica: podem ser úteis em qualquer lugar, a qualquer momento, mesmo a pessoas pouco instruídas, dificilmente se estragam, e estão ao alcance de todas as bolsas, o que já não acontece com os equipamentos informáticos.

Não lhe quero esconder que o seu invento vem sendo mal tratado ultimamente. A carta já vai longa para lhe explicar porquê. Asseguro-lhe, contudo, que não é por se ter tornado obsoleto.

Em suma, não consigo imaginar o que seria de mim sem este processo funcional e autónomo de ler e escrever que lhe devemos. Espero que esta frase simples seja uma forma eloquente de lhe dizer "bem-haja, Sr. Luís Braille", pelo valioso legado que deixou nas nossas mãos.

IV - FERNANDO MANUEL ABREU MATOS

Nascido nos anos 60, fez o primeiro ciclo usando a leitura/escrita em tinta. O agravamento de um glaucoma congénito forçou-o a iniciar-se no braille pelos 11/12 anos, em regime de Ensino Integrado. Licenciado em História, é professor do Ensino Secundário há 16 anos tendo também cumprido já dois mandatos integrado no Conselho Executivo da sua escola. Foi membro da Comissão de Braille.

Victor Ballu, um espírito criador jamais diminuído pela cegueira que nele cedo se fez presente, declarou um dia ao Arcebispo de Tours que a visão era uma janela pela qual, ante tantas solicitações da vida, não havia tido tempo de olhar. Pela mesma época, Balzac concluía que o mundo lhe pertencia porque o conhecia. Em essência, ambos enunciam a mesma lei universal: que o mundo se desvenda para quem quer e pode desvendá-lo. Todavia, Balzac olhou profusamente o mundo por essa janela da visão; Ballu, "sem tempo" para essa contemplação, fez das suas mãos aquilo por que seria levado na direcção do que lhe faltava. E no percurso delas encontrava-se já, desde 1829, o Sistema Braille, esse instrumento de descodificação do mundo, legado aos "desprovidos de tempo" como Victor Ballu, pelo mais insigne dos filhos do pequeno município de Coupvray, a quem a família dera o nome de Louis.

Eu era ainda criança quando alguns sinais, primeiro discretos e depois exuberantes, indiciaram que, também eu, não iria dispor de tempo para me debruçar na janela da visão. As minhas mãos foram, por isso, despertando para a revelação do passado e a construção do futuro. Então, no mesmo instante em que os cravos floresciam na boca das armas numa promissora manhã de Abril, anunciando uma Primavera tanto tempo protelada, eu descobria, deslumbrado, as 63 combinações derivadas do exagrama ideado por Louis. Ainda hoje recordo o primeiro livro que, impresso nesses pequenos pontos, se foi revelando ao indagador toque dos meus dedos: Contos da Montanha, de Miguel Torga. Talvez daí o especial apreço que, ainda agora, conservo pela obra desse homem que a Universidade formou médico e a sensibilidade tornou escritor.

... E esta descoberta foi já não só uma janela que se abriu mas todo um horizonte que se rasgou: vivi as aventuras das jovens personagens, então da minha idade, dos livros de Enid Blyton; acompanhei Maigret na investigação dos enigmas dos contos de Simenon; percorri com Sandokan os mares e as florestas do Oriente nas histórias de Salgari. Pouco a pouco, por esse horizonte começaram a chegar-me também ecos das descobertas de Leonardo, de Galileu, de Lavoisier e de Darwin, das reflexões de Rousseau, de Marx e de Sartre, das criações de Camões e de Neruda, de Eça, de Hemingway e de Jorge Amado.

Exilado, Manuel Alegre escreveu, a propósito das mãos, que nelas começa a liberdade. 150 anos depois da morte do inventor do Sistema Braille, estas palavras possuem para mim um significado próprio, preciso: através dos pequenos cumes desses pontos concebidos por Louis Braille, a quem Enrique Elissalde13 gostava de exaltar mais como Libertador do que como simples benfeitor dos cegos, elas me conduziram à Cidadania, a ser Pessoa, a ser Eu. E por esse caminho descobri ainda, como há anos afirmei a Ana Marques Gastão (DNA de 6-11-1999), que "ver é importante, mas nem sempre se pode dizer fundamental".

V - CLAUDINO ARIEIRA PINTO

Iniciou a aprendizagem do braille com nove anos no Instituto de S. Manuel transferindo-se posteriormente para o Instituto Branco Rodrigues. Licenciou-se em Direito e possui habilitações musicais médias. Exerce funções numa biblioteca e tem também desenvolvido, entre outras, diversas actividades no campo da música.

UMA VIVÊNCIA, UMA EXPERIÊNCIA

Tenho cinquenta e três anos e sou portador de cegueira congénita. Ao longo da minha modesta explanação vou tentar demonstrar como o Braille fez parte da minha vida e de como ele foi marcante para os meus principais sucessos.Nasci de pais agricultores numa terra rural do alto Minho e foi graças à intervenção de um pintor/médico de renome e de sua esposa, amigos da família, veraneantes habituais naquela região, que ingressei no Instituto de S. Manuel, no Porto, tinha eu oito anos de idade.

Nessa Instituição, pedagogicamente regida por Albuquerque e Castro14, comecei pela aprendizagem do braille, sem possuir qualquer indício de escolaridade. Ainda me lembro que o primeiro estojo didáctico que me apresentaram foi um tabuleiro com seis cavidades, dispostas tal qual os seis pontos do dado (configuração braille), em que, com a ajuda dos Professores Fernando e Delfim, eu ia contando, dispondo, tirando e alterando a posição de outras tantas rodinhas a que chamavam "bugalhas".

Passei depois para os "preguinhos", espécie de pitons que eram colocados numa régua que continha várias cavidades tipo células braille, onde me era aconselhada a montagem de vários "puzzles", sempre na mira de uma aprendizagem progressiva do Sistema Braille. Seguiu-se a designada "folha dos pontos", uma liga metálica onde o Sistema evoluía pedagogicamente.

Passado este estádio, foram-me apresentadas, sucessivamente, mais 23 folhas igualmente metálicas e 36 de papel, todas elas evoluindo em frases e palavras, tudo com um sentido pedagógico previamente definido.

Foi então que fui posto perante o pequeno livro escrito em braille, contendo simples e pequenos trechos. Simultaneamente, foi-me apresentada a pauta braille, e foi-me ensinado o seu manuseamento. Confesso que nesta aprendizagem experimentei algumas dificuldades, tendo em conta a forma de escrever na pauta, ao contrário da forma como se lê, com o inconveniente de não se poder ler de imediato o que se vai escrevendo.

Ultrapassada esta dificuldade, eu próprio promovi o interesse pessoal por esta forma de escrita, lendo e escrevendo incansavelmente, entusiasmado pelos conhecimentos normais de escolarização que me começavam a ser entretanto ministrados, como o uso do cubaritmo15 e a matéria atinente ao primeiro ano de escolaridade.

Foi na segunda classe que me foram acrescentadas a aprendizagem da Estenografia Braille e a respectiva máquina de escrever, disciplinas que passaram a integrar-se gradualmente no trabalho de escolarização normal, dele fazendo parte integral e inseparável.

Na terceira classe passei a receber aulas semanais do sistema designado por "Ballu"16, como forma de me comunicar com as pessoas com visão e foi com esse tipo de escrita que fiz a avaliação da terceira classe.

No quarto ano de escolaridade foi-me adicionado mais o ensino da máquina dactilográfica em tinta, em aulas que recebia durante duas horas, bi-semanais.

Nesse mesmo ano foram-me ainda acrescentadas a aprendizagem da Musicografia braille17 e do programa de conhecimentos musicais para Admissão ao Conservatório de Música do Porto, onde fui integrado no ano seguinte.

Apesar da introdução da máquina dactilográfica normal, na minha vida de estudante, os meus mestres Fernando Silva e Luís Ribeiro nunca me consentiram, a mim e aos meus colegas, qualquer desvio do braille, onde este novo instrumento tinha um papel meramente complementar. A título de exemplo, era-me proposto, nas provas escritas públicas, a elaboração das mesmas primeiro em braille, passando depois a vertê-las para tinta. Foi cumprindo integralmente estas regras que fiz as provas públicas do exame da quarta classe e de Admissão ao Liceu, fórmulas que não abandonei enquanto estudante liceal.

A eficiente aprendizagem que tive do Sistema Braille fizeram com que ganhasse o traquejo e a destreza necessárias para escrever na pauta muitos dos livros que serviram para o meu ensino e de muitos dos meus colegas coevos e vindouros, pois a estereotipia18 e a impressão em Braille estavam a dar os seus primeiros passos em Portugal, decorria então o final dos anos cinquenta e o princípio dos sessenta do século passado.

A minha vinda para o Instituto Branco Rodrigues, na região de Lisboa, que se deu em 1964, onde me mantive durante três anos, não alterou significativamente este panorama, no qual o braille continuava sendo a espinha dorsal na minha aquisição de conhecimentos. A preparação que recebi no Instituto do Porto deu-me o estofo para suportar a mudança de métodos de uma e de outra Instituição, a segunda já mais vocacionada para outros métodos inovadores de aprendizagem do braille e já assinalavelmente receptiva ao uso dos meios áudio, através de leitura gravada, a que tive que me ir adaptando, não sem alguma resistência.

Após a saída do Instituto Branco Rodrigues, devo referir e reconhecer que o gravador começou a partilhar com o braille os meios de aquisição dos meus conhecimentos e de ocupação do meu lazer literário. É óbvio que tal fenómeno se deu por força das circunstâncias, sob pena de ver limitadas as minhas fontes de informação. Mas tal

procedimento nunca quis de modo algum significar qualquer propósito de postergar o uso do braille, como fonte principal da minha formação e informação.

Mesmo com a entrada na Faculdade de Direito esta forma de escrita foi basilar na minha formação académica, porque até aquilo que recebia por fonte sonora eu convertia em apontamentos braille e são prova disso os inúmeros "dossiers" que guardo desse tempo. Não resisto por isso a dar conta de um episódio passado entre mim e um professor da referida Faculdade: Estava eu no quarto ano e tinha adquirido meses antes uma máquina estenodactilográfica braille, em que se escreve sobre fita de papel. Ao ver a desenvoltura com que manipulava esse equipamento, o mestre dirigiu-se-me e instou-me a ler-lhe os apontamentos que colhera da sua prelecção. Ao ver que os mesmos reflectiam "ipsis verbis" o que expusera, depois de manifestar a sua surpresa perante os alunos presentes, pediu-me que lhos cedesse para uso próprio e a fim de os integrar nos apontamentos impressos da disciplina que habitualmente coligia, facto que me impressionou, uma vez que, por norma, era eu quem recorria aos colegas de curso em busca dos apontamentos que estes extraiam das aulas.No plano profissional, tenho que sublinhar que o braille foi e continua a ser a minha enxada de trabalho, pois ele ocupa grande fatia da minha actividade laboral na Área de Leitura Especial da Biblioteca Nacional, como Técnico Superior, em particular na revisão de texto braille. Dele faço amplíssimo uso, mesmo com recurso à Informática, inclusivamente na vida doméstica e nos outros ofícios colaterais que desenvolvo, com relevo para a música, actividade que nunca pus de lado e de cujo magistério recebi formação académica geral.

Em conclusão, direi que considero que foi altamente benéfica a forma como esta aprendizagem me foi ministrada, não obstante a carga lectiva que isso implicou, nem a "pseudo-desintegração" de que foi carreada, tida pela mais eficiente ao tempo. Todavia, não pretendendo pôr em causa métodos actuais bem balizados do seu magistério, assentes em pressupostos académicos estruturados, que existem de facto, questiono-me se realmente estarão tais técnicas a ser aplicadas correctamente em Portugal?

O braille é essencial para quem carece inevitavelmente da sua utilização. É mau trabalho utilizar sedativos para a sua não utilização, pois que, inexoravelmente, ele ainda é, sem alternativa, o sistema de escrita dos cegos. Esconder esta realidade é contribuir inapelavelmente para o analfabetismo de um importante extracto social da população portuguesa, que é constituído pelas pessoas desprovidas de visão. Todavia, para quem seja possível oferecer outra alternativa (vg. amblíopes), proporcione-se-lhe, mas não se desalfabetize.

Finalmente, direi que, sendo o braille indiscutivelmente o sistema de escrita dos cegos, em vez de se criarem subterfúgios para não se assumir esta realidade, é absolutamente imperioso que se ponha em prática uma política que implemente e incentive o seu magistério em moldes metódicos e programados junto de professores, sobretudo de educação especial, e ainda dos alunos cegos, a ponto de constituir para aqueles "especialidade", constando para tal como cadeira optativa nos "curricula" das Escolas Superiores de Educação. O uso desta forma de escrita deve ser divulgado inclusivamente junto das populações, começando pelos familiares das pessoas cegas.

Como eu gostaria que, num futuro próximo, sem qualquer inibição, sem qualquer constrangimento, viesse a ser tão natural um cego ler o seu livro num lugar público, como qualquer cidadão normal lê o seu jornal em idênticas circunstâncias!

VI - GRAÇA MARIA MARTINS DE BRITO GERARDO

Cega desde os três meses, iniciou-se na aprendizagem do braille com oito anos no Centro Infantil Helen Keller. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante de estudos portugueses e franceses. Actualmente é professora dos ensinos básico e secundário, contando já mais de 15 anos de docência.

LOUIS BRAILLE: 150 ANOS DEPOIS

ACRÓSTICO

LOUIS BRAILLE:Ofereceste-nosUma vastaImensidão deSinaisBemRepresentadosAtravés daImpressão Braille, queLargamente nos deuLiberdade paraEstudar e saber!

LOUIS BRAILLE: 150 ANOS DEPOIS

SENTIMENTO

Foi por ti, que um dia,ao ver-te no meu horizonte traçado,deixei de ser "ceguinha",ganhei autonomia,cresci diferente,tornei-me igual e...hoje sou Graça Gerardo!...

LOUIS BRAILLE: 150 ANOS DEPOIS

TESTEMUNHO DE GRATIDÃO

Louis: Foi de ti que aprendi a viver. Não me ensinaste só o Código braille que me permitiu comunicar: primeiro com os professores, depois com os colegas, no Centro Infantil Helen Keller, onde fiz a instrução primária.

Criaste-me e abriste-me um mundo onde podia também comunicar com os outros, ler o que escreviam, sair da minha concha, conhecer outras línguas, outras culturas, outras vivências...

Deixaste-me ver muito mais longe e isso fez-me sentir mais capaz, mais apta a conversar com os outros sobre temáticas diversas, porque o teu alfabeto me permitia recolher e reter informação variada.

Disseste-me também que para ensinar e captar a atenção dos meus alunos, tinha de ser capaz de despertar a sua simpatia. Hoje são alguns deles que me pedem para aprenderem o Sistema por ti criado. E eu sinto tanto orgulho em ensiná-lo e lhes alargar ainda mais os horizontes culturais!...

Vês, Louis: ainda hoje, cento e cinquenta anos depois, despertas a simpatia e o desejo de saber naqueles que te conhecem. Os meus alunos encontraram o teu alfabeto na Internet. Sabes o que é? Uma rede de comunicação ainda maior que a tua! Se vivesses hoje ias ter muita vontade de a utilizar. Sim, porque sei que nunca te sentiste "cego"; sempre foste um ser virado para o futuro, com uma visão mais ampla que os que à tua volta viam... Mesmo sofrendo com a doença e as más vontades que teimavam em não querer oficializar o teu alfabeto - que humildemente dizias dever ao teu amigo Hipolyte -, nunca deixaste de trabalhar em prol dos cegos do teu e do meu tempo...

Obrigado, Louis, por isso: pelos teus trinta anos de investigação, pela tua humildade devotada, pela tua força de espírito, enfim, por me teres ajudado a ser mais independente, mais feliz por existir e, consequentemente, mais realizada como pessoa cega e como mulher, numa sociedade tão exigente como aquela em que vivo, cento e cinquenta anos depois de ti.

VII - JOSÉ ANTÓNIO LAGE SALGADO BAPTISTA

Começou a aprender braille aos nove anos no Instituto de S. Manuel. É licenciado em Filosofia e redactor de "Poliedro" e "Rosa-dos-Ventos", revistas editadas em braille pelo Centro Prof. Albuquerque e Castro da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Em "Poliedro" tem-se evidenciado pelo empenho em abrir espaço à afirmação e divulgação da Tiflologia. Foi membro de diversas Comissões de Braille.

O BRAILLE E O SENTIMENTO DE AUTO-ESTIMA

RECORDAÇÕES DA INFÂNCIA. - Nascido numa família numerosa, meus pais depressa descobriram algo de anormal nos olhos deste filho. Não os acabrunhou a alarmante descoberta. Procuraram o oftalmologista, mas não aceitaram o veredicto "Está cego e não tem cura".

Era no início dos anos 40. Para descargo de consciência ou em busca da última esperança, os especialistas do Porto foram quase todos consultados. Os relatórios coincidiram...

O tio Lage, pediatra em Lisboa com consultório vizinho do de Mário Moutinho (sócio da Associação Promotora do Ensino dos Cegos), a par dos relatórios e instado a aconselhar sobre outras consultas, decidiu intervir. Face aos relatórios, o tio entendeu que era hora de aceitar os factos. E sublinhava que os cegos podiam ser ensinados e que havia escolas em Lisboa e no Porto. Além disso, lembrava o caso da criada cega da casa da bisavó e o da irmã de minha mãe, que sempre sofrera dos olhos. Portanto, o assunto tinha saída.

A nossa casa era grande - três andares mas sem quintal. Nós, os filhos e alguns vizinhos, brincávamos por lá, enquanto a mãe e a criada lidavam. As escadas, sem cancelas, eram quase todos os dias motivo de saltos e corridas. No Verão havia a aldeia e vida ao ar livre. Aí sofri pequenos acidentes, em geral saldados por curativos do pai e repreensões da mãe, zangada por eu não ter cuidado ou ser teimoso, "como os rapazes da rua", indo sozinho ou andando a correr onde não devia.

Quando as irmãs mais velhas já sabiam ler, às histórias contadas pela mãe vieram juntar-se as lições dos livros. Comecei então a ouvir que iria estudar para o Porto.

Brincávamos a tudo e, é claro, às escolas também. A "professora" arranjava-me sempre qualquer coisa para fazer. Foi assim que soube o que é o desenho e aprendi a dizer a tabuada, alguns verbos e as medidas de comprimento, e me começaram a mostrar letras salientes em papel. Não conseguia conhecê-las, pois ainda não tinha ido estudar para o Porto; mas dizia-se que ia aprender bem, porque sabia-lhes o nome e ia-as juntando.

RECORDAÇÕES DO INSTITUTO. - Um dia meus pais foram ao Porto visitar o Instituto de Cegos. A mãe à noite contou que havia lá uma biblioteca, os rapazes passeavam pelos corredores e, na aula, um deles leu... leu... leu... Lia mesmo bem! Via-se que compreendia o que estava a ler. As letras, formadas por pontos em relevo num papel encorpado, eram diferentes das nossas. A irmã mais velha admitiu que na aula talvez só houvesse um livro de leitura que os alunos leriam, cada um por sua vez. Já no Instituto vi que todos os alunos tinham os seus livros. E os da 4ª classe tinham a carteira cheia até acima.

Pensei que quem escrevesse um livro podia, depois, escrever outros, os que fossem precisos. Aliás, havia lá um antigo aluno que se ocupava justamente disso. E tomei contacto com outro processo de escrita, também por meio de pontinhos, que os mais adiantados sabiam e os videntes podiam ler. (Ignorava-se o termo "normovisuais", e todos falavam de videntes, sem medo das conotações.) Ao fim de semana escreviam cartas à família. Também escreviam à nossa, por especial favor ou por acordos mais ou menos encobertos. Diziam que o tal processo se chamava "Ballu".

O que era só para nós, chamava-se "Braille" e reservava algumas surpresas: escrevia-se da direita para a esquerda e tinha coisas como "sinal de número"19 e "Abreviaturas". Mas tudo era natural ao fim de pouco tempo. Recordo, a propósito, esse dia de felicidade em que me entregaram a pauta e comecei a escrever. O professor, assim como me ensinou a colocar o papel e a pegar no punção, disse-me, enfaticamente, que os

pontos 1-2-3 eram do lado direito do rectângulo... E mandou-me encher uma página com letras de seis pontos. No fim do trabalho tinha desaparecido a sensação de estranheza.

Nas férias do Natal levei para casa folhas com texto para ir estudando. A mãe mandou identificar letras, ajudou a soletrar e reconheceu a "Cartilha Maternal". Outra vez, começou a perguntar salteado, andou para trás e para diante, repetiu e tornou a repetir. Por fim, concluiu que eu não estava a dizer nada de cor: mal ou bem, estava mesmo a ler. Pela Páscoa já levei a pauta e um livro de leitura.

A irmã mais velha aprendeu braille. A partir daí, e embora os pais gostassem de receber cartas em ballu, pude escrever sozinho para casa quando foi preciso e dizer, à vontade, o que ia cá dentro. Nas férias grandes foi um autêntico festival de cartas, que o pai subscritava, fechava e punha no correio.

RECORDAÇÕES DA ADOLESCÊNCIA E DA JUVENTUDE. - Nos anos seguintes, no Instituto e em casa, no quotidiano cada vez mais responsável, o braille continuou a dar-me pequenas e grandes satisfações. Eram cartas de jogar marcadas, cartões do loto, calendários desportivos, livros de leitura, fora de uso mas ainda interessantes, e revistas vindas do Brasil.

Frequentei o Conservatório, onde os alunos cegos se integravam sem restrições, graças à autonomia que o braille proporcionava. A biblioteca musical do Instituto tinha muitos livros vindos de França e fora também enriquecida com transcrições lá deixadas pelos antigos alunos. Aptos na musicografia braille, os alunos frequentavam cursos diversos, lado a lado com os colegas videntes. Na Composição, faziam em braille exercícios e provas de exame, ditando-os depois a uma pessoa com vista, para serem apreciados pelos professores e pelos júris. Isto pressupunha, dos alunos cegos, o conhecimento exacto da expressão gráfica da música.

Andei no Conservatório, mas as minhas motivações eram outras. Verificada a impossibilidade de prosseguir com "a mais bela das belas artes", fortaleceu-se ainda mais o apelo para explorar caminhos alternativos - aprofundar conhecimentos e ensinar crianças a título particular, ou estudar línguas estrangeiras, ou então (porque não?!) seguir o Liceu - a mais cara das aspirações... Havia dificuldades, sendo a principal a inexistência dos livros em braille. Esta falta deu-me consciência da enorme comodidade com que até ali estudara, devido ao trabalho que outros tinham feito; deu-me também vontade de os imitar, assegurando as condições de que agora precisava para continuar. Além disso, eram conhecidos casos de estudantes bem sucedidos nestes caminhos, porque estavam junto dos centros de acção tiflológica e tinham o respectivo apoio, porque se remediavam com livros diferentes dos adoptados ou porque transcreviam eles os livros de que precisavam. Escrevi a esses companheiros, alguns dos quais nem sequer me conheciam. Ajudaram-me com a sua experiência e o seu conselho emprestando-me generosamente, para cópia ou uso, o material braille de que dispunham.

Continuei os estudos. Copiei volumes e volumes, especialmente nas férias, e cheguei a transcrever textos e livros que não existiam em braille e me foram ditados. Nas lições, além deste material, utilizei obras pedidas a bibliotecas estrangeiras e tirei muitos apontamentos que depois organizei cuidadosamente. A laboriosa confecção do material em braille para estudo revelou-se duplamente compensadora. Por um lado, ia

assimilando a matéria enquanto escrevia, pelo que o respectivo estudo ficava facilitado. Além disso, em diversas ocasiões os meus livros e apontamentos foram emprestados a um punhado de companheiros, que tiraram deles o melhor proveito, dispensados do esforço que eu fizera. Numa altura em que o então Centro de Produção do Livro para o Cego20 ainda não publicava obras para o ensino liceal, valorizando-me e ajudando os outros a valorizar-se, sentia-me verdadeiramente participante no esforço colectivo.

O empenhamento em criar para mim as melhores condições e a perspectiva de amanhã o meu material servir a outros levaram a que me preocupasse com a perfeição. Esta preocupação, reforçada pela leitura da revista "Poliedro", viria a conduzir-me ao estudo e à familiaridade com as questões postas pelo Sistema Braille e à prática sempre mais esmerada da grafia braille e da estenografia. Anos depois, obtidas as habilitações académicas para que as minhas tendências me encaminharam, aquela familiaridade e aquela prática revelaram-se muito favoráveis para concorrer e ganhar um lugar de funcionário do Centro Prof. Albuquerque e Castro. O emprego é uma das melhores bases de sustentação da vida! Como diria Albuquerque e Castro, o braille esteve na base da minha recuperação humana, pela cultura, e da minha recuperação social, pelo trabalho. Se o trabalho me trouxe a independência económica, a cultura, mais do que um factor de valorização profissional, sempre foi um elemento de conscientificação da minha personalidade como homem e como cego. Devo ao braille muito do que sou e alguma coisa que possa ter feito pelos outros, antes e depois de entrar para o Centro Prof. Albuquerque e Castro, proporcionando-lhes material de formação e informação.

VIII - JOSÉ FERNANDES DA SILVA

Iniciou-se com 10 anos na aprendizagem do braille no Instituto de S. Manuel. Dedicou-se aos estudos musicais vindo depois a situar as suas prestações nos meios religioso e popular. Foi telefonista/recepcionista até se tornar professor de educação musical.

Aos sete anos fui para a escola e vi nela a concretização dos primeiros sonhos: aprender a ler e escrever.

Feitas as provas de passagem para a classe seguinte, com 9 anos, um fulminante de dinamite, que fiz explodir, apagou para sempre a luz nos meus olhos. Desmoronavam-se os ambicionados anseios! Tudo eram dificuldades, impossíveis, desalentos e vontade de nada mais fazer. Não me saía da ideia a separação de tanta coisa bela que dantes contemplava! Não mais leria os bonitos trechos que ilustravam os meus queridos livros! Não mais expressaria os desejos e vontades na minha linda caligrafia! Não mais executaria os coloridos e expressivos desenhos! Tornara-me um inútil...

Em quatro longos meses de internamento hospitalar, eram estas divagações e o desânimo que me acompanhavam.

Um dia, uma simpática irmã de caridade abordou-me e falou-me da possibilidade de reaprender a ler e escrever, através de um método especial que um senhor francês, ele também cego, tinha inventado e posto ao serviço dos seus congéneres em todo o mundo. Que sensação me invadiu a alma! e que ânsia de conhecer essa maravilha redentora me começou a devorar!

Nessa época era muito difícil ingressar numa escola especial. Só depois de um ano de muitos pedidos e influências foi possível internar-me no Instituto de S. Manuel, onde tive como mestres, competentes e dedicados, o Prof. Luís Ribeiro, o Dr. Fernando Silva e, muitas vezes, a tirar dúvidas e a incentivar, esse baluarte da tiflologia portuguesa e verdadeiro amigo meu e de todos os cegos, o Prof. Albuquerque e Castro.

Iniciei a aprendizagem do braille, essa *Bíblia* inesgotável que me tem acompanhado na vida. O cenário da sala de aula era a polirritmia dos punções, das pautas, do manejo dos cubos21 nos cubaritmos, do deslizar dos dedos pelas folhas de zinco ou de papel e pelos livros, enquanto eu tacteava um pequeno tabuleiro de madeira, onde se dispunham seis bolas, em duas filas verticais de três.

Era um exercício excitante, reproduzir os 63 símbolos do Sistema Braille. Depois, passei para uma régua dividida em rectângulos, de seis furos cada, dispostos como no tabuleiro anterior, onde colocava pequenos pregos. Seguiram-se as folhas de zinco (com letras separadas, pequenas palavras, linhas espaçadas), mais tarde substituídas por folhas de papel, já com frases curtas, e, finalmente, dominados perfeitamente os caracteres, uns livrinhos com textos simples e cativantes, retirados do "Campo de flores" e da "Cartilha maternal". Não mais se me extinguiu no ouvido o som da azáfama diária da sala de aulas!

A primeira vez que juntei letras em palavras e comecei a ler, senti enorme alegria, porque a partir de então podia ler, escrever, fazer contas, decifrar desenhos, e enterrar um ano de dolorosa escuridão. Rasgavam-se-me, assim, as janelas para o mundo da cultura, da educação, da comunicabilidade, para o campo profissional e do lazer.

Apesar das novas tecnologias, que admiro e uso largamente, jamais deixei um só dia de ler e escrever braille. Mesmo quando recebo textos digitalizados, gosto de os converter para relevo e tacteá-los. Sou seguidor dos princípios que me incutiram, e aconselho, - a necessidade de usar bem o Sistema Braille, quer na qualidade da escrita e para fluidez na leitura, quer na estética do tratamento dos textos.

O Sistema Braille tem sido precioso na minha realização pessoal; mas gostaria de ressaltar alguns aspectos:

1. Plano educativo - O braille esteve sempre presente na minha educação; e a leitura e a escrita proporcionaram-me e fortaleceram o processo de aprendizagem a todos os níveis. Tive acesso a alguns manuais escolares, o que me punha em pé de igualdade com os colegas normovisuais, sentindo-me frustrado sempre que não podia dispor deles. Assim, estudei línguas, contactando com a ortografia; exercitei a matemática e a física, disciplinas que exigem muita prática; estudei música, servindo-me da musicografia braille; pude discutir as matérias disciplinares; prestei provas escritas, pondo em evidência capacidades e dificuldades; sempre privilegiei a leitura e a escrita em braille.

2. Plano profissional - Convenientemente alfabetizado pelo método braille, não me foi difícil a progressão nas metas a atingir: não teria sido um excelente telefonista/recepcionista e, actualmente, um professor de Educação Musical sem problemas, se não tivesse tido uma educação esmerada e persistente no manuseamento do Sistema Braille. Como telefonista/recepcionista pude criar a minha lista pessoal, com

os contactos mais usados na empresa; tomar apontamentos vários; registar mensagens de qualquer tipo, etc. Uso a musicografia braille para estudo, ensino e aperfeiçoamento. Escrevo e leio qualquer género musical. Consulto os manuais e outras fontes para recolha das músicas que necessito, quer para o ensino, quer para execução nos instrumentos que toco. Como professor posso ter em braille as fichas sócio-económicas dos alunos, os seus registos biográficos, o aproveitamento, os níveis a atribuir em reuniões de avaliação, os nomes para proceder à chamada em cada aula; definir as planificações dos conteúdos da disciplina a curto, médio e longo prazo; sumariar as lições, etc. Profissionalmente, o braille é um aliado inseparável e o gesto de escrever tudo o que elaboro dá-me mais segurança, permitindo-me maior criatividade e facilidade na organização do raciocínio.

3. Plano afectivo - Ler e escrever, em braille, ao longo da vida, tem-me proporcionado uma infinidade de satisfações: escrevo música, poemas, contos, trabalhos técnicos e académicos, crónicas para jornais e revistas; troco correspondência (excelente veículo para a permuta de ideias, bem como para contacto e conservação de amizades nascidas do companheirismo nas escolas, nos centros de reabilitação, em convívios, etc.); leio livros e textos de toda a índole, de carácter lúdico ou profissional.

4. Plano interpessoal - Neste particular, o braille tem-me facultado manter relações com diferentes tipos de pessoas, versando diversificados assuntos, como troca de ideias, partilha de experiências e opiniões sobre obras literárias e técnicas, música, jogos, informática, política, religião, etc.

Em conclusão direi que o braille me tornou a integração mais acessível: permitiu-me, globalmente, o desenvolvimento cultural, social e profissional, alargou-me o conhecimento em todas as vertentes, poupou-me ao tédio preenchendo-me com benesses os vazios do dia-a-dia.

No braille há ainda muito por explorar. Só o permanente contacto com a leitura e escrita levará à descoberta de outras potencialidades. O braille é o amigo por excelência, o instrumento de que me socorro a todo o momento, o escape para o tédio, para a solidão, para as horas alegres e para o desânimo. É o catecismo que deve ser conhecido de fio a pavio e dominado em todas as extensões. Sinceramente, pelos benefícios colhidos, solto um canto de júbilo, de exaltação, de agradecimento e acção de graças, em memória de Luís Braille, esse Cego notável, que legou aos parceiros na mesma condição o Sistema Braille, uma fantástica e inesgotável "Bíblia", que a todo o instante deve ser folheada!

IX - MARIA ANTÓNIA RODRIGUES DE CARVALHO MOREIRA PEREIRA

Nascida na década de 40, faz a instrução primária como normovisual. Exerce a actividade doméstica, tornando-se deficiente visual por volta dos 45 anos de idade. Só no ano 2000, aos 59 anos, começa a aprendizagem do braille no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos.

LUÍS BRAILLE

Através destas linhas quero expressar o prazer que senti quando consegui ler um texto escrito em braille.

Sentir que podia novamente estar em contacto com a leitura, foi uma emoção muito grande. Para além de me permitir um acesso mais fácil a toda a informação que nos rodeia, tornou possível corresponder-me com alguém que esteja nas mesmas circunstâncias que eu, e ao mesmo tempo, por exemplo, poder etiquetar as minhas disquetes de informática e as cassetes áudio.

Mas voltando atrás. Quando senti a emoção de novamente ter a possibilidade de ler, penso que é um pouco difícil passar para o papel esse sentimento e, principalmente, dar a transparecer essa sensação a pessoas chamadas normovisuais. No meu primeiro dia de aula confesso que senti uma sensação estranha quando me vi novamente dentro de uma sala de aula, aos cinquenta e oito anos de idade. Ao fim de duas ou três aulas cheguei à conclusão que essa sensação era de felicidade. A alegria que eu tive quando consegui juntar as primeiras sílabas, acreditem, foi muito emocionante, e ao mesmo tempo ter a possibilidade de voltar a sentir o cheiro do papel em que escrevemos ou lemos!

Agradeço a todos os professores que se dedicam ao ensino da escrita braille; e, ao mesmo tempo, quero agradecer a todas as pessoas que de uma maneira ou doutra têm lutado pela afirmação deste meio de comunicação de auxílio aos cegos.

Presto a minha singela e sincera homenagem a Luís Braille pela coragem e dedicação que o levou a tão engenhosa invenção. Bem haja, Luís Braille.

X - FRANCISCO MANUEL RODRIGUES ALVES

Uma retinite pigmentar interrompeu-lhe os estudos no antigo 4º ano liceal, mergulhando-o numa autêntica travessia do deserto. Começou a aprendizagem do braille aos 19 anos no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos. Foi telefonista/recepcionista durante 10 anos prosseguindo ao mesmo tempo os estudos. Licenciou-se em Filosofia em 1981, ingressando um ano depois na carreira docente.

O BRAILLE NA MINHA VIDA

O meu primeiro contacto com o Sistema Braille deu-se aos 19 anos, quando solicitei ao Instituto de S. Manuel, do Porto, um alfabeto, tendo-me sido enviado um pequeno documento com este Sistema, que incluía ainda a correspondência dos sinais em tinta.

Depressa aprendi este maravilhoso código que iria mudar a minha vida, conhecimentos que aprofundei no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, quando iniciei um curso de reabilitação, nos finais de 1970, com a idade de 19 anos.

Recordo-me duma estante com livros em braille, que existia na sala de convívio do Centro, vindo-me parar às mãos uma obra em três grossos volumes que se chamava Theras e a sua Cidade e de cujo autor não me recordo.

De imediato nasceu no meu espírito uma forte vontade de ler tão extensa obra, tarefa que se me afigurava impossível de realizar, tendo-me decidido pelo terceiro volume como forma de um dia poder chegar ao fim. Lancei-me a tal empresa... Cada linha sucedia-se a um ritmo lento e primeiro que pudesse folhear nova página, passavam-se longas horas. Foram dias que levei naquela penosa tarefa, até que finalmente surgiu no horizonte a última página do grosso volume.

Tinha uma motivação muito forte para aprendizagem do braille, pois afigurava-se-me como o único caminho para poder contornar os obstáculos que a minha retinite pigmentar me ocasionava, com graves dificuldades já na instrução primária e permitindo-me apenas chegar à frequência do quarto ano, (hoje oitavo), que já não consegui concluir.

A moratória psicossocial de seis anos a que esta situação me forçou, encerrando-me nos horizontes duma aldeia transmontana sem esperança nem ideal, permitiu-me reforçar a motivação para prosseguir com os estudos, de forma a um dia poder alcançar os meus companheiros que tinham seguido o seu trajecto escolar normal.

Estas situações permitem perceber a força com que agarrei as oportunidades que me foram dadas. Treinei longas horas a leitura braille até conseguir chegar a ler textos em voz alta com alguma fluência.

Hoje, com a informática, confesso que não tenho lido tanto em papel. Todavia, a par da voz sintetizada utilizo a linha braille22, sentindo-me perdido quando esta me falta. Ler apenas com o sintetizador é como ler às cegas, dando o braille à leitura uma clareza e luminosidade impressionantes. Memorizo muito melhor tudo o que leio em braille, comparativamente com o que oiço, e para a correcção dos meus textos, nunca dispenso uma última leitura em papel.Defendo como princípio orientador da minha vida, com a finalidade de contornar as limitações que a cegueira me ocasiona, um esforço permanente para a autonomia, procurando reduzir ao essencial a dependência de terceiros.

Nesse sentido, utilizo o braille nos mais diversos campos: na etiquetagem de discos, de documentos, de medicamentos; e nos livros em tinta coloco uma fita dymo transparente com o título e o autor, tendo muitas vezes de recorrer a pequenas abreviaturas.

No plano meramente sensorial, comparando a minha situação táctil anterior à aprendizagem do braille, tenho de reconhecer que se processou em mim um desenvolvimento inimaginável, situação que me possibilitou uma nova perspectiva do mundo e uma maior facilidade na compreensão dos objectos que toco.

Como professor do ensino secundário, estou em contacto com a actual realidade educativa, sendo notório e dramático o abandono a que os alunos cegos e o Sistema Braille são votados, o que não me permite ser optimista em relação à desbraillização que se está a verificar entre nós, embora seja um fenómeno à escala mundial.

Parece-me que terão de ser feitos alguns golpes de rins para inverter a situação e recuperar a normalidade neste sector, não sendo fácil inventariar todas as causas que originam tal estado de coisas.

É urgente promover uma nova pedagogia do ensino do braille, assente no pressuposto que o braille é um sério e insubstituível instrumento de reabilitação no processo educativo e que seja ainda aberta e centrada nas dificuldades dos alunos.

É também urgente disponibilizar documentação em tinta no âmbito da braillologia, pois se se quer avançar neste campo teremos de envolver as universidades, sendo um dos primeiros passos para a investigação, a existência duma documentação científica rigorosa e exaustiva.

Será necessário também ter em consideração os formatos e as opções nos livros a editar. Ninguém pode fazer futurologia, mas hoje podemos considerar que a opção pela publicação de livros em braille estenografado não ajudou a generalizar o uso deste Sistema. Pensava que possuía em minha casa alguns clássicos importantes da nossa literatura, mas pelo facto desses livros serem estenografados em três estenografias diferentes, tornam-me a leitura tão penosa que não passo das primeiras páginas. Sei bem que estas dificuldades são minhas e se devem ao facto de ter aprendido o braille com dezanove anos. Mas pressinto que são as mesmas com que milhares de cegos se defrontam; e o facto dos livros serem em braille integral não obstaculizaria a leitura dos mais lestos.

Critérios rigorosos de publicação são também necessários. É preciso fazer estudos sobre as preferências e necessidades maioritárias dos leitores de textos em braille, muito embora não possam ser abandonados aqueles cegos que têm a coragem de enveredar por campos que lhes são muitas vezes considerados interditos.

Uma palavra para terminar: parece-me que é também necessário dar muita atenção ao Sistema Braille informático23, campo onde este Sistema genial tem revelado as suas extraordinárias potencialidades, e que nos está a ajudar a resolver muitos dos grandes problemas que se nos colocam no acesso à informação.

XI - HENRIQUE PIRES RIBEIRO

Iniciou-se no braille aos 16 anos na Mansão Santa Maria de Marvila. Licenciou-se em Filosofia enquanto trabalhava como telefonista/recepcionista e, depois, como Professor do Ensino Secundário. Doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de Geneve, é Professor do Ensino Superior e membro de organizações nacionais e internacionais da especialidade exercendo igualmente psicoterapia.

ESCRITA BRAILLELUZ E VIDA

A escrita braille constituiu para mim o principal meio de aprendizagem e de desenvolvimento social, profissional e cultural.

Por razões de ordem diversa, apenas tive contacto com esta escrita aos 16 anos, não obstante ter ficado cego aos 13.

Poder estudar e ter condições para o fazer foi sempre a minha grande ambição porque pensava convictamente que a melhor forma para vencer na vida seria apetrechar-me com conhecimentos que me permitissem o desempenho de tarefas para as quais a cegueira não fosse impeditiva, tais como: professor, tradutor, etc.

Foi com grande alvoroço próprio dos 16 anos e com enorme vontade de vencer que aprendi a escrever e a ler o Sistema Braille.

Sem ver, poder escrever e ler era uma miragem, era um sonho e, ao mesmo tempo, era a esperança e a certeza de que, ao fazê-lo, os caminhos da cultura e do saber estavam ao meu alcance e que, depois de atingidos os conhecimentos bastantes, eu poderia enfim obter um emprego que me permitisse viver com dignidade.

Frequentei a escola até aos 8 anos, onde fiz uma aprendizagem normal. Entretanto, devido à perca gradual da visão, fui obrigado a abandonar a escola; e houve assim um largo período durante o qual não tive contacto com qualquer tipo de aprendizagem.

Por volta dos 16 anos conheci a Sr.ª Dr.ª Maria José Marques, pessoa por quem nutro a maior estima e gratidão, pois foi esta senhora quem me mostrou pela primeira vez um punção e uma pauta de escrita braille. Depois de observar aqueles instrumentos que não me diziam rigorosamente nada, fiquei suspenso. A curiosidade e o medo apoderaram-se de mim, e pensamentos contraditórios, quase febris, povoaram todo o meu ser.- Isto deve ser muito difícil, e se não consigo aprender?

Estes momentos verdadeiramente aterradores, a pouco e pouco foram-se desvanecendo e uma luz iluminava-me a alma com as palavras doces, de confiança daquela velha senhora que me ia dizendo: - Vai aprender depressa, não é difícil como parece. Quer ouvir?

Respondi afirmativamente e ela leu-me uma passagem do "Suave Milagre" de Eça de Queiroz; e nesse momento fiquei calmo, sem alvoroço. Foi então que fiz as primeiras linhas de 6 pontos, numa pauta muito antiga de interlinhas24.

Ao fim de ter escrito algumas linhas, a minha professora pediu-me o papel "manteiga", o qual se usava naquele tempo para a escrita braille, e depois de ler disse:

- Bravo, encheu todos os rectângulos sem a falha de um ponto.

Estas palavras tiveram um poder de magia e de novo voltei a sentir uma imensa alegria porque escrever e ler sempre estavam ao meu alcance.

Logo na primeira lição me ensinou a fazer o alfabeto braille completo.

Com uma ânsia e avidez desmedidas, decorei todos os pontos que constituem os caracteres braille, num ápice. Na segunda lição pude levar à minha professora algumas frases, mas sem pontuação, porque essa ainda a não tinha aprendido. Aquela boa senhora ao ler as minha frases afirmou:

- Está muito bem, só faltam as vírgulas e pontos finais.

A partir desta altura, um punção, uma pauta ou régua braille têm vindo a ser para mim instrumentos de uso permanente, porque, quer como professor quer como psicólogo, sempre necessito de escrever. Tanto numa actividade como noutra a pauta constitui um elemento de segurança tanto para mim como para aqueles com quem tenho de trabalhar. Para mim porque fico de posse de todos os elementos de que preciso para trabalhar. No caso dos estudantes, ao verem-me escrever braille em princípio ficam curiosos mas com a continuação do tempo ficam confiantes por saberem que o seu comportamento e a sua avaliação são devidamente anotados diariamente.

No que diz respeito aos meus pacientes passa-se outro tanto: começam por ter curiosidade em relação àquela maneira de escrever, e essa curiosidade sugere perguntas; e aquilo que parece difícil, uma primeira conversa com o psicólogo, torna-se fácil porque a pauta e o punção são muitas vezes o mote inicial da entrevista.

Ao contrário do que muitos pensam, o eu escrever em braille na presença dos meus alunos ou dos meus pacientes, nunca foi motivo para que uns ou outros não tivessem a confiança bastante no desempenho da minha actividade.

Não obstante a grande importância que outros processos modernos de escrita braille inegavelmente têm, considero o uso da pauta indispensável como instrumento portátil e prático para uso frequente - tomar notas, etc. E considero que um cego que não saiba utilizar um punção, uma régua ou pauta braille é portador de uma lacuna tão grave como a de normovisual que, sabendo escrever, não soubesse utilizar um lápis ou uma caneta.

A escrita braille é para mim luz e vida, luz porque me permitiu atingir os conhecimentos de que hoje disponho, e vida porque, com tais conhecimentos, posso profissional e socialmente viver com dignidade.

XII - MARIA AMÁLIA DOS SANTOS MEIRA

Foi aos nove anos que teve o primeiro contacto com o braille no Instituto António Feliciano de Castilho, onde fez o seu percurso escolar tendo completado o ensino liceal como aluna externa. Frequentou o curso de Filologia Germânica e fez uma breve passagem pela actividade docente no ensino particular. Exerceu funções de telefonista/recepcionista em instituições bancárias.

Testemunhar sobre o Sistema Braille é, em primeiro lugar, prestar uma justa homenagem àquele cego corajoso, persistente, que foi capaz, com a sua inteligência, com a sua audácia, de pôr à prova os seus próprios nervos, de arrostar com a indiferença de quantos quiseram ignorar que o seu Sistema era mais eficiente, de evidenciar, em detrimento do método vigente, as enormes vantagens do seu invento25.

Até aos sete anos eu fui, posso dizê-lo, uma criança pobre, sim, mas com um percurso de vida igual a tantas outras, feliz, talvez, dentro de certos limites.

Foi por essa altura que me dei conta de que se formava um vazio imenso na minha vida até então tão cheia de folguedos e amigas. Pois é: elas começaram a ir à escola e eu,

nada. Só a boa vontade de uma professora generosa permitiu que, assistindo de quando em quando às aulas, ouvisse e aprendesse a tabuada e a doutrina, como se chamava então, à catequese da igreja católica. Era tão pouco, para quem ansiava tanto!

Esse vazio terminou quando, dois anos depois, fui chamada para uma escola de meninas cegas, onde iniciei imediatamente a aprendizagem da leitura e da escrita. Meu Deus, que loucura, que sonho! Eu conseguia ler e escrever o mesmo que as minhas amigas que deixara na aldeia.

Sinto ainda hoje, tantos anos passados, a imensa emoção das primeiras vogais, das primeiras frases que consegui juntar e interpretar.

O gosto pela leitura tomava cada vez mais forma. Já com uma razoável desenvoltura para a idade e o grau de aprendizagem, posso lembrar-me de que devorava livros e tudo o que aparecia e que pudesse interessar-me. Muitas vezes o descanso da noite deu lugar à leitura, que só interrompia, manhã já, para preparar-me para um novo dia escolar.

Venci barreiras, consegui valorizar-me, empreendi a tarefa de querer saber sempre mais e mais. Não realizei tudo o que poderia ter realizado. Mas o que é mais importante e que está sempre presente na minha memória é a certeza de que sem o inigualável contributo de Louis Braille eu nunca teria sido uma pessoa realizada e válida.

Na minha simplicidade de criança eu agradecia e ainda hoje agradeço a Deus que inspirou esse homem fantástico na elaboração do seu Sistema Braille. Foi através dele que, nas longas noites de Inverno ou nas quentes noites de Verão, em gozo de férias, tive a oportunidade de fazer as delícias de muitos analfabetos que se juntavam a mim aos serões, ouvindo ler, pedindo explicações, interpretando ou fazendo-me interpretar o que lhes lia. Foi o "Braille" que aprendi, que me permitiu dar um pouco de mim aos outros.

As coisas avançaram: veio a matemática, a música, as línguas. Que maravilha! Obrigada, Louis Braille, por tamanho legado. Pude comunicar por escrito com amigos ditos normovisuais que se dispuseram a aprender o alfabeto. E foi tão gratificante a troca de experiências!

Surge a oportunidade de emprego, e o braille é mais uma vez o meu grande salva-vidas. O cego, como qualquer outro deficiente, tem mais necessidade de afirmar-se pela positiva, dando conta de si, quer do ponto de vista profissional, executando as tarefas que lhe são propostas com perfeição e rapidez, quer no contacto com o exterior. Para tanto, tive de valer-me de listas intermináveis de números, dossiers inteiros de apontamentos, de agendas cheias de mensagens, eu sei lá que tanto e tanto mais este querido e eficiente sistema me ajudou a conseguir!

O alfabeto braille aplicado nas tarefas caseiras, por exemplo, na marcação de programas nas máquinas de lavar louça e roupa, no apontamento de uma receita de cozinha e em tantas outras coisas, é, sem dúvida, inestimável.

Já pensámos quanto é agradável ir a uma exposição e ter os tópicos em braille? E entrarmos num elevador sem receio de irmos parar ao piso errado, porque podemos ler em braille o algarismo correspondente ao piso pretendido? São pequeninas grandes

coisas que dão alegria a quem não precisa de depender de outrem nestas ocasiões. As facilidades que nos são dadas por este Sistema são tão vastas e óbvias que nós usufruímos delas automaticamente sem pensar como seria sem o Sistema Braille. É evidente que não podemos subestimar os meios áudio, e que, para mim, tiveram indubitavelmente um valor altamente relevante. Pessoalmente, penso que estes funcionaram muito e mais como complemento à escrita e leitura braille. Importante é também constatar o notório papel do Sistema Braille nos sistemas informáticos que, a par de outros meios auxiliares de leitura apreciáveis, tem contribuído em larga escala para um bom aprendizado e cabal desempenho dos cegos neste campo.

Talvez porque tive, desde criança, a necessidade e a paixão da leitura, julgo absolutamente indispensável e insubstituível o ensino continuado do braille, porque só o domínio do mesmo pode dar segurança a um estudante, a um profissional, a uma pessoa que preze a sua independência.

Braille, sempre. Tudo o que as novas tecnologias tragam que possa favorecer-nos, será óptimo mas, da minha perspectiva e pela minha experiência, correndo embora o risco de repetir-me, creio que a aprendizagem e utilização do braille é indispensável desde o início da escolaridade, (e porque não dizê-lo?) desde a pré-escolaridade, até ao fim da nossa caminhada na Vida.

XIII - CARLOS JORGE BARATA GONÇALVES

Nascido na segunda metade da década de 60, iniciou-se no braille aos sete anos no Instituto de Cegos de Coimbra, actual Centro de Acolhimento do Loreto. Licenciado em Relações Internacionais, desenvolve a sua actividade profissional como formador nas áreas comportamentais e da comunicação.

A IMPORTÂNCIA DO SISTEMA BRAILLE NA MINHA VIDA

Sou portador de cegueira total congénita. Ainda no processo de enculturação, junto da família, tive o primeiro contacto com o braille, visto que tenho um irmão também cego total, bastante mais velho que eu, que levava alguns materiais em braille quando, a espaços, regressava à Terra Natal. Essa primeira aproximação foi apenas, como seria natural, formal, possibilitando-me examinar a configuração dos pontos.

O meu percurso educativo/formativo começou numa escola de Ensino Especial, exclusivamente para cegos e amblíopes, o Instituto de Cegos de Coimbra. Aí, aprendi o Sistema Braille na sua substância e, imediatamente, me interessei pela sua utilização. À medida que me envolvia no braille, sobreveio em mim uma enorme curiosidade pela leitura - adequada, como é óbvio, à minha fase etária - que, para além dos ensinamentos que interiorizei no transcurso das actividades lectivas e extra-lectivas, promovidas pelo Instituto, foi responsável por ampliar grandemente o meu repertório cultural em sentido lato.

Uma vez concluído o primeiro ciclo do Ensino Básico, transitei para o Ensino Integrado, esforçando-me por aprofundar os meus conhecimentos no Sistema. Desenvolvi e consolidei os insipientes conhecimentos que trazia de estenografia, posto

que a maior parte da bibliografia que me passou a despertar interesse - na fase da adolescência - estava disponível em braille estenografado.

Ao longo dos meus estudos, sempre preferi materiais didáctico-pedagógicos em suporte braille, em detrimento das gravações, tão em voga no terceiro ciclo do Ensino Básico, no Ensino Secundário e no Ensino Superior. Com efeito, à medida que se progride nos níveis e graus de Ensino, o acervo bibliográfico em braille tende a diminuir consideravelmente em favor do suporte áudio. Apesar disso, nunca perdi a oportunidade de elaborar os meus próprios apontamentos em braille, alguns dos quais retirados das gravações que tinha que consultar, o que constituía uma tarefa bastante trabalhosa, que requeria uma enorme disponibilidade de tempo.

O braille contribuiu, pois, para a minha evolução educativa/formativa e, insofismavelmente, para a minha integração social, cultural e profissional. Este sistema de escrita e de leitura, verdadeiro meio de comunicação, compensou, se bem que muito parcialmente, na minha integração social, a falta de visão, porque pude, através dele, apreender inúmeros elementos e padrões culturais, difíceis de conhecer sem a existência de uma forma que, através do tacto, permita a recolha e retenção de estímulos do exterior, imprescindíveis para a melhoria da imagem individual e, consequentemente, para a aceitação social. O braille alargou-me as potencialidades comunicativas, a capacidade de emitir e discutir opiniões, logo a apetência para o relacionamento interpessoal: os pontos braille transformaram a minha visão/percepção pontual em visão-pontual-perspectiva.

O braille proporcionou-me, no âmbito da ortografia, a superação de um dos grandes problemas dos cultores das línguas neo-latinas, a acentuação vocálica, uma vez que as vogais variam de símbolo, isto é, alteram a sua representação braillográfica em função da acentuação.

O desenvolvimento da informática e, com bastante atraso, da tiflotecnologia, na qual o braille permanece com um papel não despiciendo, é um factor relevante para o desbravar dos obstáculos que impedem, em total autonomia, o acesso à informação. O braille revelou-se, e revela-se a todo o tempo como elemento dinamizador do meu processo de inclusão e da abertura de horizontes: sociais, culturais, técnicos, científicos...

XIV - ISIDRO DA EIRA RODRIGUES

Ingressado no Instituto Branco Rodrigues, começou a aprendizagem do braille aos 12 anos. Licenciou-se em Filologia Germânica e fez a pós-graduação em Ciências Documentais. Exerce funções profissionais em bibliotecas. Dedicou-se à docência de diversas disciplinas no ensino particular.

Estávamos em 1953, tendo eu 11 anos de idade, e o meu pai desesperava já por ver que dos seus cinco filhos só eu parecia não ter direito à escolarização. Desde os meus seis anos que ele, tendo tido conhecimento de que existiam escolas especiais onde as crianças com deficiência visual podiam aprender a ler e a escrever, por um sistema de

caracteres em relevo, movia céus e terra para que eu ingressasse no Instituto de Cegos Branco Rodrigues.

Vivendo nós em Buarcos/Figueira da Foz e tendo escassas informações sobre o sistema de leitura e escrita braille, o meu pai, ao saber que em Maiorca vivia uma senhora deficiente visual que, com os seus dois irmãos - eles também com a mesma deficiência - haviam estudado em Lisboa, logo a procurou e de lá veio com uma alma nova, mais informado, trazendo inclusivamente um pedaço de papel escrito em braille que, num primeiro contacto, me pareceu impossível de poder ser lido.

Em 1954, em desespero de causa, e aconselhando-se com o Sr. Capitão Militão, Director da Assistência na Figueira da Foz, escreveu - em boa hora - uma carta a Salazar, expondo a situação de inconformismo em que se encontrava, por temer que a um dos seus filhos nunca fosse dada oportunidade de ultrapassar a barreira do analfabetismo.

Assim abertas para mim - que tinha então já doze anos - as portas do Instituto Branco Rodrigues, as perspectivas de futuro modificaram-se radicalmente. Com determinação e todo o empenho, estudei nesse Instituto, durante nove anos, os quais marcaram profundamente o meu trajecto de vida.

Aprendi a dominar o Sistema Braille em todos os seus meandros, e esse facto permitiu-me, no Instituto, além de uma escolarização bem sucedida, desde a Primeira Classe até ao Quinto Ano dos Liceus, uma boa formação teórica no domínio da música, o estudo de piano e violino - embora não tendo feito exames instrumentais no Conservatório Nacional de Lisboa.

Saindo do Instituto, o domínio do Sistema Braille em todas as suas vertentes foi essencial à prossecução dos estudos que me permitiram, sem sobressaltos, alcançar a almejada meta de uma Licenciatura em Filologia Germânica e a conclusão do curso pós-graduação de Ciências Documentais.

E se os bons conhecimentos do Sistema Braille foram o garante do Êxito em todas as fases da minha educação, reabilitação e formação profissional, sem o seu domínio pleno nunca seria possível ingressar na carreira profissional de Bibliotecário Documentalista e percorrê-la desde a categoria base até ao topo.

Aos excelentes conhecimentos do Sistema Braille, nas suas multifacetadas valências, com que me dotaram no Instituto Branco Rodrigues, devo uma parte substancial do que de bom me sucedeu ao longo de 48 anos. Graças a este inestimável bem, a esta divina dádiva, foi-me possível um percurso escolar de êxitos e uma vida activa quase sempre bem sucedida, quer como professor ou formador, quer como profissional na área das bibliotecas.

Ainda que relevando o já afirmado, não posso deixar de referir as incalculáveis alegrias que o domínio deste maravilhoso sistema de leitura e escrita me propiciou: por ele contemplei o delicioso mundo das Literaturas, acedi ao conhecimento artístico, científico e tecnológico; por ele me mantive informado sobre o mundo em que vivo e lhe transmiti as minhas vivências interiores, estabeleci e reforcei amizades; em suma,

tenho usufruído o decurso da vida, atingindo padrões de realização que, sem o seu suporte, só muito dificilmente seriam possíveis.

XV - SUSANA ALEXANDRA MARQUES CORDEIRO

Portadora de glaucoma congénito, nasceu em começos da década de 80. Iniciou-se no braille ainda na pré-primária no Centro Infantil Helen Keller, tendo transitado para o Ensino Integrado no 5º ano de escolaridade. Prepara-se para concluir o curso superior de Psicologia. Também se dedica à música e outras actividades artísticas e desportivas.

COMUNICAR PELO BRAILLE? SEMPRE!

Desde o momento da nossa concepção sentimos uma crescente necessidade de comunicar, em primeiro lugar com a nossa mãe e, posteriormente, com todos aqueles que interagem connosco. De facto, está comprovado que um feto consegue compreender mensagens transmitidas pela mãe. Mais tarde, se o desenvolvimento decorrer normalmente, irá reconhecer o pai e interagir com ele. Com poucos meses de idade o bebé começa a sorrir a qualquer rosto humano com que depare e, a partir daí, estabelece um sem número de interacções através da linguagem que aprende rapidamente.

Mas a comunicação com os outros, frequentemente, realiza-se também por mensagens linguísticas escritas. Na verdade, para se possuir e dominar efectivamente uma língua, é necessário reconhecer tanto o código oral como o escrito, a nível de compreensão e de expressão. Não basta a articulação de sons nem a sua representação gráfica. É necessário penetrar no seu íntimo, conhecer as estruturas linguísticas, saber interpretar a mensagem que nelas está presente e transmiti-la de acordo com o interlocutor.

Assim, a escrita possui na aprendizagem um lugar de maior relevo do que a comunicação oral, uma vez que esta última se considera como implícita no próprio crescimento do indivíduo, desde que a socialização se torna efectiva. Por conseguinte, a criação do Sistema Braille abriu uma porta muito importante para o desenvolvimento e crescimento dos cegos, quer em termos intelectuais, quer interpessoais. Até então estas pessoas tinham de se limitar àquilo que lhes diziam e não conheciam o prazer da leitura. Felizmente, hoje, com o braille aperfeiçoado pelas novas tecnologias de informação e com outras valências, é-nos possível ter acesso a um vasto leque de dados. Mas é óbvio que não se vai introduzir nenhuma criança na informática se não souber escrever e ler, a não ser que se lhe apresentem jogos de computador didácticos que se destinem a ajudá-la a aprender essas competências básicas. Ora, como tal ainda não é fácil para os deficientes visuais, julgo ser de extrema importância que, antes do mais, a criança aprenda o código escrito.

Uma criança com 3 ou 4 anos está na fase de querer experimentar e imitar aquilo que os adultos fazem. Logo, se vê alguém a escrever, quer pegar numa caneta e começar a "rabiscar". No que respeita a uma criança cega, provavelmente não terá esta curiosidade se nunca contactar tactilmente com objectos de escrita. Porém, se alguém lhe lê histórias, se tem amigos que estão muito contentes porque já sabem escrever o seu nome, se começa a tomar consciência de que não pode ler as legendas dos filmes e dos desenhos animados, irá ter um grande desejo de começar a ler. Deste modo, julgo ser

muito importante que a partir daqui a criança que está já com um certo grau de motivação possa, na escola, ter o primeiro contacto com a máquina braille. Foi exactamente este facto que se verificou comigo. Com 5 anos entrei para a pré-primária e desde logo tive oportunidade de começar a perceber como funcionava uma máquina braille. Pude então "brincar" um pouco com as letras, fazendo-as ao acaso, escrevendo folhas inteiras só com a primeira letra do meu nome... Rapidamente ganhei o interesse por começar a escrever outras palavras; e esta minha motivação, juntamente com o apoio escolar e até familiar, permitiu-me evoluir a curto prazo e dominar o braille em pouco mais de 2-3 anos.

A partir do momento em que já dominava o braille, além de "devorar" os livros escolares, comecei a ler algumas obras extra-curriculares e algumas revistas. Isto constituiu um forte impulso ao meu desenvolvimento intelectual e, sobretudo, à minha motivação e aproveitamento escolar.

A leitura do braille também nos ajuda a escrever sem erros ortográficos, pois quem apenas ouve ler não tem contacto com a ortografia. Esta questão torna-se ainda mais premente no caso da aprendizagem de uma língua estrangeira.

Quando entrei no ciclo preparatório, no ensino integrado, a necessidade de explicar o braille aos colegas e até a alguns professores tornou-se premente. Na verdade, julgo que muitas das amizades que desde então construí foram despoletadas pelo interesse das pessoas em perceber o meu código de escrita e a minha vontade de o partilhar. Actualmente, na faculdade, nos períodos de férias vários colegas solicitam-me que lhes escreva cartas em braille, pois a partir do abecedário descodificam-nas e acham muito interessante. Por conseguinte, é fácil concluir que a nível interpessoal e afectivo o braille se tem revelado de extrema importância para a minha vida, permitindo-me comunicar com grande facilidade.

Nos meus tempos livres dedico-me muito à leitura. Procuro sempre livros em braille; e só quando tenho um grande interesse (ou necessidade, por se tratar de uma obra importante na área dos meus estudos), é que recorro a livros em formato digital ou áudio, já que nesse caso a leitura não é feita por mim própria, o que condiciona as possíveis interpretações. Imagine-se a "ler" um livro de José Saramago gravado. Há sempre um grande risco de se ser influenciado pelas pausas feitas, mesmo que inconscientemente, pelo leitor. É por esta razão que dou primazia à leitura do braille, preservando a minha liberdade de pensamento e análise. Outra grande vantagem dos livros em braille reside no facto de nestes nos ser sempre possível voltar a reler uma frase, um parágrafo, sem grandes dificuldades de o encontrarmos, enquanto que no formato áudio isto se torna muito mais complicado. Aliás, sempre defendi que os livros escolares deveriam ser totalmente em braille, o que nem sempre acontece. Por vezes, livros de história, geografia ou outros só estão disponíveis em formato áudio, o que complica bastante a vida aos estudantes, desmotivando-os, uma vez que não lhes é tão fácil encontrar um texto que a professora pediu para ser lido, não podem utilizar o livro durante a aula e, acima de tudo, perdem muito tempo (e até paciência) à procura de determinada página, pois muitas vezes os leitores não vão identificando as páginas que estão a ler. Portanto, mais uma vez, o braille facilita o trabalho e o estudo.

Outra actividade dos meus tempos livres é a música. E também aqui o braille tem desempenhado um importante papel. Há alguns anos realizei um curso de musicografia

braille, o que me tem permitido escrever e ler música com relativa facilidade. Contudo, infelizmente, não existe ainda um vasto espólio de obras neste domínio, pelo que seria de grande interesse que se investisse nele, muito embora estejam a ser reunidos grandes esforços em termos de potencializar as novas tecnologias neste âmbito.

Concluindo, sou dependente do braille para realizar quase todas as minhas actividades. Este meio tem-me permitido concretizar muitos dos meus objectivos, pois tem fomentado muitas amizades, tem-me permitido integrar no meio escolar e académico e deliciar-me durante os meus tempos livres. Por conseguinte, tal como Descartes defendia, "a Alegria de ver as coisas com os olhos, não é de maneira nenhuma comparável à alegria de as ver com o pensamento" e o braille pode ser um suporte para o fluxo total da razão.

XVI - JOSÉ JOAQUIM DA SILVA BATISTA

Começou a aprender braille aos sete anos. Fez o quinto ano no Instituto Branco Rodrigues e completou o Liceu como aluno externo. Licenciou-se em Matemática Pura e, como bolseiro da Gulbenkian, aperfeiçoou-se no Instituto de Matemática de Florença. Passou pelo ensino particular tornando-se assistente convidado da Faculdade de Ciências, em dedicação exclusiva. Foi membro de diversas Comissões de Braille.

O QUE FOI O BRAILLE PARA MIM? O QUE TERIA EU SIDO SEM O BRAILLE?

Sou, desde 1969, licenciado em Matemática Pura pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e exerço presentemente o cargo de Assistente Convidado naquela Faculdade. Entre os meus passatempos preferidos figuram o próprio estudo da Matemática, a leitura, a audição de música erudita (com relevância para a ópera lírica do século XIX) e também de alguma ligeira, a confraternização com pessoas que sinceramente me estimem, a apreciação da boa culinária e da boa garrafeira, as viagens (tanto em Portugal como no estrangeiro), e o acompanhamento circunstanciado de manifestações desportivas (especialmente futebolísticas) em diversos países da Europa com subsequente elaboração de completos ficheiros de apontamentos. Pois bem, em tudo isto e em muito mais o uso do braille é - ou alguma vez foi - eminentemente decisivo.

Quando em meados de 1969 - a propósito da Licenciatura que acabava de obter - certo jornalista ao entrevistar-me registou e publicou a frase por mim proferida "A Matemática sempre foi o meu grande brinquedo", ele conseguiu consubstanciar numa única frase a completa motivação que me levara até à Licenciatura. Desde tenríssima idade, com efeito, que eu, sem sequer entender que significado exacto tinham as palavras "ler" e "escrever", e muito menos que os actos por essas palavras expressos estariam pouco menos que vedados a cegos sem a maravilhosa invenção do braille cento e vinte anos atrás, me comprazia em "absorver" os números, em "chafurdar" nos números, em "brincar com" os números; e estes prenúncios deveriam indigitar-me uma vocação matemática.

Todavia, o meu avô paterno mostrara, ao que parece, tendências do mesmo género, ainda que quiçá não tão acentuadas; e, porque não chegou a aprender a ler (no seu

tempo de criança, ir à escola era um luxo para a gente não rica), não passou, pela vida fora, de um excelente calculador mental. E eu?

Talvez eu estivesse condenado a seguir, matematicamente falando, as pisadas do meu avô. Só quando o Sistema Braille, substituindo-se ao sistema de escrita e leitura adoptado pelos outros meninos, me fez sucessivamente e cada vez com maior intimidade compreender (direi, mesmo, sentir ao apalpar os pontos e furar o papel) não estar eu - pelo menos, no tocante às letras - em situação de desvantagem relativamente aos colegas que viam, só então se me começou a enraizar no espírito a ideia de que o meu destino não apenas se achava traçado como se revelava viável: Eu queria - e iria - ser um matemático; o braille ajudar-me-ia.

E assim sucedeu, com efeito: Não serei um matemático de enorme envergadura, porém estou certo de ser aquele matemático do jeito que as minhas tendências infantis indigitavam. Não direi, evidentemente, que a longa caminhada básico/secundário/superior (caminhada, aliás, não ininterrupta, mas que passou por alguns anos de internamento no Colégio, por um ano de estudo em casa como uma espécie de autodidacta, e por um receoso ingresso na Faculdade) fosse um mar de rosas; não obstante, se se exceptuarem o Desenho e os trabalhos de laboratório, para os quais sempre se tiveram que ir fazendo aqui e ali algumas adaptações, a verdade é que as diversas e sucessivas matérias escolares (matemáticas ou de outra qualquer natureza) jamais me assustaram por aí além, e que os verdadeiros problemas só advieram da falta de textos em braille.

Neste aspecto, as coisas andaram optimamente durante a Instrução Primária, e razoavelmente nos primeiros cinco anos do Curso dos Liceus. A partir deste ponto, a quase singularidade do meu caso (matemáticos cegos em Portugal não era que fossem às algibeiradas, matemáticos cegos noutros países não os conhecia, e a Literatura da Especialidade existente no estrangeiro dificilmente se adequaria às obras adoptadas por cá) tornava extremamente onerosa - porque para um único destinatário - a produção de textos em braille, ainda que confinada aos estritamente necessários.

A não existência em Portugal de lista adequadamente exaustiva de símbolos braille para a escrita de fórmulas matemáticas não se me antolhava obstáculo intransponível: Tal como acontecera com a Matemática a partir dos primeiros anos de vida, também o braille se constituiu, com o decorrer dos tempos, meu brinquedo; e tendo em conta os trabalhos que por ele realizara na juventude, não se me afigurava impossível, ou sequer difícil (tanto mais que só para mim próprio laborava), criar - ou ir criando à medida das necessidades - uma Grafia Matemática Braille.

No entanto, esta minha predisposição para me assumir como continuador da obra do "velho Louis" (também, de resto, um matemático de muito razoável mérito, ao que consta, apesar dos poucos anos que viveu) de nada me teria servido: Se se pensar que na distante década de sessenta nem em sonhos se conceberiam as tecnologias de que se dispõe actualmente - e que eu, confesso, não uso - e que para escrever à pauta (ou que fosse à máquina!) tudo aquilo de que tinha precisão carecia não somente de carradas de tempo mas ainda da disponibilidade de quem me ditasse (que não podia ser qualquer pessoa), fácil se torna entender que outra alternativa me não restava a não ser substituir as vantagens da leitura directa pelo "recurso" a "ouvir ler" nas suas diferentes formas.

Tratou-se de um duro revés. O braille, que tão útil fora até então (e que continuava a sê-lo, pois o usava na resolução de exercícios, no controlo e orientação de explicações que dava, e na tomada dos apontamentos mais urgentes), o braille que me servira de sustentáculo e me permitira ultrapassar obstáculos nos estudos e ombrear com os condiscípulos, falhava agora na sua missão (não por incapacidade intrínseca, mas por falta de material!).

A leitura directa do braille é, em minha opinião, tão indispensável e insubstituível para um não-vidente como é indispensável e insubstituível, para um intelectual provido de visão, a leitura directa da escrita usada pelos que vêem. E quando falo de "leitura directa do braille", refiro-me - perdoe-se-me esta concepção de "velho bota-d'elástico imbecilizado" - à operação mesma de passar as mãos sobre o escrito e identificar as letras.

Não podendo seguir semelhante procedimento nem ao empreender o estudo de qualquer tema de matemática nem ao dar as minhas aulas, pois a já citada inexistência de material em braille e a minha igualmente já referida relutância às tecnologias modernas levam-me a tomar conhecimento dos conteúdos através das informações de outrem, dedico-me à leitura de livros de interesse geral, que existam escritos em braille, quando alguma disponibilidade de tempo me permita esse prazer. Entretanto, não quero deixar sem uma referência mais ampla que a feita no início, e que contempla a organização, em cada ano (se bem que com duração assaz efémera), de colecções de resultados desportivos; trata-se obviamente de um simples entretenimento, mas que me diverte e delicia, e que eu dificilmente faria se o braille não existisse, mesmo com as possibilidades fornecidas pelos computadores, uma vez que não conheço quem, dispondo dessas possibilidades, se dedique a tais brincadeiras e o admita de espírito aberto.

Resta-me destacar um pormenor, que me parece de grande importância. Do mesmo modo que pouco utilizo profissionalmente o braille para a leitura (de textos que não tenho neste suporte), assim também, e por razões de comunicabilidade, muitos dos textos que produzo faço-os escrever em tinta, quer dactilografados, quer através de ditado; ora, tenho constatado que, enquanto ao elaborar um texto em tinta me vejo muitas vezes forçado a inspeccionar partes já escritas, e que a memória não reteve a contento ou de que guarda recordações confusas, já a escrita de um texto em Sistema Braille decorre em processo fluente, sem demasiadas incursões ao passado, como se a memória, encontrando o fio condutor do seu bom funcionamento, ficasse liberta de perturbações. Isto é, penso eu, mais uma concludente prova de que "o meu amigo braille" e a minha pessoa temos uma empatia absoluta e recíproca, nos sentimos um do outro, estamos em perfeita sintonia, nos entendemos.

Este é o meu testemunho. Vale o que vale!

XVII - JOSÉ ANTÓNIO SARAIVA DE OLIVEIRA

Com 46 anos de idade, foi aos 10 que ficou totalmente cego. Nessa altura ingressa no Instituto Branco Rodrigues onde inicia o contacto com o braille. Desempenhou a sua actividade profissional como telefonista/recepcionista em diferentes regiões do país.

EU E O BRAILLE

Confesso que foi com alguma emoção que recebi e aceitei o convite para prestar o modesto testemunho pessoal acerca da importância que a escrita braille tem tido ao longo da minha vida, quer no âmbito privado, quer no profissional, já que retive nostalgicamente na memória os meus dez anos - altura do início da minha alfabetização -, o primeiro contacto com a pauta, com o punção, com o cubaritmo e, por conseguinte, o começo da tão almejada aprendizagem das primeiras letras através da combinação estratégica dos pontinhos mágicos. Questionei-me também sobre os parâmetros em que assentaria hoje a minha condição social, não só em termos culturais mas também no que concerne ao domínio profissional, como seria a imprescindível integração social (visto reportar-me a meados da década de sessenta, quando os cegos apenas podiam iniciar a instrução primária em colégios internos concebidos exclusivamente para eles, e que, como é óbvio, obedeciam a critérios de selecção, já que as vagas eram normalmente inferiores aos pedidos de ingresso). Talvez já pensando em tudo isto e também por estar impulsionado por um enorme desejo de aprender coisas novas, não me recordo de ter sentido quaisquer dificuldades na assimilação do Sistema Braille.

A profissão de telefonista, a apetência pela leitura e pela escrita fazem com que o braille se mantenha presente diariamente no meu espírito, até porque desde muito cedo aprendi a velha máxima que refere que "a escrita braille está para os cegos assim como a escrita a tinta está para os normovisuais". A intensidade e persistência com que os professores do ex-Instituto Branco Rodrigues me habituaram a ler e escrever o braille, primeiro na pauta e posteriormente na máquina, fizeram com que eu deixasse de entender cada letra apenas como um aglomerado de pontos sob os dedos, mas passasse a reter no cérebro também a configuração exacta de cada letra, como se de uma imagem se tratasse, à semelhança do que acontece com as pessoas normovisuais em relação às letras comuns. Podia assim, com absoluta segurança, concentrar toda a minha atenção apenas no conteúdo do texto que pretendia ler ou escrever. Esta prática, por que não dizê-lo, associada a alguma destreza, trouxeram-me imensas vantagens, já que a desenvoltura do tacto então adquirida permite-me observar mais pormenorizada e eficazmente tudo quanto estiver ao meu alcance. Não tenho pois a menor dúvida de que a leitura continuada do braille é o melhor processo para o desenvolvimento do tacto, indispensável especialmente a quem não goza do privilégio do sentido da visão.

Estou também plenamente convicto de que sem a preciosa ajuda do braille jamais conseguiria desempenhar cabalmente a profissão, uma vez que as dimensões e a índole da instituição onde exerço funções obrigam-me a lidar constantemente com um vasto manancial de números telefónicos inseridos em diversos ficheiros temáticos, à anotação sistemática de mensagens, etc.

O braille está de tal modo presente na minha vida que, de cada vez que tenho de deslocar-me a qualquer lugar, reservo sempre um espaço na algibeira ou na pasta para a régua braille, o punção e papel. Utilizo também o braille para etiquetar desde embalagens de medicamentos até simples caixas de graxa com a indicação das respectivas cores; copio os manuais de instruções de cada central telefónica nova com que tenho de trabalhar, bem como de outros aparelhos electrónicos que vou adquirindo; anexo a cada documento pessoal uma folha em braille com indicações precisas sobre o

seu conteúdo, chegando mesmo a transcrever os mais importantes para poder "vê-los" melhor.

No tocante ao sistema abreviativo do braille, entendo que a sua utilização tem vindo a decrescer substancialmente, sobretudo após a introdução do ensino integrado e também porque esse mesmo sistema tem sofrido sucessivas mutações em curtos espaços de tempo sem se perceber bem porquê. Eu utilizo o método abreviativo que aprendi inicialmente, mas apenas no âmbito estritamente pessoal. Atendendo à realidade actual, penso que não faz muito sentido investir no braille totalmente estenografado, uma vez que poucos o conhecem e menos o lêem. Quando muito, poder optar-se pelo sistema implementado pela revista "Ponto e Som".

As novas tecnologias que permitem a escrita, armazenagem e leitura do braille electrónico, como o Braille Lite, as linhas braille e tantos outros equipamentos com o mesmo fim, são para mim de importância crucial, visto que me possibilitam o acesso a um leque substancialmente mais vasto de informação sem precisar de ocupar grande espaço. No entanto, sempre que possível, dou preferência à leitura no papel, já que a acho mais agradável e menos agressiva ao tacto.

Relativamente ao uso de leitores de fita magnética e de sintetizadores de voz, entendo que deverão ser sempre encarados como simples opções, razão porque apenas os utilizo como último recurso, considerando também que, quando fruídos exageradamente, constituem um potencial entrave à prática duma escrita e leitura correctas; tornam as pessoas ociosas relativamente a essa mesma escrita e essa mesma leitura; dão azo a que muitas palavras sejam pronunciadas incorrectamente; a que as pontuações não sejam colocadas, muitas vezes, nos sítios adequados, repercutindo-se tudo isto negativamente nos vários aspectos pela vida fora. Não se trata claramente de mera opinião, pois conheço algumas pessoas que são vítimas destas situações. Reconheço, no entanto, que nem sempre são elas as principais culpadas pela utilização destes métodos, mas acabam, indubitavelmente, por serem as únicas prejudicadas.

Termino este modesto contributo, referindo que não basta apenas criar incentivos para a utilização do braille. É, isso sim, indispensável que as autoridades com responsabilidade nesta temática criem mecanismos conducentes a uma adequada especialização dos docentes, destinada principalmente àqueles que estão "vocacionados" para o ensino do braille aos cegos, sobretudo nos quatro primeiros anos de escolaridade, tendo em linha de conta que esta forma de escrita deverá ser-lhes ensinada paulatina e continuadamente, tal como acontece com o ensino dos caracteres comuns às crianças normovisuais (eu aprendi a ler e escrever o Sistema Braille com uma professora normovisual que o conhecia e dominava completamente). Não faço alusão a este aspecto pela simples vontade de querer imiscuir-me em assuntos do foro deontológico de outrem, mas simplesmente porque conheço alguns alunos, cujo ensino do braille apenas lhes é ministrado pelos professores do ensino itinerante três ou, na melhor das hipóteses, seis horas por semana, incluindo a correcção dos trabalhos de casa, porquanto os professores de turma não possuem o mínimo conhecimento deste sistema (a inclusão da disciplina do braille no Magistério seria, a meu ver, o ideal).

Perante isto, deveremos todos retirar as necessárias ilações, pugnando, à semelhança do que fizeram muitos dos nossos antepassados, para que o braille se imponha como principal veículo de estudo e cultura geral em prol dos cegos portugueses.

XVIII - MERCEDES GUERREIRO DOS SANTOS MARTINS MANO

Nascida nos anos 30 afectada de cegueira congénita, fez a sua iniciação ao braille com 10 anos no Instituto António Feliciano de Castilho. Habilitada com o curso superior de piano e curso geral de violino do Conservatório, foi contudo na área do ensino de braille que desenvolveu a sua actividade profissional.

GRATIDÃO

Obrigada, Luís Braille!

Essa tua maravilhosa descoberta dos seis pontinhos deu origem a um mundo de simbologia que permitiu às pessoas cegas que tiveram a felicidade de a conhecer, terem uma vida útil, rica de interesses sociais, e até lúdicos.

Só aos 10 anos tive a possibilidade de tactear essas "borbulhinhas" nos mais diversos tipos de papel (e diziam-me com voz um tanto áspera: não são borbulhas são pontos).

Aprendi com relativa facilidade, porque os meus dedos estavam bem treinados a mexer em coisas da praia: areia, pedrinhas, mexilhões, lapas, búzios, etc.; e, pouco depois indo viver para o campo, as folhas das árvores, os frutos, os ovinhos pequeninos dos ninhos das aves, o ovo a sair do rabo da galinha e aquela endiabrada chafurdice nas poças depois da chuva, fabricando brinquedos com a argila ali depositada!...

E ao longo da minha vida de ensinar os teus pontinhos, querido Luís Braille, como me foi dado constatar a necessidade premente de proporcionar às crianças cegas a utilização das suas mãos no seu próprio corpo e nos objectos mais diversos, desde a mais tenra idade.

Sessenta anos volvidos, praticando a tua inigualável invenção, Luís Braille, posso dizer que cinquenta desses anos eu fui feliz:- a alegria de aprender a ler e a escrever;- dominar a leitura de modo a adquirir sempre novos conhecimentos;- a leitura de obras magníficas que enriqueceram o meu espírito;- poder ler músicas sublimes de grandes compositores e interpretá-las;- corresponder-me com pessoas amigas;- ensinar através de todos estes anos muitas dezenas de crianças, adolescentes e adultos e...- até a dormir, às vezes o reflexo destes tantos prazeres aparece nos sonhos com grande nitidez.

Sinto que a minha vida tem sido útil e bem preenchida. E o mais fundo agradecimento é ainda e sempre para ti:

Obrigada, Luís Braille!

XVIII - AUGUSTO DEODATO GUERREIRO

Começou a aprender braille aos 14 anos, no Instituto Branco Rodrigues. Licenciado em História e pós-graduado em Ciências Documentais, doutorou-se em Ciências da Comunicação. É Técnico Assessor de Bibliotecas e Documentação, professor universitário e investigador. É membro da Comissão de Leitura para Deficientes Visuais e da Comissão de Braille.

BRAILLEO MEU VITAL E PROMOCIONAL INSTRUMENTO INTELECTOSSOCIAL Conheci e aprendi o Sistema Braille no Instituto Branco Rodrigues, onde entrei com catorze anos em 1963 e permaneci dois anos, o suficiente para fazer a então instrução primária e admissão ao liceu, estudando ao mesmo tempo música e os instrumentos piano e violino, e logo ficando ciente da vital importância deste processo natural de leitura e escrita para as pessoas cegas, sendo a outra face da comunicação verbal e a polivalência na representação signográfica que lhes faltavam. Depressa abracei o braillismo26, chegando mais tarde a ser transcritor27 e revisor de braille28, produzindo-o mediante o recurso a técnicas desde as mais elementares até às mais sofisticadas no plano da digitalização, aprofundando-o progressivamente nas vertentes braillográfica e braillológica29, e passando a utilizá-lo como instrumento sócio-educativo, cultural, intelectual e comunicacional indissociável e promocional de toda a minha vida. O braille passou a ser o meu inexcedível meio intelectossocial de incentivantes vantagens e de permanentes descobertas, permitindo-me estudar, ingressar numa carreira profissional e num percurso académico sem fim, avocar caminhos e novos mundos na ciência cognitiva.

Foi nesta amplitude (exceptuando outros pormenores de índole braillística30 que alongariam este depoimento e o exorbitariam do formato pré-estabelecido) que, impelido pela polivalência signográfica e vitalidade intelectossocial do braille, resolvi trabalhar uma questão comunicacional nova no plano da perceptibilidade sensorial, com especial incidência na hapticidade. Foi, entre outras razões, um motivo forte por que me decidi a investigar, a sistematizar e levar ao mais alto nível académico em Portugal um contributo tiflo-sócio-intelectual e interactivo como discussão científica para uma nova comunicação dos sentidos, alargando o paradigma comunicacional com uma vertente tiflológica repensada e sistematizada, que defendi com êxito na Universidade Nova de Lisboa como Tese de Doutoramento em Ciências da Comunicação, na especialidade Comunicação e Cultura, com o título "As Vantagens da Tecnologização da Tiflografia31: Contributos Tiflológicos para um Alargamento do Paradigma Comunicacional". Cabe aqui anotar que, em 2000, um Júri Nacional atribuiu a esta Tese o Prémio de Mérito Científico "Maria Cândida da Cunha" do Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência.

Este contributo resume-se nas vantagens da tecnologização da tiflografia associadas ao desenvolvimento pessoal e social do indivíduo cego, como o seu processo de comunicabilidade, sociabilidade, mobilidade, autonomia, independência e interacção na sociedade, com fundamental incidência na perceptibilidade dos sistemas sensoriais alternativos ao sentido da vista, desipervalorizando o visiocentrismo e equacionando a interligação sensorial e a percepção háptica, na tiflografia e braillologia, numa perspectiva logográfica e histórico-cultural. Trata-se de um novo olhar sobre as pessoas

cegas, em certa medida de uma reflexão sobre a emergência de novos dados para uma, se calhar, nova ciência do homem, a "tiflologia", que vem pôr em causa estruturas meramente teóricas baseadas em paradigmas mecanicistas, procurando ser um incentivo à reflexão e à construção de uma nova realidade no âmbito da problemática da cegueira. Esta investigação preenche uma lacuna no horizonte das Ciências da Comunicação, antecipando novos rumos da sua objectivização para que a identidade e o saber se renovem, se intensifiquem e se ampliem. Vestindo a problemática, quis partilhá-la essencialmente na comunidade científica para desmistificar concepções desconexas e sem fundamentação experiencial e teórica, dando corpo iniludível a este tão esquecido (ou negligenciado) domínio tiflo-sócio-comunicacional e tiflo-interactivo, sendo uma investigação que constitui um marco histórico nos planos da Tiflologia e das Ciências da Comunicação, o que ao mesmo tempo também promove a inclusão comunicacional, social e cultural das pessoas cegas. Embora o mundo nem sempre "mude com uma mudança de paradigma", contudo, depois dessa mutação, também estou convicto, como Thomas Kuhnn, de que o cientista passará a trabalhar num "mundo diferente". Não fora a importância de que se revestiu para mim o revolucionário e profícuo Sistema tiflográfico em questão e eu nunca exerceria as funções que tenho vindo a desempenhar, nem sequer teria este tipo de preocupação tiflológica e, muito menos, empenho na sua concretização científica.

Na realidade, o braille tem vindo aos poucos a ajudar as pessoas cegas a enfrentar, por vezes mesmo a ultrapassar, obstruções ambientais, electrónicas e comportamentais que impedem a sua total inclusão na vida em comunidade, a facilitar a promoção de políticas generosas que respeitem e consolidem a sua dignidade (atentando no inerente equilíbrio e nos benefícios que a sua diversidade exige), o calor do companheirismo e a alegria na partilha dos afectos, caminhando para a preponderância dos inadiáveis imperativos éticos solidariedade e tolerância na materialização do sonho da cultura inclusiva na excelsa beleza do mundo. Graças ao braille, também aos poucos as mentalidades têm vindo a mudar com a cultura e o esclarecimento. Penso que os fantasmas exorcizar-se-ão um dia, se calhar dando lugar a outros... Mas "a perfeição é atingida através de passos pequenos e calmos. Requer, sobretudo, a mão do tempo" (Voltaire). De resto, citando um provérbio chinês, "todas as grandes caminhadas começam por um primeiro passo". Será assim. Mas não poderá haver braços cruzados. "O conformismo é o carcereiro da liberdade e o inimigo do crescimento" (John Kennedy). Louis Braille venceu, emancipando os cegos de todo o mundo. Se formos vigorosos e consistentes nas acções e nas palavras, na militância vivencial e empunhando as nossas convicções, a nossa força falará por si mesma. Mercê das vantagens que o braille me tem proporcionado e dos novos caminhos que já me abriu, bem como da minha estrutura intrínseca, é que tenho subido a pulso a corda da vida e vencido. Posso afirmar que, a despeito de circunstâncias hostis à minha peremptoriedade na busca do mais ser, o braille, como instrumento comunicacional e intelectossocial vital, tem-me ajudado a conferir e a sistematizar mais obstinação aos meus propósitos, a persistir mais em caminhar na estrada da vida, no existir e no viver. Este testemunho - consubstanciado na tese atrás referida e na inclusão do braille em diversos domínios da minha responsabilidade, designadamente em currículos universitários - constitui uma veemente saudação, o meu mais vivo e eterno reconhecimento como profunda homenagem a Louis Braille. Tenho a certeza de que Louis Braille aonde estiver se encontrará, muito meritoriamente, pleno do mais sublime júbilo, porque a sua obra é um universo incomensurável de diversidades e de

inesgotável abertura de horizontes aos cegos do mundo inteiro, proporcionando-nos a outra dimensão da comunicação verbal e a polivalência na ampla representação das diferentes grafias que nos faltavam, desde a alfabética até à musical e científicas. Ampliou-nos, mesmo no plano dactilológico, as chaves da vida, dando, simultaneamente, outra voz às mãos das pessoas surdocegas. Por isso mesmo ele representa para mim um horizonte pluridimensional de multiplicidades que me prende nas suas asas, as intelectossociais, em que posso voar nos esplendores das universalidades, que me incitam e elevam em infindos horizontes, mesmo info-tecnológicos, soberbos de eloquências e afortunadas sublimidades. O seu genial Sistema abriu-me a estrada do êxito nos múltiplos e pluridireccionais rumos do saber humano, sendo o meu intrépido, vital e promocional motor intelectossocial para ascensão na vida.

XIX - JOSÉ ADELINO FIGUEIRA GUERRA

Nascido no princípio da década de 50, iniciou-se no braille aos 23 anos na Fundação Sain após um acidente militar. Licenciado em Direito e pós-graduado em Ciências Documentais, exerce a sua actividade profissional como bibliotecário. Prepara um mestrado em Direito, variante de jurídico-políticas. É membro da Comissão de Leitura para Deficientes Visuais.

A MAGIA DO BRAILLE

"Ninguém acode a curar a chaga cuja dor não experimenta; a falta de sentimento é signo instrumental da falta da vida; por esta causa creio que o tacto é o mais nobre sentido do homem: sem vista vive, sem ouvidos, sem olfacto, sem gosto: sem tacto não é vivente, porque a vida está mais formalmente em este sentido que em outro."Francisco Manuel de Melo(In Tacito Português, pp. 68)

Nos meados da década de setenta, vivia-se uma época em que os jovens estudantes cultivavam o gosto pela leitura, fonte inesgotável de conhecimento e de prazer. Em cada povoado ou aldeia deste país, pelo menos uma vez por mês, a biblioteca abria as suas portas (refiro-me ao importante papel desempenhado pelas bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian). Os meios audiovisuais (excepção feita ao cinema) ainda não ocupavam um espaço significativo no tempo e nos interesses dos jovens, as tecnologias da informação estavam ainda distantes da massificação que vieram a conhecer nos anos subsequentes. Acontecimentos marcantes como a Primavera de Praga ensaiada por Dubcek e o Maio de 68 ainda estavam vivos nas memórias, havia a proximidade e a certeza da Guerra colonial que nos impunha a urgência da compreender a realidade socio-política, a consciência indisfarçável da natureza não democrática do regímen político que teimosamente persistia no nosso país.

A leitura era uma exigência duma geração que se preparava avidamente para viver os tempos da mudança.

Quando se desperta dum coma de vários dias, quando o efeito dos lenitivos esmorece e permite o esvoaçar do pensamento, quando percebemos que não voltaremos a ver o que

nos circunda, sentimos que "o nosso mundo" está a esboroar-se como um castelo de areia, ficamos frágeis, indefesos.

Os que nos rodeiam injectam-nos doses de ânimo, pelo que começamos a relativizar a importância do muito que perdemos. Contudo, o inconformismo quanto à impossibilidade de ler agudiza-se, agora que as circunstâncias da vida nos traçaram limites que desconhecíamos.

Assim, o primeiro contacto que temos com o Sistema Braille assenta num estado emocional muito peculiar. Gera-se uma cumplicidade, um misto de encantamento e provocação que simultaneamente nos reabre as portas do conhecimento e serve de bálsamo à dor provocada pela cegueira adquirida.

Ainda hoje, à distância de vinte cinco anos, imagino como seriam insuportáveis os dias e noites de sucessivos internamentos hospitalares e períodos de convalescença sem os "Bichos" e os "Contos da Montanha" de Miguel Torga, ou a "Rocinha minha Canoa" e "O Meu Pé de Laranja Lima" de José Mauro Vasconcelos, escritos a duas linhas, para facilitar o exercício de leitura dos principiantes. E a "Poliedro"32, com os seus artigos intercalados, em Braille integral33 e abreviado, provocando o desafio para a aprendizagem dessa forma expedita de escrever e ler a escrita táctil.

Saradas as feridas do corpo e atenuadas as da alma, o Sistema Braille é ainda o caminho para a vida: sem o conhecermos, decerto não intentaríamos prosseguir a nossa formação com estudos universitários, onde se revelou insubstituível em muitas situações, não obstante o recurso alargado que fizemos dos registos sonoros.

Finalmente, o Sistema Braille haverá ainda de desempenhar papel determinante na nossa integração profissional, quando o Município de Coimbra nos oferece a oportunidade de projectar e constituir um serviço de leitura pública dirigido aos munícipes deficientes visuais, integrado na Biblioteca Municipal.

A Luís Braille, a minha singela homenagem!

XX - JOANA BELARMINO DE SOUSA

Começou a aprender braille aos seis anos no Instituto Adalgisa Cunha. Bacharel em Comunicação Social e mestra em Ciências Sociais, prepara o doutoramento em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da Universidade Federal da Paraíba, realiza actualmente um estudo analítico de semiótica aplicada ao Sistema Braille.

Para uma criança que nasceu cega, haverá pelo menos dois momentos que serão fundamentais em sua vida. O primeiro é aquele em que ela se dá conta de que é cega, em que ela toma consciência desse facto como uma experiência definitiva. O segundo momento é aquele em que ela estará diante de um livro aberto, tocando suave e

persistentemente os pontos da folha de papel à sua frente, quando de algum lugar do seu cérebro se desentranha a experiência da leitura.

Lembro-me nitidamente desses dois momentos cruciais em minha vida. Em artigo publicado na Revista Benjamin Constant, n.º 18 (Agosto de 2000), pude relatar o primeiro confronto revelador com a minha cegueira.

Eu estava com quatro anos e brincava de "ver", no quintal de terra batida em casa dos meus pais. Girava por entre as pedras, experimentando a experiência cinestésica de as perceber, quando calculei mal a distância entre a rocha dura e minha própria face, assinando com meu próprio sangue a compreensão que então se fez em minha mente: A cegueira era minha realidade permanente e eu teria que aprender a enxergar o mundo com ela.

Dois anos depois, eu e meus outros irmãos cegos formávamos um grupo contrito diante da casa dos meus pais. Iríamos estudar em uma escola especial, num outro Estado, a muitas milhas de distância da nossa casa.

Eu era a menor de todos e experimentava também pela primeira vez, uma saudade antecipada a plantar suas estacas em meu coração, ao modo das cercas que meu pai erguia nas fazendas, para aprisionar o gado e as plantações.

Naquele dia, meu pai me ergueu em seus braços e disse-me que eu poderia ficar, se quisesse. A cachoeira das lágrimas não impediu que as palavras brotassem firmes da minha boca: "Eu vou, pai".

Foram muitas angústias, muita saudade de casa, até que numa tarde, enquanto tocava suavemente os pontos em relevo no livro do primeiro ano, um riso de prazer foi redesenhando meu rosto, estufando minhas bochechas, enquanto meu cérebro e minha mão combinavam o relevo braille em palavras e frases.

No segundo ano eu já lia fluentemente e passava todas as horas de folga junto dos livros. Era com os personagens de Monteiro Lobato que inventava minhas brincadeiras infantis. Criei meu próprio pó de Pirlimpimpim, e agora, longe das pedras, voava pelos longos terraços da escola especial, sob o efeito daquela mistura.

Mas não era somente a leitura que me fascinava. Aos nove anos, ampliei o meu rol de brincadeiras e criei minha própria biblioteca. A escola recebia mensalmente, lotes e mais lotes de revistas médicas. Muitas delas serviram como matéria prima para os livros que eu escrevia. Tinha ali, minha versão particular para a obra "Reinações de Narizinho", e como andava encantada pelo título do livro "Alice no País das Maravilhas", criei uma versão ingénua para a obra que nunca lera.

Cresci com a escrita e a leitura braille sendo os "lugares" para onde me evadia, quando precisava abstrair-me do mundo material. Mais que isso, cresci com a leitura e a escrita braille sendo as ferramentas fundamentais que me auxiliavam a forjar a minha visão particular do mundo.

E veio a faculdade, e veio o meu primeiro emprego no Jornal O Norte, o maior em circulação no estado da Paraíba. A década de oitenta ainda não tinha nos legado as

facilidades da informática. O braille foi então o grande aliado naquela etapa da minha vida profissional.

A reglete34 e o punção eram meus auxiliares directos na tomada dos factos diários que eu cobria, e que depois dactilografava na antiga máquina da redacção, compondo com os outros colegas, a música frenética de noticiar o mundo que seria lido no dia seguinte.

E um dia desses, sem nenhum aviso, do porão das lembranças, brotou a experiência das pedras da infância. Como se daquele choque primordial pudesse emergir um instantâneo da minha vida, a exibir uma pergunta que por todo o tempo, inconscientemente, havia ocupado o meu cérebro: O que vê a cegueira? Que tipo de visão habita a minha experiência pessoal de ser cega?

Compreendi então que o choque com as pedras, para além de um facto rotineiro na vida de uma criança cega, marcava o ritual de iniciação da minha consciência na realidade da cegueira. Compreendi que fora o braille, colado à minha história pessoal, que dera maior visibilidade e clareza a esse meu percurso de tentar enxergar essa realidade como uma forma de visão.

Compreendi também a força do riso infantil que havia saudado o esforço do meu cérebro e da minha mão, ocupados em desvendar o mundo em relevo que passaria a habitar quase todas as horas da minha experiência de vida. O riso primeiro fora pouco a pouco transmudando-se em entusiasmo, alegria, tenacidade por ler/escreviver o mundo que me rodeava. E pouco a pouco, como de um casulo, foi emergindo a preocupação científica com a qual estou ocupada agora.

É comum afirmar-se que o Sistema Braille promoveu uma verdadeira revolução na vida das pessoas cegas. Conhecemos de perto o capítulo das chamadas conquistas sociais; sabemos que o braille qualificou sobremaneira a posição desses indivíduos no espaço social mais amplo, permitindo-lhes aceder às esferas as mais variadas, no âmbito profissional, intelectual, estético, afectivo, etc.

Para além dessas conquistas sociais, é necessário que apreciemos, no entanto, um outro tipo de revolução advinda com o invento de Braille. Falo de uma revolução menos visível, porém, bem mais complexa, porque exige o olhar atento de um conjunto de ciências preocupadas com a evolução da vida na terra, e com as soluções bioantropológicas que qualificam e refinam a permanência dos seres da espécie humana no planeta.

Falo pois, da revolução bioantropológica que o sistema dos seis pontos de Braille disparou nos cérebros das pessoas cegas, revolução esta que do ponto de vista do tempo gasto pela natureza para engendrar a evolução das espécies se processa num tempo imensamente curto, porque é certo que transcorreram milhares e milhares de anos em que se produziu um profundo hiato, um fosso aparentemente intransponível entre a cultura da escrita e os indivíduos cegos. Milhares e milhares de anos, até que surgisse a solução adequada que viesse pôr fim a esse hiato e fosse apresentada a interface que permitiria aos cegos de todo o mundo, o acesso à cultura escrita.

Num dia qualquer da segunda década do século XIX, um garoto franzino tocou pela primeira vez num arranjo duro de seis pontos justapostos e deflagrou com seu gesto, o

nascimento de um acontecimento primordial na vida das pessoas cegas. Que diálogo teria se estabelecido entre a sua mão e o seu cérebro? Que tipos de sinapses e conexões compareceram em seu newcórtex, no acto primeiro da decifração desses seis pontos em letras e palavras? Qual o endereço neuronal dessa transação entre mão e cérebro, a partir dessa nova interface de tradução do mundo da escrita? Em que medida nossos cérebros são hoje mais funcionais, mais competentes, do que os cérebros anteriores ao invento do braille, em que dormia a possibilidade dessas conexões novas disparadas a partir da leitura e da escrita em relevo?

Todas essas perguntas são fascinantes, e exigem mesmo que lhes seja dada a devida atenção, por parte das ciências competentes. No entanto, ainda que não possuamos o mapa completo dessa revolução bioantropológica, podemos extrair de tudo isso uma conclusão fundamental: A célula de braille qualificou e refinou o universo táctil, convidou-o a uma empreitada muito mais complexa do que o desempenho de simples tarefas mecânicas de discriminar objectos, ou de desenvolver habilidades manuais para o encaixe de peças, serviços de tecelagens e outros; convidou-o ao exercício de engendrar e descodificar a competente plataforma que de agora em diante permitiria aos indivíduos cegos o registro e o acesso à memória cultural escrita, tida talvez como um dos maiores legados da humanidade.

Para que se compreenda a vastidão dessas questões, é necessário pois que se realize o esforço de olhar para a recente história do código braille, sob o foco das visões sistémicas e semióticas, as quais desaguam necessariamente no campo da informação e da comunicação. As páginas desse artigo foram o "lugar" provisório de onde apresentei algo do meu próprio esforço, limitado e particular nesse sentido.

Muito do que aqui abordei está ainda em fase de "proto/experiência", exercício de fazer perguntas, estabelecer conexões, escavar as formas de relações presentes entre essa história e a cultura onde ela está sendo gestada.

E uma "imagem" última me ocorre agora e o meu cérebro forja dedos invisíveis que a examinem. Essa história assemelha-se mesmo ao novelo azul de Maria de Guavaíra. Mas um novelo que perdeu sua forma bojuda, e cresce estranhamente, arredondando-se em alguns pontos, sutilizando seu tecido de linha em outros, alargando-se aqui e ali, em múltiplas ramificações.

Um novelo que é um todo e suas partes, a tecer suas relações e criar o complexo.

Pois falar de Sistema Braille é falar do complexo, tocar no primordial da essência humana, com dedos que "assinam" no mundo a sua forma de visão*.

* Alusão ao romance do escritor português, José Saramago, "A Jangada de Pedra".

XXI - VÍTOR REINO

Nascido a meio da década de 50, perdeu a visão aos seis anos em consequência de um violento acidente. Descobriu a magia do braille com nove anos no Instituto Branco Rodrigues. Psicólogo no Ministério da Educação desde 1983, é membro da Comissão de Braille e da Comissão de Leitura para Deficientes Visuais, actividades que procura compatibilizar com o estudo e a prática da Música.

NOS 150 ANOS DA MORTE DE LOUIS BRAILLE

Se é verdade que a escrita em geral condiciona e modela de certa forma a estrutura lógica e o alcance do pensamento do homem moderno, o braille em especial tende particularmente a acentuar esse fenómeno, em razão da sua perfeita adequação psicofisiológica e da impressionante harmonia que realiza com o sentido do tacto. Efectivamente, se a visão admite com maior ou menor dificuldade a coexistência de diferentes formas de representação escrita, assentes em diversos códigos e processos semióticos, o tacto, pela sua matriz eminentemente analítica e pela especificidade do respectivo campo perceptivo, exige um sistema de representação escrita único e perfeitamente ajustado ao tipo particular do seu funcionamento sensorial. O braille surge, então, inevitavelmente, como a resposta superior que só o superior engenho de um cego genial poderia proporcionar, por apenas ele possuir a vivência directa e experimentada da centralidade do tacto na sua relação com o mundo. Não foi impunemente que o braille se afirmou como "meio natural de leitura e escrita das pessoas cegas": é que, mais do que a escrita vulgar normalizada, ele justifica incontestavelmente o estatuto que lhe é conferido em tão feliz asserção.

Sem o Sistema Braille, seria hoje possível aceder à informação escrita nomeadamente através dos modernos meios de registo e síntese de voz, mas não disporíamos de um instrumento valorizador e potenciador do tacto que nos permite penetrar no âmago da palavra escrita com a eficácia do olhar e talvez com mais profunda intimidade. Não esqueçamos que o tacto é, por excelência, o sentido da proximidade e da relação íntima, aquele que normalmente reservamos para as situações de maior envolvimento afectivo-emocional! Quem pratica ou apregoa o abandono do braille e a sua substituição por recursos assentes na audição, não imagina até que ponto está a preconizar a renúncia de algo de verdadeiramente sublime e único, de uma enorme riqueza humana e de um alcance psicológico incalculável.

As palavras eloquentes de T. V. Cranmer sugerem inequivocamente a natureza quase transcendente que o braille reveste: "Há qualquer coisa de místico, miraculoso e não inteiramente compreendido que acontece quando os dedos treinados e experientes de um leitor cego desvendam os padrões simétricos dos pontos braille que transferem para a sua mente consciente palavras, pensamentos, ideias e emoções provindos de um amigo ou de pessoas há muito desaparecidas." De facto, o braille não constitui um mero código mais ou menos secreto que opera a transposição dos símbolos da escrita vulgar para sinais tangíveis perfeitamente dimensionados ao espaço perceptivo da polpa do dedo: é uma forma de sentir, de se apropriar, de se relacionar, de combater a indelével condição vivencial que o indivíduo cego carrega consigo; o braille possui um calor próprio, uma emoção, um afecto, uma carga profundamente humana que deriva da natureza mais intrínseca do tacto, esse sentido ainda tão insatisfatoriamente estudado e compreendido e que os olhos tendem a desvalorizar porque ele representa potencialmente uma mais-valia susceptível de ameaçar o seu domínio omnipotente e sacrossanto.

Mais do que um código ou um sistema que me permite aceder à leitura e à escrita, o braille assume para mim o papel de um prolongamento do meu próprio corpo, uma parte integrante da minha forma de estar e sentir ou percepcionar o mundo envolvente. A célula braille e a matriz básica de seis pontos que nela se inscreve configuram dalgum modo a minha relação com as coisas e as ideias, como se constituíssem uma rede, uma

membrana quadriculada que se interpõe entre mim e o mundo. Para mim, o braille está na ponta dos meus dedos como se desde sempre lá tivesse estado, como se fosse uma consequência natural de sentir e tocar, autêntica forma instintiva de perceber e enfrentar a realidade exterior. Nesta medida, o braille é para mim uma paixão constitutiva, um "órgão vital" de apropriação do mundo, que eu não dispensaria nem em troca do mais sofisticado e eficaz processo de leitura/escrita. A Louis Braille fico a dever, mais do que o acesso ao mundo da escrita e da cultura literária e científica, a dádiva de uma "prótese" pessoal, de um modelo cognitivo-sensorial de comunicação, de um fecundo instrumento gerador capaz de conduzir a uma verdadeira estética do tacto.

Nos 150 anos da morte de Louis Braille, a mais significativa homenagem que cada um de nós pode prestar à sua memória é aceitar essa prodigiosa dádiva que nos legou, usar e abusar do seu Sistema, ajudar os seus potenciais destinatários a superar quaisquer ideias preconceituosas ou associações de carácter estigmatizante que envolvam a imagem do braille, experimentando-o sem subterfúgios, e, acima de tudo, promover incansavelmente a sua prática que nos enriquecerá como seres pensantes e como seres sensíveis.

XXII - JERÓNIMO NOGUEIRA DA SILVA

Nascido no final da década de 50, fica cego aos 24 anos vitimado por um acidente de viação. Nessa altura faz a sua iniciação ao braille no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos. Licenciou-se em Filosofia em 1987 e fez uma pós-graduação em formação educacional em 1989. A partir desta data passa a leccionar no ensino secundário.

BATALHAS BRAILLANTES

Braille-Amigo(Ao Pedro e ao Alexandre, a brincar)

Braille é o alfabetoQue se toca para se ver;O Braille é um AmigoQue o cego tem para ler!

Ora vejam a letra "a"Que parece um mosquitito;Passeiem o dedo por láE sentirão um piquito;

E agora a letra "e",Deu-lh'o vento, 'tão à espreita?Com um ponto mais acima,Outr'em baixo, à direita! E vejamos a letra "i",

Dois pontitos muito iguais:Parecem gémeos do "e",Apalpa-os e verás mais!

Já cá temos a letra "o",Que parece uma seta;Mas podes pôr o dedo láQu'ela 'tá muito quieta!

Visit'agora a letra "u",Adivinhar apetece:Toca lá tu nela e vêE diz lá o que parece?!

Chegamos agora ao "g",Digam lá com o deditoSe parece uma bolaOu é antes quadradito?!

E ficamos todos assim Com uma pequena lição:Braille é para o cego,Um Amigo sempre à mão!

Ceguindo

Desconheces os dedos que lêem,Pensas que são falidosMas eles não vão perdidos:Encontram e também vêem!

Lembram os olhos a rodosQue buscam o essencial:Trilhos do espiritualQue a terra dá a todos!

Cataloga-se a diferençaComo sendo uma crençaDe seres tão coitadinhos.

É a ignorância humanaNa revelação profanaDe outros e novos caminhos!

belas-vistas

ao acoitar coisas belasarrepanho minhas penasarrebato-as pequenas

não sucumbindo com elas

povoado largas vistasarrisca e afivelanão tenha revés tua velarumada muitas conquistas

desbravador por ofícioconcilias artifícioespaço de más e de boas

e minhas asas agumasem belas-vistas qu'aprumasao acoitar minhas proas

passarinheira

poisadas em teus decotesminhas mãos se te dedicamacercando pontificamos pudores que são teus dotese muitos cuidados suplicam

apaladados nos motesencantes diversificame amorzinhos debicamazafamando derrotesem rubores que magnificam

nunca és de pouca durapois incansável devotasna candura com que brotasbenfeitoria ternurae passarinho me adoptas

XXIII - PEDRO ZURITA

CARTA ABERTA A LUÍS BRAILLE

Pedro Zurita

Montevideu, 25-27 de Março de 1996

Querido Luís,

Não falta quem me julgue tonto por esta mania que agora me acometeu de escrever a personalidades que já passaram a outra dimensão.

Foi assim que...

Em Novembro passado fiz chegar uma carta a Valentin Haüy36, a partir de Paris, na qual partilhei com ele os êxitos e as dificuldades que os cegos têm desfrutado e enfrentado no campo do emprego em todo o mundo. Com certeza que muito gostarias de a ler, e também de saber que uma revista francesa, com o teu nome, a publicou em Março. Vou tentar enviar-te uma cópia via Internet (certamente que tens acesso a esta rede e que não te dirão, como a mim me disseram, que davam ligação no mês seguinte).

Luís, há coisas que às vezes me entristecem e outras que até me irritam. Pessoas houve, e ainda há, que não compreendem o valor do teu Sistema e que estão constantemente alerta a ver se aparece algo que o substitua. Serão estúpidas?! Confesso-te que a primeira vez que pus os dedos sobre uma folha escrita no teu código (tinha 10 anos) cheguei a assustar-me; e, cá para mim, pensei que nunca iria decifrar aquele caos de pontos. Contudo, poucos meses depois de estar numa dessas escolas a que chamam "especiais", superei essa barreira psicológica e comecei a ler através do tacto com grande facilidade.

É muito provável que, embora isso nem sempre se manifeste explicitamente, a hierarquia das pessoas se traduza em função da sua capacidade sensorial; e como quem vê é melhor que quem vê pouco, e quem vê pouco é superior a quem nada vê, sempre que haja um resíduo visual, por menor que seja, recomenda-se ao seu detentor que aprenda a ler a tinta e, em muitos casos, nem se informa o próprio nem a família da existência do braille. Contudo, é justo assinalar, Luís, que naquele tempo longínquo em que eu ia à escola, a meninos que viam bastante obrigavam-nos a ler no teu código com os dedos e, claro está, como isso em nada os motivava, preferiam jogar futebol a dedicarem-se ao estudo.

Quando, no princípio dos anos 70, apareceu um aparelho chamado Optacon37 (é verdade, Luís, foi uma coisa revolucionária), li em muitos sítios que tinha chegado o fim do braille. Porquê tanta animosidade, Luís? Acaso ler com os dedos é algo de obsceno?...

Bem sei que tu, depois de discutires horas e horas com Charles Barbier38, te decidiste por que as combinações de seis pontos eram a melhor opção para a percepção táctil. Claro que estavas muito consciente de que o ponto se adaptava ao tacto melhor do que a linha.

Quando apresentaste a tua ideia à direcção do Instituto, a tua ousadia não agradou aos professores normovisuais. Pensavam que aquilo a que os cegos unicamente poderiam aspirar seria inscreverem-se nos serviços secretos. O teu código - diziam eles - constituía uma indesejável barreira para a comunicação entre os que vêem e os que não vêem. Estou consciente de que te esforçaste muito para os persuadir de que, com o teu método, a leitura seria muito mais rápida e que, por isso, o acesso à informação se tornaria muito mais completo.

Porém, lamentavelmente, tiveste que ir-te deste mundo sem a satisfação de saber que as pessoas entenderam o essencial do teu Sistema.

Permite-me, Luís, que partilhe contigo a minha frustração, a minha dor quase, pelo facto de, numa mudança de pertences da minha casa paterna alguém ter utilizado como pasto das chamas os livros escolares que, ditados por meu pai, pelo meu professor e por alguns vigilantes da minha escola, escrevi ou simplesmente copiei eu próprio a partir de materiais que encontrava nos sítios mais inesperados. Quantas horas roubei naqueles anos da minha tenra adolescência ao tempo que, naturalmente, poderia ter dedicado ao ócio ou a refeições em conjunto, para fazer, à força de pauta e punção, a minha própria biblioteca infantil. E sabes, Luís, o que me responderam quando inquiri porque tinham feito aquilo!? "Porque ocupavam muito espaço".

E coisa semelhante me sucedeu, depois das férias do Verão europeu, ao regressar à minha residência universitária: todos os meus volumes braille tinham desaparecido. Ao descobrir o autor de tamanho feito, o que respondeu foi isto: "É que eram tão grandes e tão feios..."

E, já que aludimos à estética, que perguntem (digamos) aos amigos da Fundação Braille do Uruguai, de Montevideu, se um livro braille pode ou não pode ser bonito.

Declaro solenemente, Luís, que o teu Sistema está completamente inocente no atentado ao senso comum que levou mais de uma pessoa a aconselhar-me a que não lesse braille no autocarro, no comboio, no avião, porque chamava demasiado a atenção e dava de mim uma imagem negativa.

E, Luís, gostaria que percebesses bem a rebeldia interior que experimentei, quando no ano 90 encontrei na Mongólia um cego, um matemático que gozava de grande prestígio científico naquele país, que tinha perdido a vista aos 30 anos e tinha encontrado certas condições favoráveis para se dedicar à docência universitária... Quanto me doía, Luís, ouvir o seu relato das horas que passava com um gravador memorizando reflexões, conclusões, fórmulas matemáticas! Tinham-lhe dito, Luís, que o braille de nada lhe iria servir. E sexta-feira passada, no Líbano, um alto dignitário do Governo apresentava com orgulho, pessoalmente e pelo telefone, as pessoas cegas que, graças à sensibilidade deste governante, tinham encontrado ocupação em escritórios governamentais. Mas que pena, Luís, que a única pessoa que conheci directamente, fruto dos êxitos conseguidos naquele lote de boas intenções, com quem tive a oportunidade de falar, tivesse respondido negativamente à minha interrogação sobre se tinha aprendido o braille!

E, quiçá, Luís, não valha a pena continuar a dar-te conta deste tormento de injustiças cometidas contra o teu Sistema maravilhoso, as quais - estou em crer - na maioria dos casos nasceram muito provavelmente da pura e simples ignorância ou, inclusivamente noutras ocasiões, em nome da boa fé.

Felizmente, vista a situação a partir daqui e de agora, essa genial ferramenta libertadora que nos legaste tem também uma história luminosamente alentadora; e os que a valorizam, a entendem (inclusivamente a amam), são hoje muitos e, entre eles, Luís, sem dúvida alguma, estão todos os que neste momento têm a paciência de escutar esta carta que, com tanto entusiasmo e carinho, de Montevideu te faço chegar. O teu Sistema - chamamo-lo pelo teu apelido39, o Braille - ensina-se nos Estados Unidos, cada vez mais nos últimos meses, porque apesar da obstinação de alguns, outros lutaram para que nas leis de muitos Estados da União se adoptasse o princípio de que, como um direito mais, o braille deve ser do conhecimento de quem o desejar.

O teu braille produz-se hoje a custos inimaginavelmente inferiores e em quantidades espectacularmente superiores em relação ao que sucedia há pouco tempo. E isso é assim, Luís, porque muitos cegos e normovisuais acharam que valia a pena usar de imaginação e inteligência na procura de formas que tornassem possível aplicar à sua produção as descobertas da informática e da electrónica. De facto, Luís, a tecnologia não está a tornar supérfluo o teu código, tão extraordinariamente simples, antes está potenciando as suas possibilidades. Para mim, e para muitos outros, já não é uma utopia consultar, por seu intermédio, dicionários volumosos e enciclopédias, utilizando cd-rooms e outros mecanismos de acesso electrónico. Tão-pouco tenho já que preocupar-me com a viabilidade de fazer a minha biblioteca pessoal que, na realidade, será a minha biblioteca braille, uma vez que o problema do armazenamento agora é viável, mercê dos sistemas de memorização electrónica.

E gostaria, Luís, que tivesses a bondade de continuar a dar-me atenção para te inteirares de alguns episódios que reflectem atitudes diametralmente opostas às relatadas na parte inicial desta carta:- Refiro-me ao que sucedeu com aquele professor de semântica que, quando em 1971 fazia um curso de Verão em Cambridge (Inglaterra), ao inteirar-se de que eu ia estar entre os seus alunos, lhe ocorreu, louvavelmente, nem mais nem menos que a engenhosa e ingénua ideia de ter preparados para o princípio da classe todos os diagramas que tinha conseguido produzir com uma esferográfica. Não faltavam sequer, Luís, as letras correspondentes, feitas precisamente com o teu código, com a ajuda de um alfabeto que alguém me tinha pedido discretamente sem eu saber para quê.

- O caso duma certa jovem no aeroporto de Tóquio, em Dezembro passado, que enquanto tentava resolver os problemas práticos relacionados com a abordagem do avião que havia de levar-me de regresso a Espanha, me disse com dissimulada alegria: "Aqui tem, senhor, as folhas de que se esqueceu no avião há uma semana". Pensa só, Luís, que a minha intenção era que fossem para o lixo, porque já não precisava delas. Graças aos meios modernos, posso fazer isso com frequência.

- A senhora encarregada de um serviço ao domicílio, que há poucos dias se interessou por averiguar como fazia eu para distinguir a enorme variedade de pratos que compunham o almoço dietético que tinha contratado. "Não muito bem". (E poupo-te, Luís, os detalhes do incidente em que incorri, pois me falharam as minhas capacidades olfactivas de reconhecimento). Que bom constatar a reacção que ela teve. "Vou ver o que posso fazer". Na próxima vez os recipientes vinham com adesivos, mediante os quais ela convencionou que um arredondado fosse a sobremesa, uma cruz o prato principal e uma linha a entrada. O mal foi que quis ir tão longe que também pôs no seu conceito de escrita em relevo os nomes de cada coisa. E, entusiasmada, voltou a contactar-me para avaliar dos resultados do seu intento integrador. Perante tamanha boa vontade, atrevi-me a propor que enviaria imediatamente etiquetas adesivas para escrever braille com um punção e uma pequena régua, em que nas costas se podiam ver as letras do teu alfabeto, e o repto não a assustou de modo algum.

A partir de então, sem erro algum, tudo vem etiquetado no teu Sistema. Dessa forma já posso distinguir sem dificuldade a salada da carne. Que alegria, Luís, por haver conseguido transformar a sua inicial atitude protectora, tipo Valentin Haüy, numa outra

muito mais emancipadora, que é, na realidade, Luís, precisamente a que o teu Sistema possibilita.

Estou certo, Luís, de que vais acreditar se eu te disser que não desejo, de forma alguma, ser excepcional nem privilegiado; que desejo, de verdade, que todos esses meninos e adultos que ainda encontro na Ásia, em África, na América Latina, dedicando um esforço e um tempo preciosos a copiar à mão os livros que outros facilmente lhes poderiam produzir, tenham acesso às ferramentas e materiais básicos que hoje já existem. Não duvido, Luís, de que me apoiarás na petição que formulo a um tal David Blyth40, que me disseram que representa os cegos de todo o mundo, e a uma jovem senhora, muito eloquente e inteligente, chamada Norma Tocedo41, a quem, segundo me informei, encarregaram de promover a melhoria de oportunidades de alfabetização, no sentido de que, um e outra, façam quanto esteja nas suas mãos para que o meu fervoroso desejo não se fique num sonho quimérico.

E sabes o que te digo, Luís?... Que desde há bastante tempo não me importo nada do que alguns pensam sobre a minha imagem. Exibo com orgulho o teu invento em qualquer parte. Leio material como tu desenhaste, de pé, deitado, sentado... como quer que seja. E, no meu bolso, nunca falta essa reguazita que pus à disposição da senhora das minhas sobremesas e alimentos. E foi o teu código, Luís, que a muitíssimas pessoas cegas - e a mim também, está claro - deu dignidade, liberdade, autonomia e muitas horas de incomparável desfrute espiritual.

Prometo-te solenemente ser-te fiel, ainda que saiba que ao fim e ao cabo, seja por que caminho for, duma ou de outra forma, se alguém algum dia encontrar algo que supere o Sistema que tu propuseste ao mundo em 1825, tu, eu e todos nós, nos alegraremos sobremaneira.

Teu afectuosíssimo,

Pedro Zurita

XXIV - TIM CRANMER

Tim Cranmer foi Presidente do International Braille Research Center e Director para a investigação na National Federation of the Blind, NFB, dos Estados Unidos.Em dois artigos intitulados "A Touching View of the World" e "A Call for Research on Braille Reading & Haptic Perception", publicados em "Braille Monitor", revista editada pela NFB, nos vols. 40, de 1997, e 43, de 2000, Tim Cranmer escreveu:

É surpreendente que se saiba tão pouco sobre como os cegos escrevem e lêem braille. E é ainda muito mais surpreendente, quando se sabe que está reconhecido que a escrita é, sem dúvida, tão importante para os cegos como para as pessoas que vêem. Desempenha para mim a mesma função que para vós, aí na assistência, com os vossos lápis e esferográficas sempre à mão.

Há algo envolvendo a palavra escrita que delicia o espírito humano. Algo de místico, de miraculoso e não completamente explicável, que acontece quando os dedos treinados e experientes de um leitor cego percorrem as combinações dos pontos braille que

transferem para o seu espírito concentrado palavras, pensamentos, ideias e emoções de um amigo ou de alguém já há muito falecido.

A escrita, em todas as suas formas, é uma maravilhosa invenção do Homem. Encontrar os nossos nomes escritos, os vossos e o meu, em tinta ou em braille, não cessa de nos dar prazer.

O braille é a linguagem escrita dos cegos. Seria difícil sobrestimar a sua importância. É lamentável o facto, hoje em dia tantas vezes repetido, de 70% das pessoas cegas estarem desempregadas ou subempregadas. Mas também não podemos deixar de lamentar o facto de, quase sempre, se dar insuficiente relevância a que 90% das pessoas cegas que lêem braille estão colocadas em bons lugares.

O braille parece mágico aos que esqueceram que as crianças se estendem, instintivamente, para alcançar, para tocar as coisas que vêem, para melhor se apossarem dos seus novos horizontes. O braille parece místico aos que esqueceram que as crianças querem ter um brinquedo nas suas mãos, e não apenas deter-se para o olhar. De vez em quando devemos recordar-nos de que tacto e vista são parceiros na hierarquia dos sentidos. Muitíssimos educadores partilham uma certa indiferença do público face à importância do braille para as pessoas cegas que o dominam. Depois de décadas de negligência dos seus professores de apoio, muitos indivíduos cegos têm sido levados a acreditar que existem alternativas viáveis à aprendizagem do braille. Não há nenhuma. Estas pessoas, cultas, que acreditam que há substitutos viáveis para o braille, não poderiam deixar de troçar ante a ideia de que existem, para os normovisuais, substitutos para a escrita a tinta.

Não há nenhuma diferença qualitativa entre as coisas que eu vi e as que tenho apalpado.

O sentido do tacto é um digno parceiro da visão para percepcionar o mundo real e para compreender os objectos materiais, os conceitos e as relações. É um canal paralelo da percepção que deve ser desenvolvido para os cegos, tal como o aperfeiçoamento da acuidade visual tem sido, de há muito, objecto de investigação para os normovisuais.

Precisamos conhecer melhor a fisiologia do tacto. Precisamos de medições rigorosas da amplitude da banda de transmissão através do sentido do tacto, isto é, saber: Quantos canais paralelos podem estar a levar simultaneamente dados tácteis para o cérebro? Quantos bits por segundo podem circular por um canal táctil? Quais são as limitações fisiológicas inerentes à comunicação táctil?

Precisamos mais informação sobre o reconhecimento háptico de objectos grandes e pequenos e sobre como se adquire e se conserva um imaginário táctil a partir da experiência prática dos indivíduos cegos. Em que medida se apresenta a interpretação háptica dependente do contexto? Esta lista de possibilidades para investigar pode ser acrescentada indefinidamente.

Imaginem por favor esta experiência háptica, como eu fiz há muito tempo. Adormeci no assento central de um avião. O lugar à minha direita estava livre. O que quer dizer que estava vazio quando adormeci. Ao despertar, tirei a mão direita do braço do assento e deixei-a cair no lugar do lado. Veio a pousar em cima de um joelho nu. O tempo que a mão permaneceu sobre o joelho não foi mais que milésimos de segundo. Mas foi

suficientemente longo para me permitir tomar consciência de que a mão podia ter-se movido, que havia um passageiro no assento que antes estivera vazio, que o passageiro usava calções ou mini-saia, que era provavelmente uma jovem ou um jovem. Tivesse eu podido deixar cair a mão uma segunda vez, e podia ter percebido o género e idade do joelho e o grau de desconforto experimentado pelo seu proprietário.

Os cientistas têm-se preocupado através dos tempos com tornar visíveis aquelas coisas e fenómenos que não podem ser vistos a olho nu. O telescópio foi inventado, e tem sido continuamente aperfeiçoado durante séculos, para permitir ao homem ver pontos de luz cada vez mais fracos de estrelas cada vez mais distantes da Terra. E para detectar a presença de matéria negra, estudamos as órbitas distorcidas das estrelas visíveis e inferimos a massa das suas companheiras invisíveis. No extremo oposto inventámos o microscópio para ver partículas, a uma escala cada vez mais reduzida, e de novo inferir a presença de outras partículas ainda invisíveis, fotografando rastos da sua passagem através de líquidos, plasmas, e outros campos electromagnéticos. Manipulamos os raios X para perscrutar o interior do corpo humano e outros corpos opacos de interesse. Tornamos sensíveis as ondas eléctricas e imprimimos as suas formas em papel para observar as funções do cérebro, do coração e doutras estruturas biológicas. A lista das ferramentas e técnicas inventadas para permitir a observação visual, sobre que se têm escrito inúmeros volumes de informação, podia ser consideravelmente aumentada. E, apesar disso, o esforço para aperfeiçoar a nossa aptidão visual não pára.

Convido-vos a substituir no parágrafo precedente a palavra "ver" e seus derivados pelas correspondentes formas do vocábulo "sentir". Saberão então onde quero chegar com esta comunicação.

Muito do que sei do mundo real aprendi-o através do tacto. O conhecimento alcançado pelo tacto é, por definição, palpável, sólido e durável. Tenho ouvido dizer que a retina é uma janela directa para o cérebro. Num sentido não menos verdadeiro, também o tacto é uma janela para o cérebro. Uma e outro estão hard-wired, isto é, fisicamente ligados ao cérebro. Ler com os olhos e ler pelo tacto é essencialmente o mesmo. Ver um objecto é observação directa. E sentir um objecto também é observação directa.

O poder da observação visual está tão bem compreendido e é tão largamente aceite que parece inútil continuar a argumentar a este respeito. Basta dizer que a história da ciência e educação está registada nos avanços operados nas ferramentas e técnicas para aumentar o poder da visão. Lentes para ampliação, telescópio, microscópio, ressonância magnética de imagem, raios X, electrocardiografias, não são senão alguns exemplos dos meios que os cientistas têm criado para tornar visíveis coisas que não era possível ver a olho nu.

E assim chego ao principal propósito deste trabalho: Devíamos empenhar-nos num esforço sustentado para desenvolver as ferramentas e técnicas que melhoram a via de comunicação táctil com o cérebro até ao mesmo grau que conseguimos para a visão. Devíamos procurar o desenvolvimento do "conversor" (transducer) táctil para permitir contacto físico directo que possibilite a observação das coisas muito quentes, muito frias, muito grandes, muito pequenas, muito distantes. Para ser mais simples: devíamos desenvolver os equivalentes tácteis das lentes do telescópio, do microscópio e das outras ferramentas de observação a que fiz referência.

Gostaria de concluir sugerindo uma ligeira abordagem da produção de tactografias. Uma tactografia, como podem imaginar, é uma fotografia tridimensional, não uma verdadeira fotografia, mas qualquer coisa de parecido, excepto que se projecta na terceira dimensão. (...) Uma vez aperfeiçoada a técnica básica para criar imagens em relevo, podemos enfrentar o desafio da ilustração de livros de texto, manuais e revistas. É tempo de começar esta investigação!

NOTAS

1 Conjunto de 64 sinais agrupados sistematicamente em séries, estruturado a partir das combinações dos seis pontos (123456).

Alfabeto Braille

A b c d e f g h i ja b c d e f g h i j

K l m n o p q r s tk l m n o p q r s t

U v x y z ç é Á è úu v x y z ç é á è ú

 ê ì ô ù à ï ü õ òâ ê ì ô ù à ï ü õ ò

, ; : º ? ! = " * %, ; : ? ! = " * o

í ã ó # . -í ã ó (1) . -

^ ª | ~ _ $ /^ ¨ | ~ (2) $ /

(1) Sinal de número ou sinal numérico(2) Sinal de maiúscula

2 Criada pelo Despacho Conjunto 348/97, dos Ministérios da Educação, da Segurança Social e do Trabalho e da Cultura, publicado no Diário da República, IIª Série, n.º 231, de 6 de Outubro.

3 Processo de leitura e escrita baseado no Sistema Braille.

4 The branch of science concerned with blindness and the care of the blind (Collins Electronic Dictionary and Thesaurus).

5 Estilete para produzir pontos em relevo em papel, nas pautas e réguas braille.

6 Dispositivo, constituído por uma placa coberta de sulcos ou de cavidades circulares e por uma régua ou placa divididas em rectângulos, para escrever braille ponto a ponto, da direita para a esquerda, de forma que, ao voltar-se o papel, a leitura se efectue da esquerda para a direita.

7 Centro Prof. Albuquerque e Castro / Edições Braille - editora braille da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Foi criada em 1956 graças ao espírito empreendedor de José de Albuquerque e Castro.

8 Máquina dactilográfica específica provida de um conjunto de teclas para escrever o braille carácter a carácter.

9 dearest ze...

10 Escrita braille em que os vocábulos se representam por sinais que significam grupos de letras, palavras e expressões.

11 Texto escrito segundo as regras da estenografia braille.

12 Escrita em relevo com base no conjunto fundamental acrescido dos pontos 7, por baixo do ponto 3, e 8, por baixo do ponto 6, possibilitando assim a existência de 256 sinais simples.

13 Enrique Elissalde (1939 - 2002). Foi Presidente da Fundación Braille del Uruguay, da Unión Latinoamericana de Ciegos e Vice - Presidente da União Mundial de Cegos.

14 Albuquerque e Castro (1903 - 1967). Notável tiflologo, foi professor do Instituto de S. Manuel, impulsionador da criação do Centro de Produção do Livro para o Cego (depois da sua morte Centro Prof. Albuquerque e Castro - Edições Braille) e fundador da revista POLIEDRO (1956). Escreveu obras sobre tiflologia e outras matérias.

15 Tabuleiro preenchido por pequenos cacifos quadrados onde se colocam os cubos para efectuar cálculos.

16 Escrita em relevo em que os pontos representam os caracteres na sua forma comum.

17 Conjunto de símbolos braille e regras para a sua aplicação utilizados na escrita da música.

18 Processo pelo qual se gravam placas em braille para impressão de texto.

19 Aplica-se antes de qualquer conjunto das letras a a j para lhes atribuir o valor dos algarismos 1 a 0.

20 Primeira denominação do Centro Prof. Albuquerque e Castro / Edições Braille.

21 Sólido de chumbo ou plástico, usado em aritmética, que apresenta nas seis faces, consoante as posições em que for colocado, os sinais com que são representados os algarismos e um traço que indica o cifrão.

22 Linha constituída por um determinado número de células, que pode estar incorporada num equipamento informático.

23 Código braille informático.

24 Processo de escrever ou imprimir braille nas duas faces de uma folha, em que as linhas de uma página coincidem com os espaços entre as linhas da página do verso.

25 Para um primeiro desenvolvimento desta matéria, pode ver-se o pequeno livro de Beverley Birch "Louis Braille". Lisboa: Replicação, 1990.

26 Atitude de defesa e valorização do braille. Tendência para, sempre que possível, fazer prevalecer o braille sobre os meios alternativos que os deficientes visuais podem utilizar.

27 Aquele que transcreve para braille um texto em caracteres comuns.

28 Especialista na revisão do texto braille.

29 Braillologia: conjunto dos conhecimentos que consubstanciam e enquadram as matérias das várias vertentes da problemática do braille.

30 Parte da braillologia que se ocupa da génese do Sistema Braille, dos seus princípios estruturais e das melhores condições de tactilidade.

31 Estudo ou tratado da escrita em relevo para uso dos cegos.

32 Revista de tiflologia e cultura, em braille, editada desde 1956 pelo Centro Prof. Albuquerque e Castro/Edições Braille, da Santa Casa da Misericórdia do Porto.

33 Escrita braille em que todos os caracteres dos vocábulos se representam pelos correspondentes sinais do Sistema Braille.

34 O mesmo que pauta braille (V. nota 6).

35 Espaço a que se ajusta a unidade estrutural básica dos seis pontos do Sistema Braille.

36 Valentin Haüy (1745 - 1822), poliglota, paleógrafo e perito na decifração de escritas e códigos secretos, professor de línguas, tradutor e intérprete, foi o fundador, em 1784, da primeira escola para cegos, o adaptador da tipografia à impressão em relevo, o criador das primeiras oficinas, o pioneiro, em suma, que veio a desbravar o caminho para o feito de Luís Braille. Convencido de que o problema essencial na educação dos cegos consistia em "tornar o visível tangível", desenvolveu o processo de impressão em relevo utilizando os caracteres comuns. A necessidade de tornar estes caracteres legíveis pelo tacto obrigou a ampliá-los a ponto de se apresentarem discerníveis. Por isso os livros surpreenderam pela sua enormidade, proporcionando uma leitura lenta e penosa.

37 Optical to tactile converter. É um aparelho que reproduz em relevo, letra a letra, no "tactalizador", o texto em tinta focado por uma pequena câmara.

38 Nicolás-Marie Charles Barbier de la Serre (1767 - 1841), oficial do exército francês. Motivado por um conjunto de interesses dirigidos a diferentes áreas, apaixonou-se pelos problemas da escrita rápida e secreta. Concebeu um processo de escrita por meio de pontos em relevo para possibilitar aos militares em campanha decifrar mensagens às escuras. Posteriormente veio a adaptar este processo para ser utilizado pelos cegos, adaptação essa que viria a inspirar Luís Braille para a concepção do seu Sistema.

39 Prática que se generalizou depois de um Congresso Internacional que se realizou em Paris, em 1878, em que se adoptou o Sistema Braille, sendo então abandonadas as propostas de alguns países que defendiam diferentes arranjos dos sinais deste Sistema.

40 Na qualidade de Presidente da União Mundial de Cegos, David Blyth era um dos participantes no Fóro.

41 Norma Tocedo estava presente no Fóro, como Coordenadora da Comissão para a Alfabetização da União Mundial de Cegos.

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