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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPUC-SP
Oscar Manuel Miguelez
LINGUAGEM E ESQUIZOFRENIA:de coisas e palavras
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO2011
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPUC-SP
Oscar Manuel Miguelez
Linguagem e esquizofrenia:de coisas e palavras
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Tese apresentada à Banca Examinadorada Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Psicologia Clínica, sob orientação doProf. Dr. Manoel Tosta Berlinck
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ABSTRACTThis thesis addresses the issue of language in schizophrenia. First, schizophreniais defined, as a nosographic category, derived from its predecessor ‘dementiapraecox’, conceived by Bleuler as a psychopathological concept. This is followedby a discussion on some developments of this concept in the context of psychiatry.The thesis finally focuses on Freudian hypotheses about schizophrenia, whichhave emerged in a moment of rapprochement between psychoanalysis andpsychiatry. An emphasis is given on the relationship between words and things inthe metapsychological texts. The foundation of the Freudian word / thing relation,initially linked to Stuart Mill’s theory of names, is examined, as are other ways ofthinking this relation, as well as schizophrenia symptoms, by Lacan, Foucault,
Agamben and contemporary French psychoanalysis authors. These and otherissues were addressed by presenting three clinical cases: Wolfson, Mané andEdgar. These cases illustrate the diversity of language disorders in schizophrenia,ranging from deconstruction / reconstruction of the entire language (Wolfson) to theoccasional presence of a few strange words, keys for the delusional construction(Mané and Edgar). Despite the differences, these cases share a similar rupture.The central hypothesis of this thesis is that such rupture, unlike what has
previously been postulated by Freud, is not a break in the word / thing relation, buton the intersubjective function of language, the ability to use language as a way tobond to each other. This rupture is followed by the search for procedures and allsorts of attempts to recovering the lost connection. In this sense, the two times ofpsychosis, proposed by Freud, have proved fruitful.
Key-words : schizophrenia; language and schizophrenia; word/thing;psychoanalysis.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Manoel Tosta Berlinck, meu orientador e amigo, pelascontribuições feitas e, fundamentalmente, pelo exemplo de força e de trabalho afrente do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP.
Aos integrantes da Banca de Qualificação e, agora, da Banca ExaminadoraProfessores Doutores Richard Theisen Simanke, Luiz Cláudio Figueiredo, CaterinaKoltai, Sérgio de Gouvêa Franco, Paulo José Carvalho da Silva, Paulo Endo,Silvana Rabello, e Ana Cecília Magtaz pela generosa tarefa de leitura einterlocução.
Aos colegas do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP, muitoespecialmente a José Waldemar Thiensen Turna, que possibilitou as entrevistasrealizadas no Hospital São João de Deus, e também a Sonia ChristinaThorstensen, Alfredo Simonetti, Ana Cecília Magtaz, Julieta Jerusalinsky, Fani
Hisgail, Ana Irene Canongia, Cybelle Weinberg, José Carlos Zeppelini Júnior eTeresa Endo, pelo alento e as inúmeras colaborações recebidas.
A Nora Susmanscky de Miguelez, pelo carinho e apoio de tantos anos e tambémpelos comentários inteligentes e a permanente troca de ideias.
A Isabel Kahn Marin, que acompanhou todo o percurso da pesquisa comsugestões decisivas e que, nos momentos de incerteza, pôde conter minhasangustias.
A Carmen Lucia Montecchi Vadalares de Oliveira pela leitura cuidadosa dos textos
na fase final da tese e por todas as contribuições teóricas e afetivas quepermitiram superar os momentos de desalento.
À equipe clínica das quintas feiras do Hospital do Servidor Publico Estadual,particularmente, ao Professor Carol Sonenreich e aos Professores GiordanoEstevão e Andres Santos Jr com os quais muito aprendi nesses últimos cincoanos. Também ao Dr. Durval Mazzei Nogueira Filho e ao Dr. Eduardo Leal quepossibilitaram minha inclusão nessas ricas reuniões clínicas.
À minha família que soube suportar os longos afastamentos.
A Ivone Daré Rabello, que revisou a versão final do texto, em língua e estilo.
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Sumário
Introdução e notas teórico-metodológicas ................................................... 1 Capítulo I.......................................................................................................... 15Esquizofrenia: entre psiquiatria e psicanálise ..............................................151. Da demência precoce à esquizofrenia.......................................................... 15
O conceito de demência precoce......................................................... 15O conceito de esquizofrenia................................................................. 19
2. Da esquizofrenia à esquizoidia......................................................................273. A neuroleptização da esquizofrenia............................................................... 31
Capítulo II......................................................................................................... 40A esquizofrenia em Freud ............................................................................... 401. O contexto geral da pesquisa freudiana sobre esquizofrenia....................... 402. Psicanálise e psiquiatria................................................................................ 493. Freud e Burghölzli..........................................................................................524. As hipóteses iniciais a respeito da psicose................................................... 585. Analise freudiana dos sintomas da esquizofrenia......................................... 60
As alterações da linguagem..................................................................62Sonho e esquizofrenia.......................................................................... 71
A linguagem de órgão........................................................................... 74Questionamentos..................................................................................80
6. O Schreber de Freud e a esquizofrenia.........................................................82H o m o s s e x u a l i d a d e eparanoia...............................................................
84
Autoerotismo, narcisismo, paranoia e esquizofrenia........................... 897 . R e a l i d a d e e s i g n i f i c a ç ã o n a o b r a d eFreud....................................................
92
A realidade no Projeto e em Interpretação dos sonhos ....................... 93
Eu, narcisismo e realidade................................................................... 97Realidade e Verleugnung..................................................................... 100
A realidade na neurose e na psicose................................................... 104Ve r d r ä n g u n g eVerneinung....................................................................
106
Questionamentos....................................................................................
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8. Análise das contribuições de Freud à esquizofrenia..................................... 111
Capítulo III........................................................................................................ 119Os casos clínicos: Wolfson, Mané e Edgar ...................................................119
Wolfson e as línguas ....................................................................................... 1191. Introdução...................................................................................................... 1192. Um pouco do livro e do caso......................................................................... 120
VIII3. Considerações............................................................................................... 126
“ E x m a t r i a r ” alíngua................................................................................
126
Oprocedimento......................................................................................
130
A apropriação da língua.........................................................................132D e c o i s a s epalavras..............................................................................
135
A l i n g u a g e m e o soutros.........................................................................
144
Mané e a língua ................................................................................................ 1471. Apresentação do caso................................................................................... 1472. Considerações............................................................................................... 152
D a r e l i g i ã o a odelírio...............................................................................
153
A s p a l a v r a s e mMané.............................................................................
159
A passagem ao ato................................................................................162O sórgãos...............................................................................................
164
As surpresas da clinica......................................................................... 167
Edgar e a questão do pai .................................................................................1701. Apresentação docaso.....................................................................................
170
2. Considerações............................................................................................... 177
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Ahospitalização......................................................................................
177
Edgar e sua família................................................................................179 A mãe.................................................................................................... 181O pai morto............................................................................................182L a c a n e a f o r c l u s ã o d o N o m e - d o -pai.....................................................
183
H o m o s s e x u a l i d a d e epsicose.................................................................
184
A f o r c l u s ã o c o n c e i t onegativo.................................................................
185
C r í t i c a s : D e l e u z e eTort..........................................................................
189
E d g a r e a a u s ê n c i a d opai......................................................................
194
O q u a d r ocrônico.................................................................................... 195 A s p a l a v r a s e mEdgar............................................................................
196
A transferência.................................................................................... 199Curar ou acompanhar?..........................................................................201
Considerações finais e conclusão ................................................................. 203
Bibliografia ........................................................................................................
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Introdução e notas teórico-metodológicas
Ainda durante o trajeto percorrido no mestrado, fui progressivamente
atraído pela problemática suscitada pelos fenômenos psicóticos. Com efeito,
sendo o narcisismo o assunto relevante naquele momento, era ineludível pensar
nas psicoses, pois é o narcisismo a principal resposta que deu Freud aos desafios
provocados por elas. Dentre os três grandes grupos de psicoses que Freud ligara
ao narcisismo – paranoias, esquizofrenias e psicose maníaco-depressiva –, a
esquizofrenia cativou profundamente meu interesse. Isso se deveu não apenas
ao fato de ela ser a mais enigmática das psicoses, mas também,fundamentalmente, à sua profunda ligação com fenômenos que envolvem a
linguagem, desorganizando a fala dos pacientes até o ponto de torná-la
incompreensível.
Acrescente-se que desde os inícios da minha formação, a questão da
linguagem foi um assunto de grande interesse para mim. Com efeito, no final dos
anos 1960, com a chegada à Argentina das ideias de Lacan, fortes discussões
estabeleceram-se em torno do papel da linguagem na psicanálise, do modelo
econômico freudiano e, de maneira geral, da interpretação e da leitura da obra de
Freud. Cruzaram-se, assim, duas linhas de interesse, convergindo num tema de
pesquisa: a linguagem na esquizofrenia.
Quais as determinações daquilo que chamamos esquizofrenia? Qual olugar da linguagem nos seus sintomas? Qual a validade do modelo proposto por
Freud para o entendimento das alterações de linguagem na esquizofrenia? O que
a psicanálise tem a dizer a respeito dela? De que modo esse enigmático quadro
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pode iluminar a discussão em torno da linguagem e da pulsão? Com essa lista de
perguntas e problemas deu-se início à pesquisa.
Paralelamente ao seguimento dos assuntos de caráter teórico ou
metapsicológico, também resolvi fazer acompanhamento de pacientes. Desejava
que a elaboração teórica não fizesse perder de vista o horizonte da clínica, esta
sim meu norte. Em um primeiro momento, e por intermediação de meu orientador,
Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, e de José Waldemar Thiensen Turna, colega do
Programa de pós-graduação da PUC-SP, passei a frequentar por quase dois anoso Hospital Psiquiátrico São João de Deus e a entrevistar pacientes diagnosticados
como esquizofrênicos. Dessa difícil tarefa resultou o levantamento de várias
histórias clínicas que muito contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho.
Um analista em terreno estrangeiro
Foi no âmbito do hospital e no relacionamento com esses pacientes que
pude entrar em contato com as múltiplas dificuldades envolvidas na tarefa a que
me tinha proposto. Frequentar um hospital psiquiátrico onde as pessoas se
encontram internadas por períodos indefinidos, às vezes curtos, outras longos,
entrevistar pacientes sem saber ao certo se haverá novas oportunidades de
escuta, exigem renúncias. Isso nos obriga a abdicar do conforto e da proteção de
nosso consultório, a repensar o que é fundamental e o que é acessório noenquadramento da escuta e também – o que seja talvez o mais árduo – a sair do
encastelamento e a enfrentar a existência de abordagens diferentes das nossas:
outras práticas, outras linguagens, outros discursos.
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nenhum contato com ela. Foi assim que, em um segundo momento, por
intermediação do Dr. Durval Mazzei Nogueira Filho e do Dr. Eduardo Leal,
substituí os encontros no São João de Deus pela participação nas reuniões
clínicas de apresentação de pacientes do Hospital do Servidor Público Estadual, à
época coordenadas pelo Prof. Dr. Carol Sonenreich e no presente momento pelo
Prof. Dr. Giordano Estevão. Com a mudança de meu espaço de atuação, quebrou-
se o isolamento e ampliou-se muito a possibilidade de diálogo, pois essas
reuniões são realizadas com a participação de todos os membros que compõem a
equipe clínica da Psiquiatria do Hospital do Servidor – terapeutas ocupacionais,assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e residentes em psiquiatria – e nelas
se discute o caso apresentado a partir de várias perspectivas, embora, por se
tratar de atividade de uma residência em psiquiatria, tal ponto de vista seja o
predominante. Da participação nessas apresentações de pacientes surgiram de
modo mais patente os “outros” da psicanálise, e o “outro” da psiquiatria, esse
próximo e distante, ao mesmo tempo familiar e ameaçador.
O discurso da psiquiatria, hoje cada vez mais hegemônico, não costuma ser
objeto de estudo do psicanalista. Certa condescendente ignorância, acompanhada
de cautela e distância, alterna-se muitas vezes com a submissão ou rechaço
radical de seus postulados. O conceito de doença mental , central para a
psiquiatria, encerra uma dualidade que atravessa como dilema sua história. Defato, como ramo da medicina, a psiquiatria foi impelida a fundamentar seus
achados nos postulados advindos do surgimento da anatomia patológica; no
entanto, devido ao caráter mental de seu objeto e aos fracos achados
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anatomopatológicos, foi obrigada a tecer hipóteses psicogenéticas e a arriscar-se
em terrenos afastados do âmbito propriamente médico. Na psiquiatria, o discurso
organicista encontrou nos recentes achados das neurociências, na manipulação
de imagens e nas descobertas da genética fortes argumentos para instalar-se
como tendência dominante. A partir do descobrimento, em 1952, dos
neurolépticos, a psiquiatria aproximou-se progressivamente da neurologia, sendo
hoje seu linguajar acentuadamente neurológico.
Em torno da esquizofrenia
Desde o início da pesquisa, percebi que abordar as alterações delinguagem na esquizofrenia exigiria uma definição do conceito, e tal definição não
poderia ser achada no âmbito da psicanálise. Não existe uma definição
psicanalítica da esquizofrenia. No entanto, não previ adequadamente que a
incursão pelo âmbito da psiquiatria, duplamente motivada, por um lado, pela
procura teórica; por outro, pelas exigências práticas derivadas da minha inclusão
nos hospitais, seria tão trabalhosa, demorada e difícil. A bibliografia psiquiátrica
sobre a esquizofrenia é muito numerosa e abrangente; o trajeto histórico do
conceito corre paralelamente ao surgimento da própria psiquiatria e envolve
questões políticas e epistemológicas complexas. Se não existe definição de
esquizofrenia na psicanálise, na psiquiatria existem muitas. Na psiquiatria, não há
uma definição unívoca do que se entende por esquizofrenia, nem uma únicaexplicação sobre seus sintomas. Existem quase tantas definições como autores
que se ocuparam dela. Mais ainda, nos últimos anos discute-se até a permanência
dessa categoria na nosografia da psiquiatria. Contudo, na ampla bibliografia
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existente, Kraepelin, Bleuler, Minkowski e, mais recentemente, Crow e Andreasen
são referências frequentes.
A esquizofrenia – categoria nosográfica surgida da interface da psicanálise
com a psiquiatria, concebida por Bleuler como conceito da psicopatologia,
derivada de sua antecessora demência precoce, e abordada como fenômeno
natural por Kraepelin – alude a um conjunto de manifestações clínicas que, nos
seus mais de 100 anos de história, ordenaram-se das mais variadas maneiras.
Não obstante, apesar da multiplicidade de definições, são recorrentes e
generalizadas as referências a alterações de linguagem, incompreensibilidade dafala, incoercibilidade das ideias, perda de contato com a realidade, presença de
alucinações e delírios não sistematizados.
Como veremos detalhadamente no percurso deste trabalho, Freud procurou
compreender esses sintomas a partir da perspectiva que foi a sua: o jogo pulsional
no marco do aparelho psíquico, o funcionamento regressivo do aparelho, a perda
da ligação libidinal com os objetos – regressão ao narcisismo –, a Verleugnung da
realidade, a projeção, o fracasso no exame da realidade.
O interesse despertado pela psicanálise nos psiquiatras de Zurique
encoraja Freud a formular uma série de hipóteses polêmicas a respeito da psicose
e da esquizofrenia. Nesse conflituoso diálogo entre diferentes campos do saber,
delimitam-se melhor tanto os campos quanto os saberes envolvidos. Freudsustenta a existência de um aparelho psíquico, aparelho que tem a linguagem e a
pulsão como os eixos principais de seu funcionamento. A psiquiatria, fiel aos
preceitos propostos por Bichat para a medicina, inclina-se para o orgânico; tende a
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colocar o cérebro e as faculdades mentais – pensadas como estando alojadas
nele – no centro de suas reflexões.
Já nas primeiras obras de Freud, inclusive as do período pré-psicanalítico,
encontram-se abundantes apontamentos a respeito dos processos psicóticos, da
causalidade das do enças mentais e das diferenças entre o ponto de vista da
psicanálise e o da psiquiatria. É percorrendo as obras do período de 1907 a 1916,
porém, que se encontram as contribuições mais significativas para a construção
de uma concepção psicanalítica tanto da esquizofrenia como da psicose.
Efetivamente, são desse período a clássica análise do livro de Schreber e ainterpretação da onipotência das ideias realizada em Totem e tabu, trabalhos que
antecipam a introdução formal do narcisismo em 1914 – a maior contribuição feita
por Freud ao estudo da psicose. Também desse período são os cinco trabalhos
que constituem a metapsicologia, quando Freud articula o momento narcisista da
pulsão com as hipóteses metapsicológicas da primeira tópica.
No reexame dessas obras de Freud, deparei com a problemática
metapsicológica da coisa e da palavra, articuladas com a do inconsciente, para
pensar a esquizofrenia. De forma condensada e sucinta, Freud apresenta a
fórmula que elaborara: na esquizofrenia “predomina a referência à palavra sobre a
referência à coisa”.1 As palavras ocupam o lugar das coisas. Essa afirmação
mantinha em mim parte do fascínio que a fez tornar-se famosa e frequentementeinvocada pelos analistas. Mesmo assim, perguntava-me qual seria o alcance dela.
Até que ponto, nos dias de hoje, ela continuava a iluminar o obscuro território da
1 FREUD, S. (1915) Lo inconciente. In: AE,vol. XIV, p. 197.
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esquizofrenia? Qual seria sua validade e consistência se a ela integrássemos
algumas das contribuições mais atuais extraídas da linguística, da filosofia e da
psicanálise pós-freudiana?
Além disso, como veremos detalhadamente nesta tese, para a elucidação
das “alterações de linguagem” na esquizofrenia, palavra e coisa foram ligadas por
Freud a um intrincado sistema no qual pulsões, lugares do psiquismo e
representações – de palavra, de coisa e de objeto – articulam-se de maneiras
complexas. Para pensar a linguagem, Freud recorre a uma teorização cuja
inspiração encontra-se em sua monografia sobre as afasias de 1891, magníficotrabalho no qual surge também a referência a Stuart Mill e ao nominalismo inglês.2
Se questionássemos esse fundamento, como poderiam ser pensadas as
alterações de linguagem da esquizofrenia? Qual a relação linguagem/pulsão na
esquizofrenia? O que a esquizofrenia pode trazer à discussão em torno das
relações entre corpo, linguagem e pulsão?
Na relação coisa/palavra situa-se um dos eixos da problemática que me
ocupa. Foi seguindo os elos dessa ligação que, além das freudianas, procurei
outras referências as quais deram fundamento a minhas reflexões.
As palavras e as coisas: referenciais teóricos
Tanto Lacan, na psicanálise, como Foucault, na filosofia, sustentam outras
formas de conceber a relação palavra/coisa. Para ambos, as determinações dalinguagem não advêm da sua ligação com as coisas. No caso de Lacan, inspirado
2 Como afirma Assoun, “é desse nominalismo experimental que Freud faz uso nessaocasião”. ASSOUN, Paul-Laurent.Metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar1993, p. 79. Reminiscências dessa concepção comparecem nos trabalhos dametapsicologia, fazem-se presentes na concepção de realidade e atravessam apsicanálise freudiana como um todo.
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numa concepção estrutural da linguagem apoiada em Saussure, o primado da
palavra, do “significante”, é absoluto; o homem éfalasser ; o ser do homem é só
linguagem – ao menos na primeira fase de seu pensamento. Para Foucault, na
modernidade a linguagem se independentiza da relação com as coisas que, na
idade clássica, era-lhe garantida pela representação . Na modernidade, as
palavras remetem a outras palavras, num jogo sem fim. Para Foucault, a palavra –
o enunciável – não fundamenta a dimensão do visível; palavra e coisa são
irredutíveis uma á outra.
Dentre as diferentes correntes que fazem parte do universo conceitual dapsicanálise, a francesa, influenciada pela obra de Lacan e, por isso, envolvida com
as discussões que abrangem a linguagem – e diretamente articulada às minhas
próprias questões – oferecia amplo material para desenvolver esta pesquisa. Foi
em autores marcados por esse debate, tais como Perrier, Aulagnier, Leclaire,
Green, Dor, Hassoun, Viderman, Laplanche, Fédida, O. e M. Mannoni, Dolto, entre
outros, que o diálogo sobre a relação da palavra com as coisas encontrou pontos
de articulação para a compreensão das questões suscitadas pelos casos clínicos,
sem que isso significasse adesão incondicional ou filiação a uma ou outra dessas
correntes.
A leitura do livro de Agamben,Infância e história3 fez-nos lembrar que a
linguagem está no mundo e o infans precisa apropriar-se dela. Essa apropriaçãonem sempre é feita com sucesso, porém. Em alguns casos de esquizofrenia, há
eliminação nas falas do pronome pessoal eu, recorrendo-se, então, a modos
3 AGAMBEN, G.Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
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alternativos de referir-se a si mesmo. Contribuições provindas da linguística
podem iluminar melhor esse fenômeno. Tal é o caso dos pares conceituais língua
e fala (Saussure) ou semiótico e semântico (Benveniste).4 A partir dessas noções
pôde-se formular a existência, na esquizofrenia, de uma linguagem acéfala, uma
língua sem discurso.
Para Foucault5, a suje ição à linguagem condiciona a própria existência dela,
e é só a partir dessa “obediência” que se abre a possibilidade de o homem utilizá-
la para significar o desejo que o anima. Tal sujeição apresenta na esquizofrenia
conotações trágicas. O peso da submissão à linguagem não dá lugar a nenhumaliberdade; a linguagem é sentida como um Outro avassalador qu e ameaça
aniquilar o sujeito.
Para concluir as breves referências teóricas que orientam este trabalho,
cabe afirmar o marco geral no qual ele se realiza: o Laboratório de pesquisa em
Psicopatologia Fundamental da PUC-SP. A Psicopatologia Fundamental6, proposta
inicialmente por Fédida, hoje sustentada por Manoel Tosta Berlinck e um grande
grupo de pesquisadores que ultrapassa as fronteiras de vários países, tem como
uma de suas determinações conceituais a oposição ao Geral, da Psicopatologia
geral proposta por Jaspers. 7 A procura da captação do íntimo da subjetividade,
4 Agamben articula ambas as noções na construção dos conceitos de infância e história.Cf.: op. cit .5 FOUCAULT, M.Las palabras y las cosas . México: Siglo XXI, 1969. Tradução livre doespanhol a partir do original em francês.6 BERLINK, M.Psicopatologia fundamental . São Paulo: Escuta, 2000.7 BERLINK, M. O fundamental da Psicopatologia fundamental.Rlatinoamericana dePsicopatologia Fundamental, vol. VII, n° 3. São Paulo: Escuta, set. 2004, pp. 7 a 11.BERLINK, M. Editorial.Revista latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. V, n°2. São Paulo: Escuta, jun. / 2002, pp. 7 a 11.
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incluindo nela as determinações inconscientes, é um dos objetivos de existência
de tal Psicopatologia. Para essa orientação, o estudo de casos clínicos
desempenha papel fundamental; cada caso precisa ser pensado como único e
capaz de gerar a metapsicologia que o sustente. Essa visão marcou a elaboração
da presente tese e, por se tratar de casos de psicose, tornou-se decisiva: na
abordagem de pacientes psicóticos, a singularidade transforma-se em condição
sine qua non para dar início a qualquer tarefa. Assim, os casos clínicos têm na
presente tese uma presença marcante.
Os casos clínicos As questões teóricas abordadas na tese encontram-se tramadas junto com
as clínicas; de fato decidi deixar-me levar pela clínica e quis que alguns casos
suscitassem os problemas. Do conjunto de historiais clínicos levantados no
Hospital São João de Deus escolhi dois: Mané e Edgar.
A primeira escolha deveu-se ao fato de o paciente apresentar uma brutal
passagem ao ato envolvendo o próprio corpo que me produzira grande impacto;
escrever uma experiência é um modo de elaborá-la. Também pesou na escolha o
fato de tratar-se da primeira internação de Mané, seu primeiro surto, e, por isso,
estar ele livre de intervenções desconhecidas. Seu delírio místico foi outro dos
motivos; religião e loucura possuem bordas comuns que desafiam o clínico.
A escolha do segundo caso, Edgar, deveu-se ao fato de envolver o paicomo questão central; além disso, houve o contato com a mãe dele, figura muito
significativa; finalmente, como se tratava de um caso crônico, possibilitava
comparações – aliás, a construção dos casos foi feita num permanente diálogo
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entre eles. A questão da homossexualidade aparece como central em Edgar,
atravessa sua experiência delirante e está presente na transferência. O fato de ele
apresentar uma transferência delirante possibilitou também tecer algumas
considerações a respeito desse conceito crucial da psicanálise no caso da
psicose.
Por fim, o terceiro caso, Wolfson, apresentado nesta tese em primeiro lugar,
não provém de meus contatos no Hospital São João de Deus, e sim do material
oferecido pelo livro do próprio Wolfson, Le schizo et les langues 8 – uma
extraordinária narração do processo esquizofrênico feita pelo seu protagonista.Esse material permitiu abordar as alterações de linguagem numa das formas mais
extremas. Nenhum dos casos que eu havia entrevistado possuía a mesma
riqueza. O radicalismo da decomposição/reconstrução/destruição da linguagem,
presente em Wolfson, descrita minuciosamente por ele, constitui um material raro,
excepcional; não por acaso inspirou numerosos trabalhos. Esse radicalismo pôde
ser comparado com os modos moderados dos outros casos analisados,
possibilitando discernir semelhanças e diferenças e, assim, permitindo c onstatar a
diversidade de procedimentos que alteram a linguagem na esquizofrenia.
Assim, os temas suscitados pelos casos acabaram por se constituir como
temáticas fundamentais para esta tese, coluna vertebral deste trabalho. A escuta ea discussão desses casos de esquizofrenia deslocaram o eixo de minhas
inquietações e deram lugar à hipótese central do trabalho. Se inicialmente
8 WOLFSON, L.Le Schizo et les langues. Paris: Gallimard, 1970. Tradução livre dooriginal francês.
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preocupava-me com os modos de conceber a linguagem, com o papel do
percebido em relação com o enunciado – a relação das palavras com as coisas –
o trabalho com pacientes psicóticos obrigou-me a pensar algo axial: a linguagem
na esquizofrenia perde sua razão fundamental, deixa de se constituir em modo de
estabelecimento de laço com o outro. Essa afirmação tornou-se uma hipótese
heurística central das minhas reflexões. Desse modo, os neologismos, as
esquisitices de linguagem apresentaram-se mais ligadas à falta de endereçamento
da linguagem para um outro do que à perda de ligação das palavras com as
coisas. A hipótese fr eudiana de uma ruptura com o mundo e com os outros napsicose se encena também no campo da linguagem.
O envolvimento da linguagem na esquizofrenia possui múltiplas formas.
Numa delas procura-se recuperar os laços perdidos – o “segundo tempo” da
psicose proposto por Freud. Para expressar as maneiras extremamente
complexas e variadas dessa religação com o mundo e a linguagem temos usado o
termo procedimento.9 Nos casos analisados há sempre um procedimento, um
método, um caminho, uma forma peculiar e única de tentar a restituição da ligação
com o outro e com o “nós” da linguagem.
Além disso, a esquizofrenia, mais do que outros quadros, testemunha
também a insuficiência da linguagem para o encaminhamento dos fluxos
pulsionais. Os pacientes estão submetidos a fortes impulsões que determinam“passagens ao ato”, envolvendo muitas vezes o próprio corpo, sem que a
9 Termo que tomamos emprestado de Deleuze. DELEUZE, G. Schizologie. In: WOLFSON,L. Le Schizo et les langues. Op. Cit. Também em DELEUZE, G. Louis Wolfson ou oprocedimento. In:Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2008.
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linguagem possa exercer qualquer papel moderador. As palavras na esquizofrenia
são subvertidas, corrompidas, pela maciça presença de intensidades à procura de
processamento imperioso, ficando, assim, como à deriva.
Da organização do material
Esta tese se organiza em três capítulos precedidos por esta introdução, e
seguidos por considerações finais que antecipam a conclusão, em que se expõem
as questões conceituais e a sustentação clínica e teórica das hipóteses que
nuclearam o trabalho. No Capítulo I – Esquizofrenia: entre psiquiatria e psicanálise
– apresenta-se parte da longa pesquisa a respeito do discurso psiquiátrico sobre aesquizofrenia e retomam-se três orientações que nortearam a evolução dos
discursos sobre a esquizofrenia ao longo do século XX. O Capítulo II – A
esquizofrenia em Freud – inclui o conjunto das contribuições freudianas a respeito
da esquizofrenia, especialmente as relacionadas às alterações da linguagem, bem
como as discussões por ele travadas com a psiquiatria da época, e, também, as
inquietações provocadas por esses posicionamentos. Tais inquietações
determinaram a procura de outras ferramentas teóricas para tratar do tema, seja
na filosofia, na linguística ou na psicanálise pós-freudiana. O Capítulo III – Os
casos clínicos: Wolfson, Mané e Edgar – constitui o centro da pesquisa. Como já
dito, a partir deles foram sendo introduzidos instrumentos conceituais que
permitiram aprofundar o tema desta tese. Foi também a partir deles que se tornoupossível apresentar problemas e questionamentos teóricos, bem como diversos
assuntos que considero importantes para a clínica da esquizofrenia.
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Por fim, uma das questões decisivas da Psicopatologia Fundamental
aponta para o questionamento dos reducionismos e das pretensões hegemônicas
de qualquer um dos saberes ligados ao pathos, sejam eles oriundos da psiquiatria,
da psicanálise, da genética ou das neurociências. A crítica aos reducionismos
orientou e guiou os passos desta tese.
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CAPÍTULO I
ESQUIZOFRENIA: entre psiquiatria e psicanálise
1. Da demência precoce à esquizofrenia
O universo semântico do termo esquizofrenia é muito amplo e sofreu
variações significativas, em decor rência tanto das descrições clínicas com que foi
associado, como das hipóteses etiológicas que foram sustentadas. Suas
especificações fundamentais pertencem à psiquiatria desenvolvida por Bleuler nos
inícios do século XX na clínica Burghölzli, de Zurique, e tal psiquiatria recebeuinfluência, por um lado, da tradição psiquiátrica alemã do século XIX – Kraepelin
em especial –, e, por outro, da psicanálise criada por Freud. Interessa-nos situar
ambas as influências na construção do conceito de esquizofrenia, dando destaque
tanto para as questões que envolvem a linguagem, como para as ligações e
rupturas com a psicanálise.
O conceito de demência precoce
Embora seja frequente atribuir a Morel a primazia do termo dementia
praecox, o sentido a ele atribuído por Kraepelin – entidade mórbida – é
radicalmente diferente e inédito.10 Enquanto categoria nosográfica, dementia
praecox (doravante demência precoce) aparece pela primeira vez em 1893 ,
10 De acordo com Bercherie (Os fundamentos da clínica: História e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p.117), a assimilação de ambos osconceitos “baseou-se apenas numa homonímia e num sólido chauvinismo”. Já Berrios(Historia de los síntomas de los trastornos mentales . México: Fondo de CulturaEconómico, 2008, p. 248) considera a definição de dementia praecox de Morel maispróxima daquilo que Georget chamou de stupidité do que o sentido proposto porKraepelin. Tradução livre do espanhol a partir do original em inglês.
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quando da publicação da quarta edição do seu Tratado de psiquiatria.11 Em suas
célebres lições de psiquiatria clínica12, Kraepelin descreve diligentemente o quadro
proposto. Ali afirma que padecem dessa doença pessoas desinteressadas com o
que acontece a seu redor, faltos de desejo e vontade, afetivamente apáticos, com
uma verbalização desordenada e incoerente – evidência de uma debilidade nos
julgamentos –, as quais, apesar de apresentarem esses sintomas de deterioração,
são capazes de compreender o que se fala e manter inalterada sua memória. O
quadro assim descrito é definido como uma entidade mórbida, uma doença mental
e emocional incurável que, por sua semelhança com as demências da velhice foi
11 Elaborado por sugestão de seu mestre Wundt, e inicialmente de proporções modestas,o Tratado e suas oito edições culminaram não só em volumoso texto, como em referênciaobrigatória para a psiquiatria da época, em especial a europeia. No que se refere àdemência precoce, as diferentes edições introduziram modificações substanciais. Naquarta edição (1893), é concebida na categoria dos processos psíquicos degenerativos ecompreende três formas: a) dementia praecox , subdividida em dois tipos, branda e grave
(hebefrenia); b) catatonia, c) dementia pananoides. Na sexta edição (1899), a dementia praecox assume o lugar de doença única, compreendendo os três tipos anteriores comoformas clínicas dela: catatonia (originalmente descrita por Kahlbaum); hebefrenia(inicialmente exposta por Hecker) e dementia pananoides. A forma paranoide tornou-se acategoria mais controversa, pois confrontava-se com a tradição psiquiátrica francesa,acostumada a discriminar delírios crônicos de evolução não necessariamente demencial.Influenciado pelas críticas, Kraepelin separará mais tarde a paranoia e a parafrenia dasformas paranoides da demência precoce. Na oitava (e última) edição do Tratado de
psiquiatria, que se prolongou por cinco anos (1909-1913), a lista de sintomas associadosà doença comporta cerca de 50 itens minuciosamente consignados, incorporando muitosdos sintomas descritos por Bleuler, assim como acrescentado outros, derivados da críticade diversos autores. Uma separata do capítulo dedicado à demência precoce com basenessa oitava edição foi recentemente republicada: KRAEPELIN. E. La demencia precoz .
Buenos Aires: Polemos, 2008.12 Introdução à psiquiatria clinica (Einführung in die Psychiatriche Klinik)está organizadocomo uma série de aulas magnas de apresentação de pacientes, o que favorece asdescrições. O texto representa uma amostra cabal do modo como a psiquiatria eratransmitida nos hospitais em finais do século XIX. KRAEPELIN, E.Introducción a la clínica
psiquiátrica. Madrid: Ediciones Nieva, 1988. Há também uma versão em português daterceira lição dedicada à demência precoce: KRAEPELIN, E. Introdução à psiquiatriaclínica (1905) Terceira lição: Demência precoce. Revista Latinoamer icana dePsicopatologia fundamental, vol. IV, n°4. São Paulo: Escuta, dez./2001.
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denominada demência precoce. 13 Em sua forma paranoide, um conjunto de ideias
delirantes, quixotescas e absurdas, acompanhado de maciça produção de
neologismos, dão forma ao quadro clínico que pode manter-se inalterado por
longos períodos, até mesmo décadas. Além disso, os delírios, quando aparecem,
carecem de coerência e não evoluem para formas sistematizadas, caracterizando-
se por sua pobreza.
Junto ao transtorno da afetividade e do raciocínio, destacam-se também os
inícios insidiosos e imprecisos da doença, sua longa evolução e o desenlace final
para um estado demencial. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a descriçãosintomática e o curso da doen ça – particularmente os aspetos evolutivos – são os
critérios que orientam a nosologia kraepeliana.14 Foi esse o caso em relação à
demência precoce; um dos elementos definidores para seu diagnóstico é a fase
terminal demencial que, na opinião de Kraepelin, se ainda não está presente, pode
ser prevista antecipadamente. 15
Discípulo de Wundt, Kraepelin sempre sustentou, como seu mestre, o
pressuposto de um paralelismo psicofísico. Também assim, e nos passos da
tradição psiquiátrica alemã da época, considerava a doença mental, e a dementia
praecox em particular, decorrentes de perturbações de ordem cerebral, sendo
esse o norte que fundamentou suas pesquisas.
13 Cf.: KRAEPELIN, E.Introducción a la clínica psiquiátrica, op. cit., pp. 42 e 43. Traduçãolivre do espanhol a partir do original em alemão.14 Ver a respeito: BERCHERIE, P. Op. cit ., p. 165.15 Paralelamente à demência precoce e à paranoia, e em oposição a elas, apesar dasinúmeras modificações efetuadas no Tratado, Kraepelin manteve sempre a categorialoucura maníaco-depressiva, cara cterizada pelos transtornos do humor; essa oposiçãoficou conhecida como dicotomia kr aepeliana.
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A paralisia geral progressiva (PGP) é o modelo que inspira Kraepelin para
pensar todos os estados demenciais, inclusive os de aparecimento precoce.
Apesar de reconhecer diferenças entre os diversos estados de demência 16, as
alterações orgânicas cerebrais se apresentaram para Kraepelin como o caminho
certo a investigar na etiologia da demência precoce. A despeito do reconhecimento
daquelas diferenças, considerou possível “individualizar sinais repetidos e
características que conservam certa peculiaridade nosotáxica”. 17
Concebeu a doença como tendo existência real e natural, passível de ser
desvendada pelo médico com independência de si mesmo e com o mesmo statusontológico daquilo que outros cientistas pesquisavam como objetos do mundo
físico. A doença, assim concebida, apoderava-se do doente, transformando-o.
As alterações da linguagem são claramente descritas por Kraepelin entre os
sintomas da demência precoce: frases ininteligíveis, fala insubstancial, confusão
na linguagem, profusão de neologismos. Contudo, se a linguagem altera-se, isso
ocorre como decorrência do processo mórbido e, assim, não comportaria
nenhuma tentativa de expressão sob formas não reconhecidas. Esse será um dos
pontos de ruptura das posições sustentadas em Burghölzli, tan to por Bleuler como
por Jung. Porém, foi tomando como base as elaborações de Kraepelin, que
Bleuler introduziu o termoesquizofrenia, denominação que acabou eclipsando a
de demência precoce.
16 A título de exemplo, pode-se apontar diferenças entre o estado terminal da PG P, queapresenta uniformidade dos sintomas decorrentes de alterações anatômicas no córtexcerebral, e os estados terminais dos diversos tipos de demência precoce, com suadiversidade de sintomas e riqueza muito variada de formas.17 KRAEPELIN, E.Introducción a la clínica psiquiátrica, op. cit ., p. 217.
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A figura de Bleuler é bem conhecida pelos psicanalistas por sua longa
interlocução com Freud na primeira década do século XX. Poder-se-ia dizer que
sua influência, junto com a de Jung – na época jovem médico interno na clínica
helvécia –, tiveram grande peso para que Freud se aproximasse dos fenômenos
psicóticos. Freud acompanhou com interesse as mudanças surgidas em Zurique,
ficando particularmente atraído pela consideração dos fenômenos de linguagem.
Nas reuniões das quartas feiras, concretamente na de 6 de fevereiro de 1907, o
ensaio de Jung A psic ol ogia da demência precoce foi lido e comentado por
Freud.18
No centro da discussão esteve a questão do sentido ou sem sentido dossintomas e sua relação com as “privações impostas pela vida” nos pacientes. Na
ocasião, Freud sustentou que demência precoce não era uma denominação
moderna, e que os pacientes não eram nem dementes nem precoces – questões,
como veremos, cruciais para Bleuler.
O conceito de esquizofrenia
Demência precoce. O grupo das esquizofrenias é o título de uma
monumental monografia19 escrita por Eugen Bleuler em 1908 e publicada pela
primeira vez em 1911. Nas primeiras páginas do trabalho, e já no título, Bleuler, ao
apresentar sua obra, reconhece que ela dá continuidade às elaborações feitas por
Kraepelin em anos anteriores; sua proposta a respeito da esquizofrenia,
entretanto, representa muito mais do que uma mudança terminológica. Com efeito,
18 Ver a respeito: NUNBERG, H. e FEDERN, E. (org.), Actas de la Sociedad Psicoanalíticade Viena, Las reuniones de los miércoles, tomo I: 1906-1908. Buenos Aires: EdicionesNueva Visión, 1979, pp.124 a131.19 BLEULER, E.Demencia precoz. El grupo de las esquizofrenias . Buenos Aires: Hormé,1993. (As citações em português são de tradução livre a partir da versão ao espanhol dooriginal alemão.)
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sua definição da esquizofrenia como “um grupo de psicoses cujo desenvolvimento
é às vezes crônico e às vezes marcado por ataques intermitentes, que pode deter-
se ou retroceder em qualquer etapa, embora não permita uma completa restitutio
ad integrum,20 marca diferenças fundamentais com relação à definição
kraepeliana.
Um dos pontos substanciais dessa diferença refere-se à demência. Disse
Bleuler: “Em nenhuma outra afecção designa-se mais inadequadamente a
perturbação da inteligência com os termos ‘demência’ e ‘imbecilidade’ que na
esquizofrenia”.21
Efetivamente, Bleuler não vê na esquizofrenia traçoscaracterísticos da demência orgânica: “não há perda definida das imagens da
memória”.22 Também não vê idiotice congênita – a inteligência é conservada
apesar da pobreza geral dos estados avançados da doença. O desenlace, tão
patognomônico na concepção kraepeliana de demência precoce, também não
está garantido: a doença pode deter-se ou retroceder, mesmo que a recuperação
nunca seja total e completa. O início precoce é igualmente questionado: há casos
de começo tardio. Na definição, Bleuler fala no plural, “um grupo de psicoses”,23 e
elas são definidas como conceitos psicopatológicos, não mais como entidades
mórbidas de existência concreta.
20 BLEULER, E.Op. cit ., p. 15.
21 BLEULER, E. O p. cit ., p. 80.22 BLEULER, E. O p. cit ., p. 80.23 Para Bleuler, a esquizofrenia constitui um grupo que pode subdividir-se em: 1.paranoide, com predominância de alucinações e ideias delirantes; 2. catatônica, compredomínio de sintomas catatônicos; 3. hebefrênica, de escassa sintomatologia acessória;e 4. esquizofrenia simples. Diferencia-se das psicoses orgânicas (PGP, demência senil,Korsakow), dos estados epilépticos, da idiotia, da paranoia, da psicose maníaco-depressiva e de outras.
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dirigido a uma meta solda os elos da cadeia associativa em um pensamento
lógico”.24 As representações meta , aqui invocadas, também fazem parte do
vocabulário freudiano; no entanto, para Freud, representação meta é aquela que
possibilita a manutenção do desejo, que orienta a ação na procura da satisfação, e
está, por isso, ligada ao inconsciente. Para Bleuler, a representação meta é o que
permite manter a coerência e a lógica.
São muitas as ilustrações clínicas 25 das perturbações da associação
incluídas na monografia de Bleuler; em todas, acentua-se o fato de as ideias
surgirem pelo mero fato de terem aparecido na consciência, perdendo-se, então,por caminhos laterais dos mais irrelevantes. Note-se, porém, que é a linguagem o
terreno privilegiado em que se desenvolvem os exemplos propostos. Há várias
indicações disso: a fala orientada pelo som das palavras ( Witz-ein Nix-ein
Nietzsche, “sou um engenhoso, uma ondina, um Nietzsche”); as condensações de
ideias (“vela a vapor” como junção de barco a vela e barco a vapor); aquilo que o
24 BLEULER, E.Op. cit ., p. 23. 25 Dos tantos exemplos fornecidos selecionamos a seguinte carta: “Querida mãe: hoje mesinto melhor. Realmente não tenho muita vontade de escrever. Mas gosto de te escrever.Depois de tudo, posso tentá-lo duas vezes. On tem, domingo, teria me sentido melhor setivesse podido ir com você e com Luísa ao parque. Há uma bonita vista a partir do casteloStephan. Verdadeiramente fica-se muito bem em Burghölzli. Luísa escreveu Burghölzli emsuas duas últimas cartas, quero dizer nos envelopes , não, nos “couverts”, que recebi.Porém, escrevi Burghölzli no lugar onde coloquei a data. Também há em Burghölzlipacientes que o chamam Holzliburg. Outros falam de uma fábrica. Também pode ser
considerado lugar de cura. Estou escrevendo sobre papel. A pena que estou usando é deuma fábrica chamada Perry & Co. Essa fábrica fica na Inglaterra. Presumo isso. Atrás donome Perry & Co. está escrito o da cidade de Londres, mas não a cidade. A cidade deLondres fica na Inglaterra. Sei isso desde meus dias escolares. Então sempre gostei degeografia. Meu último professor nessa matéria foi Augusto A. Era um homem de olhospretos. Também gosto dos olhos pretos. Também há olhos azuis, e cinzas, e de outrascores. Ouvi dizer que as cobras têm olhos verdes. Todas as pessoas têm olhos. Háalgumas que são cegas. Esses cegos são guiados por crianças. Deve ser muito terrívelnão poder ver. Há pessoas que não podem ver nem ouvir”. BLEULER, E. Op. cit ., pp. 24e 25.
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autor denomina “tocar e nomear” (o paciente simplesmente nomeia os objetos
listando o que vê ou toca: “espelho”, “mesa”, “este é um barômetro”); a nomeação
de atividades (“agora ele se senta”, “agora ele quer escrever”); o uso frequente da
terceira pessoa para referir-se ao próprio indivíduo. Mesmo assim, Bleuler insiste
em pensar esses sintomas como forma de associação reconhecível e distingue
cuidadosamente os transtornos de associação dos de linguagem. Como
característica desses últimos, ass inala uma gradação que vai da fala continuada
ou excessiva, muitas vezes desligada do c ontexto ambiental, até o mutismo.
Aponta serem abundantes os neologismos que podem chegar a constituir uma“linguagem artificial”. Mas o que de fato descreve de forma impressionante os
transtornos da linguagem é a “salada de palavras”: frases que resultam
completamente ininteligíveis apesar de estarem constituídas por palavras de uso
comum.
Na apreciação do conteúdo das falas, a questão da significação acaba se
impondo: “As palavras e frases chamativas que utilizam nossos pacientes não
podem ser consideradas como cascas vazias, 26 e sim como conchas que ocultam
um conteúdo diferente do usual”.27 O paciente fala numa língua diferente da do
médico. Nesse ponto, fica patente que Bleuler se distancia da tradição psiquiátrica
alemã da época e se aproxima da psicanálise: há nas palavras dos doentes uma
significação, senão inconsciente, ao menos cifrada.
26 “Cascas de palavras” foram os termos propostos por Kraft-Ebbing para definir essasalterações da linguagem. BLEULER, E.Op. cit ., p. 160.27 BLEULER, E.Op. cit ., p. 160.
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A significação oculta da linguagem também é protagonista no que Bleuler
chama complexos: conjuntos de ideias fortemente carregadas de afetividade. Os
complexos são invocados para justificar bloqueios; participam na construção das
ideias delirantes, determinam alucinações e fazem parte de diferentes aspetos da
vida sexual dos pacientes.
A consideração dos complexos é outro ponto de grande aproximação e
diálogo com a psicanálise. Como se verá, a vida afetiva foi posta em destaque por
Freud como via de reconhecimento do peso do anímico sobre o somático. É por
meio dos afetos que Freud consegue vencer a tendência, marcante na época, depensar o psíquico como derivado do somático. A significação afetiva deslocou nele
o eixo da procura: não o cérebro, mas os conflitos de ordem afetiva. Embora
complexo não tenha a mesma significação na obra de Freud que na de Bleuler, e
seja mais ligado à de Jung, é pela revalorização do papel patogênico da vida
afetiva contida nos complexos que se pode constatar a influência do vienense
sobre os autores da escola de Zurique.
Além da presença dos complexos, no campo da afetividade, a deterioração
emocional dos esquizofrênicos aparece descrita em primeiro plano. Os rostos
tornam-se inexpressivos, abatidos e indiferentes. Os afetos, quando aparecem,
são incongruentes. O riso é imotivado, inoportuno. São comuns as mudanças
bruscas do humor, bem como a capacidade inusitada de conservar emoçõespassadas com grande vivacidade. Irritabilidade, cólera e fúria, junto com
negativismo, tornam difícil o trato com esses pacientes. Às vezes aparece grande
resistência a fome, sede, frio, à falta de sono ou a fenômenos como a visão direta
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do sol, evitada em situações normais. A ambivalência é outro dos traços
fundamentais considerados por Bleuler; ela transcende o campo afetivo e invade a
vontade e o intelecto.28
A psicanálise também se faz presente na consideração de Bleuler a
respeito da relação entre a vida interior e o mundo exterior. No esquizofrênico,
afirma ele, a vida interior assume preponderância patológica, originando
desinteresse pelo mundo e abulia. Essa preponderância é chamada autismo. O
afastamento da realidade, característica do autismo, converge com alguns dos
traços do autoerotismo e o narcisismo freudianos, não obstante ser divergente aconsideração da sexualidade. O autismo bleureriano é autismo se m Eros. Como
veremos, a consideração do sexual será um dos pontos de maior resistência da
escola de Zurique; tanto Jung como Bleuler a excluíram de suas concepções.
Na descrição de Bleuler, os sintomas acessórios são bastante variados.
Destacam-se as alucinações – preponderantemente auditivas, 29 ou ligadas a
28 “Quando a gente expressa um pensamento sempre vê o pensamento oposto. Isso fica
tão intenso e rápido que a gente não sabe qual foi o primeiro”, relata-lhe um paciente.BLEULER,E.Op. cit ., p. 62.29 Os pacientes “escut am sopros, zumbidos, rangidos, tiros, trovões, matracas, música,gritos, risadas, sussurr os, conversas” (BLEULER, E. Op. cit ., p. 105), embora a maisassídua das manifestações seja a escuta de falas. As escutas de “vozes” são expressãopatognomônica e costumam ser contraditórias: do bem e do mal, afirmativas ou negativas,vozes que ordenam, criticam, ofendem. O pensamento pode ser escutado como um ecofalado. O que se escuta é sempre breve, algumas palavras nem sempre claras, mas osentido atribuído a elas não deixa dúvidas.
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sensações corporais 30 –; os delírios31 – sem unidade lógica nem detalhes
organizados num sistema – constituem uma massa amorfa de ideias incoerentes
entre si sem que isso ocasione conflitos ou gere contradições na visão do
paciente.
Depois de analisar os diferentes subgrupos, de dedicar-se aos critérios
diagnósticos, ao curso habitual da doença e a seu prognóstico, Bleuler muda de
rumo. Propõe, então, nova subdivisão da sintomatologia: sintomas primários e
sintomas secundários.32
Sintomas primários são considerados os fenômenos necessários para quese produza a doença e, apesar de Bleuler afirmar “não conhecer ainda com
30 “Os pacientes sentem que batem neles, queimam-nos; atravessam-nos com agulhasincandescentes, com punhais ou com lanças; retorcem-lhes os braços; dobram-lhe paratrás a cabeça; encurtam-lhes as pernas, arrancam-lhes os olhos, de modo que no espelholhes parece tê-los fora das órbitas; prensam-lhe a cabeça; esticam ou alongam seu corpocomo um acordeão.” BLEULER, E.Op. cit ., p. 110.31 As ideias delirantes expressam tudo que o paciente deseja e teme. Mas é
particularmente presente o delírio de perseguição. Trata-se de injúrias, calúnias,difamações das quais o paciente é vítima. Exercem-se complôs contra ele. O danocausado atinge com frequência o corpo, os olhos, os órgãos sexuais. Injetam-lhessubstâncias prejudiciais pelos orifícios corporais, tentam envenená-lo. Também sãocomuns ideias de grand eza. A nobreza e outras posições de poder, a inteligência superior,a realização de grandes inventos, a posse de poderes especiais combinam-se com ideiaspersecutórias de roubo, acossamento, complôs que se armam contra o paciente emdecorrência de sua superioridade. Forças opositoras impedem-no de obter oreconhecimento e a fama que merece. Estão também presentes as ideias delirantes decunho religioso: Deus, Jesus, conversam com ele; ele próprio é Deus ou tem uma missãosalvadora. Delírios eróticos combinam-se às vezes com os de grandeza e perseguição.Ideias hipocondríacas ganham coloridos persecutórios: roubo de órgãos, transformaçãodo conteúdo corporal, excrementos que preenchem a cabeça, petrificação de partes do
corpo. Ainda aparece a ideia de estar possuído por forças, entidades ou pessoas.32 O modelo empregado para explicitar a lógica da divisão proposta é a osteomalacia. DizBleuler: “[na osteomalacia] os processos químicos e fisiológicos, incluindo adescalcificação dos ossos, constituem o processo patológico. A fragilidade dos ossos éuma consequência direta das mudanças que se produzem neles. Em troca, uma fraturaou um encurvamento ósseo só poderá produzir-se devido à ação direta de forçasexteriores. Essas man ifestações subsequ entes à doença não são o resultado de ummesmo processo patol ógico, e sim da res posta alterada dos ossos frente a influênciasacessórias”. BLEULER, E. Op. cit., p. 361.
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certeza os sintomas primários da doença cerebral da esquizofrenia”, 33 considera
“a perturbação da associação como primária”34. O “ainda” expressa claramente a
crença que anima Bleuler: os sintomas primários da doença esquizofrênica são de
natureza orgânica cerebral. “Sentimo-nos tentados a crer que são a expressão de
graves processos cerebrais”. 35 O restante da sintomatologia, praticamente a maior
parte dos sintomas elucidados, em sua pesquisa, com a intervenção dos
“mecanismos freudianos”, é de caráter secundário. A significação cifrada ligada
aos complexos, o autismo, o papel dos afetos trazem os conteúdos, o recheio
concreto de uma transformação que se encontra alhures, escondida “ainda” nosmeandros das circunvoluções cerebrais. Fica evidente que, nessa nova divisão, o
peso da tradição psiquiátrica da época falou mais forte que a psicanálise. Mesmo
assim, a obra de Bleuler é referência obrigatória para o estudo da esquizofrenia, e
sua visão psicodinâmica, embora restrita aos sintomas secundários, inaugura uma
polêmica que se alongou por muitos anos.
2. Da esquizofrenia à esquizoidia
Ainda nos limites do discurso psiquiátrico, a noção de esquizoidia marca
uma mudança, operada também na psicanálise por outras vias. Com efeito, como
se verá, na obra de Fre ud as psicoses foram pensadas como quadros
inabordáveis pela psicanálise. Apesar da existência de uma gênese comum naneurose e na psicose, e de uma visão integrada dos processos psíquicos válida
33 BLEULER, E.Op. cit ., p. 362.34 BLEULER, E.Op. cit ., p. 363.35 BLEULER, E.Op. cit ., p. 365.
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tanto para uma como para outra, a retração narcisista, postulada por Freud para
os processos psicóticos, traz como consequência a impossibilidade de fazer
transferência e, assim, torna a psicanálise inoperante para o tratamento da
esquizofrenia. Entre neurose e psicose postula-se uma separação, uma
descontinuidade.
A consideração do caráter no discurso da psiquiatria – para a esquizofrenia
o caráter esquizóide ou esquizotímico – fará parte de uma corrente preocupada
com questões dinâmicas e psicológicas. Introduzida por Kretschmer,36 continuada
por Kurt Schneider 37
e presente também em Minkowski,38
as tipologias (detemperamentos, caráter ou personalidade), apesar de serem pensadas como
constitucionais, incluem na sua descrição estados afetivos, traços psicológicos e
modos de relacionamento. Os tipos caracterológicos apoiaram-se inteiramente na
interação das tendências de personalidade do individuo com as experiências
36 Claramente posicionado contra o nazismo, Ernst Kretschmer (1888-1964) fez parte da
corrente psicodinâmica alemã que, apoiada em Moebius e influenciada por Freud,questionou a noção d e entidade mórbida de Kraepelin. Em trabalhos que tiveram amplarepercussão, tentou correlacionar formas normais de temperamento (esquizotímico,ciclotímico) com as duas grandes psicoses endógenas (demên cia precoce e psicosemaníaco depressiva) e com tipos particulares de estrutura corporal (pícnico , leptossômico,atletico, etc.). cf. : BERCHERIE, Paul.Os fundamentos da clínica: História e estrutura dosaber psiquiátrico, cit., p. 246.37 Aluno de Jaspers, deve-se a K. Schneider um novo ordenamento dos sintomas daesquizofrenia baseado exclusivamente em manifestações clínicas. Trata-se dos sintomasde primeira ordem e dos segunda ordem. SCHNEIDER, K. Psicopatologia geral . SãoPaulo: Mestre Jou, 1968, pp. 204-205.38
Polonês de nascimento, francês por opção depois de um período de permanência naclínica Burghölzli, Minkowski familiarizou-se profundamente com as ideias de seu diretor efoi o principal responsável pela introdução de Bleuler no meio francês. Ver a respeito:Costa Pereira M. E. A noção da perda de contato vital com a realidade na esquizofreniasegundo Eugène Minkowski. Revista Latinoamericana de Psicopatologia fundamental,vol. VII, n°4. São Paulo: Escuta, dez. 2005. Em 1927 Minkowski publica um livro Aesquizofrenia. Psicopatologia dos esquizoides e dos esquizofrênicos, referênciaimportante para o estudo da esquizofrenia. (MINKOWSKI, Eugène. La esquizofrenia.Psicopatología de los estados esquizoides y los esquizofrénicos . México: Fondo deCultura Economica, 2000.)
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vividas por ele.39 A distribuição das características em opostos facilita uma leitura
que inclui o conflito, embora só se trate de conflitos de disposições do caráter.
Essa visão trouxe uma nova forma de pensar a esquizofrenia. Dedicou-se
mais atenção às formas leves e aos traços comuns entre normalidade e patologia.
Ficou assim estabelecida uma série contínua entre estados normais de
temperamento e os desenvolvimentos graves e doentios dessas mesmas
predisposições latentes. 40
É notável a coincidência dessa posição com os desenvolvimentos da
psicanálise posteriores a Freud. A escola inglesa de psicanálise, ao postular ateoria das posições – esquizo-paranoide e depressiva – e fundamentar os quadros
psicóticos – esquizofrenia, paranoia e psicose maníaco depressiva – na
elaboração dos conflitos e defesas ligados a essas posições, propõe também uma
linha de continuidade entre normalidade, psicose e neurose. Embora sem apoiar-
se nos postulados de Kretschmer, a psicanálise de orientação kleiniana adere
também à ideia da existência de uma esquizoidia (uma posição esquizoide) como
fundamento da esquizofrenia.
Embora Minkowski não seja o inventor do termo esquizoidia, foi ele quem
melhor o articulou com as propostas de Bleuler, acrescentando contribuições
provindas da filosofia de Bergson. Preocupado com a questão das estruturas
psicopatológicas, Minkowski destacará da obra de Bleuler o aspecto clínico
39 BERCHERIE, Paul. Os fundamentos da clínica: História e estrutura do saber psiquiátrico,cit., p. 239.40 A ideia de um estado esquizoide teve ampla difusão e participa de algum modo daexistência, no Código Internacional de Doenças (CID 10), tanto da categoria “Transtornoesquizotímico” (F21) – uma espécie de “esquizofrenia leve ou latente” –, como dacategoria “Transtor no de personalidade esquizóide” (F60-1).
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estrutural e questionará as hipóteses de cunho psicanalítico. Nesse sentido, a
obra de Minkowski encerra um período de grande influência da psicanálise no
discurso da psiquiatria a respeito da esquizofrenia, relegando suas contribuições
para um plano mais que secundário. 41
Seguindo a clássica diferenciação kraepeliana das psicoses em dois grupos
– demência precoce e psicose maníaco-depressiva –, e acrescentando a essa
distinção a tipologia de Kretschmer – esquizoides e cicloides –, Minkowski retoma
as ideias de Morel para quem “a loucura não é mais do que a exageração do
caráter habitual”. Assim, a esquizofrenia teria como condição para sua produção aexistência de um caráter de base esquizoide, em si mesmo não patológico. Trata-
se, então, de “projetar no passado do indivíduo, além do começo manifesto da
doença, os traços essenciais dela”. 42
Apesar de Minkowski ter-se apoiado no caráter esquizoide como
fundamento da esquizofrenia, para ele, a característica nodal dessa afecção é a
perda do contato vital com a realidade. A noção provém do vitalismo de Bergson; o
filosofo francês é, sem duvida, quem mais o influenciou. A dificuldade do
esquizofrênico para assimilar o movimento e a duração da vida decorreria da
41 Os complexos, tão caros a Bleuler, carecem de verdadeira importância para Minkowski.Buscar decifrar o sentido das manifestações incoerentes do paciente, colocando-as emrelação com acontecimentos de forte carga afetiva do passado, pode ser uma tarefadifícil, mas não impossível; entretanto, para Minkowski, o encontro desses laços –
conteúdos ideativos sobredeterminados – não significa que eles sejam a causa, sequer apsicogênese da doença; pelo contrário , são o efeito de uma falha fundamental que seencontra alhures, no contato vital com a realidade. Nesse sentido, o seguimentopormenorizado dos conteúdos mentais dos pacientes não tem, na opinião de Minkowski,valor heurístico e muito menos etiológico. Essa será a leitura de boa parte dos trabalhospsiquiátricos posteriores; “as conchas que escondem sentidos”, “os complexos”, podemconstituir o conteúdo da psicose, algo assim como o “estofo” da doença, mas nada alémdisso.42 MINKOWSKI, E.Op. cit ., p. 35.
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perda do contato vital com a realidade. Como resultado dessa deficiência surge a
tendência a orientar-se com base na lógica ou nas matemáticas; Minkowski chama
a isso, racionalismo e geometrismo mórbidos e ilustra com profusão de exemplos
o que considera um dos sintomas mais representativos do pensar esquizofrênico.
Devemos também a ele a recopilação das metáforas com as quais
diferentes autores tentaram aproximar-se dos mistérios da esquizofrenia:
“orquestra sem diretor” (Kraepelin), “máquina sem combustível, que pode voltar a
funcionar” (Chaslin), “livro sem encadernar cujas páginas encontram-se
misturadas e não arrancadas” (Anglade), “edifício que desmorona” (Minkowski).Na opinião de Minkowski, essas aproximações conotativas põem em evidência um
fato: a demência esquizofrênica, quando acontece, difere profundamente das
demências orgânicas. O eu-aqui-agora, o dinamismo mental, o conjunto de fatores
referentes à duração da vida, todos estão preservados na PGP e ausentes na
esquizofrenia.
3. A neuroleptização da esquizofrenia
Até 1952, a questão da causalidade das doenças mentais foi tema de
discussão permanente dentro da psiquiatria. A psicanálise participou dessas
discussões. O colóquio organizado por Henri Ey43 em Bonneval, em 1946, teve
como assunto central a questão psicogênese/organogênese; ali se enfrentaram
43 Vários colóquios foram organizados por Henri Ey em Bonneval contando sempre com aparticipação de psiquiatras e psicanalistas. Destaca-se entre eles o acontecido em 1960,dedicado ao conceito de inconsciente. EY, H. (Director) El inconsciente: coloquio deBonneval . México: Siglo XXI, 1970.
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ambas as posições cabendo nada menos que a Lacan 44 a defesa da psicogênese,
e a Henri Ey a proposta do que seria uma tendência marcante da psiquiatria
francesa da segunda metade do século XX: o organo-dinamismo. 45
Mas o ano de 1952 tem o valor de símbolo de uma nova era, um ícone que
marca o início de um capítulo decisivo, uma virada na concepção da
esquizofrenia: trata-se do ano da descoberta da clorpromazina por Laborit.46 Isso
porque as alterações cerebrais, sempre supostas e almejadas no discurso da
psiquiatria, pareciam ter alcançado confirmação efetiva. A introdução da
clorpromazina – descoberta por acaso –, e o primeiro de uma longa lista deneurolépt ic os, inaugura um ângulo novo: a via bioquímica de abordagem da
esquizofrenia. Essa linha de pesquisa altera radicalme nte a linguagem (e a
concepção de linguagem) empregadas pela psiquiatria até então. Surge, assim,
uma série de termos ligados aos neurotransmissores 47 ou a localizações
cerebrais 48 que aproximam a psiquiatria da neurologia, quase a ponto de confundi-
las. Abandonam-se as referências à linguagem ligadas à significação oculta das
palavras, tão caras a Bleuler.
44 LACAN, J. Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro:Zahar, 2010.45 Ver a respeito: EY, H. Principios de una concepción órgano-dinamista de la psi quiatria.In: Estudios psiquiátricos vol. I. Buenos Aires: Polemos, 2008, pp. 161 a 191.
46 Garrabé, com euforia desmesurada, compara 1952 com 1492, ano do descobrimentoda América. GARRABÉ, J.La noche obscura del ser: una historia de la esquizofrenia .México: Fondo de Cultura Económico, 1996, p. 183. Tradução livre do espanhol a partir dooriginal em inglês.47 Receptores pré e pós sinápticos; neurotransmissores monoaminérgicos (serotonina,dopamina, noradrenalina, acetilcolina e histamina); aminoácidos (glutamato, GABA),neuropeptídeos; receptores D1, D2, D3, D4 e D5 etc.48 Sistema nigroestriado, mesolímbico, mesocortical etc.
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A bioquímica da sinapse, estreitamente ligada à ação dos neurolépticos, é
hoje largamente estudada através das mais sofisticadas e modernas técnicas. 49 O
princípio lógico que anima esses trabalhos, porém, pode ser considerado de início
como relativamente simples. Com efeito, diz Baud, “se o efeito terapêutico de uma
substância farmacológica se produz por inibição da atividade de um
neurotransmissor, é que este se encontra em excesso no cérebro dos doentes”. 50
Mas, como afirma Serpa Júnior, essa simplicidade é aparente e muito relativa; há
constantes e progressivas complexidade e sofisticação no domínio da
neuroquímica.51
Não é o caso aqui, nem seria de minha competência fazê-lo, apresentar em
detalhes o que tem sido descrito como “modelo sináptico da esquizofrenia”.52
Entretanto, é no circuito neuronal da captação da dopamina (sistemas neuronais
dopaminérgicos) que se pensa a ação antipsicótica dos neurolépticos. A terap ia
49 Desde dosa gens de dopamina e derivados nos mais diversos meios, até o uso deneuroimagens por emissão de pósitrons, a tecnologia tem dominado o campo,introduzindo discretamente pressupostos involucrados nas máquinas, que, por vezestornam o dito campo complexo, por vezes obscurece-o.50 BAUD, Patrick. Contribution à l’histoire du concept de schizophrenie. Tese dedoutoramento. Université de Genève, Faculté de Médicine, 2003, p. 66.51 “A complexificação do domínio da neuroquímica não decorre apenas do número crescente de diferentes substâncias [monoaminérgicos, aminoácidos ou neuropeptídeos], pertencentes sobretudo às duas ultimas classes, reconhecidas como envolvidas com aneurotransmissão central, mas da identificação de subtipos de receptores, pré e pós
sinápticos, com diferentes localizações nas diversas vias cerebrais e podendodesempenhar papel específico na fisiopatologia das perturbações neuropsiquiátricas,assim como na ação de psicofármacos”. SERPA JUNIOR, Octavio Domont Mal-estar nanatureza: estudo crítico sobre o reducionismo biológico em Psiquiatria. Belo Horizonte: TeCorá, 1998, p. 261.52 No cap. IX, da obra de Garrabé (“La sinápsis y las esquizofrenias”), encontra-se taldescrição. GARRABÉ, J. Op. cit ., pp. 183-204. Também em: SERPA JUNIOR, OctavioDomont. Mal-estar na natureza: estudo crítico sobre o reducionismo biológico emPsiquiatria. Op. cit . p. 239 a 283.
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por essa via é hoje amplamente difundida e dá lugar a uma indústria poderosa que
marca sua presença, influência e, por que não dizer, interferência nos mais
diversos âmbitos, tanto científicos como culturais. Desde a descoberta casual da
clorpromazina, com seus molestos efeitos extrapiramidais, até os atuais
neurolépticos atípicos, isentos dessas reações, tem havido grande profusão das
hipóteses neurológicas que fundamentam o arsenal farmacológico existente. Essa
linha de pesquisa tem protagonizado os trabalhos sobre a esquizofrenia até o
ponto de se verem quase reduzidos a ela.
A revolução terapêutica impulsada pela psicofarmacologia repercute nadefinição e na caracterização da esquizofrenia. Esse é o caso de autores como T.
J. Crow, na Inglaterra, e Nancy C. Andreasen, em Iowa, nos Estados Unidos,
frequentemente mencionados.
Para o primeiro, a esquizofrenia, concebida como síndrome, deveria ser
dividida em dois tipos distintos: a esquizofrenia Tipo I53, e a esquizofrenia Tipo II.54
A classificação visa a questões práticas ligadas à maior ou à menor eficácia dos
neurolépticos.55 Segundo Garrabé, a distinção feita por Crow assenta-se “na
53 No tipo I, predominam os sintomas positivos (ligados aos sintomas acessórios descritospor Bleuler: alucinações, delírios etc.). Caracteriza-se “por um início brutal, umaconservação das funções intelectuais, uma boa resposta aos neurolépticos clássicos, umaumento provável dos receptores dopaminérgicos D2 (...) e ausência de signosdeficitários”. Cf.: GARRABÉ, J.Op. cit ., p.191.54 No tipo II, predominam os sintomas negativos (ligados aos sintomas fundamentais de
Bleuler: embotamento afetivo, autismo etc.). Caracteriza-se por “um início insidioso,deterioração intelectual, um alargamento dos ventrículos laterais, uma má resposta aosneurolépticos clássicos e predomínio de signos deficitários”. Cf.:GARRABÉ, J.Op. cit ., p.192.55 A ação dos neurolépticos tem se mostrado pouco eficaz na melhoria dos assimchamados sintomas negativos da esquizofrenia. Seu uso indefinido por longos anos,prática corrente, trouxe não apenas o perigo da temida discinesia tardia, hoje contornadapelos neurolépticos atípicos, mas também a penosa impressão de uma droga-adiçãoassistida.
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hipótese patogênica de que os sintomas chamados positivos, que caracterizam o
tipo I, traduzem uma perturbação das transmissões dopaminérgicas, enquanto os
sintomas chamados negativos correspondem a uma perdida celular no nível das
estruturas cerebrais”.56 O fato de Crow ter postulado que o tipo I pode evoluir para
o tipo II, não parece trazer conflito para a diferente patogenia proposta, e faz
lembrar de Kraepelin – já que privilegia o fator evolutivo no diagnóstico dos tipos.
No caso de Nancy Coover Andreasen, o que a autora procura é uma
definição do “transtorno” esquizofrênico baseado nos mecanismos cognitivos.57
Para os clássicos sintomas de associação, descritos por Bleuler, propõe o termomisconnections e a criação de marcadores neurocognitivos, como o que ela
nomeia dismetria cognitiva. À tradicional fenomenologia, a autora opõe o que
chama latomenologia. O neologismo de obscura significação (mecanismos
cerebrais subjacentes à fenomenologia) aponta para um outro, a
“esquizoencefalia”. 58
56 GARRABÉ, J.Op. cit ., p. 192.57 Em um livro de divulgação – e por isso revelador da ideologia que a inspira – (ANDREASEN, NancyUm cerebro feliz , Barcelona: Ars Médica, 2006), a autora-escritoraexpõe, para leigos, sua visão da esquizofrenia. Ela é pensada como um transtornoproduzido por conexões cerebrais erradas, dificuldades na transmissão de sinais e notransporte da informação de um lugar a outro do cérebro. Num diálogo imaginário com oleitor – e, eu diria, com uma versão grosseira da psicanálise –, responde de modocontundente à pergunta a respeito das causas da esquizofrenia: “Quando uma pessoa
jovem desenvolve uma doença mental, a pergunta típica costuma ser: ‘O que fizeram os
pais de errado?’ A esquizofrenia não é uma doença causada pelos pais. Tampouco é umadoença que os pais p ossam prevenir ou deter (...) Apesar do cuidado e do amor dafamília, essa doença a taca, lastima e deixa as vítimas que dela sofrem bem com suasfamílias mergulhadas na dor. A esquizofrenia é uma doença cerebral e mental. Na maioriados casos, são diversas as causas que contribuem a trazer danos ao desenvolvimentocerebral e mental, mas a desatenção por parte dos pais não é nenhuma delas”.
ANDREASEN, Nancy.Op. cit ., p. 196. Tradução livre do espanhol a partir do original eminglês.58 Apud : BAUD. P.Op. cit ., p. 67.
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A escola de Iowa, liderada por Andreasen, elaborou escalas de avaliação de
sintomas tanto negativos 59 como positivos60 da esquizofrenia. Trabalhos como
esses inauguram o que Garrabé denomina “psicopatologia quantitativa” que, em
sua opinião, “nada tem em comum com o que até aqui se entendia por
psicopatologia”. Contudo, essas escalas foram traduzidas para inúmeras línguas e
são utilizadas em muitos países, inclusive o Brasil.
Sem desmerecer a importância do volumoso arsenal farmacológico surgido
nos últimos trinta anos, sem o qual os “asilos” não teriam se esvaziado e os
tratamentos ambulatoriais ficariam mais difíceis, a esquizofrenia continuadesafiando os modelos com que se pretende apreendê-la. Apesar da euforia inicial
sobre as descobertas dos neurolépticos, Baud afirma: “(...) hoje [2003] a ideia de
que um excesso de atividade dopaminérgica constitui o mecanismo fisiopatológico
único ou o principal fator etiológico [da esquizofrenia] está abandonada”.61
Também diz:
A despeito de sua grande diversidade, esses trabalhos [os queprocuram as causas biológicas da esquizofrenia] ilustram a persistência, nainvestigação das causas da esquizofrenia, de um problema amiúdeclaramente exposto: não há uma definição biológica da esquizofrenia, não
59 SANS: Scale for the Assessment of Negative Symptoms.60 SAPS: Scale for the Assessment of Positive Symptoms.61 BAUD. P. Op. cit ., p. 67. Na opinião de Garrabé, as hipóteses de cunho neurológicoreferem-se a investigações básicas e “por enquanto a terapêutica por neurolépticos devecontinuar fundamentando-se na comprovação empírica de seus efeitos sobre amanifestação clínica ou sobre explorações para clínicas indiretas”. GARRABÉ,J.Op. cit .,pp. 189-190. Também afirma: “Ainda não sabemos nada sobre o que provoca essedesarranjo de um ou dois dos principais sistemas de transmissão dopaminérgica”.GARRABÉ,J.Op. cit ., p.191.
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há um “marcador”, para utilizar a terminologia atual, quer dizer, um índiceconfiável que permita definir precisamente seus contornos.62
Concomitantemente à revolução dos neurolépticos, criam-se os primeirosmanuais de diagnóstico dos distúrbios mentais. A partir de 1980, as novas
versões, tanto do DSM63 como do CID64, foram elaboradas com a pretensão de
constituir descrições de condutas objetiváveis, isentas das tendências teóricas que
dividiram a psiquiatria desde seu surgimento. Tudo isso em prol de suprimir
ambiguidades de um saber marcado pela pluralidade de pontos de vista e por
teorias psicopatológicas contrastantes. Os idealizadores dos diferentes códigos
explicitamente aspiram à procura de estabilidade e homogeneidade, e o fato de
que os códigos sejam vários (DSM III, DSM IV, DSM IV-TR, CID 9, CID 10 – e
seguramente virão outros) denuncia a utopia a que visam. 65 Tanto a psicanálise
como a psiquiatria dinâmica, incluídas nas primeiras versões dos manuais (DSM
I), foram completamente excluídas deles a partir de 1980.
62 BAUD, P.Op. cit ., p. 62.63 Manual diagnóstico e estatístico dos distúrbios mentais da Associação Americana dePsiquiatria (APA). 64 Classificação Internacional das Doenças (Classificação de transtornos mentais e decomportamento) da Organização Mundial da Saúde (OMS).65 G. Lantéri-Laura, num derradeiro trabalho (LANTÉRI-LAURA, G. Principales théories
dans la psychiatrie contemporaine. In: Encyclopédie Médico-Chirurgicale. Paris: Elsevier,37 -006 - A-10 , 2004.), aborda, entre outros assuntos, esse período da psiquiatria – de 1977até nossos dias – chamado, a contragosto por ele, de “pós-moderno”. Nesse período,apoderou-se do campo da psiquiatria, em e