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Marcos Gonzalez de Souza
A gramaticalizao de informao:uma abordagem sociocognitiva
Tese de doutorado
Maio de 2013
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RIO DE JANEIRO2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROUFRJESCOLA DE COMUNICAOECO
INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAO EM CINCIA E TECNOLOGIAIBICTPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA DA INFORMAO - PPGCI
MARCOS GONZALEZ DE SOUZA
A GRAMATICALIZAO DEINFORMAO:UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA
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RIO DE JANEIRO2013
MARCOS GONZALEZ DE SOUZA
A GRAMATICALIZAO DEINFORMAO:UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA
Tese de Doutorado apresentada ao Programade Ps-Graduao em Cincia da Informao,convnio entre o Instituto Brasileiro deInformao em Cincia e Tecnologia e aUniversidade Federal do Rio de Janeiro/Escolade Comunicao, como requisito parcial
obteno do ttulo de Doutor em Cincia daInformao.
ORIENTADORA: MARIA CECILIA DE MAGALHES MOLLICA
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FICHA CATALOGRFICA
Gonzalez, Marcos
G643g A gramaticalizao de informao: uma abordagem sociocognitiva
/ Marcos Gonzalez de Souza. Rio de Janeiro, 2013.
154f. : il. ; 28 cm.
Tese (doutorado) Instituto Brasileiro de Informao em Cincia e
Tecnologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.
Orientadora: Maria Cecilia de Magalhes Mollica.
Inclui bibliografia.
1. Cincia da Informao 2. Histria da Informao 3. Lingustica
histrica 4. Lingustica Sociocognitiva I. Ttulo.
CDD 417.7
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MARCOS GONZALEZ DE SOUZA
A GRAMATICALIZAO DEINFORMAO:UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao,convnio entre o Instituto Brasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia e a UniversidadeFederal do Rio de Janeiro/Escola de Comunicao, como requisito parcial obteno do ttulode Doutor em Cincia da Informao.
Aprovado em 16 de maio de 2013
Prof Dra. Maria Cecilia de Magalhes MollicaPPGCI IBICT/UFRJ
Prof. Dr. Ricardo Stavola CavaliereUniversidade Federal Fluminense
Prof Dra. Stella Maris Bortoni-RicardoUniversidade de Braslia
Prof Dra. Maria Clia Lima-HernandesUniversidade de So Paulo
Prof Dra. Lena Vania Ribeiro PinheiroPPGCI IBICT/UFRJ
Prof Dra. Rosali Fernandez de SouzaPPGCI IBICT/UFRJ
Prof Dra. Maria Nlida Gonzlez de GomezPPGCI IBICT/UFRJ
Prof. Dr. Gustavo Saldanha, suplente internoPPGCI IBICT/UFRJ
Prof Dra. Geni Chaves Fernandes, suplente externoUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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AGRADECIMENTOS
O desenvolvimento deste trabalho teve o apoio direto e indireto de muitas pessoas
queridas. Sou grato, de modo geral, ao Instituto de Pesquisas Jardim Botnico do Rio de
Janeiro e aos amigos que l tenho, pela compreenso dos momentos em que as demandas da
ps-graduao relegaram a segundo plano outras atividades, importantes para a instituio,
ainda que eu tenha feito todo esforo para minimiz-los. Em especial, gostaria de agradecer
ao Dr. Lizst Vieira e a Ldia Vales, respectivamente presidente da instituio e minha chefe
no Museu do Meio Ambiente. Agradeo tambm aos professores e colegas do IBICT, que
comigo compartilharam horas de alegria e ansiedade.
Quero deixar especialmente registrado os agradecimentos a alguns amigos com quem
troquei ideias, me serviram de referncia ou me deram suporte emocional. A Claudia minha
esposa, a quem devo indizvel gratido, e a Antonia, minha filha, pelo simples fato de existir.
A minha me, irms e lembrana de meu pai. Agradeo querida professora Maria Cecilia,
por ter me aceito como aluno e demonstrado sempre entusiasmo em relao aos achados, que
muitas vezes surgiram com o processo em andamento e, confesso, de maneira ligeiramente
catica. Por fim, sou grato a Julia Gttler e aos mestres Iclia Thiesen, Bernard Colombat,Evanir Motta e Miguel Barbosa do Rosrio, pelas revises e consideraes que fizeram ao
texto e s ideias nele expostas.
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O verbo provm de uma distribuio, no de uma diviso. O que dividido tiradodaquilo de que dividido, mas o que distribudo supe uma dispensa voluntria eno produz nenhuma falta naquilo de que tirado [...] Eu mesmo, por exemplo, vosfalo, e vs me ouvis, e eu, que me dirijo a vs, no sou privado do meu verbo porqueele se transmite de mim a vs, mas, emitindo meu verbo, proponho-me organizar amatria confusa que est em vs.
Taciano,Discurso aos gregos, 172 d.C. (apud GILSON, 2007 [1986], p.12)
Ao meu pai (1930-2011)
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RESUMO
GONZALEZ, M. A gramaticalizao de informao: uma abordagem sociocognitiva(Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao(PPGCI), Instituto Brasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia, Ibict/UuniversidadeFederal do Rio de Janeiro, UFRJ.2013. 154 f.
Informao um conceito e um item lexical que emergem quando de uma mudana
na tecnologia da comunicao: emergiram com a inveno do alfabeto grego, com a
introduo da escrita na Portugal do sc. XIV e, ao que parece, em nossa era, com as novastecnologias da informao e da comunicao (TIC). Com a introduo da escrita numa
sociedade estruturada pela oralidade, o termo se torna til a uma noo da realidade que
mergulha razes no dualismo sujeito-objeto. No se trata de uma mudana na cognio
humana, mas de um enriquecimento da linguagem, a fim de dar conta de um novo mito, de
um mundo de coisas que falam por si, um mundo das frmas, como o apelidamos. Nesse
contexto de corte oralidade-escrita (som-viso), o item lexical informao reificado, isto ,
passa a ser considerado um objeto mental com algumas caractersticas especficas:
informao o contedo de uma frma criada, no sentido de que ela nasce quando um
estado das coisas captado pela visoe, mais que isso, compreendido;frma aquilo que,
ao enformar a substncia estado das coisas, d origem a uma frma criada. Sob a
perspectiva analtica da Lingustica Sociocognitiva centrada no uso, apontamos a metfora
do canal como a associao que mapeia os traos mais salientes da gramaticalizao
enformao moldagem >>> informao estado das coisas: por um lado, define
informao como contedo; por outro, associa-a com a transferncia, o que nos permite,
enfim, compreender a polissemia do termo.
Palavras-chave: Cincia da Informao, Histria da Informao, Lingustica Histrica,
Lingustica Sociocognitiva
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ABSTRACT
Information is a concept and a lexical item that emerges when a change in
communication technology occurs: it emerged with the invention of the greek alphabet, with
the introduction of writing in Portugal (14 century) and, as it seems, in our era, with the new
information and communication technologies (ICT). With the introduction of writing in an
oral society, the term becomes useful to understand a notion of reality based on a subject-
object dualism. That doesnt mean achange in human cognition, but a enrichment of the
language in order to perform a new myth, a world of things that speak for themselves, a
world of forms, as wenamed it. In this context of spoken-written language (sound-vision)
transition, the lexical item information is reified, that means, it starts being considered a
mental object withsome specific features: informationis the contentof a created form, it
borns when a state of things is caught by sight; mold is what shapes the matter state of
things and gives rise to a created form. Under the analytical perspective of Sociocognitive
Linguistics, we point out the conduit metaphor as the association that mapsthe most salient
features of the grammaticalization enformaomolding >>> informaostate of things:
on the one hand, it defines informationas content, on the other hand, it associates informationwith the term transference, allowing us to finally understand the polysemy of the term.
Keywords: Information Science, History of information, Historical linguistics, Cognitive
linguistics
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NDICE DE FIGURAS
Figura 1 A frequncia de uso de duas formas ortogrficas variantes na lnguaportuguesa: enform-einform-. Seguindo as recomendaes de Gries (2010), os valoresapresentados so frequncias relativas (= frequncia absoluta / tamanho do corpus, em
palavras, para o sculo) com que essas formas ocorreram nos corpora................................... 70Figura 2 - Enformar emHieronymiCardosiLamacensisDictionariumexLusitanicoinlatinumsermonem, de Jeronimo Cardoso (1562, p.296) ...................................................... 74Figura 3 A produtividade dos prefixos na formao da palavra informao, nosingular ou no plural, entre os scs. XIV ao XVII. Os valores apresentados sofrequncias relativas com que essas formas ocorreram nos corpora. ...................................... 92Figura 4 Enformac,am,enformaa,ouInformaa, enformador e enformarem Raphael Bluteau (1713, p.110-111) .................................................................................... 94
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NDICE DE TABELAS
Tabela 1Propriedades prototpicas na percepo. Legenda: PR a pessoa que realizaa percepo ou observador, OP o objeto observado, animado ou inanimado, e P, oato da observao propriamente dito (IBARRETXE-ANTUANO, 1999, p.144ss;2009) ......................................................................................................................................... 24Tabela 2 Prefixos usados em usos de informao entre os scs. XIV ao XVII, nosingular ou no plural. Seguindo as recomendaes de Gries (2010), os valoresapresentados so frequncias relativas (= frequncia absoluta / tamanho do corpus, em
palavras, para o sculo) com que essas formas ocorreram nos corpora................................... 91Tabela 3 Sufixos usados em variantes de informao (no singular) entre os scs.XIV ao XVII. Os valores apresentados so frequncias relativas com que essas formasocorreram nos corpora. ............................................................................................................ 91Tabela 4Sufixos usados em variantes de informao (no plural) entre os scs. XIVao XVII. Os valores apresentados so frequncias relativas com que essas formasocorreram nos corpora. ............................................................................................................ 91
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ABREVIATURAS
ant antigo
cat catalo
class clssico
esp espanhol
fr francs
gr grego
ingl ingls
it italiano
lat latim
port portugus
prov provenal
sc., scs. sculo, sculos
vulg vulgar
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LISTA DE SMBOLOS USADOS
Os smbolos aqui apresentados so uma adaptao, aos nossos propsitos, das
sugestes de Viaro (2011) para descrever, da forma menos ambgua possvel, os fenmenos
mais importantes para a Etimologia. Porxey, entenda-se um som ou uma sequncia de sons.
x- a palavra se inicia comx
-x- xse encontra no interior da palavra
*x x reconstrudo
x x arcaico
x-y segmentao dex-y (parte da mesma palabra)
x = y x sinnimo dey
x ~ y x uma variante dey
x > y x se transforma emy
x < y xprovm dey
x >>>y gramaticalizao dexparay
/x/ fonemax
[x] smbolo do fonema conforme o Alfabeto FonticoInternacional (IPA)
Acrescentemos essa lista a seguinte notao:
Informao conceito de
Informao a palavra escrita
Ser importante distinguir, ainda, as vogais orais [o] e [
] que do palavraforma duas pronncias tomadas nessa tese como termos tcnicos:frmaefrma.
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SUMRIO
1 INTRODUO............................................................................................................ 12 HIPTESES E OBJETIVOS ....................................................................................... 92.1 Hipteses ...................................................................................................................... 92.2 Objetivo geral ............................................................................................................... 92.3 Objetivos especficos .................................................................................................... 93 METODOLOGIA ...................................................................................................... 103.1 Procedimentos de anlise ........................................................................................... 103.2 Corpora...................................................................................................................... 114 APORTE TERICO .................................................................................................. 124.1 O corte som-viso ....................................................................................................... 124.1.1 Crticas grande diviso oralidade/escrita............................................................. 194.2 A Lingustica Sociocognitiva centrada no uso ........................................................... 284.2.1 Gramaticalizao ........................................................................................................ 324.2.2 A Teoria da Metfora Conceptual .............................................................................. 355 ANLISE DOS DADOS ........................................................................................... 395.1 A gramaticalizao deforma...................................................................................... 395.1.1 Oralidade, mundo dasfrmas? ................................................................................... 395.1.2 A emergncia defrmacom a introduo da escrita ................................................. 515.1.3 Efeitos do cortefrma-frma..................................................................................... 635.2 A gramaticalizao de informao............................................................................. 675.2.1 A origem vulgarde enformao............................................................................. 695.2.2
A emergncia de enformao no portugus mdio ................................................. 77
5.2.3 A emergncia da base inform-.................................................................................... 855.2.4 Informao como reificao do estado das coisas.................................................. 925.3 A emergncia da Metfora do Canal ........................................................................ 1025.3.1 CONSTITUINTES SO CONTEDOS ................................................................. 1075.3.2 INFORMAO CONTEDO ............................................................................. 1105.3.3 ATINGIR UM OBJETIVO ALCANAR UM OBJETO DESEJADO ............... 1145.3.4 TORNAR-SE ACESSVEL EMERGIR............................................................... 1205.3.5 TRANSMISSO DE ENERGIA TRANSFERNCIA (DE OBJETOS) ............. 125
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6 CONCLUSES ........................................................................................................ 129REFERNCIAS ..................................................................................................................... 138
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1 INTRODUO
O conceito de informao como usado no ingls cotidiano, no sentido deconhecimento comunicado, desempenha um papel central na sociedadecontempornea. O desenvolvimento e a disseminao do uso de redes decomputadores desde a Segunda grande Guerra mundial e a emergncia da Cincia daInformao como uma disciplina nos anos 50 so evidncias disso. Embora oconhecimento e a sua comunicao sejam fenmenos bsicos de toda sociedadehumana, o surgimento da tecnologia da informao e seus impactos globais quecaracterizam a nossa sociedade como uma sociedade da informao (CAPURRO;HJRLAND, 2007, p.149).
Estamos todos mais ou menos convencidos de que vivemos uma mudana natecnologia da comunicao. Escrevemos com aspas porque citamos a expresso usada por
Eric Havelock (1996) para descrever a transformao na mentalidade grega nos tempos de
Plato, motivada pela introduo do alfabeto. cientificamente relevante, queremos crer,
olhar para algumas sincronias que estejam identificadas com mudanas na tecnologia da
comunicaoe considerar os usos de lexias que atravessaram essas mudanas, encarando-os
como dados capazes de atestar hipteses sobre mudanas de discurso. Nessa tese, vamos
examinar as funes de um desses itens lexicais, informao, na lngua portuguesa a partir doperodo de transio conhecido como portugus mdio(1375-1475).
Informao remete-nos a uma noo da realidade que mergulha razes no dualismo
sujeito-objeto. Se a realidade a constelao dinmica de objetos dados ( conscincia),
como define Massaud Moiss (1982, p.186), o medida que h um sujeito para os conhecer:
o objeto em si, independente do sujeito, seria uma impossibilidade gnosiolgica, pois a
condio de objeto se preenche quando um sujeito se formaliza como tal perante ele. E vice-
versa: a condio do sujeito se realiza quando em face de um objeto. Eis a distino maisimportante que se pode fazer, indica Capurro (2008, p.4), aquela entre informao como um
objeto ou coisa (por exemplo, nmero de bits) e informao como um conceito subjetivo,
informao como signo; isto , como dependente da interpretao de um agente cognitivo.
A modernidade (sc. XVI), de acordo com Capurro, rechaa a objetividade do uso
corrente, concebendo informao como uma categoria puramente subjetiva. Para Ren
Descartes (1596-1650), tomado pelo autor como exemplo dessa transformao, ideas so
formas do pensamento, algo como que pintado (depictae) em algum lugar do crebro, que
informa a mente quando ela aborda esta parte do crebro. Trata-se de um instrumento
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puramente racional (a priori) que permite ao homem julgar clara e distintivamente os
enganosos dados empricos. Para Capurro (2008, p.8), quase bvio que a paulatina
transformao do sujeitosubstancial medieval no sujeito comunicacional moderno, reforado
pelo decaimento progressivo da filosofia escolstica ante os avanos da cincia emprica
moderna (a partir do sculo XVII), a causa da mudana no conceito de informaouna
tesis, comenta Capurro, que habra que profundizar y matizar.
A perspectiva moderna, agora desumanizada, da informao como conhecimentocomunicado, d origem ao que poderamos chamar uma ontologia comunicativa emque no apenas seres vivos (alm dos humanos), mas tambm todos os tipos desistemas so tidos como produtores, processadores e compartilhadores deinformao. Esta perspectiva tambm pode explicar o surgimento da Cincia daInformao como cincia que supostamente est relacionada tanto aos sistemascomputacionais quanto a seres humanos.
Informao mudou de um cosmos ordenado divinamente para um sistema governado
pelo movimento de corpsculos. Capurro e Hjrland observam que, como seu local de ao
mudou do cosmos para a conscincia, o sentido do termo [informao] mudou de unicidade
(formaem Aristteles) para unidade (de sensao). O processo que nessa tese chamaremos
de gramaticalizao enformao moldagem >>> informao estado das coisas o
que os autores chamam de transformao do conceito de informao, que veio a referir-se
cada vez menos organizao interna ou formao, cada vez mais essncia fragmentria,flutuante, casual do sentido (CAPURRO; HJRLAND, 2007, p.159, grifos nossos). O
fenmeno manifesta-se como a reificaode um trabalhoou labor (moldagem), que est
na base do ensaio sobre a condio humana de Hannah Arendt:
[Trabalho ou o labor] em si, no produzem nem geram coisa alguma: so tofteis quanto a prpria vida. Para que se tornem coisas mundanas, isto , feitos,fatos, eventos e organizaes de pensamentos ou ideias, devem primeiro ser vistos,ouvidos e lembrados, e em seguida transformados, coisificados, por assim dizerem ditos poticos, na pgina escrita ou no livro impresso, em pintura ou escultura,
em algum tipo de registro, documento ou monumento. Todo o mundo fatual dosnegcios humanos depende, para sua realidade e existncia contnua, em primeirolugar da presena de outros que tenham visto e ouvido e que lembraro; e emsegundo lugar, da transformao do intangvel na tangibilidade das coisas. Sem alembrana e sem a reificao de que lembrana necessita para sua prpria realizao
e que realmente a tornam, como afirmavam os gregos, a me de todas as artes asatividades vivas da ao, do discurso e do pensamento perderiam sua realidade aofim de cada processo e desapareceriam como se nunca houvessem existido. Amaterializao que eles devem sofrer para que permaneam no mundo ocorre ao
preo de que sempre a letra morta substitui algo que nasceu do esprito vivo, eque realmente, durante um momento fugaz, existiu como esprito vivo. Tm que
pagar este preo porque, em si, so de natureza inteiramente extramundana, eportanto requerem o auxlio de uma atividade de natureza completamente diferente;
dependem, para sua realizao e materializao, do mesmo artesanato que constroias outras coisas do artifcio humano (ARENDT, 2007 [1958], p.107).
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Desde meados do sculo passado, a atualidade conhece um renascimento do carter
objetivo de informao, tanto no contexto das cincias naturais como no das tecnologias
chamadas justamente da informao, que repercute por sua vez na linguagem ordinria.
Com a dinmica de transferncia e transposio de modelos de cientificidade prprios s
cincias exatas, a teoria matemtica da comunicao, de Claude Shannon (1948), ocupou
um papel central. Com base nas mquinas de comunicar resultantes da guerra, a noo de
informao adquiriu seu estatuto de smbolo calculvel e, assim, tornou-se o lema que
assegurou o livre intercmbio conceitual entre diversas disciplinas (MATTELART;
MATTELART, 2000, p.57).
Dentro da Cincia da Informao (CI), diferentes conceitos de informao refletem
tenses entre uma abordagem subjetiva e uma objetiva. A rea enfrenta o desafio de definir o
que entende por informao desde meados dos anos 1960, mas o fato, j observado por
muitos, que o termo fugidio: seu sentido varia de uma rea do conhecimento para outra, de
um pas para outro e em relao a diferentes contextos, o que leva a equvocos e a
incompatibilidades metodolgicas: Tem sido assinalada a ausncia, na rea [CI], de um
corpo de fundamentos tericos que possam delinear o seu horizonte cientfico, e ainda se
encontra em construo a epistemologia da Cincia da Informao ou a investigao dos
conhecimentos que a permeiam (PINHEIRO; LOUREIRO, 1995).Tendo se iniciado objetiva a partir do mundo da teoria da informao e da ciberntica,
a CI tem se voltado, ultimamente, para os fenmenos de relevncia e interpretao como
aspectos bsicos do conceito de informao.No se prope um retorno a uma teoria
subjetivista, mas uma avaliao das diferentes perspectivas que podem determinar, em um
contexto particular, o que est sendo considerado informativo, seja isto uma coisa ou um
documento: o que informativo depende da questo a ser respondida e das necessidades
interpretativas e habilidades do indivduo, embora estas sejam frequentemente compartilhadascom membros de uma mesma comunidade de discurso.
Qualquer coisa que de importncia na resposta a uma questo pode, portanto, ser
informao. Capurro e Hjrland resgatam aqui concluso de Buckland (1991) de que somos
incapazes de dizer, de modo confivel, sobre qualquer coisa que no pudesse ser informao.
Do mesmo modo que qualquer coisa pode ser simblica, Buckland sustenta que qualquer
coisa pode ser informativa.
A viso interpretativa desloca a ateno dos atributos das coisas para osmecanismosde liberaopara os quais aqueles atributos so relevantes. Esta mudana pode
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causar frustrao porque inerentemente difcil e porque envolve princpiosteleolgicos que so estranhos aos princpios positivistas da cincia. relativamentefcil contar o nmero de palavras em um documento ou descrev-lo de outrasformas; muito mais difcil tentar descobrir para quem aquele documento temrelevncia e quais as perguntas importantes que ele pode responder. Questes de
interpretao tambm so difceis porque frequentemente confundimos interpretaoe abordagem individualista. O significado , entretanto, determinado nos contextossocial e cultural (CAPURRO; HJRLAND, 2007, p.193)
A ttulo de mtodo, tomaremos como interlocutorasduas revises crticas sobre o
conceito de informao (no contexto da CI e fora dele), dois textos do documentalista e
filsofo Rafael Capurro, O conceito de informao (CAPURRO; HJRLAND, 2007) e
Pasado, presente y futuro de la nocin de informacin (CAPURRO, 2008), que dispensam,
inclusive, uma nova reviso bibliogrfica. Extrairemos da as questes de fundo com as quais
temos condio de contribuir (GONZALEZ, 2012a; b; 2011; 2012c; d).
Novas perspectivas tericas so sempre bem vindas, especialmente se forem capazes
de identificar vieses pouco ou ainda no observados. Advogamos em favor da hiptese dos
historiadores Michael Hobart e Zachary Schiffman (2000), segundo quem o conceito de
informao um efeito da mudana de mentalidade provocada pela introduo da tecnologia
da escrita ou, como preferimos, do corte som-viso (nossa hiptese-me).
Voltemos 24 sculos antes do alfabeto grego, com a inveno, na Mesopotmia do
que foi, muito provavelmente, a primeira forma de escrita. Esta mudanatecnolgica foi a mais importante de todas. A inveno da escrita, na verdade, deu luz a informao em si, gerando a primeira revoluo da informao. A escrita criounovas entidades, objetos mentais que existem parte do fluxo da fala, juntamentecom tentativas sistemticas para organizar este mundo abstrato mental. Aquiencontramos as razes da atividade que acabaria por levar os gregos correlacionar aordem do mundo mental com a da natureza. Assim, quando nos afastamos da culturaeletrnica, descobrimos que a nossa era da informao apenas a mais recente devrias. De uma perspectiva histrica, talvez a nica era da informao merecedorado ttulo seja a primeira, ocorrida h cerca de cinco mil anos (HOBART;SCHIFFMAN, 2000, p.2)
Conforme esses autores, as interaes complexas entre a tecnologia da escrita e asculturas que a introduziram produziram trs eras da informao distintas: a clssica, a
moderna e a contempornea. Na era clssica, o aumento da alfabetizao teria viabilizado o
potencial de classificao em linguagem naturalque surgira da evoluo simbitica com a
escrita. A criao do alfabeto grego primeiro instrumento de escritura capaz de captar, ao
incluir as vozes (vogais), as nuances do discurso1 constituiu, creem os autores, uma
1Segundo Havelock (1995, p.31), o alfabeto grego forneceu uma completa tabela de elementos atmicos dossons acsticos que, por meio de diversas combinaes, podiam representar, por assim dizer, as molculas do
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revoluo tecnolgica sem dvida mais importante do que aquela gerada pela imprensa ou os
computadores. Ela estimulou os gregos para o tipo de especulao sobre a linguagem e sua
relao com a experincia que culminou com o surgimento da filosofia natural,
compreendendo o que hoje chamamos de filosofia e cincia: formas de conhecer e
organizar informaes sobre o mundo em um sistema hierrquico que espelhava a ordem
observvel da natureza. At o sculo IV a.C., o mundo clssico tinha produzido no apenas
taxonomias numerosas e amplas (como as de Aristteles), mas tambm o que poderamos
chamar de uma classificao das mentalidades, que considerava que todo conhecimento digno
do nome deveria ser classificado em um sistema apropriado de categorias gerais e especficas.
O resultado um parto duplo: da prpria informaoe de uma nova era da informao.
A filosofia natural grega continuaria a ser o padro intelectual ocidental por dois
milnios. Conhecer a emergncia de um item lexical como informao, assim nos parece,
permite-nos entender um pouco melhor algumas transformaes no esprito ocidental. Como
Erich Auerback em seu ensaio sobre figura (AUERBACH, 1997 [1944]), pretendemos
mostrar como uma palavra pode evoluir dentro de uma situao histrica e dar nascimento a
estruturas que sero efetivas durante muitos sculos.
Partimoscomo tambm j o fizera outrora Jacques Le Goff emHistria e memria
(1990)da hiptese bsica de que a introduo escrita elemento a ser considerado quandodo estudo de mudanas graduais produzidas em sociedades organizadas em torno de uma
comunicao essencialmente realizada face-a-face. Queremos explicar tomando o caso
informao como prova de tese que o que aconteceu com a lngua portuguesa a partir do
sc. XII-XIII constituiu, de fato, um desvio de uma economia notica acstica para outra
visual (ONG, 1998).
O filosofo britnico da linguagem, John Austin, acreditava que oretorno histria de
uma palavra, frequentemente ao latim, conduz comumente desenhos ou modelos sobre comoas coisas aconteceram ou foram feitas.Portanto, devemos antes considerar dois contextos
bsicos nos quais o termo informao usado o ato de moldar a mente e o ato de
comunicar conhecimento. Obviamente, essas duas aes so intimamente relacionadas. Mas
quando e como informao e moldagem se juntaram? (CAPURRO; HJRLAND, 2007,
p.155). O acontecimento manifesta-se, segundo os autores, no sentido de informadoque, a
princpio, significava moldadoe, posteriormente, veio a significar relatos recebidos de. A
discurso lingustico. Os sistemas anteriores ao alfabeto grego nunca foram capazes de registrar todo o escopoda lngua oral.
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discusso nos leva a outras questes como por que e quando este significado foi designado
com a palavra informao.
O problema que, como explica Ataliba de Castilho (2008), no possvel derivar
categorias lexicais, discursivas, semnticas e gramaticais umas de outras, visto que elas
convivem em subsistemas auto-organizados. Castilho postula que esses subsistemas no so
independentes uns de outros, caracterizando-se como um feixe de categorias prprias. Em
outras palavras, cada expresso lingustica exemplifica simultaneamente todas essas
categorias. No h um subsistema central e, com isso, nenhum deriva de outro. Essa
premissa nos leva difcil tarefa de encontrar uma porta de entrada para a anlise dos usos de
um termo como informao.
Adotamos como ferramenta de anlise do que entendemos tratar-se da
gramaticalizao enformao moldagem >>> informao estado das coisas os
fundamentos tericos e metodolgicos de uma recm-formulada Lingustica Sociocognitiva
(MARTELOTTA, 2011). A abordagem Sociocognitiva toma como paradigma a ideia de que a
linguagem humana requer a observao de aspectos estritamente cognitivos e,
concomitantemente, de estratgias pragmticas validadas pelos falantes nas mais diversas
situaes de interao. Tais premissas sustentam-se em um paradigma de cincia cognitiva
que investiga os sistemas complexos dentro de seus contextos, considerando aspectosculturais ou biolgicos que lhes so inerentes, acreditando que s nestes cenrios possvel
alcanar a magnitude de suas propriedades (CARMO, 2012; SILVA, 2005).
Essa metateoria nos fornece argumentos robustos contra os modelos que tomam como
cientfica a noo de que informao um objeto que pode ser transferido, de um emissor a
um receptor: comprovadamente, essa uma estrutura que pertence ao senso comum, s
propriedades baseadas na psicologia dos sentidos isto , em como as pessoas pensam que
utilizam os sentidos (IBARRETXE-ANTUANO, 2009). Portanto preciso super-la se oobjetivo compreender a comunicao humana e a funo que um conceito como informao
cumpre a.
A Lingustica Sociocognitiva oferece, ademais, consistentes explicaes para a(s)
polissemia(s) relacionada(s) ao termo e nos ajuda a compreender a trajetria etimolgica dos
itens lexicais e bases envolvidos no estudo (forma, informao, enform-, inform-), dado
fundamental para se identificarem mudanas diacrnicas e, da, extrair padres universais
culturalmente adaptados (SWEETSER, 1990; 1987). Por fim, a metateoria nos permite
alcanar as hipteses relacionadas gramaticalizao, que se propem a explicar a
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implementao de mudanas lingusticas como a que enunciaremos. A partir de trechos de
textos escritos no perodo que vai do sc. XIV ao XVII, demonstraremos, com essa tese, que
informao:
No interior do portugus, tem origem em enformao, conceito que, desde o
sc. XIV, j estava reificado por funo designadora; cognitivamente,
manejava-se o termo como se fosse um objeto;
O fenmeno pode ser explicado pela introduo da escrita em Portugal que, em
atendimento aos discursos do que deve ser memorvel, histrico ou jurdico, se
manifesta por um certo gnero discursivo literatura informativa;
Por intermdio da Lingustica Sociocognitiva e do testemunho dos dados,
conclumos que o corte discursivo som-viso ressuscitou, no Ocidente
moderno, a metfora do canal(REDDY, 1979) e provocou a emergncia de
informao como hoje a entendemos: como um objeto mental, um membro
de nosso repertrio mental.
A metfora do canal nos permite explicar a etimologia e a polissemia de
enformao, uma vez que a Teoria da Metfora Conceptual (LAKOFF;
JOHNSON, 2002 [1980]) prev um mapeamento conceptual envolvendo
enformao moldagem e informao estado das coisas.
A exposio dos argumentos que sustentam tais pontos est estruturada nos seguintes
captulos. Aps os captulos pr-textuaisobjetivos e hipteses (cap. 2), metodologia (cap. 3)
e aporte terico (cap. 4)desenvolvemos a tese no captulo 5.
Em 5.1, discorremos sobre os dois significados que sempre conviveram na semntica
da palavra forma, quais sejam, frma efrma. A ideia central aqui verificar, para a lngua
portuguesa a partir da escrita, se ocorreu a emergncia do conceito de frma, conforme EricHavelock observara na lngua grega dos tempos de Plato. Se confirmada, a hiptese
converte-se em uma boa medida para avaliar o prestgio discursivo da objetividade induzido
pelo discurso da viso. Afirmamos que frma era um conceito caro ao latim vulgar e,
tambm, ao grego vulgar. A metfora da frma nos sugere um mundo da interioridade, em
que o observador est dentro do observado, a causa (coisa) primeira. Nesse mundo at o
medievo, o belo e o bom est nasfrmase no nasfrmas. O melhor molde, o mais belo, o
mais justo, era sempre Deus; informe, isto , sem-frma, era sinnimo de monstruosidade.
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A seo 5.2 dedicada a esclarecer a variao entre as bases ortogrficas enform- e
inform-. A questo que, nos dados que, at o sc. XIV, informao ocorria exclusivamente
como variaes da base enform- (emform-, form- ou, excepcionalmente, efform-), tendo
predominado at o sculo seguinte perante a base inform-. Foi como enformao, portanto,
que a informao, como hoje a conhecemos, emergiu no portugus. A competio
morfossemntica entre as duas grafias marca o incio do portugus clssico (scs. XVI-
XVII) e, mais que isso, acrescenta novo argumento, segundo cremos, em favor de um corte
som-viso como motivao para uma mudana de perspectivafrma > frma.
Na seo 5.3, a questo da gramaticalizao de informao analisada luz das teses
da Lingustica Sociocognitiva. Como observaram Moura e Zanotto (2009, p.10), ao faz-lo,
temos ento a oportunidade de trazer para primeiro plano a explanao de como se pode
chegar a mais de uma interpretao de um mesmo enunciado metafrico.
A emergncia da expresso no sc. XV j denunciava, na concepo dos escritores
portugueses, asubstnciade que feito o contedodapalavra enformao: o estado das
coisas. O verbo enformar (moldar e comunicar) , nessa perspectiva, exemplo de um
processo metafrico que combina mudanadeestado com movimento(GOLDBERG, 1995,
p.81), alinhando-se a outros verbos do latim que estabeleciam uma relao analgica
envolvendo continncia e comunicao, tais como exprimere (espremer e exprimir),mittere (meter, emitir), monere (moeda, admoestar), inducere (introduzir,
induzir).
Demonstramos ainda, nessa seo, que a metfora que estrutura a noo de
informao-coisa, a complexa metfora do canal(REDDY, 1979). Com base nela, cada
pessoa pensa que tem um conjunto pr-definido de alternativas de material mental e
emocional, chamado repertrio, cujas categorias principais denotam membros de
repertrio (MR). So MRs, por exemplo, as ideias, pensamentos, emoes,significados e informaes. A linguagem funciona como um canal por meio do qual
transferem-se MRs do interior de uma pessoa para o exterior e vice-versa. com base nesses
mapeamentos cognitivos que utilizamos informao em expresses como dar, enviar,
ter ou tomar.A complexidade semntica de informao apresentada, ento, em termos
das metforas primitivas que a decomposio da metfora do canal de Grady (1998) produziu.
No captulo 6, conclumos com uma interpretao que busca harmonizar as anlises
anteriores.
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2 HIPTESES E OBJETIVOS
2.1 Hipteses
Nossa hiptese principal, aquela que guia todas as demais asseres, a de que:
O corte som-viso decorre do distanciamento conhecedor/conhecido induzido
pela escrita.
A partir da, postulamos que:
i. Com o corte som-viso, emerge, como no portugus mdio (scs. XIV-XV),
uma informaoreificada na lngua, mais especificamente compreendida como
o contedode umafrma criada;
ii. Informaonasce( criada) quando umasubstncia, o estado das coisas,
enformado(ou seja, compreendido);
iii. Uma frma, cognitivamente falando, aquilo que, ao enformar a substncia
estado das coisas, d origem a uma frma criada, que pode ser transferida
segundo a metfora do canal.
2.2 Objetivo geral
O estudo tem como objeto o processo milenar da gramaticalizao enformao
moldagem >>> informao estado das coisas, com especial ateno ao perodo de
passagem do portugus mdio (scs. XIV-XV) para o portugus clssico (scs. XVI-XVII),
quando se observou uma separao fundamental entre os diversos conceitos que
caracterizam a polissemia de informao: enformao moldagem e informao estado das
coisasso, hoje, considerados parnimos (HOUAISS, 2001).
2.3 Objetivos especficos
Localizar base sociocognitiva que sustente a gramaticalizao empiricamente
observada frma>>>frma,quando a certeza passou a ser encontrada cada
vez mais naquilo que os portugueses escritores do sc. XVviamdo que no que
lhes era ditoatestanto assim o corte discursivo som-viso;
Distinguir a etimologia das bases enform- ~ inform- no portugus europeu,
associando-as aos verbos do latim efformare pr na frma ~ informaredar
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frma. Com a distino, demonstrar a origem vulgar de informao, aquela
que melhor explica a polissemia do termo;
Explicitar o conceito de informao reificada nos termos da metfora do
canal.
3 METODOLOGIA
3.1 Procedimentos de anlise
Procuramos reforar, empiricamente, hipteses centradas em certas dicotomias que,
para nossos propsitos, foram tomados como ncleos prototpicos dos diversos continua
lingusticos estudados: frma >>> frma, enformao >>> informao, oralidade-escrita,
som-viso. Justamente porque se tratam de continua envolvendo termos altamente opacos
que, assim cremos, se justificam apoiarmo-nos em pontos de virada das curvas de variao.
Ao estudarmos os processos metafricos que motivariam a gramaticalizao
enformao moldagem >>> informao estado das coisas, observaram Moura e Zanotto
(2009, p.10), temos a oportunidade de trazer para primeiro plano a explanao de como se
pode chegar a mais de uma interpretao de um mesmo enunciado metafrico, facilitanto
assim a compreenso de polissemias. Se a metfora constitui uma manifestao lingustica de
um processo cognitivo socialmente partilhado, como quer a Lingustica Sociocognitiva
centrada no uso, qualquer tipo de texto, seja ele de carter geral, ou especfico, bem como
qualquer ato discursivo, ser, potencialmente, um locus de metforas (FERNANDES, 2000,
p.204). Para identificao de metforas em corpora, h essencialmente duas metodologias
gerais: baseada em corpus(corpus-based) e movida a corpus(corpus-driven). Adotamos
a primeira, que tem como caracterstica principal o fato de que o pesquisador delimita os
candidatos de antemo (BERBER SARDINHA, 2007).
As primeiras anlises (5.1 e 5.2) sero exploratrias, o que nos permitir aprofundar
conceitos preliminares, muitas vezes inditos, buscando a gerao de ideias ou insights
(PERIN et al., 2002). Em 5.3, empreendemos anlise qualitativa sob a perspectiva da
Lingustica Sociocognitiva, que visa a circunscrever as experincias conceptuais
correspondentes aos usos de informao e suas variantes no perodo em estudo (scs. XIV-
XVII), mtodo que a literatura classifica como bottom-up. Ainda conforme Berber Sardinha,
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uma metodologia bottom-up (ascendente) geralmente aquela em que o analista parte da metfora
lingustica (informao) e no da metfora conceptual; por outro lado, quando o anal ista parte
da metfora conceptual para encontrar as metforas lingusticas correspondente, o estudo tido
como top-down (descendente).
3.2 Corpora
Seguindo as recomendaes de uma abordagem centrada no uso, apoiamos as anlises
em dados reais contendo os lexemas derivados de inform-e enform-, extrados principalmente
do Corpus do Portugus (DAVIES; FERREIRA, 2006-)2, composto de 45 milhes de
palavras e quase57.000textos, sendo 15 milhes dos sculos XIII-XVIII. Dentro do perodo
em estudo (scs. XVI e XVII), encontramos 542 exemplares (tokens) de uso daqueles lexemaspara a lngua portuguesa, dos quais extramos cerca de 80 para atestar nossas afirmaes.
Quanto a dados metalingusticos (lexicogrficos, gramaticais), contamos com o acervo
das bibliotecas pblicas e universitrias, alm de particulares. Dispusemos ainda dos acervos
digitalizados do Google Books3 e da Europeana4, que agrega, entre outros, a Biblioteca
Nacional Digital de Portugal5e os do Centre Nacional de Ressources Textuelles et Lexicales6.
2Disponvel em: . Acesso: entre 2010 e 2013.3Disponvel em: . Acesso: entre 2010 e 2013.4
Disponvel em: . Acesso: entre 2010 e 2013.5Disponvel em: . Acesso: entre 2010 e 2013.6Disponvel em: . Acesso: entre 2010 e 2013.
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4 APORTE TERICO
4.1 O corte som-viso
Consideramos que a conscincia labora seus conceitos, seus objetos, comomanifestaes concretas do ser: no espao do texto escrito pouco importa o queficou perdido no tumulto interior antes do ato de redigir que os juzos adquiremrealidade, ou melhor, se manifestam como modalidades do ser (MOISS, 1982,
p.186)
Os estudos que buscam identificar diferenas entre culturas escritas e orais (outrora
equivocadamente chamadas mentes primitivas) vm de uma tradio que comea em O
Ramo de Ouro, do sir James George Frazer (1890), at Albert Lord (Singer of Tales),
Bronisaw Malinowski, Ernst Cassirer e Alfred Radcliffe-Brown, emergindo,
sistematicamente, no incio dos anos 1960, dcada em que foram publicadas algumas obras
fundamentais para a constituio desse novo campo de pesquisas, dentre as quais O
Pensamento Selvagem, de Lvi-Strauss, e a produo da chamada Escola de Toronto
(Harold Innis, Marshall McLuhan, Eric Havelock, Jack Goody, Walter Ong). Os trabalhos
realizados nesse perodo, em diversas reas de conhecimento, como a Antropologia, a
Sociologia e a Psicologia, enfatizaram o carter oral da linguagem e as profundas implicaes,
em todos os nveis, da introduo da escrita em sociedades no letradas (GALVO;
BATISTA, 2006).
Ong, Havelock e outros so devedores de uma descoberta de Milman Parry que, em
1928, postulara que todo trao distintivo da poesia homrica devia-se, na verdade, economia
imposta pelos mtodos orais de composio: Homero costurava partes pr-fabricadas (clichs,
lugares-comuns ou, mais tecnicamente, frmulas) agrupando-as em torno de temas
igualmente padronizados, tais como a assembleia, a reunio do exrcito, o desafio eassim por diante. Para surpresa de letrados convictos, educados, em princpio, para nunca
utilizar clichs, Homero no era um criador, mas um habilidoso operrio de linha de
montagem. Peter Burke (2010 [1978], p.173) descreveu a cultura popular em termos
parecidos: as canes e contos folclricos, as peas e estampas populares tm que ser
consideradas como combinaes entre formas elementares, como permutaes de elementos
mais ou menos prontos.
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Sabemos hoje que a cultura popular valorizava os clichs porque essa uma das
caractersticas das culturas orais: manipular padres de pensamento formulares essencial
sabedoria e administrao eficiente, pois o conhecimento, uma vez adquirido, deve ser
constantemente repetido ou se perder. Essa foi uma preocupao do padre Afonso de
Ovalle, que em suaHistorica relacin del Reyno de Chile(1646), descreve a preservao da
memria dos povos andinos atravs da memria oral encarnada em algumas pessoas que
Ovalle qualificaria como o archivo de aquel pueblo. O ofcio dessas pessoas especiais
consistia em que para mantener la memoria de lo succedido en l desde el diluvio era
obligado a repetirlo todos los dias de fiesta al son del tanbor, y cantando como lo hazia en
aquel lugar, y para que esta memoria no faltasse jamas tenia obligacion de ir industriando a
otros, que despus de sus dias le succediessen en este officio (BOUZA, 2002, p.108). Na
cultura oral, essa comunicao permanente e conservada representada pela saga e, nica e
exclusivamente, por seus descendentes. Por isso ela se fixa em padres memorveis, rtmicos,
em repeties ou antteses, em aliteraes e assonncias, em expresses epitticas ou outras
expresses formulares, em conjuntos temticos padronizados, em provrbios constantemente
ouvidos por todos, eles prprios modelados para a reteno e a rpida recordao ou em
outra forma mnemnica (comemoraes, totens, emblemas etc.).
No oralismo, os atos de fala, uma vez proferidos, so modificaes de umacircunstncia total, existencial, que envolve o corpo. Adquirem significados somente de seu
hbitat real constante, que no consiste meramente em outras palavras, mas inclui tambm
gestos, inflexes vocais, expresso facial e todo o cenrio humano e existencial em que a
palavra real, falada, ocorre. essencial, portanto, que haja um interlocutor virtual: o
pensamento apoiado em uma cultura oral est preso comunicao face-a-face. Da que uma
economia verbal dominada pelo som mais conforme s tendncias agregativas
(harmonizadoras) do que s analticas, dissecadoras, que viriam, conforme Ong, com apalavra escrita, visualizada. Enquanto o som um sentido unificador, o ideal visual tpico a
clareza e a distino.
O homo religiosus de que fala Mircea Eliade tem uma relao de unidade com o todo,
sente-se como parte do universo, por isso vive em sinergia com o cosmo, a natureza e o
mundo de maneira simbitica; no h uma lacerao e um sentimento de individualidade, mas
um sentimento de pertena ao todo. Uma tal comparticipao torna o mundo familiar e
inteligvel (VALADARES, 2011). Nas culturas orais, o conhecimento conceitualizado e
verbalizado sempre em referncia, maior ou menor, experincia humana. Mesmo o que seria
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estranho vivncia imediata assimilado, transformado, adaptado s interaes e s
necessidades concretas das pessoas. A aprendizagem ocorre por meio da observao e da
prtica e, minimamente, pela explanao verbal e pela recorrncia a conceitos abstratos
(GALVO; BATISTA, 2006, p.410-411). Em decorrncia, no h separao de uma ordem
das ideias de outra, dos fatos, nem se pode dizer que a verdade corresponde captao
da segunda pela primeira. O prprio procedimento lgico de investigar a verdade, de
procur-la no fundo ou atrs, faz pouco sentido na cosmoviso medieval (RODRIGUES,
2003).
A viso situa o observador fora do que ele v, a uma distncia, ao passo que o som
invade o ouvinte. Por isso, conclui o padre Ong, mais do que qualquer outra inveno
individual, a escrita transformou a conscincia humana. No um mero apndice da fala; em
virtude de mover a fala do mundo oral-auricular para um novo mundo sensorial, o da viso,
ela transforma tanto a fala quanto o pensamento.
A apresentao visual do material verbalizado no espao possuiria, conforme Ong,
sua prpria economia, suas prprias leis de movimento e de estrutura. Os textos, em vrios
registros em todo o mundo, so lidos diferentemente da esquerda para a direita, ou da direita
para a esquerda, ou de cima para baixo, ou todos esses modos ao mesmo tempo, como em
uma escrita bustrofdon (padro arado de boi, uma linha indo para a direita, depois umavolta na ponta para a outra linha, que vai da direita para a esquerda, sendo as letras invertidas
segundo a direo da linha). Os textos assimilam a enunciao ao corpo humano quando
introduzem um gosto por cabeas7 (cabealhos, captulo, cabea para baixo) e ps
(roda p) que constituem uma concepo totalmente diferente de tudo o que existe na
sensibilidade oral.
A linguagem oral completamente natural aos seres humanos, no sentido de que todo
ser humano que no seja fisiolgica ou psicologicamente deficiente aprende a falar, em
7A letra maiscula A, a propsito, sempre representou a cabea de um boi que, se hoje est de cabea parabaixo, na escritabustrofdon acompanhava a direo da linha, uma vez que significava um boi arando a terra.De acordo com a wikipedia, o nome bustrofdonderivada palavragrega, de(bous boi)e (strophvirar; cf.estrofe), pois este tipo de escrita recorda os trilhos abertos por um boi atrelado aum arado atrabalhar nas terras agrcolas, que ao chegar ao fim de um campo d meia-volta e regressa para trs.Sobre o A, diz a enciclopdia, a primeira letra em quase todos os alfabetos do mundo, com exceo domongol, tibetano, etope e outros menos conhecidos. A forma do A encontra aparentemente sua origem numhierglifo egpcio simbolizando uma guia (ahom) na escrita hiertica cursiva. Os fencios renomearam a letraaleph(boi/touro), a partir de uma semelhana imaginada com a cabea e os chifres deste animal (para v-lo,
preciso tomar o A de cabea para baixo, ). No alfabeto grego mais antigo, alephpassa a ser a letra alpha. Emseguida, ela se tornou o A romano, de onde a forma e o valor em geral foram transmitidos aos povos que maistarde adotaram o alfabeto latino.
http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_gregahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Boihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Boihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Boihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Poesiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Poesiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Poesiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Bustrof%C3%A9donhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Bustrof%C3%A9donhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Poesiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Boihttp://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_grega -
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qualquer cultura. No h como escrever naturalmente, por isso a escrita deve ser entendida
como uma tecnologia aprendida, que exige o uso de ferramentas e outros equipamentos. No
Livro de M. Giovambattista Palatino, cidado romano, no qual se ensina a escrever todo tipo
de letras antigas e modernas (1545), o autor comenta os instrumentos necessrios a um
escrivo do sc. XVI (apud FRUGONI, 2007, p.15-16):
O compasso, o esquadro, a rgua, o riscador com uma ou duas linhas, os grampospara apertar a linha falsa que transparece sob a folha servem para escrever comequilbrio e de forma igual e para limitar a mo, como se disse no princpio. Sobre astesouras, barbantes, sinetes etc., no preciso dizer coisa alguma, pois todos sabem
para que servem. O espelho [cncavo] se mantm para conservar a viso e descans-la do escrever contnuo. E muito melhor o de vidro que o de ao. O estiletedesenhado sobre o tinteiro usado por muitos quando escrevem com diligncia, paramanter firme o papel diante da pena, para que no se agite com o vento.
A escrita sempre um registro adicional fala, mas seu surgimento acaba
necessariamente influenciando a fala, que nunca a mesma do que quando est sozinha.
No se deve falar, portanto, em um declnio da transmisso oral, pois preciso lembrar que
a chegada de um novo meio de comunicao no substitui o anterior; ele acrescenta algo ao
anterior e o altera:
Inicialmente [na comunicao me/filho] toda a comunicao humana, mesmo nasculturas com a escrita, feita no registro oral. Uma situao semelhante existiu no
nvel da sociedade por toda a historia humana, at mais ou menos h uns cem anos,porque todas as culturas, desde que a escrita foi inventada, foram divididas em doisgrupos, em duas subculturas, uma compreendendo aqueles que sabiam ler e a outraaqueles que no o sabiam. Por isso uma grande parte da comunicao com nossossemelhantes tinha de ocorrer por meio da fala e no pela escrita (GOODY, 2012,
p.144).
A partir da imprensa, que tornou acessvel obras clssicas e tcnicas, os leitores
artesos passaram a compartilhar os mesmos textos que os membros da elite. Reliam em voz
alta mais que liam, de uma maneira intensiva, baseada na repetio e na memorizao. So
prticas mimticas, includas numa concepo teolgica da histria, que ordena o tempo e apessoa de outras maneiras. Por isso, adverte Hansen (1995, p.156), seria equivocado
pressupor-se nelas a originalidade autoral, a psicologia, o realismo, o reflexo, a esttica e a
literatura, categorias posteriores da ordenao iluminista do tempo.
Para o homem comum do sculo XVI, o sentido da viso ainda um sentido
atrasado. Os sentidos (hoje) menos intelectuais, o tato, o olfato e a audio, eram os sentidos
mais importantes:
A audio teve um papel predominante ao sculo XVI, um dos sculos maisapaixonados pela msica que jamais existiu; quase todos os grandes homens do
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sculo XVI eram melomanacos decididos mas, alm da msica, quantos outrostestemunhos sobre a importncia do ouvido no sculo XVI, neste sculo que acabarade descobrir a imprensa e que, cada dia mais se admirava das incomparveisfacilidades que ela trazia ao estudo. Apesar do que, entretanto, parecia s vezes sdar importncia palavra oral (FEBVRE, 1950, p.14-15):
Na oralidade, o recurso autoridade a manifestao tpica do carter comum e supra-
individual. A F audio, afirma Febvre. As obras de Deus, Ele as realiza pela fala, via
que faz ouvir aos homens. O saber se manifestava, se transmitia e se autentificava atravs de
determinados rituais orais, dos quais o mais clebre e mais conhecido era a disputatio
(FOUCAULT, 2005 [1974], p.75-76) um elemento que caracteriza fortemente as diversas
formas de ensino das universidades a partir do sculo XIII, seja na graduao, seja na
formao de mestres e na pesquisa (DIAS, 2007. p.17-18). Tratava-se do afrontamento dedois adversrios que utilizavam a arma verbal, os processos retricos e demonstraes
baseadas essencialmente no apelo autoridade. Apelava-se no para testemunhas de verdade,
mas para testemunhas de fora: quanto mais autores um dos participantes tivesse a seu lado,
quanto mais pudesse invocar testemunhos de autoridade, de fora, de gravidade, maior
possibilidade ele teria de sair vencedor.
A escritura aparece no Ocidente medieval como uma instituio em que uma
comunidade pode se reconhecer, mas no comunicar-se, na medida em que o manuscrito
no pode ser um meio de difuso massivo. A escritura costuma servir, quando introduzida em
comunidades grafas, como um sistema secundrio de signos, o qual refletia aquele,
primrio, que a voz manipula (ZUMTHOR, 1993, p.110). No Portugal medieval, nosso caso
em estudo, mesmo reis que viveram tendo poder recorreram a quem dominava competncias
especficas e especializadas, tais como as da leitura e da escrita. Jograis de ambulatrios ou
trovadores convidados visitavam o pao para narrar contos, lendas, declamar poemas, tocar e
bailar, o que ocorria no s para divertimento da corte, mas tambm para suprir a falta de
acesso ao livro (MICHELAN, 2009, p.277). No mundo do direito, da filosofia (incluindo aqui
a medicina) ou da espiritualidade, onde essas competncias eram necessrias, o homem
medieval ainda recorria a pessoas concretas (LISBOA; MIRANDA, 2011).
Mas um dia a fala perder sua credibilidade. Num manuscrito com conselhos de um
tio a seu sobrinho, copiados em 1750, com o ttulo Sentenas de fiel razo..., aconselha-se:
[]Ainda que no falar tenhais descuido, no escrever tende reparo, que um pode esquecer, e
negar-se, mas o outro convence-se, e sempre consta, que muitos perecero pelo que haviam
escrito, e outros ficaro bem sendo que havio falado mal. No sculo XIX, a passagem de
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uma lgica de alfabetizao para uma lgica de escolarizao, consequncia do ensino
obrigatrio, acentuar enfim o enfraquecimento das ltimas tradies orais (ZUMTHOR,
1993, p.111).
A revoluo conceitual provocada por esse corte som-viso (onde e quando quer que
ela ocorra) tem incio quando se percebe que o registro oral dos sons lingusticos pode ser
armazenado de uma maneira totalmente nova, no mais dependente dos ritmos empregados
para a memorizao. Esse registro pode se tornar documento, um conjunto permanente de
formas visveis, no mais construdo por fugazes vibraes do ar, mas por formas que podiam
ser conservadas at um posterior resgate, ou mesmo esquecidas(HAVELOCK, 1996).
Outra separao provocada pela escrita, de que fala Ong, diz respeito ao
distanciamento no tempo e no espao entre a fonte da comunicao (o escritor) e o
destinatrio (o leitor): na intercomunicao oral, ambos os interlocutores se encontram numa
relao circundada pelo mesmo espao e tempo e os referentes, em relao s pessoas do
discurso, so fisicamente evidentes, o que permite o uso de uma gramtica que referencia os
objetos vista imediatamente ou prximos. O contexto sempre inclui mais do que palavras: a
maior preciso das enunciaes d-se mediante elementos no verbais, o que torna os
significados situacionais.
O sistema de metforas do latim de Roma, por exemplo, originou-se em crenas sobrea fisiologia humana: a fala enquanto respirao (aura) era expirada por uma pessoa nos
ouvidos (aures, da auricular) de outra. Ocasionalmente, os poetas faziam essa conexo
explcita, localizando a fonte da fala nos pulmes ou peito. Desde sc. II a.C., essa associao
com a respirao e fisiologia humanas j estavam perdidas (WISEMAN, 2007a), mas ela foi
preservada em ditados comoscripta manent, verba volant (a escrita fica, as palavras voam),
que costumava expressar elogio palavra dita em voz alta, que tem asas e pode voar, em
comparao com a palavra silenciosa na pgina, que est parada, morta (MANGUEL, 2004[1996]). Assim as via Isidoro de Sevilha (636), para quem as letras tm o poder de nos
transmitirsilenciosamenteos ditos daqueles que esto ausentes (grifo nosso).
A escrita distancia, assim, a palavra do contexto existencial: inclui apenas outras
palavras, enquanto que, na expresso oral, as relaes pessoais fazem parte da comunicao.
Uma consequncia da ruptura espao-temporal, por exemplo, o uso completamente diferente
dos diticos (unidades lingusticas que designam os referentes no espao e no tempo, em
relao s pessoas do discurso). Fora da enunciao face-a-face, ficam destitudos de sentido.
Por exemplo, este, aquele designam, respectivamente objetos que esto prximos de
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quem fala (primeira pessoa do discurso), de com quem se fala (segunda pessoa do discurso) e
distante de ambas (sobre quem/o que se fala, a no pessoa); hoje o dia em que o
discurso est ocorrendo, amanh, o dia seguinte. Os textos escritos precisam ser,
consequentemente, auto-referenciados, de modo a permitir a extrao da informao do meio
impresso: no existe a possibilidade de informao extra fornecida pelo redator, tais como
retificaes, expresso facial e corporal, apontar para os objetos ou quaisquer outras pistas da
entoao (SCLIAR-CABRAL, 2003, p.45). Essa , a propsito, uma das principais
distines que Marcuschi admite entre a fala e a escrita
A fala uma forma de produo textual interativa por excelncia e por isso exigecooperao e envolvimento direto. Muitos dos processos e atividades devem servistos nessa perspectiva. Entre os aspectos importantes para contemplar a fala esto
o tempo e o espao. Ambos organizam a estrutura ditica (formas de indicar oespao e o tempo). Contudo, h um aspecto ligado ao tempo que crucial. Trata-seda produo em tempo real. Isso se liga presena fsica dos interlocutores eorganiza a gestualidade, a mmica, os olhares e os movimentos do corpo comorecursos simblicos significativos para efeitos de sentido. Tambm temos aqualidade da voz que, ao produzir o som audvel, comanda a prosdia (entoao,tom, velocidade, etc.). O certo que, no caso da produo oral, se verifica umsistema de mltiplos nveis em atuao (MARCUSCHI, 2007, p.46-47)
A escrita se constituiria, ento, em um discurso autnomo, fruto do pensamento
analtico, que separa, por exemplo, a administraocivil, religiosa, comercial, entre outras
de outros tipos de atividades sociais. Segundo Ong, a administrao algo desconhecido
nas culturas orais, em que os lderes interagem de maneira concreta com o resto da sociedade.
A escrita permitiria tambm a separao da lgica, entendida como estrutura do discurso, da
retrica, esta compreendida como o discurso socialmente efetivo. Para esse autor, a escrita
separa igualmente a aprendizagem acadmica da sabedoria, tornando possvel a organizao
de estruturas abstratas de pensamento independentemente de seus atuais usos ou de sua
integrao no mundo vital.
O processo de aprendizagem do conhecimento passa a requerer uma separao entresua transmisso e as prticas cotidianas. O conhecimento acumulado e a vida diria tornam-se
separados. O comportamento estudar s surge depois da introduo dos sistemas de escrita.
Nesse processo, grupos especficos emergem e se especializam em preservar, editar e
interpretar a informao escrita, utilizando, para isso, uma linguagem criada que se
diferenciava daquela utilizada na vida cotidiana. Exemplo tpico so as linguagens artificiais
das prticas jurdica e biblioteconmica. O conhecimento tornou-se, ento, aos poucos,
descontextualizado e formalizado; instituies (escolas) foram criadas especialmente para
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transmiti-lo, de gerao em gerao. Somente no sculo XX, a lgica da transferncia da
memria para o documento foi plenamente realizada (HAVELOCK, 1995, apud GALVO;
BATISTA, 2006)
4.1.1 Crticas grande divisooralidade/escrita
Afirmaes como as que sustentam que somente os letrados possuem capacidade deabstrao; que a introduo da escrita e, mais tarde, da imprensa, constiturammarcos divisores na histria da humanidade; ou, ainda, que as culturas podem serdivididas em orais e escritas, sem que seja considerada a coexistncia do oral edo escrito na mesma poca e no mesmo lugar, tm sido problematizadas einvestigadas com maior profundidade em vrios estudos (GALVO; BATISTA,2006, p.423)
Vrios pesquisadores demonstraram que foi a explorao sistemtica da escrita quepermitiu a diferenciao entre mito e histria. A explorao da escrita teriapermitido expressar de modo ordenado o raciocnio formal com premissas tal comoo fez Aristteles. Mas o certo que a escrita no deu origem ao raciocnio abstratocomo tal. A escrita apenas introduziu uma nova forma de explicitao de umraciocnio que j existia, e no uma nova forma de raciocnio como tal. Portanto, aescrita no introduz o pensamento abstrato, mas, sim, desenvolve-o formalmente(MARCUSCHI; HOFFNAGEL, 2007, p.94).
O corte som-viso proposto por Walter Ong e vrias outras hipteses da Escola de
Toronto envolvendo a temtica oralidade versusescritano esto isentos de crticas, sendo
a mais contundente delas a tendncia dessa linha em considerar a cultura da escrita como algosempre positivo, muitas vezes diretamente associado s necessidades vitais de pessoas e
sociedades modernas e desenvolvidas. Em tempos ps-positivistas, j no se admite uma
linearidade evolutiva que resultaria no progresso de todos os povos, nem a dicotomia
mentalidade pr-lgica, incapaz de abstrao, em oposio a uma lgica, com histria,
cincia, objetividade e pensamento crtico.
Refuta-se que a oralidade no seja capaz de realizar abstraes do mundo, mesmo
abstraes visuais, que tambm contemplavam funes informativas. Os antigos detinham,por exemplo, a noo de padres de mapeamento enquanto representao abstrata, que
podiam ser tanto visuais quanto acsticos. O lat mappa,ae toalhinha, guardanapo j
significava, entre os antigos agricultores, representao grfica de um terreno. Para Hobart
e Schiffman (2000, p.27), a fundamental diferena entre os processos orais e letrados de
abstrao que os orais so participatrios e no reflexivos. Com no reflexivos, os
autores no querem dizer primitivos, mas que tal economia notica organiza-se em torno da
pouca distncia que o conhecedor tem do conhecido. Na oralidade, esses padres no
esto nas mentes das pessoas, eles simplesmente harmonizam-se juntos.
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A perspectiva da Escola de Toronto traria, enfim, grandes marcas do evolucionismo,
na medida em que investiga as sociedades contemporneas que ainda se conservam
primitivas com o objetivo de nelas encontrar o que teria sido o passado da sociedade
ocidental, sem levar em considerao as condies scio-histricas concretas das diferentes
culturas e as questes de carter mais geral, como aspectos histricos, sociais, polticos,
econmicos etc.
A viso dicotmica embutida no modelo terico da autonomia da escritacomeou a
ser ameaada nos anos 80 com estudos, em especial nos EUA e na Inglaterra, que sugerem
uma relao contnua entre letramento e oralidade, evitando a noo de autonomia e
supremacia da escrita. Identificam-se especificidades em cada uma delas e formas tpicas de
funcionamento e produo de sentido, bem como uma vinculao estreita aos contextos de
produo (MARCUSCHI, 2001). A obra de Bryan Street (1993; 2006), que contempla
prticas de letramento em contextos to variados quanto o sudeste asitico no sculo XV, um
atol do Pacfico do Sul nos dias de hoje e recentes relatos da Nova Guin, Madagascar e
Filadlfia, vem demonstrando a variedade e complexidade dos letramentos e desafiando
algumas suposies dominantes ao situar as prticas de letramento no contexto do poder e da
ideologia (que o autor chama de modelo ideolgico) e no como uma habilidade neutra,
tcnica (modelo autnomo).
Existem vrios modos diferentes pelos quais representamos nossos usos esignificados de ler e escrever em diferentes contextos sociais e o testemunho desociedades e pocas diferentes demonstra que enganoso pensar em uma coisanica e compacta chamada letramento. A noo de que a aprendizagem de umletramento nico e autnomo ter consequncias pr-definidas para os indivduos eas sociedades provou ser um mito, quase sempre baseado em valores especficosculturalmente estreitos sobre o que propriamente o letramento (STREET, 2006,
p.466).
Street (1993, p.8-10) no toma a noo de ideologia no sentido marxista ou
antimarxista de falsa conscinciaou dogma, mas v a ideologia como o lugar da tenso
entre a autoridade e poder, de um lado, e a resistncia e criatividade, de outro lado. Essa
tenso manifesta-se no uso da lngua, seja na sua forma oral ou escrita. Tal viso teria a
virtude de evitar a polarizao da grande diviso e inserir as questes tcnica, cultural,
cognitiva e social envolvidas no letramento num todo mais amplo das relaes de poder em
que operam.
Diante desse fato, seria preciso assumir uma viso menos paternalista e menos
estreitamente pedaggica do processo: quando se parte do pressuposto de que sujeitos no
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so tbulas rasas, em vez de sublinhar como o letramento afeta as pessoas, queremos
mudar de lado e examinar como as pessoas afetam o letramento. Isso tambm revelaria como
os processos de letramento no podem ser entendidos simplesmente em termos de
escolarizao e pedagogia: eles so parte de instituies e concepes sociais mais
abrangentes.
A literatura tem confirmado que as relaes entre oralidade e escrita so muito mais
complexas do que alguns estudos podem fazer supor e que as grandes dicotomias
estabelecidas entre oral e escrito tm sido incapazes de explicar as intrincadas relaes
existentes entre as diferentes formas de linguagem, as caractersticas e os modos de
pensamento em culturas diversas. Para contorn-lo, a evoluo dos estudos progressivamente
mudou de abordagem: mais do que descrever as diferenas entre a cultura escrita e a oral,
passou-se a buscar apreender as condies sociais, histricas e tcnicas em torno das quais,
para diferentes casos histricos, construiu-se uma determinada cultura escrita e um conjunto
determinado de impactos polticos, sociais e culturais. Passou-se a buscar compreender no a
cultura escrita em sua oposio cultura oral, mas as culturas escritas. Bortoni-Ricardo
(2007), por exemplo, apresenta, como instrumento de anlise do portugus usado no Brasil,
um modelo de trs contnuos:
um de urbanizao, que se estende desde variedades regionais geograficamenteisoladas at a variedade urbana que, no processo scio-histrico, passou por umaestrita padronizao; um outro de monitorao estilstica, para dar conta dos
processos de ateno e planejamento conferidos pelo falante interao, e umterceiro, de oralidade/letramento. Este ltimo, previsto para acomodar as prticassociais, que oscilam desde prticas predominantemente orais a prticas
predominantemente letradas. Pesquisas etnogrficas nos tm mostrado que, mesmono interior da sala de aula, podem ser identificadas tanto umas quanto outras.
Eis por que a cognio, para Marcuschi e Hoffnagel, um fenmeno que tem a ver
com o fato social, e no com uma tecnologia em particular:
Desde os tempos pr-histricos at hoje, somos todos seres humanos comcapacidades cognitivas similares. Quem tem uma histria o pensamento e a nossarelao com as criaes que foram sendo realizadas pelo esprito humano. Entreessas realizaes, est certamente a escrita como algo mpar. Em certo sentido,
podemos dizer que a escrita possibilitou um distanciamento do conhecido, umaatitude mais reflexiva sobre a natureza e uma forma de organizar o conhecimentocom acesso continuado (MARCUSCHI; HOFFNAGEL, 2007, p.97)
Defendendo-se de crticas que lhe foram dirigidas de que com suas teses estariam
praticando uma mistura universal, colapsando as variveis oralidade e escrita para jog-las
numa vala comum (MARCUSCHI, 2001) Street admitiu que o modelo ideolgico
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subsume e no exclui o trabalho desenvolvido no modelo da autonomia. Ele no ignora as
diferenas, mas sugere trat-las como prticas que diferem de um contexto sociocultural a
outro.
Aceito por todas as correntes o fato de que a escrita possibilita uma relao
diferente entre o conhecedor e o conhecido, na medida em que ambos se fixam de forma
diversa na tradio oral e na tradio letrada (MARCUSCHI; HOFFNAGEL, 2007, p.96-98).
A fixao do conhecimento pela escrita nos d notcia do que outros povos conheceram e
conhecem, do mesmo modo que a preservao da cultura oral se d com a preservao das
lnguas sendo faladas. Esse um aspecto importante da escrita, seu poder de fixao do
conhecimento independente dos indivduos, mas isso no significa que esse conhecimento
seja autnomo e tenha vida prpria independente dos seres que o constituram.
A escrita separa o conhecido do conhecedor. Com isso, segundo Ong, elapromoveria maior objetividade. Mas o fato que a linguagem j uma atividadesociocognitiva que opera essa separao. O ato de nomear as coisas a atividademais arcaica e bsica da separao aqui mencionada, e no fruto da escrita. Com aescrita, a linguagem interps entre o conhecedor e o conhecido um objeto que otexto escrito (MARCUSCHI; HOFFNAGEL, 2007, p.95-96)
A histria da informao, conforme a descrevem Hobart e Schiffman (2000, p.2), est
associada com a inveno da escrita h 5 mil anos, evento que deu luz a informao em si,
gerando a primeira revoluo da informao. Se quisermos seguir essa pista, preciso, de
alguma forma, aproveitar o material terico produzido originariamente no interior de um
modelo autnomo, agora compreendido no contexto de uma nova forma de armazenar o
conhecimento e express-lo com um controle formal que a fala no permitia pela sua
fugacidade (MARCUSCHI; HOFFNAGEL, 2007, p.95-96):
Para nossos propsitos, adotaremos a distino sugerida por Zumthor (1993, p.18),
que classifica oralidade de trs tipos. A primeira, que denomina primria e imediata, no
estabelece contato algum com a escrita, encontrando-se apenas nas sociedades desprovidas
de todo sistema de simbolizao grfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos. Em
segundo lugar, haveria uma oralidade mista em que o oral e o escrito coexistem, mas a
influncia do escrito permanece externa, parcial e atrasada, o que parece bem descrever a
situao em Portugal do sc. XIV, quando da primeira ocorrncia de informaona lngua.
Esse tipo de oralidade procederia de uma cultura escrita. Finalmente, o autor denomina
oralidade segunda aquela que caracterstica de uma cultura letrada e se recompe
com base na escritura num meio onde este tende a esgotar os valores da voz no uso e no
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imaginrio. Esses tipos de oralidade variam, segundo Zumthor, de acordo no somente com
as pocas, mas com as regies, as classes sociais e tambm com os indivduos.
Tratando-se dos scs. XIV a XVII, obviamente no temos textos falados, apenas os
escritos. nessa face da lngua que iremos procurar as novas entidades, objetos mentais que
existem parte do fluxo da falae que apontam, conforme Hobart e Schiffman, para aspectos
de objetivizao, de que a reificao de informao seria apenas um exemplo. Assim, no
temos o propsito de considerar os extremos da grande diviso como categorias rgidas,
pois o que observamos no a comunicao humananem a lngua, mas o senso comum,
aquilo que os escritores, ao usar informao ou variaes, pensavam e diziam sobre da
comunicao humana num ambiente de oralidade mista. Essa manifestao tomada como
significativa de uma mentalidade escrita.
Interessa-nos, como categorias de anlise, o corte som-viso proposto por Walter Ong,
desde que numa perspectiva de como as pessoas afetam o letramento.Seria ingnuover
na relao fala e escrita apenas uma diferena de meio de manifestao ou representao, ou
seja, a escrita seria representada graficamente e a fala, pelo som, a distino som-grafia
essencial para a relao fala-escrita do ponto de vista discursivo, mas no do ponto de vista do
sistema da lngua (MARCUSCHI; DIONISIO, 2007, p.26),
De fato, as diferenas entre os significados do sentidos esto baseadas em contrastesbiolgicos e culturais. Ibarretxe-Antuano (2009) analisou diversas metforas no domnio da
percepo (viso8, audio9, tato10, paladar11 e olfato12) a partir de uma tipologia de
propriedades prototpicas que nos til na identificao de marcas do deslizamento
oralidade-escrita. Amparando-se na fisiologia dos cinco sentidos (fundamentos biolgicos) e
na psicologia dos sentidos(modelos populares para falar sobre a comunicao), a autora
procurou garantir a independncia da descrio do domnio depercepo.
8 Ibarretxe-Antuano (2009) lista, com relao a expresses relacionadas ao domnio da viso, os verbos depercepo prever, imaginar, considerar, estudar, examinar, descobrir, ter certeza e testemunhar, alm decompreender.9Com relao audio (ouvir), Ibarretxe-Antuano (2009) inclui os verbos prestar ateno, obedecer, ficar
sabendo, ser ensinado e concordar,alm decompreender.10
Com relao ao tato(tocar): afetar, lidar com algo, considerar.11Com relao aopaladar(provar): experimentar,produzir um sentimento (gostarou no), conhecer.12Com relao ao olfato (cheirar):suspeitar,sentir (=adivinhar), entre outros.
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Tabela 1 Propriedades prototpicas na percepo. Legenda: PR a pessoa que realiza a percepo ouobservador, OP o objeto observado, animado ou inanimado, e P, o ato da observaopropriamente dito.
PropriedadesPR OP (resultantes da relao entre observador e o objeto)
Se PR precisar ter um contato fsico com OP para este ser observado. Se OP precisar estar na proximidade de PR para ser observado Se OP necessitar entrar em PR para ser observado Se PR est ciente das fronteiras impostas por OP quando observado Se PR est ciente da situao de OP quando observado
PRP (resultantes da relao entre observador e a observao)
Como PR realiza P: como PR se aproxima de um objeto e distingue um objeto deoutro
O quanto PR pode compreender o que est observando, P Se PR pode decidir quando realizar um P Se P depende de PR diretamente, ou intermediado por outro elementoOPP (resultantes da relao entre objeto e a observao)
Se P causa alguma mudana em OP Quanto tempo deve ser a relao entre P e OP para a percepo ser bem sucedida Se P avalia OP O quo correta e rigorosa so as hipteses formuladas sobre OP em P na comparao
com o objeto real de OP Quanta influncia PR tem sobre PFonte: IBARRETXE-ANTUANO, 1999, p.144; 2009.
Os sentidos so, segundo a autora, nossos canais de informaes sobre o mundoem
qualquer lugar, ento as propriedades prototpicas que os descrevem (Tabela 1) so as
mesmas, porque so baseadas nas relaes entre os trs principais elementos que participamem um ato de percepo: a pessoa que realiza a percepo ou observador (PR), o objeto
observado (OP), animado ou inanimado, e o ato da observao propriamente dito (P). Essas
propriedades, adverte a autora, no devem ser entendidas como primitivos semnticos ou
unidades atmicas conceituais inatas, mas como atalhos de referncia para as propriedades de
definies usadas para descrever a percepo. Informao suscita, nesse contexto, um
interesse particular: se estiver correta a ideia da corporificao como motivao para os
mapeamentos cognitivos, possvel lanar a hiptese de que as extenses semnticas que ocorrem nos verbosde percepo devam ser motivadas e fundamentadas de forma que percebamos eexperimentamos os sentidos, que tm sido frequentemente descritos como diferentescanais atravs dos quais adquirimos informaes sobre o mundo (IBARRETXE-ANTUANO, 2009, p.125).
Existem duas palavras-chave nessa questo: informao e diferentes. Os cinco
sentidos nos doas informaes sobre o mundo em que vivemos, mas a forma como essas
informaes so recebidas, processadas e compreendidas pelas pessoas diferente
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Biologicamente, cada sentido tem seus prprios receptores olhos, ouvidos, pele,
nariz, boca e seus prprios caminhos para o crebro. Cada receptor de sentido responde a
diferentes estmulos: luz, ondas sonoras, distrbios mecnicos, substncias volteis e solveis.
Quanto aos contrastes culturais, Ibarretxe-Antuano obsta que o papel predominante da
viso no domnio da cognio culturalmente determinado (p.122). Trata-se de um dado
importante para quem, como ns, avalia o impacto do corte discursivo som-viso (ou
oralidade/escrita) na mentalidade portuguesa do sc. XIV. Afinal, se a primazia da viso fosse
um imperativo biolgico, jamais poderamos admitir um corte. J comentamos alhures sobre
o que Paul Zumthor (1993, p.111) chamou de enfraquecimento das ltimas tradies orais,
fenmeno que Ong e outros associam emergncia da escrita e, como efeito, ao papel
predominante da viso no domnio da cognio.
Veremos que no h nada de natural a. Segundo Ibarretxe-Antuano, no se deve
acreditar na primazia da visocomo modalidade qual os verbos de maior intelectualidade
(saber, entender, pensar) esto universalmente associados, enquanto que os verbos de
audio, como ouvir ou escutar, no levariam a essa interpretao por serem mais
conectados com os aspectos especificamente comunicativos de entendimento e no com o
intelecto como um todo (SWEETSER, 1990, p.43). Essa afirmao compartilhada por
diversos psiclogos e psicolinguistas, que consideram a viso o mais importante dos sentidos,mas os estudos sobre as lnguas no ocidentais mostram que a primazia da viso , na
verdade, uma forma de etnocentrismo: em 60 lnguas de aborgenes da Austrlia, na lngua
dos ndios Suy do Brasil, entre os Desana da floresta equatorial da Amaznia Colombiana ou
entre os Sedang Moi da Indochina, so os verbos de audio que estabelecem ligaes com o
domnio intelectual (IBARRETXE-ANTUANO, 2009, p.131-132). Os mecanismos fsicos
para a percepo no mudam de uma sociedade para outra, mas cada uma interpreta e usa
esses sentidos de maneiras diferentes. Elas podem, inclusive, mudar de mentalidade, isto ,desenvolver novo mapeamento entre os domnios da percepoe do conhecimento/intelecto,
o que parece melhorar nossas expectativas em relao do corte som-viso proposto por Ong.
Para maior segurana da hiptese, seria preciso investigar (algo que no faremos nesse
trabalho) outros sinais indicativos da relevncia da viso como modalidade qual os verbos
de maior intelectualidadepodem ser colhidos no vasto mundo das crenas orientais, como
o olho frontal, o terceiro olho de Shiva, a identificao dos olhos com duasluminrias, no Bhagavad-git, nos Upanishads, ou no Taoismo, um deles
representando o sol, o outro a lua, o direito correspondendo atividade e ao futuro(sol), o esquerdo, ao passado e passividade (lua), ambos simbolizados no carter
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chins ming (luz), numa funo unitiva que o terceiro olho desempenha. Olho dasabedoria para os budistas, um rgo da viso interior e, por isso, exteriorizaodo olho do corao. Smbolo da Essncia e do Conhecimento divino, quando nicoe sem plpebra, inscrito num tringulo, o olho smbolo, cristo e manico, ao
passo que o olho nico de Cclope denota condio subumana. Os egpcios, com
desenhar dois olhos nos sarcfagos, pretendiam sugerir que os mortos continuavama ver o espetculo do mundo, e os rabes designavam por aynno s o olho comouma essncia, uma fonte, a supra-existncia da mais profunda Essncia de Deus; ena tradio manica, simboliza a suprema clarividncia, a viso superior ao tempoe ao espao, a oniscincia do Grande Arquiteto do Universo. Na linguagemesotrica, o terceiro olho de Shivacorresponde ao olho aberto de Dangma, pormeio do qual se designa a intuio, a viso interior e espiritual do vidente. A prpriaetnologia de ver tanto mais significativa como sinal da importncia da viso nocurso do tempo quanto mais se vincula ideia de saberia ou conhecer (MOISS,1982, p. 192-193)
Uma vez que as culturas no so as mesmas para todos os seres humanos, as
propriedades que se aplicam a um sentido em uma cultura (ex. a visono Ocidente) podem
ser aplicadas a um sentido diferente em outra cultura (ex. a audionas culturas orais). O que
temos a so mudanas de valores (positivos e negativos) das propriedades. A distribuio
dessas propriedades em cada sentido, de acordo com o modo Ocidental, apresentada, no
texto original, em outra tabela, da qual isolamos aqueles relacionados ao corte som-viso.
Ambos os sentidos, audio e viso, so negativos em relao s propriedades
e . No necessrio, nem para um nem para outro, um contato
fsico com o objeto para este ser observado; o objeto no precisa sequer estar na proximidade
do observador para ser observado, pois olhos e ouvidos podem captar informao de origem
remota. Um eventual deslizamento da oralidade para a escrita no se daria, certamente, de
uma mudana de valores nessas propriedades.
Algumas propriedades , , e no se
aplicam nem audio, nem viso. A propriedade s positiva para o sentido do
tato: quando tocamos algo, estamos invadindo o espao de que a coisa / pessoa que est
tocando: os espaos ocupados pelo PR e pelo OP so colocados juntos, convergem, masnenhum deles pode transgredir uns os espaos dos outros; s positiva para o
sentido do tato, uma vez que, s por meio desse sentido, se podem mover aes que mudaro
o objeto; , que deve ser compreendida como cada um tem sua opinio e so
positivas, portanto, apenas para olfato e paladar; s se aplica ao tato e ao
paladar, sentidos que dependem de um contato mais duradouro com o objeto para serem
percebidos.
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Por outro lado, audioe visoso positivos em relao ,
e : no primeiro caso, o observador capaz de localizar a fonte do estmulo
(sua direo); no segundo, associar um estmulo a um sentido; no terceiro, associar, por
exemplo, um co latindo com o conceito de co.
O que distingue a viso da audio, conforme as propriedades prototpicas de
Ibarretxe-Antuano, :
i. No que