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O DEUS DE DAWKINS

ALISTER MCGRATH

TRADUÇÃO Sueli Saraiva

Shedd

publicações

Literatura Que Edifica

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<.genes, memes e o s e n t i d o da vida.> © 2007 BY ALISTER MCGRATH

This edition is published by arrangement with Blackwell Publishing Ltd,

Oxford. Translated by Shedd Publicações from the original English language version. Responsability of the accuracy of the translation rests solely with Shedd Publicações and is not the responsibiiity of Blackwell Publishing Ltd.

1a Edição - Agosto de 2008

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por SHEDD PUBLICAÇÕES LTDA-ME. Rua São Nazário, 30, Sto Amaro, São Paulo-SP - 04741-150 Tel. (011) 5521-1924 - Vendas (011) 5666-1911 Email: [email protected] - VAVw.sheddpublicacoes.com.br

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

Portuguese language - Printed in Brazil / Impresso no

Brasil ISBN 978-85-88315-70-9

TRADUÇÃO: Sueli Saraiva REVISÃO: Regina Aranha DIAGRAMAÇÃO: Edmilson Frazão Bizerra CAPA: Júlio Carvalho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

McGrath, Alister, 1953- O deus de Dawkins : genes, memes e o sentido

da vida / Alister McGrath ; tradução Sueli Saraiva. - São Paulo : Shedd Publicações, 2008.

Título original: Dawkins' God : genes, memes and the meaning of life. Bibliografia. ISBN: 978-85-88315-70-9

1. Apologética 2. Dawkins, Richard, 1941 -I. Título.

08-07830 CDD-261.55

índices para catálogo sistemático: 1. Universo : Criação : Ciência e fé 261.55

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Sumário

Encontro com Dawkins: um relato pessoal 7

1. O gene egoísta: uma visão darwinista do mundo 23

Introdução a Dawkins 25

A nova abordagem: Charles Darwin 29

Os mecanismos da hereditariedade: Mendel e a genética 34

A descoberta do gene 39

0 pape! do DNA na genética 41

A abordagem de Dawkins: o gene egoísta 46

O rio que saía do Éden: investigando um mundo darwinista 54

2. O relojoeiro cego: a evolução e a eliminação de Deus? 65

A ciência natural não conduz nem ao ateísmo

nem ao cristianismo 69

Deus como hipótese explicativa 73

0 caso de William Paley 77

As concepções religiosas de Charles Darwin 90

A reação cristã a Darwin 94

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3. Prova e fé: o lugar da evidência na ciência e na religião

105

Fé como confiança cega? 107

O ateísmo em si é uma fé? 115

A fé cristã como irracional? 121

O problema da mudança teórica radical em ciência 127

A amplificação retórica do caso em favor do ateísmo 133

4. Darwinismo cultural? A curiosa "ciência" da memética 151

As origens do meme 153

O desenvolvimento cultural é darwinista? 158

Os memes realmente existem? 161

A analogia deficiente entre gene e meme 163

A redundância do meme 167

Deus como um vírus? 169

5. Ciência e religião: diálogo ou conciliação intelectual? 177

A "guerra" entre ciência e religião 178

O pequeníssimo universo medieval da religião 184

O conceito de temor 189

A mente de Deus 190

Mistério, loucura e nonsense 193

Conclusão 198

Agradecimentos 201

Obras consultadas 203

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Encontro com Dawkins

Um relato pessoal

Deparei-me pela primeira vez com uma obra de Richard Dawkins no final de 1977, quando li seu primeiro livro importante, O gene egoísta. Estava completando minha pesquisa doutorai no departa-mento de bioquímica da Universidade de Oxford, sob a cordial su-pervisão do professor Sir George Radda, diretor geral do Conselho de Pesquisa Médica. Na época, esforçava-me por entender como membranas biológicas podiam trabalhar de forma tão competente, desenvolvendo novos métodos físicos para estudar o seu comporta-mento.

Apesar de que apenas alguns anos depois O gene egoísta iria alcançar o status de peça de veneração que agora desfruta, era obviamente um livro maravilhoso. Eu admirava o modo incrível de Dawkins lidar com as palavras e sua habilidade em explicar com tamanha clareza as cruciais — apesar de freqüentemente difíceis — idéias científi-cas. Tratava-se de um texto de divulgação científica em sua melhor forma. Não houve nenhuma surpresa, portanto, quando o New York Times comentou que era "o tipo de texto de popularização da ciência que fazia o leitor se sentir um gênio".

Da mesma forma, somente alguns anos mais tarde se estabelece-ria a reputação de Dawkins como o "rottweiler de Darwin". Porém, mesmo nessa obra inicial, marcas de uma sensível polêmica anti-reli-giosa podiam ser entrevistas. No tempo de aluno cheguei a acreditar, da mesma maneira que Dawkins, que as ciências naturais exigiam

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uma visão de mundo ateísta. Mas, naquele momento, não era mais assim. Fiquei naturalmente interessado em ver que tipo de argu-mentos Dawkins havia desenvolvido em defesa dessa idéia interes-sante. O que encontrei não foi em especial persuasivo. Ele oferecia algumas confusas tentativas de dar sentido à idéia de "fé", sem esta-belecer uma adequada base analítica e comprobatória para suas re-flexões. Senti-me incomodado por causa disso e mentalmente me programei para escrever algum dia umas palavras em resposta.

Amo as ciências naturais desde que posso me lembrar de amar qualquer coisa. Quando tinha quase dez anos, construí um peque-no telescópio refletor de forma que pudesse estudar as maravilhas dos céus. Encontrei-me encantado pelas imagens cintilantes das luas de Júpiter e das crateras lunares. Fiquei extasiado pela sensação de estar investigando um universo vasto, impressionante, misterioso e bastante subjugado pela experiência. Um velho microscópio ale-mão — presenteado por um tio-avô que havia sido chefe de pato-logia no Royal Victoria Hospital, em Belfast — abriu o mundo da biologia para mim (ainda repousa sobre a minha escrivaninha de estudos). Aos 13 anos eu já fora fisgado. Não havia nenhuma dúvi-da a respeito do que faria pelo resto de minha vida. Eu estudaria as maravilhas da natureza.

Uma mudança de escola, em 1966, injetaria uma nova energia em minha visão. O Methodist College de Belfast havia construído todo um novo setor de ciências naquela época e o equipara de for-ma esplêndida para os padrões da época. Lancei-me ao estudo das ciências e da matemática, enquanto me especializava em química e física. Foi um diletantismo amplamente recompensado pela exci-tação mental que gerava. Nessa fase, era uma verdade auto-evidente para mim que as ciências haviam desbancado Deus, fazendo da crença religiosa uma relíquia bastante insensata de uma era passada. No entanto, minhas concepções sobre isso foram significativamente aguçadas pelos eventos no final dos anos 1960.

Uma onda de sentimento anti-religioso varria a face da cultura ocidental. Tom Wolfe captou muito bem tal humor cultural em seu ensaio "The Great Relearning" [O grande reaprender]: tudo seria varri-

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do para longe num frenesi de descontentamento e reconstruído do zero.¹ Nunca antes havia sido possível uma radical reconstrução prometéica das coisas como essa. Estava na hora de aproveitar o momento e romper decisivamente com o passado! A religião seria jogada fora como detrito moral da humanidade, na melhor das hipóteses era uma impropriedade para a vida real e, na pior, um mal, uma força perversa que escravizara a humanidade com suas mentiras e ilusões.

Como a retórica da última oração deve ter deixado bem claro, eu havia me inclinado para o pior cenário. As ciências naturais suge-riam que Deus não era necessário para explicar qualquer aspecto do mundo. Além disso, como muitos nesses dias embriagantes de oti-mismo e fervor revolucionários, eu havia bebido profundamente nas fontes marxistas, passando a ver a religião como uma ilusão perigosa. Uma conclusão fácil de se chegar, no meu caso, em razão do conflito religioso na Irlanda do Norte; e eu a aceitei no momen-to sem muita dificuldade ou reflexão.

Possuía agora uma nova razão para amar as ciências. Havia me deparado com um provérbio árabe que parecia resumir as coisas com perfeição: "O inimigo de meu inimigo é meu amigo". As ciências não eram só intelectualmente fascinantes e esteticamente prazero-sas: elas também arruinaram a plausibilidade da crença religiosa e, por conseguinte, abriram caminho para um mundo melhor. A re-ligião era sem dúvida uma superstição medieval "idiota" que ne-nhum amante da verdade ou uma pessoa moralmente séria poderia tolerar. E isso estava se consolidando. Um luminoso e ateu amanhã estaria raiando era breve. O ateísmo era a única opção para quem se confronta com os fatos. Vi meu futuro — com muita arrogância, devo concordar por completo — em termos de trazer luz e alegria ao pregar o evangelho do ateísmo científico, e até mesmo tentei (sem sucesso) estabelecer uma Sociedade Ateísta em minha escola.

Decidi estudar química na Universidade de Oxford como um meio para atingir esse fim. O curso de química de Oxford era o melhor do país, o que me levou a fixá-lo firmemente como meu objetivo. A decisão me obrigou a realizar um semestre a mais no

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Methodist College, a fim de obter formação especial em química avançada para a preparação aos exames de admissão de Oxford, em dezembro de 1970. Pouco antes do Natal, soube que conseguira uma vaga no Wadham College de Oxford para estudar química. Meu cálice de alegria transbordava.

Mas só poderia ingressar em Oxford em outubro de 1971. O que fazer enquanto isso? Meus colegas que também haviam presta-do exames de admissão se dispersaram em viagens pelo mundo ou foram ganhar algum dinheiro honesto. Decidi permanecer no colé-gio pelo resto do ano e usar o tempo me preparando para Oxford. Aprenderia alemão e russo, que seriam úteis para ler periódicos químicos profissionais como o Zeitschrift für physicalische Chemie ou Zeitschrift für Naturforschung. O que também me permitiria ler os trabalhos de Karl Marx, Friedrich Engels e V. I. Lênin em seus idiomas originais. Além disso, teria tempo para consolidar minhas leituras de biologia que havia negligenciado em virtude de me con-centrar tão pesadamente em física, química e matemática.

Depois de um mês ou mais de intensos estudos na biblioteca de ciências, havendo esgotado as obras de biologia, encontrei uma seção que antes nunca notara. Intitulava-se "A história e a filosofia da ciên-cia" e estava coberta de pó. Havia dedicado pouco tempo a esse tipo de assunto, tendendo a considerá-lo como uma crítica desinformada das certezas e simplicidades das ciências naturais por aqueles que se sentiam ameaçados por elas — os quais Dawkins chamaria depois de "provocadores da verdade".2 Filosofia, como teologia, era com certeza uma especulação insensata sobre assuntos que poderiam ser re-solvidos por umas poucas experiências honestas. Qual era o problema?

Peguei um título e comecei a ler. Hoje sei que History and Philosophy of Science: An Introduction (1959) [História e filosofia da ciência: uma introdução], de L. W. Hull, é uma iniciação bastante pobre à matéria, em especial por sustentar concepções que foram populares no período vitoriano. Mas me chamou a atenção e me seduziu para coisas mais importantes. Ao terminar a leitura das dis-ponibilidades algo escassas da biblioteca nesse campo, percebi que necessitava fazer algumas reconsiderações muito sérias.

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Longe de ser um obscurantismo tolo, que colocava obstáculos desnecessários à condição inexorável do avanço científico, a história e a filosofia da ciência faziam perguntas pertinentes sobre a confi-abilidade e os limites do conhecimento científico. E eram pergun-tas que eu não havia enfrentado até ali. Senti-me como um cristão fundamentalista que de repente descobrira que Jesus não havia pes-soalmente escrito o Credo dos Apóstolos, ou como alguém que acreditava na terra plana e fora forçado a mudar de idéia com fo-tografias do planeta tiradas do espaço. Questões como a indetermi-nação da teoria pelos dados, mudanças teóricas radicais na história da ciência, as dificuldades para desenvolver uma "experiência crucial" e os problemas extremamente complexos associados à determinação de qual a "melhor explicação" para um conjunto definido de observações acumuladas em mim — tudo isso turvou o que eu tomara como a clara e tranqüila água da verdade científica.

As coisas se mostraram muito mais complicadas do que havia pensado. Meus olhos tinham sido abertos e percebi que não havia retorno àquela forma simplista de ciência na qual acreditara antes. Como muitas pessoas na mesma fase de formação, eu desfrutara a beleza e a inocência de uma atitude pueril em relação às ciências e, secretamente, desejava permanecer naquele lugar seguro. De fato, creio que uma parte de mim quis muito que eu nunca tivesse reti-rado aquele livro, nunca tivesse feito tais perguntas desajeitadas e nunca tivesse questionado a simplicidade da minha mocidade cientí-fica. Mas não havia caminho de volta. Tinha entrado por uma porta e não podia escapar ao novo mundo que então divisara.

Estudar química em Oxford foi, conforme esperava, uma ex-periência estimulante, alargando meus horizontes mentais e crian-do desafios novos. Do jeito que as coisas aconteceram, esses horizontes se expandiram em uma direção que nunca teria con-seguido antecipar. Ao final de 1971, em meu primeiro semestre na Universidade de Oxford, comecei a descobrir que o cristianismo era bem mais interessante e consideravelmente mais excitante do que pensava. Embora tivesse sido bastante crítico com o cristianis-mo quando jovem, nunca havia estendido o mesmo exercício críti-

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co ao ateísmo, assumindo por princípio que era, de forma auto-evidente, correto e, portanto, isento de ser avaliado desse modo. De outubro a novembro de 1971, passei aperceber que a justificativa intelectual para o ateísmo era muito menos substancial do que supunha. Longe de ser uma verdade auto-evidente, parecia descansar em bases bastante frágeis. Por outro lado, o cristianismo se mostrou intelectualmente mais robusto do que havia pensado.

Minhas dúvidas sobre os fundamentos intelectuais do ateísmo começaram a se sedimentar ao perceber que o ateísmo era na ver-dade um sistema de crenças, o qual eu havia assumido como uma explicação factual da realidade. Também descobri que sabia bem menos a respeito do cristianismo do que acreditava. Conforme passei a ler livros cristãos e a escutar amigos cristãos explicando sobre aquilo que de fato acreditavam, ficou gradualmente claro para mim que eu havia rejeitado um estereótipo religioso. Tive então que fazer uma reconsideração mais importante. Ao final de no-vembro de 1971, tomei a minha decisão: virei as costas para uma fé e abracei outra.

Em setembro de 1974, associe-me ao grupo de pesquisa do professor George Radda, no departamento de bioquímica da Uni-versidade de Oxford. Radda estava desenvolvendo uma série de métodos físicos para investigar sistemas biológicos complexos, in-cluindo técnicas de ressonância magnética. Meu interesse particular estava em desenvolver métodos físicos inovadores para estudar o comportamento de membranas biológicas, entre eles o uso de tes-tes fluorescentes e emissão de pósitrons para investigar transições dependentes de temperatura em sistemas biológicos e seus mode-los.3

Mas meu real interesse estava mudando de lugar. Nunca perdi minha fascinação pelo mundo natural. Apenas me deparei com outra coisa que surgia, inicialmente rivalizando com aquela fascinação e, então, complementando-a. Pois o que antes eu havia assumido como uma progressiva guerra aberta entre a ciência e a religião passou a se apresentar como uma sinergia crítica e, ainda, construtiva, com um imenso potencial de enriquecimento intelectual. Comecei a querer

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saber, de que maneira os métodos de trabalho e os pressupostos das ciências naturais poderiam ser usados para desenvolver uma teolo-gia cristã intelectualmente robusta?4 E o que deveria fazer para ex-plorar essa possibilidade de forma adequada? Passei o verão de 1976 trabalhando na Universidade de Utrecht, graças a uma bolsa de estu-do oferecida pela European Molecular Biology Organization [Or-ganização de Biologia Molecular Européia]; e pouco a pouco cheguei à conclusão de que só poderia fazer isso estudando teologia na es-fera acadêmica, junto com uma pesquisa avançada sobre a relação entre teologia e ciência.

Por sorte, eu acabara de ser escolhido para uma bolsa de estu-dos sênior no Merton College que me permitiu continuar minha pesquisa biofísica enquanto, ao mesmo tempo, estudava teologia. Em junho de 1978, obtive meu doutorado em biofísica e uma graduação com distinção em teologia e me preparava para deixar Oxford a fim de fazer pesquisa teológica na Universidade de Cam-bridge. Para minha surpresa, recebi um convite para almoçar com um editor sênior da Oxford University Press [Editora Universitária de Oxford]. A universidade é um lugar muito pequeno e fofocas se espalham muito depressa. A editora ouvira falar da minha "interessante carreira atual", explicou-me o executivo, e tinha um atraente negócio a me oferecer. O gene egoísta de Dawkins gerara um enorme interesse. Será que eu não teria vontade de escrever uma resposta a partir de uma perspectiva cristã?

Sob qualquer ponto de vista, O gene egoísta era uma grande leitura: estimulante, polêmico e informativo. Dawkins possuía aque-la rara habilidade de fazer coisas complexas ficarem compreensíveis, sem fazer concessões a seu público. No entanto, ele fizera mais do que apenas tornar a teoria da evolução inteligível. Dawkins estava disposto a expandir suas implicações a todos os aspectos da vida, propondo na verdade o darwinismo como uma filosofia universal de vida, em vez de uma mera teoria científica. Era um material instigante — muito melhor, em minha opinião, do que a obra precedente de Jacques Monod, Chance and Necessity (1971) [trad. em port.: O acaso e a necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da

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biologia moderna. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006], que explorava te-mas semelhantes. E, como todos os escritores provocativos, detonou debates tão importantes quanto intrinsecamente interessantes, como a existência de Deus e o significado da vida. Seria um livro fasci-nante para se escrever. Só um tolo, lembro-me de ter pensado na ocasião, poderia resistir a tal convite.

Bem, este sou eu: depois de muito pensar, escrevi uma educada resposta, agradecendo ao meu colega pelo almoço e explicando que ainda não me sentia preparado para escrever semelhante livro. Ha-via, na minha visão, muitos outros mais bem qualificados. Seria apenas uma questão de tempo antes de outra pessoa escrever um livro em resposta às idéias de Dawkins. Assim fui para Cambridge pesquisar a teologia cristã, sendo então ordenado na Igreja da Ingla-terra. Depois de um período de trabalho numa paróquia inglesa, achei o caminho de volta para Oxford. Embora não fosse mais capaz de empreender uma pesquisa científica, os recursos da exce-lente biblioteca da Universidade de Oxford significavam que eu poderia manter e ampliar minhas leituras sobre história e filosofia da ciência, como também acompanhar os mais recentes desenvolvi-mentos experimentais e teóricos nesse, campo.

Mas eu não havia esquecido Dawkins. O gene egoísta introduzira um novo conceito e uma nova palavra na investigação da história das idéias: o "meme". Como a área de pesquisa que esperava seguir era a história das idéias (especificamente da teologia cristã, mas contraposta ao pano de fundo do desenvolvimento intelectual em geral), eu fizera uma extensa pesquisa básica sobre os modelos existentes de como as idéias foram desenvolvidas e recebidas através das culturas. Nenhum deles parecia satisfatório.5 Mas a teoria de Dawkins do "meme" — um replicador cultural — parecia oferecer um viga-mento teórico novo e brilhante para se explorar a questão geral sobre as origens, o desenvolvimento e a recepção de idéias, basean-do-se na rigorosa investigação científica empírica. Recordo com intensa emoção o momento de completa excitação intelectual quan-do, em certo dia no final de 1977, percebi que poderia haver uma alternativa aceitável aos ultrapassados e inconvincentes modelos de

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desenvolvimento de doutrinas que havia explorado e rejeitado naque-la fase. Esse poderia ser o futuro?6

Como conhecia o trabalho de Darwin sobre os tentilhões [ou pintassilgos] das Galápagos, isso me ajudou a abordar as evidências com ao menos uma estrutura teórica provisória.7 E assim comecei a investigar usando o "meme" como um modelo para o desen-volvimento de doutrina cristã. Num próximo capítulo, farei um relato mais completo dos meus vinte e cinco anos de avaliação do conceito de "meme", assim como de sua utilidade. Basta por ora dizer que certamente fui um tanto otimista demais em relação à sua fundamentação empírica rigorosa e ao seu valor como ferra-menta para o estudo crítico do desenvolvimento intelectual.

Nesse ínterim, Dawkins produziu uma série de livros brilhantes e provocadores, que devorei com interesse e admiração. Dawkins, depois de O gene egoísta, publicou: The Extended Phenotype (1981) [O fenótipo estendido], O relojoeiro cego (1986), O rio que saía do Éden (1995), A escalada do monte improvável (1996), Desvendan-do o arco-íris (1998) e, finalmente, a coleção de ensaios O capelão do Diabo (2003). O tom e o foco de sua escrita haviam mudado. Conforme o filósofo Michael Ruse demonstrou em uma resenha de O capelão do Diabo, "a preocupação [de Dawkins] passou de um texto sobre a ciência dirigido a uma audiência popular para um ataque total ao cristianismo".8 O brilhante divulgador científico se tornou um selvagem polemista anti-religioso, pregando em lugar de debater (ou assim me parece) sua posição.

Considero todos os tipos de fundamentalismo, religiosos ou anti-religiosos, igualmente repugnantes e fiquei bastante decepcio-nado com tal desenvolvimento de alguém que eu admirava. O juí-zo de Dawkins sobre a religião chega a ser pouco mais que uma avaliação excêntrica, sendo os extremos retratados como o típico. Os religiosos são descartados como anticientíficos, intelectualmente irresponsáveis ou existencialmente imaturos — isso quando ele está num bom dia.

Apesar do ateísmo de Dawkins ter ficado mais estridente em seu tom e mais agressivo em suas afirmações, não se tornou mais

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sofisticado em termos de argumentos oferecidos. Gente religiosa é demonizada como desonesta, mentirosa, tola e trapaceira, incapaz de responder com honestidade ao mundo real, preferindo inventar um falso, pernicioso e ilusório mundo, a fim de atrair o impru-dente, o jovem e o ingênuo. Uma linha de pensamento que levou muitos a sugerir, não completamente sem razão, que Dawkins po-deria ter sido vítima de um tipo de presunção que os escritores bíblicos associavam aos fariseus. O escritor Douglas Adams recor-da que Dawkins declarou um dia: "Realmente não acho que eu seja arrogante, mas fico impaciente com pessoas que não compartilham comigo a mesma humildade frente aos fatos".9 No entanto, há o embaraçoso fato, que Dawkins parece não querer aceitar, de que existem muitos indivíduos sadios e inteligentes tirando conclusões por completo diferentes das suas, precisamente em virtude do mes-mo humilde compromisso com a evidência científica. Talvez eles sejam loucos; talvez, maus, mas, por outro lado, talvez não sejam nem uma coisa nem outra.

Dawkins escreve com erudição e sofisticação sobre assuntos de biologia evolucionista, dominando claramente as complexidades desse campo e de sua vasta literatura de pesquisa. No entanto, quan-do pretende tratar de qualquer coisa referente a Deus, parece-nos que entra num outro universo. É o universo de um colegial que quer debater sobre a sociedade baseado em calorosos e apaixonados exageros; entusiasmado por algumas evidentes simplificações e mais outras ocasionais deturpações (acidentais, prefiro acreditar) para tornar superficialmente plausíveis certas observações — o tipo de argumentos que uma vez me persuadiram de que o ateísmo era a única opção para um indivíduo pensante, quando ainda era um colegial. Mas isso foi naquela época. E agora, como ficamos?

Havendo lutado com as implicações do método científico para a crença em Deus ao longo da minha adolescência, estava mais do que surpreso com a qualidade dos argumentos oferecidos a favor do ateísmo nos escritos de Dawkins dos anos 1980. Parece bastante patente para Dawkins que as ciências naturais devem levar a uma visão de mundo ateísta por parte de qualquer pessoa honesta, in-

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teligente. Os que acreditam em Deus são, portanto, desonestos, iludidos ou tolos. No entanto os argumentos que ele propôs nos trabalhos publicados no final dos anos de 1970 e nos de 1980 sim-plesmente não levavam a essa conclusão. O ateísmo de Dawkins parecia estar fixado sobre sua biologia evolucionária com um velcro intelectual. Minha esperança era que seus textos produzissem um ateísmo novo, intelectualmente revigorado — algo de fato exci-tante e atraente. Em vez disso, encontrei a mesma retórica pesada e os velhos clichês surrados que bem conheci em meus dias de estudante. Dawkins estava chovendo no molhado, reciclando em vez de renovar as justificativas do ateísmo.

Desapontado, aguardei com paciência por seus trabalhos dos anos 1990, esperando ver argumentos novos e mais persuasivos serem desenvolvidos. Ao contrário, achei os mesmos velhos e em-bolorados equivalentes ateístas aos argumentos "louco, mau ou Deus" usados por alguns cristãos para provar a divindade de Cristo,10 associados de maneira muito tênue a alguns interessantes desenvolvimentos da biologia evolucionista. Ficou cada vez mais claro para mim que as bases do ateísmo de Dawkins com certeza repousavam, no final das contas, fora das ciências, e não dentro delas.

O ano 2003 chegou e, com ele, a publicação de O capelão do Diabo. Não é um dos melhores trabalhos de Dawkins, em particular porque se trata de uma coleção de ensaios desconexos, curtos demais para serem capazes de lidar de forma correta com as questões que abordam. Em todo caso, o livro destila cansaço intelectual, como se, a seu autor, tivesse faltado gás intelectual. Nenhum livro apareceu ainda em resposta a Dawkins, além de uma útil introdução às dife-renças entre ele e Stephen Jay Gould em assuntos evolucionistas.11

Por fim, no verão de 2003, vinte e cinco anos depois que tal possi-bilidade tivesse sido discutida pela primeira vez, decidi que estava na hora de escrever uma resposta.

Alguns poderiam esperar que este livro fosse uma refutação religiosa a Dawkins. Estes terão de procurar em outro lugar, pois ele não é nada do tipo. O real assunto para mim é como Dawkins deriva da teoria darwinista da evolução uma confiante visão de

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mundo ateísta, a qual prega com zelo messiânico e certeza inexpug-nável. 12 Como o título do livro indica, há algumas perguntas im-portantes a serem feitas sobre o tipo de deus que Dawkins declara para ser supérfluo ou sem crédito.13 Que deus está sendo rejeitado? Esse deus mantém alguma relação com conceitos concorrentes de divindade, como o Deus do cristianismo? E essa rejeição é de fato justificada com base nos argumentos que Dawkins oferece?

Portanto, é importante reconhecer desde o início que este livro não é uma crítica à biologia evolucionista de Dawkins. Não propo-nho debater as concepções específicas de Dawkins sobre a teoria da evolução, mas as conclusões mais amplas que ele tira delas, particu-larmente as relativas à religião e à história intelectual. Suas opiniões a respeito da evolução devem ser julgadas como um todo pela comu-nidade científica; minha preocupação — e o campo em que sou competente para me pronunciar — é por excelência a transição extre-mamente importante e imensamente problemática da biologia para teologia.

É algo por demais aceito que o método científico não pode simplesmente decidir sobre a questão de Deus. A visão geral é que as pessoas costumam chegar a suas concepções religiosas em outras bases e, então, lançam mão de suas idéias científicas para a validação retrospectiva dessas concepções. A ciência é assim usada para ajustar a visão de mundo, e se prova capaz de acomodar pontos de vista teístas e ateus com notável facilidade. Porém tal concepção aceita pode estar errada, e Dawkins seria capaz de demonstrar que é esse o caso. Os assuntos que propõe são tão importantes que não podem ser ignorados, ou tratados com breves pronunciamentos ou críticas superficiais, típicas da discussão proposta pela mídia. Eles merecem uma discussão ampla e plena. O que espero encorajar é uma inves-tigação sobre o lugar das ciências naturais na formatação do mundo de nossas mentes e da cultura em que vivemos, com base nos textos publicados por Dawkins.

Dawkins empunha a força explicativa do darwinismo numa mão, e os defeitos estéticos, morais e intelectuais da religião na outra; conduzindo a pessoa honesta direta e inexoravelmente ao

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ateísmo. A humanidade atinge a maturidade. Ela deixa para trás suas ilusões. Podemos "deixar a fase do choro de bebê e finalmente atingir a maioridade".14 Embora eu trate da substância das con-cepções religiosas de Dawkins em certas ocasiões neste livro, meu interesse se liga em especial à razão pela qual ele acredita que elas estão corretas, em vez do que elas são em si mesmas. Este livro é um confronto crítico com a cosmovisão de Dawkins, e tem a intenção de perguntar se a afamada agressividade de seu ateísmo está, de fato, fundamentada nos argumentos que ele apresenta.

A hostilidade de Dawkins contra a religião é profunda e não se baseia em um único tópico específico. Podemos detectar quatro razões interconectadas de hostilidade ao longo de seus escritos:

1. Uma visão de mundo darwinista torna a crença em Deus desnecessária ou impossível. Embora indicada em O gene egoís ta, a idéia é desenvolvida em detalhes em O relojoeiro cego.

2. A religião faz afirmações fundamentadas na fé, o que representa o abandono da busca da verdade em termos rigorosos e baseados na evidência. Para Dawkins, a verdade é fundamentada em pro vas evidentes; qualquer forma de obscurantismo ou misticismo fundamentada na fé deve ser vigorosamente combatida.

3. A religião oferece uma visão de mundo empobrecida e pálida. "O universo apresentado pela religião institucionalizada é um universo medieval estreito, pequeno e por demais limitado".15

Ao contrário, a ciência oferece uma concepção ousada e brilhante do universo, percebido como grandioso, belo e impressionante. Essa crítica estética à religião foi em especial desenvolvida em 1998, na obra Desvendando o arco-íris.

4. A religião leva ao mal. Ela é como um vírus maligno infectando as mentes humanas. Esse não é um juízo estritamente científico, pois, como Dawkins observa com freqüência, as ciências não podem determinar o que é bom ou mau. "A ciência não possui um método para decidir sobre o que é ético".16 Porém sua ob jeção à religião é profundamente moral, profundamente arraiga-

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da na cultura e história ocidentais, devendo ser considerada com a maior seriedade.

Portanto qual dessas razões é a real base para o ateísmo de Dawkins? Quais são as hipóteses nucleares e quais as auxiliares, tomando emprestada a linguagem do empirismo? Em suas reflexões sobre o próprio desenvolvimento intelectual, Dawkins costuma apresentar seu ateísmo como havendo surgido naturalmente de sua progressi-va convicção no total poder explicativo do darwinismo — um de-senvolvimento iniciado ainda durante os anos finais na Oundle School. Mas o que acontece se o ateísmo de Dawkins for de fato fundamentado em considerações morais e, só então, reposicionado em sua atividade científica?

Assim, por que escrever um livro como este? Podem ser dadas três razões. Primeiro, Dawkins é um escritor fascinante; tanto em termos de qualidade das idéias que desenvolve quanto pela desenvol-tura verbal com que as defende. Qualquer um que esteja remota-mente interessado no debate de idéias encontrará em Dawkins um importante parceiro. Agostinho de Hipona escreveu uma vez sobre o "eros da mente", definindo-o como um profundo desejo da mente humana em dar sentido às coisas — uma paixão por entender e conhecer. Qualquer um que compartilhe tal paixão desejará entrar no debate iniciado por Dawkins.

E esse pensamento está por trás da minha segunda razão para escrever este livro. Sim, Dawkins parece, a muitos, ser imensamente provocador e agressivo, descartando visões alternativas com uma pressa indecente, ou tratando as críticas a suas concepções pessoais como um ataque a toda a atividade científica. Entretanto, semelhante tipo de retórica acalorada é encontrada em qualquer debate público, seja religioso, filosófico ou científico. Na verdade, é isso o que faz os debates públicos serem interessantes e os põe acima do ramerrão tedioso da discussão acadêmica normal, a qual invariavelmente parece vir acompanhada de infinitas notas de rodapé, citações de autori-dades de peso, apesar de maçantes; e cautelosos eufemismos opres-sivamente acompanhados de qualificativos. Quão mais excitantes

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são os debates aguerridos, sem restrições nem preocupações com as sufocantes convenções dos rigorosos estudos acadêmicos! Dawkins, com toda clareza, deseja provocar tais debates e enfrentamentos; seria descortês não aceitar seu convite.

Possuo, porém, uma terceira razão. Escrevo como um teólogo cristão que acredita ser essencial ouvir com seriedade e atenção a crítica à minha disciplina e respondê-la de maneira adequada. Um dos motivos para levar Dawkins tão a sério é descobrir o que se pode aprender com ele. Como qualquer honesto historiador do pensamento cristão sabe, o cristianismo se obriga a uma constante revisão de suas idéias à luz das Escrituras e da tradição, perguntan-do-se sempre se certa interpretação contemporânea de uma doutrina é adequada ou aceitável. Conforme veremos, Dawkins oferece, em minha opinião, uma poderosa e convincente contestação a um modo de pensar a doutrina da criação que influenciou tremendamente a Inglaterra no século XVIII e que ainda hoje encontra alguns abrigos. Ele é um crítico que precisa ser ouvido e levado a sério.

Mas basta de preliminares. Vamos seguir em frente e começar a investigar a visão de mundo darwinista que Dawkins tanto inves-tiga e recomenda.

Alister McGrath

Oxford

1 Tom Wolfe, "The Great Relearning". In Hooking Up, p. 140-5. Londres: Jonathan Cape, 2000 [trad. em port.: Ficar ou não ficar. R. Janeiro: Rocco, 2001].

2 A Devil's Chaplain, p. 16 [rrad. em port.: O capelão do Diabo: ensaios escolhidos]. 3 Para alguns exemplos, ver Alister E. McGrath, Christopher G. Morgan, e George K. Radda, "Photobleaching: A Novel Fluorescence Method for Diffusion Studies in Lipid Systems". Biochimica et Biophysica Acta 426 (1976), p. 173-85; idem, "Positron Lifetimes in Phospholipid Dispersions". Biochimica et Biophysica Acta 466 (1976), p. 367-72.

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4 Gastei a melhor parte de vinte e cinco anos para entender como fazer isso: sobre o resultado, ver Alister McGrath, A Scientific Theology, 3 v. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2001-3. Para uma abordagem mais básica, ver Alister McGrath, The Science of God: An Introduction to Scientific Theology. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2004.

5 Um dos modelos que inicialmente me despertou maiores esperanças foi o de Pierre Rousselot, "Petit théorie du développement du dogme". Recherches de Science religieuse 53 (1965), p. 355-90.

6 Eu não era o único que estava tão entusiasmado com a nova idéia de Dawkins: ver Stephen Shennan, Genes, Memes and Human History: Darwinian Archaeology and Cultural Evolution. Londres: Thames & Hudson, 2002, p. 7.

7 Mais tarde me perguntei se havia dado muita importância a esse incidente no desenvolvimento intelectual de Darwin: ver Frank J. Sulloway, "Darwin and His Finches: The Evolution of a Legend". Journal of the History of Biology 15 (1982), p. 1-53.

8 Michael Ruse, "Through a Glass, Darkly". American Scientist 91 (2003), p. 554-6. 9 Citado por Robert Fulford, "Richard Dawkins Talks Up Atheism with Messianic Zeal". National Post November 25, 2003.

10 Eles argumentam que Jesus de Nazaré era ou louco, mau ou Deus. Não sendo nem o primeiro nem o segundo, ele deveria ser então o terceiro. O argumento trabalha propondo apenas três soluções para um assunto imensamente complexo, descartando duas delas. A principal crítica feita a tal raciocínio é sua recusa simplista em considerar alternativas além das que ele depende.

11 Kim Sterelny, Dawkins vs. Gould: SurvivaloftheFittest. Cambridge: Icon Books, 2001. As idéias de Dawkins, é claro, são tratadas em vários artigos e seções de livros, por exemplo, veja Michael Poole, "A Critique of Aspects of the Philosophy and Theology of Richard Dawkins". Science and Christian Belief 6 (1994), p. 41-59; Luke Davidson, "Fragilities of Scientism: Richard Dawkins and the Paranoid Idealization of Science". Science as Culture 9 (2000), p. 167-99; Holmes Rolston, Genes, Gênesis and God: Values and Their Origins in Natural and Human History. Cambridge: Cambridge University Press, 1999; KeithWard, God, Chance and Necessity. Oxford: One World, 1996, p. 105-30.

12 Ver Fulford, "Richard Dawkins Talks Up Atheism with Messianic Zeal". 13 Para questões relacionadas à concepção de Deus defendida por Darwin, ver Cornelius G. Hunter, Darwin's God: Evolution and the Problem of Evil. Grand Rapids, MI: Brazos Press, 2001.

14 "Alternative Thought for the Day"; BBC Radio 4, 14 de agosto de 2003. 15 Richard Dawkins. "A Survival Machine". In John Brockman (ed.). The Third Culture, p. 75-95. Nova York: Simon & Schuster, 1996.

16 A Devil's Chaplain, p. 34 [trad. em port.: O capelão do Diabo].

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O gene egoísta

Uma visão darwinista do mundo

Por que as coisas são do modo que são? E o que isso nos revela a respeito do significado da vida? As duas perguntas, ingênuas embora profundas, têm um papel decisivo na formatação do pensamento ocidental sobre o mundo. Desde o princípio da civilização huma-na, as pessoas desejaram saber que explicação poderia ser oferecida para as estruturas do mundo, por exemplo, para as estrelas à noite no céu, as maravilhas naturais como um arco-íris e o misterioso comportamento dos seres vivos. Tais maravilhas não provocam apenas uma sensação de temor, elas também pedem uma expli-cação.

Os primeiros filósofos gregos — os "pré-socráticos" — dis-cutiram interminavelmente sobre a natureza do mundo e como ele se tornou assim. Insistiam que o universo fora construído de forma racional e que, portanto, poderia ser entendido pelo correto uso da razão e argumentação humanas. Os seres humanos possuíam a ha-bilidade de dar sentido ao universo. Sócrates levou essa linha de pensamento mais adiante, identificando uma ligação entre o modo como o universo fora construído e o melhor modo dos seres hu-manos viverem. Refletir sobre a natureza do universo era ganhar dis-cernimento em relação à natureza da "vida virtuosa" — o melhor e o mais autêntico modo de se viver. Refletir sobre os indícios da estru-turação do mundo conduziria a uma compreensão de nossa iden-tidade e nosso destino.

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Para muitos, a resposta forneceria as origens divinas do mundo — a idéia de que, de algum modo, o mundo fora ordenado ou construí-do. Inúmeras pessoas têm achado essa idéia espiritualmente atraente e intelectualmente satisfatória. Isaac Newton vem à mente. Assim como John Polkinghorne, famoso por se demitir da cátedra de física matemática da Universidade de Cambridge, em 1979, para estudar teologia cristã. Para Richard Dawkins, porém, o advento de Charles Darwin mostrou que tais atitudes eram "sentimentalidade cósmica", "propósitos falsos e melosos", os quais a ciência natural tem como missão moral expurgar e desmascarar. Semelhantes convicções in-gênuas, diz o polemista, seria compreensível antes da vinda de Dar-win. Mas não agora. Darwin mudou tudo. Newton teria sido ateu se nascesse depois de Darwin. Antes de Darwin, o ateísmo era apenas uma entre as muitas possibilidades religiosas; agora, é a única opção séria para um indivíduo pensante, honesto e cientificamente infor-mado. Acreditar em Deus hoje em dia é ser "ludibriado por um conto de fadas".

Em outros tempos tais convicções religiosas seriam compreen-síveis, talvez até mesmo perdoáveis. Mas hoje não. A humanidade já foi criança. Agora crescemos e descartamos as explicações infan-tis. E Darwin é aquele que marca o ponto decisivo da transição. A história intelectual é dividida em duas eras: antes de Darwin e de-pois de Darwin. Conforme prognosticou James Watson, prêmio Nobel e co-descobridor da estrutura do DNA: "Charles Darwin será em algum momento visto na história do pensamento humano como uma figura mais influente do que Jesus Cristo ou Maomé".

Mas por que Darwin? Por que não Karl Marx? Ou Sigmund Freud? Cada um deles é proposto regularmente como havendo pro-vocado um terremoto intelectual, destruindo concepções hegemôni-cas e introduzindo novos e radicais modos de pensar que levaram à bifurcação do pensamento humano. As teorias da evolução biológica, do materialismo histórico e da psicanálise têm sido propostas para definir os limites da maioridade da humanidade. De forma interes-sante, todos se ligaram ao ateísmo, movimento que no século XIX

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e no início do XX esperava poder provar que era um libertador intelectual e político. Portanto, por que Darwin?

Fazer essa pergunta é adentrar nos temas que tão profunda-mente têm preocupado Dawkins, e que ainda apresenta implicações mais amplas.

Introdução a Dawkins

Devemos, no entanto, primeiro fazer uma apresentação de Dawkins. Clinton Richard Dawkins nasceu no Quênia em 26 de março de 1941, filho de Clinton John e Jean Mary Vyvyan Dawkins. Seu ambiente religioso, ele nos conta, era o anglicismo tradicional, embora haja sugestões de que na juventude tenha se fascinado pelas idéias do jesuíta francês e paleontólogo Pierre Teilhard de Chardin, a respeito da relação entre evolução e espiritualidade.1

Depois de estudar na Oundle School, foi para o Balliol College, Oxford, estudar zoologia em 1959. Após se formar em 1962, dedi-cou-se à pesquisa no departamento de zoologia da Universidade de Oxford, sob a coordenação do professor Niko Tinbergen (1907-88), um dos vencedores do Prêmio de Nobel em Medicina e Fisi-ologia de 1973.

Tinbergen e seu colega austríaco Konrad Lorenz (1903-89) abriram caminho para a etologia — o estudo dos padrões de com-portamento animal em ambientes naturais, com ênfase na análise da adaptação e da evolução de padrões. Embora se proponha que Lorenz tenha estabelecido os fundamentos conceituais dessa disci-plina nos anos 1930, o paciente e detalhado trabalho de observação de Tinbergen é amplamente aceito como sendo o posterior desen-volvimento conceituai e prático da etologia, em especial sua obra referencial, The Study of Instinct (1951) [O estudo do instinto].2 A tese de doutorado de Dawkins, intitulada Selective Pecking in the Domestic Chick [A bicada seletiva no pintinho doméstico] se colo-ca firmemente dentro dessa tradição. Seu objeto havia sido bem definido e delimitado: que mecanismo poderia ser proposto para explicar o modo como um pintinho bica conforme os estímulos a sua volta?

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Lâmina 1. Richard Dawkins (nascido em 1941). © Rex Features

Dawkins relata que sua pesquisa fora inspirada por uma con-ferência do professor N. S. Sutherland (1927-98), que havia deixa-do Oxford em 1964 para fundar o Laboratório de Psicologia Experimental da Universidade de Sussex, recentemente fundada. Sua investigação se concentrava em desenvolver um "modelo limi-ar" que pudesse explicar uma série detalhada de observações experi-mentais referentes à cronometragem e orientação das bicadas de um pintinho em pequenas manchas hemisféricas, apresentadas aos pares. Os dados foram processados numa máquina Eliot 803 —

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um primitivo computador que dependia de fitas perfuradas para as informações. A tese foi submetida em junho de 1966 e aprovada no final do ano.

Dawkins dedicou um ano para sua pesquisa de pós-doutorado e deu algumas aulas no departamento de zoologia. Tinbergen es-teve de licença sabática durante o ano letivo 1966-7, motivo pelo qual pediu a Dawkins que, enquanto preparava sua tese para publi-cação,3 cobrisse algumas das aulas do período. As aulas de Dawkins lhe permitiram explorar alguns aspectos da teoria da seleção de parentesco, de W. D. Hamilton, incluindo a questão de como sur-gem certas formas aparentemente cooperativas de comportamen-to.4 Um indivíduo se comporta de tal modo que a capacidade reprodutiva de outro indivíduo é aumentada, mesmo em detri-mento de sua própria capacidade seletiva. O fenômeno pode ser observado em aspectos do comportamento animal no âmbito so-cial, na paternidade e no acasalamento. Portanto, como isso pode-ria ter evoluído?

Dawkins chegou à conclusão de que a "maneira mais criativa de considerar a evolução e o modo mais inspirador de ensiná-la," era ver todo o processo a partir da perspectiva do gene. Os genes, para o seu próprio bem, "manipulam" e dirigem os corpos que os contêm e carregam. Ao longo de suas obras, Dawkins desenvolveu a retórica da visão das coisas pelo olho de um gene — não apenas para o indivíduo, mas para todo o mundo vivo. Os organismos podem ser reduzidos a genes, e os genes à informação digital (não analógica).

A vida é apenas bytes e bytes de bytes de informação digital. Os genes são pura informação — informação que pode ser codi-ficada, recodificada e decodificada, sem qualquer degradação ou mudança de significado. [...] Nós — e isso significa todas as coisas vivas — somos máquinas de sobrevivência progra-madas para disseminar o banco de dados digitais que fez a programação. O darwinismo é visto agora como a sobrevivên-cia dos sobreviventes ao nível do puro código digital.5

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Com efeito, Dawkins estava defendendo que deveríamos ex-trapolar a teoria de Hamilton da seleção de parentesco, e aplicá-la a todo aspecto do comportamento social. Animais seriam vistos como "máquinas que levam consigo as suas instruções", enquanto usam todas as suas características como "alavancas para propagar os genes na próxima geração". Em virtude dos grupos de parentescos compartilharem os mesmos genes, o sacrifício de um indivíduo pode ainda aumentar a probabilidade de esses genes sobreviverem dentro do grupo genético como um todo. Dawkins pode ser con-siderado como o primeiro, e ainda o mais sistemático, etologista do gene. Eis o tema central que foi tão decisivo para o seu modo de ver o mundo e que investigaremos agora de maneira detalhada.

De Oxford, Dawkins foi ser professor assistente de zoologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 1967; voltando a Oxford como professor de zoologia e membro do New College em 1970. Foi durante esse período que seus trabalhos mais influentes e criativos foram publicados, incluindo O gene egoísta e O relojoeiro cego. Em 1995 foi designado para uma nova posição acadêmica na Universidade de Oxford, graças à generosidade de Charles Simo-nyi, na época um dos principais arquitetos de software da Microsoft Co., e que se tornou um dos co-fundadores da Intentional Soft-ware Co., em agosto de 2002. Dawkins foi nomeado o primeiro lente da cátedra Charles Simonyi de Compreensão Pública da Ciên- cia.

Um avanço adicional em sua carreira aconteceu em 1996, quan-do a Universidade de Oxford concedeu a Dawkins o título adicional de "professor de Compreensão Pública da Ciência", conferindo-lhe assim a eminente, embora um pouco incômoda, distinção de ser tanto "lente da cátedra Charles Simonyi de Compreensão Pública da Ciência" quanto "professor de Compreensão Pública da Ciência". A Universidade de Oxford recomenda que ele seja designado de uma maneira mais simplificada: "lente da cátedra Simonyi e professor de Compreensão Pública da Ciência".6 Dawkins tornou-se membro da Royal Society — a suprema distinção para um cientista britâni-co — em maio de 2001.

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Então por onde devemos começar a investigação das idéias que deram a Dawkins tal vigor? Talvez o melhor lugar se encontre com o próprio Charles Darwin, que propôs os fundamentos da aborda-gem de Dawkins e a visão de mundo que ele construiu como re-sultado.

A nova abordagem: Charles Darwin

A publicação de A origem das espécies de Charles Darwin (1859) é justamente considerada como um marco da ciência do século XIX. No dia 27 de dezembro de 1831, o HMS Beagle partiu do porto de Plymouth, sul da Inglaterra, em uma viagem que durou quase cinco anos. Sua missão era cumprir uma pesquisa nas costas meridionais da América do Sul e depois circunavegar o globo. O naturalista do pequeno navio era Charles Darwin (1809-82). Du-rante a viagem, Darwin notou alguns aspectos da flora e da vida animal da América do Sul, particularmente das Ilhas de Galápagos e da Tierra del Fuego, para os quais as explicações das teorias em voga não lhe pareciam satisfatórias. As palavras de abertura de A origem das espécies propõem um enigma que o cientista estava de-terminado a resolver:

As relações geológicas que existem entre a fauna atual e a fauna extinta da América meridional, assim como certos fatos relativos à distribuição dos seres organizados que povoam este continente, impressionaram-me profundamente quando da minha viagem a bordo do navio Beagle, na qualidade de naturalista. Estes fatos, como se verá nos capítulos subseqüentes deste volume, parecem lançar alguma luz sobre a origem das espécies — mistério dos mistérios — para empregar a expressão de um dos maiores filósofos.

Uma difundida explicação para a origem das espécies, ampla-mente apoiada pelas instituições religiosas e acadêmicas do início do século XIX, propunha que Deus havia de alguma maneira cria-do tudo, mais ou menos conforme nós o conhecemos hoje. O

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sucesso dessa concepção muito se deveu à influência de William Paley (1743-1805), arcediago de Carlisle, que comparava Deus a um dos gênios da mecânica da Revolução Industrial. Deus havia diretamente criado o mundo em toda sua complexidade. Estudare-mos as origens e a influência do pensamento de Paley no próximo capítulo; nesta fase, precisamos apenas observar que Paley possuía a concepção de que Deus tinha construído — Paley preferia a palavra "elaborado" — o mundo em sua forma acabada, como o conhece-mos agora. A idéia de qualquer tipo de desenvolvimento parecia-lhe impossível. Um relojoeiro deixaria o seu trabalho inconcluso? Certamente não!

Darwín conhecia as concepções de Paley e, a princípio, achou-as persuasivas. Porém, suas observações no Beagle levantaram algumas perguntas. Em seu retorno, Darwin começou a desenvolver uma explicação mais satisfatória das suas próprias observações e das de outros. Embora Darwin pareça ter topado com a idéia básica da evolução pela seleção natural antes de 1842, não se sentiu pronto para as publicar. Uma teoria radical como essa exigia volumosas provas observacionais a serem disponibilizadas em seu apoio.

Alguns trabalhos anteriores que defendiam a evolução das es-pécies — em especial Vestiges of the Natural History of Creation [Vestígios da história natural da criação] (1844), de Robert Cham-bers — eram cientificamente tão incompetentes que ameaçavam desacreditar as idéias que procuravam difundir.7 Thomas H. Hux-ley, que mais tarde defenderia a teoria de Darwin, censurou o livro de Chambers como uma "atraente e notória obra de ficção" e seu autor como um "daqueles que [...] se vicia em ciência de segunda mão e dispensa por completo a lógica". Esse autor era um editor, não um cientista, e um pouco ingênuo em certos pontos; por exemplo, levava a sério a idéia altamente improvável de que as criaturas vivas foram o resultado da passagem de correntes elétricas por uma solução de ferrocianeto de potássio.

Em razão do estrago causado por Chambers, não havia clima no momento para que uma nova e radical teoria das origens biológi-cas pudesse ser lançada sem uma esmagadora documentação, capaz

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de desarmar seus críticos em razão do inegável peso de seus dados. A origem das espécies de Darwin ofereceria tanto a evidência mundial da evolução biológica quanto uma explicação de seu mecanismo. Em seu retorno à Inglaterra, Darwin iniciou a construção de um banco de evidências.

Quatro características do mundo natural pareciam a Darwin exigir uma maior atenção, levando-se em conta os problemas e as deficiências nas explicações disponíveis.

1. As formas de certas criaturas vivas pareciam estar adaptadas às suas necessidades específicas. A teoria de Paley propunha que essas criaturas haviam sido projetadas individualmente por Deus com tais necessidades em mente. Darwin cada vez mais considerava a idéia como uma explicação desajeitada.

2. Algumas espécies eram reconhecidas como havendo desapareci do completamente — foram extintas. O fato, conhecido antes de Darwin, era em geral explicado através de teorias "catastrófi cas", como a da "inundação universal", sugerida a partir do relato bíblico de Noé.

3. A viagem de pesquisa de Darwin no Beagle o havia persuadido da distribuição geográfica desigual das formas de vida ao longo do mundo. Em particular, Darwin ficara impressionado pelas peculiaridades das populações insulares.

4. Muitas criaturas possuem "estruturas rudimentares", que não apresentam nenhuma função visível ou previsível — como os mamilos nos mamíferos masculinos, os rudimentos de pélvis e membros posteriores em cobras, e as asas em muitos pássaros que não voam. Como estes poderiam ser explicados com base na teoria de Paley, que enfatizava a importância do plano individual das espécies? Por que Deus projetaria coisas supérfluas?

Tais aspectos da ordem natural haviam sido considerados pela teoria de Paley. No entanto, as explicações oferecidas pareciam ex-cessivamente complicadas e forçadas. O que fora em princípio uma

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teoria até certo ponto inteligente e elegante começava a se decompor sob o peso das dificuldades e tensões acumuladas. Deveria haver uma explicação melhor. Darwin então ofereceu uma profusão de evidên-cias em defesa da idéia da evolução biológica, e propôs um mecanis-mo através do qual ela se realizaria: a seleção natural.

A origem das espécies expõe com extremo cuidado por que a idéia da "seleção natural" é o melhor mecanismo para explicar como a evolução das espécies aconteceu e como deve ser entendida. O ponto chave está na proposição de que a seleção natural é o análogo da natureza para o processo de "seleção artificial" na pecuária. Dar-win estava familiarizado com o assunto, em particular quando rela-cionado à procriação de pombos.8 O primeiro capítulo de A origem das espécies considera então a "variação sujeita à domesticação" — ou seja, o modo pelo qual as plantas e os animais domésticos são criados por agricultores. Darwin nota como a reprodução seletiva permite aos fazendeiros criar animais ou plantas com características particularmente desejáveis. As variações se desenvolvem em gerações sucessivas por meio de semelhante processo de procriação, e essas podem ser exploradas a fim de provocar características hereditárias consideradas de valor particular pelo criador. No segundo capítulo, Darwin introduz as noções fundamentais de "luta pela sobrevivên-cia" e "seleção natural" para explicar aquilo que pode ser observado tanto nos registros fósseis quanto no presente mundo natural.

Darwin então argumenta que o processo de "seleção domésti-ca" ou "seleção artificial" oferece um modelo para o mecanismo que ocorre na natureza. A "variação sujeita à domesticação" é apre-sentada como análoga à "variação sujeita à natureza". O processo de "seleção natural" é explicado como acontecendo dentro da ordem natural de modo análogo a um processo conhecido, familiar aos criadores ingleses e horticultores: "Da mesma forma como o homem pode produzir e certamente produziu grandes resultados através de seus metódicos e inconscientes meios de seleção, por que a natureza não poderia fazê-lo?".

A teoria de Darwin possui um considerável poder explicativo — uma qualidade reconhecida na ocasião por muitos, mesmo por

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Lâmina 2. Charles Darwin (1809-82). © Bettmann/CORBIS

aqueles que estavam preocupados com as implicações que suas idéias poderiam ter para o lugar da humanidade dentro da natureza; embora houvesse um sério problema com a teoria. Como a natureza "memorizava" os novos desenvolvimentos e os "transmitia"? Como a geração seguinte poderia "herdar" as características de sua anteces-sora? Por qual mecanismo os novos desenvolvimentos seriam pas-sados para as gerações futuras? Os contemporâneos de Darwin em geral criam que as características dos pais eram "misturadas" ao serem transmitidas à descendência. Mas, se era assim, como uma única mutação poderia ser difundida ao longo de uma espécie? Ela acabaria diluída a ponto de não representar nada, como uma gota de tinta

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num balde de água. Parecia que a hipótese evolutiva de Darwin estava em dificuldades genéticas. A variação simplesmente se di-luiria. Uma nova característica seria como uma colher de chá de tinta branca misturada num barril de melaço preto: desapareceria de vista.

Darwin possuía completa consciência da necessidade de uma abrangente explicação dos mecanismos de hereditariedade. A teoria que ele desenvolveu (conhecida como "pangênese") se baseava em "gêmulas" hipotéticas — partículas minúsculas que de alguma ma-neira determinariam todas as características do organismo.9 As "gêmulas" nunca haviam sido observadas, não obstante, Darwin defendeu ser necessário propor sua existência a fim de dar sentido aos dados observacionais que dispunha. Em cada célula de um or-ganismo e até mesmo em partes das células, seriam produzidas gêmulas de um tipo específico correspondente à célula ou à parte dela. Elas seriam capazes de circular por todo o corpo e entrar no sistema reprodutivo. Todos os espermas e óvulos conteriam tais gêmulas hipotéticas, que seriam assim transmitidas à próxima geração. Foi uma solução engenhosa, embora não estivesse correta.10 A teoria de Darwin vacilava, necessitando de uma teoria genética plausível.

Os mecanismos da hereditariedade: Mendel e a genética

Sem que Darwin soubesse, os assuntos que para ele estavam sendo tão problemáticos naquele momento eram investigados em um jardim de um tranqüilo monastério na Europa Central. Gre-gor Mendel (1822-84) era um monge que entrara para o mosteiro agostiniano de St. Thomas, na cidade austríaca de Brünn (hoje, a cidade tcheca de Brno), aos 20 anos. Seus superiores monásticos ficaram impressionados com o entusiasmo do jovem, apesar de sua pouca formação. Eles o enviaram para a Universidade de Viena para estudos complementares (1851-3), período em que se especializou em física, química, zoologia e botânica. Depois de voltar ao monastério, Mendel ensinou numa escola local e realizou algumas experiências

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no jardim do mosteiro. Foi encorajado tanto por seus professores na Universidade de Viena quanto pelo abade do monastério para explorar seu interesse na hibridação de populações vegetais. Com efeito, Men-del estudou a hereditariedade de características específicas, conforme eram passadas das plantas genitoras para sua descendência. As experiências terminaram quando ele foi eleito abade do monastério em 1868 e assumiu novas responsabilidades administrativas.

Lâmina 3. Gregor Mendel (1822-84). © Science Photo Library.

As experiências de Mendel envolveram o cultivo de algo em tor-no de 28.000 ervilhas plantadas no período de 1856-63 e a obser-vação de como as características foram transmitidas de uma geração para a outra. Ele decidiu se concentrar em sete características facil-mente determináveis de suas ervilhas. As duas mais bem conheci-das destas são a cor das flores (roxa ou branca?) e a cor das sementes (amarela ou verde?). À medida que observava os padrões de herança dessas características, Mendel notou algumas significativas pro-priedades recorrentes. Em virtude de haver usado tantas plantas e

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registrado os dados de forma tão meticulosa, os resultados eram passíveis de uma análise estatística detalhada, permitindo a descober-ta de padrões matemáticos regulares e recorrentes de imensa importân-cia. Com a polinização cruzada entre plantas que produziam exclusivamente, ou ervilhas amarelas, ou verdes; Mendel descobriu que a primeira geração de descendentes produzia sempre ervilhas amarelas. Porém, a geração seguinte apresentava uma relação cons-tante de 3:1 entre as amarelas e as verdes. Percebeu-se, então, que certas características, como as sementes amarelas, eram "dominantes" em relação a outras características "recessivas", como as sementes ver-des.

A partir de sua pesquisa, Mendel pôde formular três princípios fundamentais que pareciam governar a hereditariedade:

1. A herança de cada característica — como a cor da flor ou da se mente — parece ser determinada por certas unidades ou fatores que são passados para os descendentes.

2. Uma planta individual herda uma determinada unidade de cada pai para cada uma dessas características.

3. As características que não aparecem em certo indivíduo podem, no entanto, serem passadas para uma geração posterior.

Mendel propôs assim uma teoria da "herança particulada", na qual as características eram determinadas por unidades discretas de herança que seriam passadas intactas de uma geração a outra. Mu-tações adaptativas poderiam se difundir lentamente por uma espécie e nunca seriam "misturadas", conforme algumas teorias genéticas con-temporâneas asseguravam. As implicações evolucionistas da descoberta eram consideráveis. A teoria da seleção natural de Darwin, constituí-da de pequenas mutações através de longos períodos de tempo, ficara muito mais plausível de repente.

Mendel apresentou suas idéias na Sociedade de História Natu-ral de Brno, no começo de 1865. Elas foram recebidas educada-mente, mas sem entusiasmo, e publicadas no ano seguinte.11

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Relatos tradicionais desse acontecimento revelam que quase ninguém leu o Verhandlungen des naturforschenden Vereins in Brünn, e o artigo passou despercebido, apesar de haver sido enviado para as bibliotecas de umas 120 instituições, inclusive as da Royal Society e da Linnean Society, em Londres. Mendel remeteu umas quarenta reimpressões adicionais do artigo a botânicos proeminentes, mas parece que chamaram pouca atenção. Apenas em 1900, as Leis de Mendel foram redescobertas por Carl Correns naAlemanha, Hugo de Vries nos Países Baixos e Erich von Tschermak-Seysenegg na Áustria, e o seu valor pôde ser apreciado.12

No entanto, fontes contemporâneas em língua alemã sugerem que as idéias de Mendel eram relativamente bem conhecidas naquele momento,13 sendo citadas em obras de ampla circulação como o Catalogue of Scientific Papers ofthe Royal Society (1879), o Die Pflan-zen-Mischlinge (1881) de Focke e a Enciclopédia Britânica (1881). Há outra explicação para o motivo das concepções de Mendel terem sido ignoradas: elas foram entendidas como estando em tensão com as idéias de Darwin, que rapidamente se tornaram aceitas como ortodoxia científica. Na verdade, tal foi a hostilidade contra Mendel dentro de alguns círculos, que se chegou até mesmo a questionar a credibilidade de suas experiências. Mendel, era o que se dizia, estaria em oposição à teoria da evolução de Darwin. Seus resultados poderiam ser aceitos, considerando-se tal ordem do dia?14

Havia ainda algumas outras razões para a precaução manifesta-da em relação ao trabalho de Mendel. Em 1930, o biólogo matemático britânico Ronald A. Fisher publicou um trabalho cru-cial na teoria darwinista, em que argumentava que os resultados empíricos de Mendel poderiam ter sido presumidos por um cien-tista de gabinete, equipado apenas com "algumas suposições muito simples" relativas à noção mendeliana de "herança fatorial".15 Fisher também sugeriu, sobre bases matemáticas, que as observações in-formadas por Mendel eram precisas demais para ser verdade. As taxas de segregação de Mendel eram muito mais altas do que per-mitiriam os princípios estatísticos de variação. Considerando-se que tais taxas de segregação só poderiam acontecer com muita raridade,

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a integridade das idéias de Mendel teria de ser reconsiderada. Essa crítica ainda hoje é sustentada. Tão recentemente quanto 1991, discutiu-se que "o relato de Mendel, de suas experiências não é nem verdadeiro nem cientificamente provável", e que "a maioria das ex-periências descritas em Versuche deveria ser considerada fictícia".16

Porém a base de tais críticas é em geral considerada como duvidosa, e não parece ser o caso de merecer resposta.17

No entanto, é de especial interesse o fato de que Mendel pos-suía uma cópia de A origem das espécies de Darwin,18 com a seguinte passagem assinalada com linhas duplas na margem, mostrando clara-mente a considerável importância que tinha para ele:

O leve grau de variabilidade em híbridos do primeiro cruza-mento ou na primeira geração, em contraste com a sua ex-trema variabilidade nas gerações seguintes, é um fato curioso que merece atenção.19

Conforme o mais importante biógrafo de Mendel indicou, tal cu-riosidade não permaneceria misteriosa por muito tempo: "Mendel deve ter sentido certa satisfação ao pensar que sua teoria em breve poderia explicar esse fato curioso".20 Mendel parece ter apreciado a importância das próprias idéias para Darwin. No entanto, Darwin; até onde se sabe, não conheceu as idéias de Mendel, nem suas im-plicações de grande alcance para a própria teoria.

O próprio Dawkins observa que as coisas teriam sido muito diferentes se Darwin tivesse conhecido esses resultados.21 Ele sugere que "Mendel talvez não tenha percebido o significado de seus resultados, caso contrário poderia ter escrito a Darwin".22 Sou in-clinado a suspeitar que ele percebera sim, como indica a inusual marca sobre aquela passagem em A origem das espécies, mas sentiu que já havia feito o suficiente ao dar publicidade a seus resultados. Afinal de contas, ele era um monge e, conseqüentemente, pouco disposto a qualquer autopropaganda adicional. Em todo caso, seu tratado foi relacionado em várias e importantes fontes britânicas antes de 1881.

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Mendel havia demonstrado que a herança parecia ser determi-nada por certas "unidades" ou "fatores". Mas o que seriam eles? O que nos leva à descoberta do gene — um evento admirável em si mesmo e de importância fundamental para a tese de Dawkins so-bre uma visão de mundo darwinista.

A descoberta do gene

A importância das idéias de Mendel foi reconhecida no mun-do de língua inglesa por William Bateson, que despendeu um con-siderável esforço tentando clarificar os princípios que governam as características ou propriedades herdadas. Em 1905, sabia-se que certas características estavam de alguma maneira associadas, embora o padrão de associação (mais tarde interpretado como atração "com-pleta" e "incompleta") estava longe de ser claro. Bateson usara uma série de vagas analogias físicas — como "atração" e "repulsão" — numa tentativa por fim malsucedida de explicar suas incompreen-síveis observações. Fica claro pelos textos de Bateson que ele estava pensando em termos de certas forças (análogas às forças magnéticas ou elétricas) capazes de atrair ou repelir fatores de valor genético. No final das contas, a solução acabou sendo apresentada num arti-go seminal publicado por Thomas Hunt Morgan em 1926. A solução? O gene.

Entusiasmado com as idéias de Mendel, Morgan investigara o curto ciclo reprodutivo da mosca Drosophila melanogaster, a fim de estudar a transmissão de suas características hereditárias. Conforme Mendel, decidiu se concentrar em algumas propriedades bem defini-das que ocorriam aos pares. A mais conhecida delas era a cor dos olhos. Observando os padrões de distribuição de olhos vermelhos e brancos, Morgan modificou a teoria de Mendel em um ponto importante: propôs que nem todas as características genéticas são transmitidas de forma independente, como supusera Mendel. Ao contrário, algumas características genéticas pareciam estar associa-das, sendo herdadas em conjunto, em vez de individualmente.

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A conclusão mais importante de Morgan se relacionava às "unidades" ou "fatores" que transmitiam tais características, agora conhecidas como "genes". Já se sabia há algum tempo que a divisão das células era acompanhada pelo aparecimento de minúsculas estruturas fili-formes, parecidas com varas e conhecidas como "cromossomos". Alguns haviam especulado que os cromossomos poderiam ser os responsáveis por transmitir a informação hereditária. Morgan ofereceu uma evidência decisiva de que esse era de fato o caso. Os "genes" responsáveis por transmitir tal informação ficavam fisicamente situados nos cromossomos. À medida que microscópios com resolução cada vez maior foram desenvolvidos, foi possível confirmar visualmente a hipótese.

As moscas de Morgan possuíam quatro cromossomos muito grandes que os tornavam fáceis de estudar ao microscópio. Ele desco-briu que quatro grupos distintos de características, que pareciam ser herdadas juntas, correspondiam exatamente ao número de pares cromossômicos observados na Drosophila. O biólogo também desco-briu que um dos quatro grupos associados possuía menos caracterís-ticas que os outros três. O que parecia corresponder ao fato de que um dos cromossomos da Drosophila era menor do que os outros três. Embora mais trabalhos sobre a transmissão hereditária dos cromossomos no núcleo da célula fossem necessários ainda, um quadro coerente começava agora a emergir.

Aceitou-se então que os princípios da transmissão hereditária se baseavam na noção mendeliana dos fatores hereditários discretos ("genes"). Aquilo que ficou conhecido como a síntese do "neodar-winismo" era agora possível: a genética mendeliana, como a explicação básica da mudança evolutiva, associada ao processo de seleção natural darwinista, como determinante de seu resultado. Ainda seria preciso uma clarificação adicional com relação à base molecular da genética. Um passo decisivo seria dado nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, para o qual nos voltaremos agora.

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O papel do DNA na genética

A descoberta por Morgan do papel crítico dos cromossomos na genética despertou um grande interesse pela sua composição química. Do que eram feitas na verdade essas fibras filiformes? O bioquímico suíço Friedrich Miescher (1844-95) havia estabelecido a composição química dos núcleos celulares em 1868. Ele descobrira que estes continham dois componentes básicos: um ácido nucléico (agora designado como ácido desoxirribonucléico e universalmente conhecido pela sigla DNA) e uma classe de proteínas (hoje denomi-nadas histonas). Os ácidos nucléicos não foram em particular consi-derados importantes biologicamente. Os estudos químicos sugeriam que não eram muito diversificados e possuíam um pequeno número de componentes.

Em 1938, Phoebus Levene (1869-1940), trabalhando no Rockefeller Institute em Nova York, descobriu que o DNA era um polímero notavelmente longo. Porém adotou a visão de que o longo polímero simplesmente consistia em unidades repetidas de quatro bases nu-cleotídeas: adenina (A), guanina (G), timina (T) e citosina (C), Por isso, muitos (inclusive o próprio Levene) consideraram altamente improvável que o DNA tivesse um papel importante na transmissão das características herdadas. Ele era quimicamente muito simples para codificar informações genéticas. Inúmeros estudiosos acreditaram então que a última chave para a base molecular genética repousaria nas proteínas encontradas dentro dos cromossomos.

Ácido desoxirribonucléico DNA: a molécula que contém o código genético. Consiste em duas longas cadeias trançadas (uma "dupla hélice") compostas de nucleotídeos. Cada nu-cleotídeo contém uma base, uma molécula de fosfato e o açúcar desoxirribose. As bases nos nucleotídeos do DNA são adenina, timina, guanina e citosina.

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Ácido ribonucléico RNA: a molécula que leva a cabo as ins-truções do DNA para fazer proteínas. Consiste em uma longa cadeia composta de nucleotídeos. Cada nucleotídeo contém uma base, uma molécula de fosfato e o açúcar ribose. As bases nos nucleotídeos do RNA são adenina, uracil, guanina e cito-sina. Há três tipos principais de RNA: RNA mensageiro, RNA transportador e RNA ribossômico.

Como acontece tão freqüentemente nesses casos, a chave para resolver o enigma veio de uma fonte inesperada. Em 1928, o médico inglês Fred Griffith se encontrava investigando uma epidemia de pneumonia em Londres. Enquanto pesquisava o pneumococo res-ponsável por esse surto, Griffith fez a surpreendente descoberta de que os pneumococos vivos podiam adquirir características genéti-cas de outros pneumococos mortos, em um processo que ele de-nominou de "transformação". Mas como isso podia acontecer? Tudo o que os pneumococos mortos poderiam transmitir eram substân-cias químicas: especificamente dois tipos de ácido nucléico — áci-do ribonucléico (o RNA) e ácido desoxirribonucléico (o DNA) — e proteína. Como estes poderiam provocar uma mudança genética nas células vivas?

A importância do trabalho de Griffith não foi apreciada até que uma equipe de pesquisadores liderada por Oswald Avery re-produziu os seus resultados no Rockefeller Institute de Nova York. Avery e sua equipe iniciaram um detalhado estudo de como a in-formação genética era transmitida aos pneumococos vivos. Eles rea-lizaram uma série de experiências que demonstraram que a informação genética não era transmitida através das proteínas ou do RNA, mas especificamente pelo DNA.23 Essa foi uma descoberta momentosa, até mesmo antes que suas plenas implicações fossem apreciadas. Se o DNA — e nenhuma outra substância — era o portador da informação hereditária, ele deveria ter uma estrutura muito mais complexa do que previamente se pensara. Embora nin-

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guém soubesse qual era essa estrutura, nem como o DNA podia cumprir tal função genética crucial.

Deu-se um novo ímpeto a uma série de notáveis estudos. Rosa-lind Franklin (1920-58) se encarregou do pioneiro trabalho de crista-lografla de raios X no DNA, facilitando imensamente as revolucionárias pesquisas do físico inglês Francis Crick (n. 1916) e do geneticista americano James Watson (n. 1928), que demonstraram a estrutura em dupla hélice do DNA.24 Tal realização foi uma descoberta física notável em si mesma, além de também abrir caminho à compreensão de como o DNA conseguia passar a informação genética. Watson e Crick perceberam imediatamente que o emparelhamento das bases no DNA duplamente trançado deveria ser a chave de sua função como um replicador e transmissor da informação genética. Eles escreveram: "Não deve passar despercebida a nossa observação de que o emparelhamento específico que estamos postulando sugere de imediato um possível mecanismo copiador do material genético". Em outras palavras, o conhecimento da estrutura física do DNA indicava um mecanismo através do qual ele poderia se reproduzir.

Com base nessa pesquisa, Crick propôs o que chamou de "Dog-ma Central", isto é, que o DNA se replica, agindo como um modelo para o RNA, que em troca age como um modelo para as proteínas. A molécula de DNA longa e complexa contém a informação genéti-ca necessária para a transmissão "codificada", usando os quatro nu-cleotídeos básicos: adenina (A), guanina (G), timina (T) e citosina (C); organizados em seqüências de "pares básicos" (a adenina é sempre unida à timina, e a guanina à citosina na estrutura de dupla hélice do DNA), fixados numa coluna de açúcar e fosfato. Ê a seqüência desses pares básicos que determina a informação genética transmitida.25

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(a) Estrutura da trança simples

fim

da

cadeia 5

(b) Estrutura da trança dupla

2,0 nm

Lâmina 4. A estrutura do DNA: (a) Cada trança do DNA é composta de uma seqüência de unidades de nucleotídeos, consistindo de uma base, uma molécula de fosfato e o açúcar desoxirribose. As bases nos nucleotídeos do DNA são adenina (A), timina (T), guanina (G) e citosina (C). (b) A molécula completa de DNA tem duas trancas complementares, organizadas em uma dupla hélice. A largura da hélice é tipicamente 2 nanômetros — em outras palavras, dois bilionésimos de um metro.

Fonte: Ridley, Mark. Evolution, Third Edition. Oxford: Blackwell Publishing, 2004, p. 23. Reimpresso com permissão.

Por que isso é tão importante para uma compreensão da biolo-gia evolucionista? O ponto mais importante a enfatizar é que a teoria da seleção natural de Darwin exigia que uma variação ocor-resse e fosse transmitida, em vez de diluída, para as gerações seguintes. A seleção natural então se daria, determinando se o código genético para esta variação sobreviveria ou não. A síntese neodarwinista é

} 0.34 nm

fim da cadeia 3

3.4 nm

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fundamentada na suposição de que pequenas mudanças genéticas fortuitas (mutações) em longos períodos de tempo ocasionalmente teriam valor de sobrevivência positivo. Os organismos que pos-suíssem as mutações favoráveis teriam uma relativa vantagem de sobrevivência e reprodução, tendendo a passar tais características para seus descendentes. Assumindo que haja taxas diferenciais de sobrevivência, não é difícil perceber como uma característica fa-vorável pode se estabelecer e ser transmitida.

Cromossomo Gene RNA Mensageiro

Tradução Proteína

Lâmina 5. A transferência de informação em uma célula

Fonte: Ridley, Mark. Evolution, Third Edition. Oxford: Blackwell Publishing, 2004, p. 27. Reimpresso com permissão.

O ponto chave é que a variação genética ocorre na natureza, o processo de seleção natural determina se essa variação sobreviverá e o processo de réplica genética assegura que a variação seja transmiti-da. A explicação, no entanto, ainda deixa em aberto muitos proble-mas da biologia evolucionista. Para dar um exemplo: em que nível a seleção natural ocorre? No nível dos próprios genes? Ou dos or-ganismos individuais que contêm esses genes? Ou no nível da família (dos indivíduos aparentados) ou dos grupos?

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Neste momento, preparamos o terreno para uma adequada abordagem das concepções de Richard Dawkins sobre o "gene egoís-ta", podendo agora estudá-las de forma mais detalhada.

A abordagem de Dawkins: o gene egoísta

Para Dawkins, a base lógica mais satisfatória do processo evolu-tivo é estruturada nos termos das linhagens de gene. As mudanças necessárias para que a evolução se desenvolva ocorrem de forma muito lenta. A vida de um organismo individual ou de um grupo de organis-mos é muito curta se comparada ao tempo exigido para a ocorrência das mudanças. O que requer uma unidade de transmissão genética estável e.de longo prazo — apenas as linhagens de gene podem satis-fazer essa condição. Conforme Richard Alexander mostrou: "Os genes são as mais persistentes de todas as unidades vivas, logo, por qualquer cálculo, eles são a provável unidade da seleção".26 Para Dawkins, a evolução é, portanto, a luta de linhagens de gene para se reproduzir:

[O gene] não envelhece: é menos provável que ele morra quan-do tiver um milhão de anos do que quando estiver com ape-nas cem anos. Salta de corpo para corpo, ao longo das gera-ções, manipulando corpo após corpo de um modo próprio e para fins próprios, abandonando uma sucessão de corpos mor-tais antes que entrem na senilidade e morte. Os genes são imor-tais, ou quase, eles são definidos como entidades genéticas que se mostram muito perto de merecer o título.27

Embora as moléculas individuais de DNA possam sobreviver pou-co mais do que alguns meses, sua habilidade para se replicar signifi-ca que uma determinada "molécula de DNA poderia teoricamente se manter viva na forma de cópias de si mesma durante cem milhões de anos".28 Em contraste, os organismos individuais ou grupos de or-ganismos são de vida curta, e não se prolongam em uma escala temporal necessária para perpetuar as mudanças que lentamente se acumulam através de longos intervalos de tempo. Falando "em ter-mos genéticos, os indivíduos e grupos são como as nuvens no céu

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ou as tempestades de areia no deserto. São agrupamentos ou uniões temporárias. Não são estáveis através do tempo evolutivo".29 Logo, tudo depende do gene.

Então como as mudanças genéticas ocorrem? Não há, em face ao que foi dito, uma contradição óbvia e fatal entre a ênfase de Daw-kins na "alta fidelidade copiadora" dos replicadores e o aparecimento da mudança? Se os replicadores transmitem a informação digital com tanta precisão, como a mudança pode vir a ocorrer? A fidelidade da transmissão não estaria, portanto, apontando para uma situação com certeza estática, e não dinâmica?

E uma pergunta importante que parece propor dificuldades formidáveis. Certas espécies nos sugerem ter relativamente sofrido um pequeno desenvolvimento ao longo de enormes períodos de tempo — por exemplo, as ostras e a árvore ginkgo teriam mudado pouco nos últimos 150 milhões de anos.30 No entanto as mudanças de fato acontecem. Como? A teoria para esse fenômeno fora mais ou menos proposta antes de Dawkins escrever O gene egoísta. Em O acaso e a necessidade (1971), o Nobel francês Jacques Monod lançou o consenso básico que logo emergiu dentro da biologia molecular. Monod mostrou que as mutações genéticas podem ser observadas no laboratório. Mutações raras e espontâneas em popu-lações de drosófilas ou de outros organismos exemplares podem ser observadas, enquanto outros podem ser induzidos ao acaso com o uso de mutágenos, como certas substâncias químicas ou radi-ação. Por que tais mutações não poderiam surgir também com o passar do tempo na própria natureza?

Acredita-se que as mutações surgem acidentalmente, de forma inesperada, na própria natureza, e por causa de uma variedade de razões. Mas, uma vez que essas mudanças sejam "incorporadas na estrutura do DNA, o acidente — em essência imprevisível, porque sempre singular — será mecânica e fielmente reproduzido e trans-mitido".31 Os resultados das mutações genéticas são então trans-mitidos dentro do processo evolutivo, que age como um "filtro", determinando se eles e os seus códigos genéticos sobreviverão. A maioria não consegue. "O sistema replicador, longe de poder elimi-

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nar as perturbações microscópicas pelas quais é inevitavelmente abalado, sabe apenas registrá-las e oferecê-las — quase sempre em vão — ao filtro teleonômico através do qual seu desempenho é finalmente julgado pela seleção natural".32

Dawkins não endossa a ênfase de Monod sobre o papel decisi-vo do "acaso". Embora reconhecendo que muitos haviam realmente chegado à conclusão de que o darwinismo era uma "teoria do acaso", Dawkins insiste que esta é uma deturpação da situação. "O acaso é um ingrediente secundário na receita darwinista, o ingrediente mais importante é a seleção cumulativa que é essencialmente não fortui-ta".33 A evolução poderia assim ser vista como o resultado da sobre-vivência não fortuita de replicadores fortuitamente modificados, com a ênfase colocada na regularidade da seleção em lugar da casualidade da variação. Mudanças fortuitas no DNA dão origem a organismos novos que se reproduzem e estão sujeitos à pressão da seleção natu-ral. O "darwinismo nuclear" poderia então ser definido como a "teoria mínima de que a evolução é conduzida em direções não fortuitas em termos adaptativos, em virtude da sobrevivência não fortuita de pequenas mudanças hereditárias fortuitas".34

E sobre os organismos individuais ou grupos, como ficam? Embora urna leitura precipitada de Dawkins possa sugerir que a evolução é compreendida em termos puramente moleculares, en-volvendo tão-somente uma silenciosa e invisível competição entre genes, logo fica claro que ele evita semelhante absurdo. Sendo os organismos o "veículo" pelo qual os genes são transmitidos, a ca-pacidade do organismo para sobreviver e reproduzir revela imensa importância. O processo de seleção não é uma competição entre genes per se (como isso poderia acontecer?), mas se dá no nível dos intermediários, isto é, dos "veículos" que carregam ou encarnam esses genes.

Um macaco é uma máquina que preserva genes em cima das árvores, um peixe é uma máquina que preserva genes na água; há até mesmo um pequeno verme que preserva genes em des-cansos de papelão para copos de cerveja.35

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Tais "máquinas de sobrevivência de genes" reproduzem seus genes e morrem; são os genes que sobrevivem, não os veículos, na forma de cópias de sua informação. Conforme Dawkins observa, os corpos tendem "a fazer o que for preciso para propagar os genes" e podem então ser considerados corretamente como "máquinas de propa-gação de genes". Essa distinção poderia ser formalizada em termos de replicadores e veículos, isto é, entre pequenas unidades genéticas ("genes") e as entidades de nível superior (em geral organismos, mas às vezes uma família de organismos geneticamente relacionados) que transmitem os genes no processo evolutivo.36

Em O gene egoísta, Dawkins ofereceu o que poderia ser cha-mada uma "etologia do gene" — embora na verdade não se possa dizer que genes se "comportem" ou "ajam" — a qual passou a ên-fase dos animais individuais, ou dos grupos de animais, para a na-tureza dos próprios genes como a unidade de evolução. Tal "visão de mundo pelo olho do gene" considera um organismo individual como uma "máquina de sobrevivência", um "receptáculo passivo para . genes" ou uma "colônia de genes". Dawkins enfatiza que não está sugerindo que tais organismos não tenham nenhuma individualidade própria: sua idéia é que as características individuais são genetica-mente determinadas e, em conseqüência, podem contribuir ou não para que aquela linhagem de genes tenha êxito. Devemos "assimilar profundamente a verdade fundamental de que um organismo é uma ferramenta do DNA, e não o contrário".37 A evolução, portanto, ocorre quando propriedades geneticamente produzidas são passa-das para a próxima geração.

Então, o que é um gene? Aqui nos deparamos com várias di-ficuldades amplamente reconhecidas. O termo é capaz de ser definido ou visualizado de modos bastante diferentes. Em um artigo clássi-co, Seymour Benzer ofereceu uma definição essencialmente mo-lecular do conceito,38 que objetivava criar uma ponte entre a visão clássica do gene como unidade indivisível da informação genética e a estrutura física do DNA, descoberta há pouco, e que mostrava que a base molecular da genética consistia numa seqüência de nu-cleotídeos. Dawkins possui completo domínio do significado do

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termo, mas observa que é perfeitamente aceitável conceitualizar o "gene" em termos da unidade envolvida na criação de uma adaptação darwinista. Sua definição, emprestada de George C. Williams, propõe: "Qualquer porção de material cromossômico que poten-cialmente perdure por suficientes gerações para servir como uma unidade de seleção natural".39 Trata-se de uma definição funcional, mas perfeitamente aceitável, apesar dos muxoxos dos geneticistas populacionais. Porém, a fórmula leva a um preocupante grau de circularidade, ao tornar quase verdadeiro por definição que o gene é a unidade da seleção.

O próprio Williams não se mostrou completamente satisfeito com tal definição.40 Segundo ele, Dawkins definiu o replicador de uma forma que acabou sendo entendido "como uma entidade física que duplica a si mesmo no processo reprodutivo". Embora necessa-riamente não discorde disso, Williams entende que Dawkins "foi enganado pelo fato de os genes serem sempre identificados ao DNA". Para Williams, seria essencial deixar claro que a molécula do DNA é o meio, e não a mensagem: o gene é "um conjunto de infor-mações, não um objeto". O próprio Williams insistiu em que nem todos os genes são evolutivos, se a definição de gene evolutivo for "qualquer informação herdada para a qual há uma tendência seleti-va favorável ou desfavorável, igual a algumas ou muitas vezes a sua taxa de mudança endógena".41

Assim, como se dá o processo na prática? Talvez o modo mais fácil de entender isso seja através de um estudo de caso. Pensemos em um leão: quanto mais rápido puder correr, mais provável será sua sobrevivência — em parte porque o leão conseguirá correr mais do que sua presa e, conseqüentemente, assegurará sua provisão de comi-da. Imaginemos que uma mutação genética leve um leão a possuir habilidades de corrida superiores. A população leonina local terá ago-ra dois tipos diferentes de leão: os novos, com a mutação, e os ve-lhos, sem ela. No início, coexistirão lado a lado. Mas os leões mutantes terão uma maior capacidade para sobreviver e logo passarão suas ca-racterísticas para as gerações posteriores através do gene — ou seja, através daquilo que em primeiro lugar causou a mutação.42

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Nesse caso, como as mutações genéticas se manifestam nos or-ganismos vivos? Precisamos agora apresentar uma distinção entre o gene (ou "genótipo"), definido como a "informação hereditária, in-ternamente codificada", carregada por cada organismo vivo e usada como um "plano" ou conjunto de instruções capazes de construir uma criatura e mantê-la viva; e o fenótipo: a manifestação externa e física do organismo — as características visíveis ou os comportamentos que são o resultado da interação entre o plano genético de um organismo e o ambiente. Dawkins propõe que o gene, sendo a unidade da seleção, manifesta efeitos fenotípicos no organismo como, por exemplo, o aguçamento de suas garras, a natureza de seu metabolismo ou a força de seus músculos da perna. Os genes bem sucedidos são os que produzem efeitos fenotípicos capazes de promover a sua sobrevivência.

Dawkins elevou essa concepção um estágio acima através de suas idéias sobre o "fenótipo estendido".43 Ele mostrou que os efeitos do gene não são limitados às características físicas do organismo indi-vidual, mas se estendem ao seu ambiente. Os pássaros cara-mancheiros (bowerbirds) constroem estruturas de grama nas quais se acasalam. As espécies de caramancheiros com plumagem especialmente brilhante tendem a construir ninhos menos elaborados, enquanto as de plumagem menos atraente compensam a característica fabricando estruturas mais complicadas.44

Apresentamos aqui um breve esboço da abordagem de Dawkins dentro de seu contexto histórico. Entretanto existem problemas nessa abordagem, alguns surgidos com os avanços da biologia mo-lecular — como a publicação das seqüências do genoma — e ou-tros em razão de pressupostos questionáveis, que parecem estar embutidos em sua concepção, dos quais devemos apontar um ou dois antes de seguir adiante. Comecemos considerando uma re-cente pesquisa que levanta dúvidas sobre a validade do modelo da "árvore da vida" darwinista.

O modelo da "árvore da vida" de Dawkins, conforme apresen-tado em O relojoeiro cego, amplia uma simples fórmula darwinista de "descendência com modificação", que usa a idéia de "ninhada

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perfeita".45 Uma descendência evolutiva exige uma estrutura rami-ficada, semelhante a uma árvore genealógica. No entanto, recentes trabalhos sobre o seqüenciamento do genoma em organismos sim-ples, como bactérias ou archaea, parece apontar para a transferência recorrente de genes, ou talvez até mesmo de agrupamentos de genes, de organismo para organismo.46 A maioria dos estudos iniciais ad-mitia que as espécies evoluíam principalmente por herança vertical do pai ou dos pais. Porém, a comparação das seqüências de genes microbianas sugere que a herança horizontal possa ser relativamente comum. A crescente evidência a favor de uma extensa transferência lateral de genes entre organismos nos mais baixos níveis da árvore da vida47 indica que a imagem de uma "árvore da vida" ramificada precisa de revisão, a fim de dar conta dessa aparente interseção de anéis próxima de sua base.

Parece cada vez mais necessário se falar de um "horizonte dar-winista": um ponto muito remoto no tempo evolutivo no qual a transferência horizontal de genes era tão comum que a explicação darwinista tradicional se torna problemática. O darwinismo, que postula a transferência vertical de genes como o tema dominante da evolução, pode lidar com a transferência lateral de genes como um subtexto ou um assunto secundário, mas, quando esta passa a ser a história principal, as coisas ficam bem mais difíceis. Precisamos esperar e ver como as coisas se desenvolverão aqui. Não considero que isso exija uma revisão global da abordagem de Dawkins, não obstante, altera os detalhes de alguns pontos importantes — em particular por indicar que a explicação darwinista padrão não abarca a totalidade da história evolutiva.

No entanto, a maior parte da crítica de Dawkins se concentra na validade do conceito do "gene egoísta". A expressão "o gene egoís-ta" cunhada por Dawkins foi criticada pela filósofa Mary Midgley, em parte por causa do que ela considerou imprecisão definitória, mas, de peso bem maior, em razão de preguiça filosófica. "Genes não podem ser egoístas ou altruístas, não mais do que átomos pos-sam ter ciúmes, elefantes possam ser abstratos ou biscoitos, teológi-cos".48 A preocupação básica expressa por Midgley é que a atribuição

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de "egoísmo" para genes representava uma forma de pensamento autropomorfo, pelo qual os genes são entendidos como possuindo qualidades e vícios humanos. Os genes em si mesmos não podem ser egoístas: o termo só pode ser aplicado de forma significativa a um organismo capaz de comportamento.49 É uma questão lógica, relativa à validade da linguagem metafórica ou analógica. Afinal de contas, pode-se dizer de fato que os genes de alguma forma se "com-portam", seja de modo "egoísta" ou não? Genes replicam, não é possível dizer que se "comportam" ou "agem", nem mesmo de uma forma pseudoteleológica. Tal questão lógica infelizmente acabou se perdendo no ruído de uma peça polêmica, confusa em termos cientí-ficos, que resultou na distorção das concepções de Dawkins sobre o gene.50

No entanto, não é estranho para Dawkins o uso de analogias nas ciências. Em sua tese de doutorado, dedicou várias páginas à reflexão sobre o uso adequado de modelos ou "apoios ilustrativos" na explicação e descrição científicas, especialmente em relação a as-suntos de comportamento.51 Dawkins defendeu que é possível se fazer uma clara distinção entre o sentido subjetivo e comporta-mental do termo e que sua definição era inequivocamente com-portamental por natureza. Os genes se comportam como se fossem egoístas, com todas as implicações que isso possa trazer. Conforme mostrou em O gene egoísta, "não devemos pensar em genes como agentes conscientes, com propósitos. Porém, a cega seleção natural os faz se comportar como se fossem intencionais, sendo conveniente, como uma abreviatura, referir-se aos genes com a linguagem da intenção".52 (O próprio Darwin, devemos frisar, já havia observado que "a seleção natural" era uma "abreviatura" de um processo muito mais complexo e matizado.) Os genes não são conscientemente egoístas; embora sua dinâmica se assemelhe à dos agentes conscientemente egoístas.

Dessa forma traçamos as linhas gerais da abordagem darwinista defendida por Dawkins. Mas quais são as suas implicações? Qual a diferença que ela poderia trazer à nossa visão mais ampla da realidade, inclusive em relação àquele reino da vida e do pensamento humanos

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em geral chamado, mas de um modo algo enganoso, de "religião"? Em seguida investigaremos algumas das características da visão dar-winista da realidade desenvolvida e tão competentemente divulgada por Dawkins.

O rio que saía do Éden: investigando um mundo darwinista

Para Dawkins, a teoria da evolução de Darwin — conforme desenvolvida à luz da genética mendeliana e de nossa compreensão do papel do DNA na transmissão de informação hereditária — é mais que uma teoria científica. E uma visão de mundo, uma expli-cação total de realidade. Darwinismo é um "princípio universal e infinito", capaz de ser aplicado a todo o universo. Em comparação, visões de mundo como o marxismo são "paroquiais e efêmeras".53

Enquanto a maioria dos biólogos evolutivos defende que o dar-winismo oferece uma descrição da realidade, Dawkins insiste em que ele proporciona mais que isso: o darwinismo é uma explicação.54 O darwinismo é uma visão de mundo, um grand récit, uma metanarra-tiva — uma estrutura totalizante através da qual as grandes perguntas da vida devem ser avaliadas e respondidas. Por isso, a explicação das coisas de Dawkins tem provocado a reação dos escritores pós-modernos, para os quais qualquer metanarrativa — seja marxista, seja freudiana, seja darwinista — deve ser recusada por uma questão de princípios.55

Assim, com o que essa visão de mundo se parece? Vamos assi-nalar algumas de suas características principais.

Um mundo sem propósito

O livro de Jacques Monod, O acaso e a necessidade (1971), causou certo alvoroço com a sua publicação, principalmente por causa de sua total rejeição a qualquer propósito no cosmo. Tudo o que Monod estava fazendo era explorar as implicações de uma ex-

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plicação da realidade em termos genéticos, em que mudanças aci-dentais são propagadas pelo DNA e sujeitas ao filtro "teleonômico" da seleção natural. Monod, na época diretor do Instituto Pasteur de Paris, estava criticando em particular as concepções de dois com-patriotas, Henri Bergson e Pierre Teilhard de Chardin, os quais haviam desenvolvido filosofias de vida fundadas na aceitação da evolução, mas interpretando esta como tendo algum tipo de propósito. A compreensão moderna da base molecular da evolução eliminou completamente a noção de "propósito". Talvez seja pos-sível falar sobre a direção do processo evolutivo — mas sem dúvida não sobre o seu propósito. Para Monod, a teleonomia havia desalo-jado a teleologia. Não havia sentido, portanto, em se perguntar por que coisas aconteceram assim. Elas apenas aconteceram. Embora os mecanismos que governam a evolução sejam de interesse, não pos-suem nenhuma meta.

Dawkins repercute essas idéias ao longo de seus trabalhos publica-dos nos últimos vinte e cinco anos. As ciências naturais podem esclarecer quase todos os aspectos do mecanismo evolutivo; o de-senvolvimento científico se dá em tal progressão que dificilmente os atuais enigmas se manterão por muito tempo sem explicação. E quando esse mecanismo é compreendido, a própria noção de "propósito" deve ser declarada desnecessária. O mundo pode pare-cer que foi projetado ou criado com algum propósito. No entanto, essa "forte ilusão de um plano intencional" pode ser facilmente ex-plicada cora base no resultado de mutações acidentais por enormes períodos de tempo. Dawkins é particularmente crítico em relação aos que argumentam que, "como a ciência não pode responder questões sobre a 'razão das coisas', deve então haver outra disciplina qualificada para fazê-lo". Nenhuma resposta é possível, exceto a resposta darwinista da seleção natural.56 Não estamos aqui por causa de algum princípio superior ao da seleção natural, pela qual nossos antepassados distantes puderam aumentar a representação de seus genes às custas de outros. Não há nenhuma explicação das coisas que seja mais elevada nem mais profunda do que essa.

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Para alguns, essa visão de mundo parece bastante melancólica. E é claro que ela dificilmente seria aceitável como mediadora do que é certo ou errado. Recordo-me que, durante meus dias de ateu, eu achava um pouco de consolo no fato de ninguém poder me acusar de ser ateu por causa do conforto metafísico que isso me trazia. Sendo assim, era irrelevante se o ateísmo fizesse de seus partidários sombrios ou radiantes, agradáveis ou tediosos. A questão se resumia à sua relação com os fatos observados. Para Dawkins, Deus não tem nenhuma "função útil" para a explicação sobre como as coisas são, e pode ser seguramente descartado como "de fato muitíssimo improvável". (Voltaremos mais tarde ao assunto, pois o argumento aqui demonstrado fica muito distante da ambiciosa conclusão esperada.)

Dawkins assume um firme e decidido engajamento ao dar-winismo e à mensagem que este traz ao mundo. Em uma breve declaração à Rádio BBC em 2003, expôs seu credo pessoal nos seguintes termos:

[Devemos] nos alegrar com o surpreendente privilégio de que desfrutamos. Nascemos e vamos morrer. Mas antes de morrer temos tempo para entender, em primeiro lugar, por que nasce-mos. Tempo para entender o universo em que nascemos. E, com essa compreensão, finalmente podemos crescer e perceber que não há qualquer ajuda além de nossos próprios esforços.57

Por que mesmo nascemos? A resposta darwinista é a "seleção natu-ral". Na realidade, essa é a resposta darwinista para quase tudo.

No entanto, devemos considerar essa resposta para a pergunta sobre a razão de nós — isto é, os seres humanos — estarmos aqui. Quais são as suas implicações?

O lugar da humanidade no universo darwinista

Se havia um aspecto da própria teoria da evolução que deixava Charles Darwin preocupado, esse dizia respeito a suas implicações

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para o status e a identidade da raça humana. Em cada edição de A origem das espécies, Darwin constantemente declarou que o meca-nismo da seleção natural, por ele proposto, não exigia uma lei fixa ou universal de desenvolvimento progressivo. Além disso, explici-tamente rejeitou a teoria de Lamarck de que a evolução manifestava uma "tendência inata e inevitável para a perfeição". A conclusão fatal então deve ser que os seres humanos (agora entendidos como participantes, em vez de apenas observadores, do processo evolutivo) não poderiam em qualquer sentido serem vistos como a "meta" ou o "ápice" da evolução. Não era uma conclusão fácil para Darwin, nem para a sua geração. Na conclusão de A origem do homem, fala da humanidade em termos exaltados, embora insistindo em suas "humildes" origens biológicas:

O homem deveria ser perdoado por sentir algum orgulho de haver atingido, apesar de não pelos próprios esforços, o verda-deiro ápice da escala orgânica; e o fato de haver assim subido, em vez de originariamente colocado lá, pode lhe dar a espe-rança de um destino ainda mais alto, em um futuro distante. Mas não estamos interessados aqui em esperanças ou medos, apenas na verdade, até onde nossa razão nos permita descobri-la; e tenho buscado evidências com o máximo das minhas capacidades. Porém, devemos reconhecer, segundo me parece, que o homem, com todas as suas nobres qualidades, [...] ainda carrega em sua estrutura corporal o indelével selo de sua humilde origem.58

Usando sua versão da imagem da "grande cadeia do ser", Darwin parece por vezes sugerir que a evolução implica em progresso para as criaturas superiores, projetando qualidades morais (e ocasional-mente até ontológicas) sobre a descrição científica mais neutra.59

Dawkins não demonstra aqui nenhuma hesitação. Devemos reconhecer que somos animais, parte do processo evolutivo. Ele critica firmemente as suposições absolutistas que percebe por trás do "especiesismo" — um termo inventado por Richard Ryder e

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tornado moeda corrente por Peter Singer, atualmente na Univer-sidade de Princeton.60

No entanto, Dawkins faz uma importante — na verdade, uma notável — distinção entre a humanidade e todos os outros produ-tos vivos da mutação genética e da seleção natural. Apenas nós po-demos resistir a nossos genes. Enquanto alguns escritores — como Julian Huxley — tentaram desenvolver um sistema ético baseado a partir do que consideraram os aspectos mais progressistas da evolução darwinista, Dawkins considera o empreendimento equivocado.61 A seleção natural pode ser a força dominante na evolução biológica, o que não significa, nem por um momento, que precisemos sancionar suas aparentes implicações éticas.

Eis um ponto importante, pois alguns têm defendido que a teoria darwinista endossa uma moral da "sobrevivência do mais forte". Uma carta recentemente descoberta do próprio Darwin parece emprestar credibilidade a semelhante abordagem "darwinis-ta social",62 embora Darwin tenha sido em geral cauteloso em pro-por tal conclusão. Dawkins é categórico: os seres humanos não são prisioneiros de seus genes, sendo capazes de se rebelar contra tal tirania genética:

Como cientista acadêmico, sou um darwinista apaixonado, acreditando que a seleção natural é, se não a única força mo-. triz da evolução, certamente a única força conhecida capaz de produzir a ilusão de um propósito, que por isso impressiona todos os que analisam a natureza. Mas, ao mesmo tempo em que, como cientista, apoio o darwinismo, sou um apaixonado anti-darwinista quando a teoria é proposta para a política e para como deveríamos administrar os negócios humanos.63

O mesmo tema aparece em O gene egoísta. Dawkins conclui o livro com uma apaixonada defesa da dignidade e liberdade humanas em face ao determinismo genético. Nós — ou seja, os seus (humanos) leitores — podemos nos rebelar:

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Possuímos o poder de desafiar os genes egoístas de nosso nasci-mento e, se necessário, os memes egoístas de nosso doutrina-mento. Podemos até debater as formas de deliberadamente cultivar e desenvolver o mais puro e desinteressado altruísmo — algo que não tem lugar na natureza, algo que nunca existiu antes em toda a história do mundo. Somos construídos como máquinas de gene e aculturados como máquinas de meme, mas temos o poder de contrariar nossos criadores. Na terra, apenas nós podemos nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas.64

(Note-se que Dawkins apresenta aqui o termo "meme" como um "rcplicador cultural" análogo ao gene, o replicador genético. Em seguida, teremos mais a dizer sobre o novo tipo de replicador.) Dawkins sugere que nossa condição é comparável à de um oncolo-gista, cuja especialidade profissional é estudar o câncer, sendo sua vocação profissional lutar contra ele.

Portanto há algo de diferente na humanidade, afinal de contas. Parece que evoluímos a ponto de poder nos rebelar precisamente contra o processo que, a princípio, nos trouxe aqui. Apenas nós possuímos cérebros evoluídos, capazes de, em primeiro lugar, en-tender como chegamos aqui e, em segundo, subverter o processo que poderia em algum ponto muito distante nos desalojar, talvez por algum primata superior.

A evolução do cérebro humano é, conforme Dawkins assinala, tão notável quanto controversa. Que pressões teriam levado ao au-mento do cérebro humano?65 E por que tal processo deveria render alguma vantagem evolutiva importante? Esse novo desenvolvimen-to requer que, grosso modo, um quarto do metabolismo humano seja dedicado a assegurar o funcionamento do cérebro. O que repre-senta um investimento significativo de energia e um correspon-dente de alto risco para a sobrevivência da espécie. Não obstante, qualquer que seja a explicação, aconteceu.66

Por meio de um sábio uso desse recurso adicional, só os seres humanos podem subverter seus "genes egoístas" — por exemplo,

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através dos meios artificiais de contracepção.67 É um ponto dis-cutível se esse exemplo pode ser considerado como um corajoso ato de rebelião de seres humanos iluminados contra seus genes. Pode-se argumentar da mesma forma que se trata de um ato de cumplicidade, pois um dos principais objetivos da contracepção artificial é limitar as desastrosas conseqüências da explosão popula-cional, capaz de criar um sério obstáculo à continuidade da espécie humana — e conseqüentemente à transmissão do gene humano.

Neste capítulo, apresentei o "gene egoísta", noção típica do pensamento de Dawkins, posicionando-o no contexto da biologia evolucionista, conforme seu desenvolvimento desde Darwin. O que nos permite passar para o verdadeiro tema deste livro: oferecer um exame crítico dos juízos de Dawkins a respeito das implicações re-ligiosas derivadas desse conceito. A fim de investigarmos essa im-portante questão, devemos imediatamente considerar um dos trabalhos mais importantes de Dawkins: O relojoeiro cego.

A Devil's Chaplain, p. 196.

Para um retrato crítico, embora elogioso, de Tinbergen, ver Hans Kruuk, Nikos Nature: The Life of Niko Tinbergen, and His Science of Animal Behaviour. Oxford: Oxford University Press, 2003. Para a avaliação pessoal de Dawkins sobre o significado de Tinbergen, ver Marian S. Dawkins, Tim Halliday & Richard Dawkins, The Tinbergen Legacy. Londres: Chapman & Hall, 1991. Richard Dawkins, "The Ontogeny of a Pecking Preference in Domestic Chicks". Zeitschrift fürTierpsychologie 25 (1968),p. 170-86. O principal texto foi publicado em duas partes em 1964: William Hamilton, "The Genetic Evolution of Social Behaviour". Journal of'Theoretical Biology 7 (1964), p. 1-16; 17-52. River out of Eden, p. 19 [trad. em port.: O rio que saía do Éden].

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6 Oxford University Calendar 2003-4. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 77. , "

7 Para detalhes adicionais, ver James A. Secord, Victorian Sensation: The Extraordinary Publication, Reception, and Secret Authorship of Vestiges of the Natural History of Creation. Chicago: University of Chicago Press, 2000.

8 Sobre o assunto, ver James A. Secord, "Nature's Fancy: Charles Darwin and the Breeding of Pigeons". Isis 72 (1981), p. 163-86.

9 A teoria foi lançada em sua obra The Variation of Animais and Plants under Domestication, 2 vols. Londres: John Murray, 1868.

10 Ver Conway Zirkle, The Early History ofthe Idea ofthe Inheritance ofAcquired CharactersandofPangenesis. Philadelphia, PA: American Philosophical Society, 1946.

11 Gregor Johann Mendel, "Versuche über Pflanzen-Hybriden". Verhandlungen des naturforschenden Vereins in Brünn 4 (1866), p. 3-47.

12 Ver, por exemplo, Carl Correns, "G. Mendels Regei über das Verhalten der Nachkommenschaft Der Rassenbastarde". Berichte der deutschen botanischen Gesellschaft 18 (1900), p. 158-68.

13 Por exemplo, ver os relatos de G. von Niessl, publicados no Verhandlungen des naturforschenden Vereins in Brünn 41 (1902), p. 18-21; 44 (1905), p. 5-9.

114 B. E. Bishop, "Mendels Opposition to Evolution and to Darwin". Journal of Heredity 87 (1996), p. 205-13. Porém, é necessário que se diga que esse artigo "não representa nada além de uma inferência por parte de Bishop, já que Mendel só se referiu a Darwin quatro vezes em seus escritos, e essas referências não indicam nem apoio nem hostilidade às visões de Darwin.

15 Ronald A. Fisher, The Genetical Theory of Natural Selection. Oxford: Clarendon Press, 1930.

16 E diTrocchio, "Mendels Experiments: A Reinterpretation". Journal of the History of Biology 24 (1991), p. 485-519.

17 A melhor crítica em inglês é a de Daniel J. Fairbanks & Bryce Rytting, "Mendelian Controversies: A Botanical and Historical Review". American Journal of Botany 88 (2001), p. 737-52.

18 Mais especificamente se trata de uma cópia da segunda edição alemã, de 1863, baseada na terceira edição inglesa de 1861. Apenas duas passagens estão marcadas desse modo no livro.

19 Charles Darwin, On the Origin of Species by Natural Selection, 3a ed. Londres: John Murray, 1861, p. 296.

20 Vítezslav Orei, Gregor Mendel: The First Geneticist. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 193.

21 A DeviVs Chaplain, p. 67-9. 22 The Selfish Gene, p. 34 [trad. emport.: O gene egoísta].

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23 Oswald Avery, Colin MacLeod & Maclyn McCarty, "Studies on the Chemical Nature of the Substance Inducing Transformation of Pneumococcal Types: Induction of Transformation by a Desoxyribonucleic Acid Fraction Isolated from PneumococcusType III". Journal of Experimental Medicine (1944), p. 137-58.

24 Francis H. C. Crick & James D. Watson, "Molecular Structure of Nucleic Acids: A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid". Nature 171 (1953), p. 737-8.

25 Para detalhes adicionais, ver obras como Anthony J. F. Griffiths, An Introduction to Genetic Analysis, 7a ed. Nova York: W H. Freeman, 2000; idem, Modern GeneticAnalysis: Intevratinç Genes and Genomes, 2a ed. Nova York: W H. Freeman,

2002.

26 Richard D. Alexander, Darwinism and Human Affairs. Londres: Pitman, 1980, p. 38.

27 The Selfish Gene, p.

34. 28 The Selfish Gene, p.

35. 29 The Selfish Gene, p.

34. 30 Zhiyan Zhou & Shaolin Zheng, "The Missing Link in Ginkgo Evolution". Nature 423 (2003), p. 821-2.

31 Jacques Monod, Chance and Necessity: An Essay on the Natural Philosophy of Modem Biology. Nova York: Alfred A. Knopf, 1971, p. 114.

32 Monod, Chance and Necessity, p. 118. 33 TheBl indWatchmaker, p. 49 [ t rad. emport . : O re lojoe irocego]. 34 A Devils Chaplain, p. 81. A propósito, isso não implica que toda mudança evolutiva seja adaptativa.

K The Self i sh Gene, $.21. 36 Richard Dawkins, "Replicators and Vehicles". In Current Problems in Sociobiology, editado por King's College Sociobiology Group, p. 45-64. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. Outros biólogos evolutivos usam terminologia diferente: por exemplo, David Hull prefere falar de "interatores" e "replicadores". Ver David L. Hull, Science as a Process: An Evolutíonary Account of the Social and ConceptualDevelopment of Science. Chicago: University of Chicago Pre ss, 1990 .

37 The Ext ended Pheno type , p . 239 . 38 Seymour Benzer, "The Elementary Units of Heredity". In W. D. McElroy & B. Glass (eds.). The Chemical Basis of Heredity. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1957, p. 70-93.

39 The Self ish Gene, p. 28. 40 George C. Williams, "A Package of Information". In John Brockman (ed.). The Third Culture. Nova York: Simon & Schuster, 1995, p. 38-50.

41 George C. Williams, Adaptation and Natural Sekction: A Critique of Some Current Evolutíonary Thought. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1966, p. 25.

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Observe-se neste ponto que a proposta de Dawkins é muito mais competente para explicar a modificação das características de espécies existentes do que para elucidar a geração de novas espécies. Ver Steven Rose, "The Rise of Neurogenetic 1 )eterminism". In John Cornwell (ed.). Consciousness andHuman Identity. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 86-100.

1' Richard Dawkins, "Replicator Selection and the Extended Phenotype". Zeitschrift fiir Tierpsychologie 47 (1978), p. 61-76.

11 The Extended Phenotype, p. 199-200. "

The BlindWatchmaker, p. 259. "' Por exemplo, ver L. N. Benachenhou, P. Forterre & B. Labedan, "Evolution of

Glutamate Dehydrogenase Genes: Evidence forTwo Paralogous Protein Families and Unusual Branching Patterns of the Archaebacteria in the Universal Tree of Life". Journal of Molecular Evolution 36 (1993), p. 335-46; Elizabeth Pennisi, "Is it Time to Uproot die Tree of Life?". Science as Culture 284 (1999), p. 1305-7.

17 Por exemplo, ver K. Henze, C. Schnarrenberger & W. Martin, "Endosymbiotic Gene Transfer: A Special Case of Horizontal Gene Transfer Germane to Endosymbiosis, the Origins of Organelles and the Origins of Eukaryotes". In M. Syvanen & C. Kado (eds.). Horizontal Gene Transfer. Londres: Academic Press, 2001, p. 343-52.

48 Mary Midgley, "Gene-Juggling". Philosophy 54 (1979), p. 439-58. !" Uma censura regularmente feita pelos críticos de Dawkins dentro da comunidade

da biologia evolutiva: ver, por exemplo, Steven Rose, "The Rise of Neurogenetic Determinism". In John Cornwell (ed.). Consciousness and Human Identity. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 86-100.

50 Para a resposta de Dawkins, ver Richard Dawkins, "In Defence of Selfish Genes". Philosophy 56 (1981), p. 556-73.

51 Richard Dawkins, "Selective Pecking in the Domestic Chick". Tese de doutorado, Oxford University, 1966, p. 183-5.

sl The Selfish Gene, p. 196. 53 Para uma pesquisa sobre esse ponto, ver o ensaio "Darwin Triumphant: Darwinism as Universal Truth", in A Devils Chaplain, p. 78-90.

54 Para a diferença entre as duas expressões, ver Karl-Otto Apel, "The Erklaren- Verstehen Controversy in the Philosophy of the Natural and Human Sciences". In G. Floistad (ed.). Contemporary Philosophy: A New Survey.The Hague: Nijhof, 1.982, p. 19-49.

55 Para um exemplo iluminador, ver Luke Davidson, "Fragilities of Scientism: Richard Dawkins and the Paranoid Idealization of Science". Science as Culture 9 (2000), p. 167-99. Para uma resposta pós-moderna mais geral à crítica científica das explicações culturais da ciência, ver Brian Martin, "Social Construction of an 'Attack on Science' ". Social Studies of Science 26 (1996), p. 161-73.

56 River out of Éden, p. 96-9 [trad. em port.: O rio que saía do Éden}.

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57 Richard Dawkins, "Alternative Thought for the Day". BBC Radio 4, 14 de agosto de 2003.

58 Charles Darwin, The Descent of Man, 2a ed. Londres: John Murray, 1882, p. 6191 [trad. em port.: A origem do homem: e a seleção sexual. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2004].

59 Para comentários, ver Maurice Mandelbaum, History, Man, and Reason: A Study in Nineteenth-Century Thought. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1971, p. 77-88; Dov Ospovat, The Development ofDarwins Theory: Natural History, Natural Theology, and Natural Selection, 1838-1859- Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 229-35.

m A DevWs Chaplain, p. 20-5. 61 Ver aqui Paul L. Farber, The Temptations ofEvolutionary Ethics. Berkeley, CA: University of Califórnia Press, 1994, p. 136. Farber comenta que a ética de Huxley "era uma projeção dos seus valores sobre a história do homem", de forma que seu "naturalismo adotou a visão que pretendia descobrir".

62 Richard Weikart, "A Recently Discovered Darwin Letter on Social Darwinism". Isis 86 (1995), p. 609-11.

63 A DevWs Chaplain, p. 10-11. 64 The Selfish Gene, p. 200-1. A primeira edição (1976) termina nesse ponto; a segunda edição (1989) acrescenta mais dois capítulos.

65 Para os comentários de Dawkins, ver Unweaving the Rainbow, p. 286-90 [trad. em port.: Desvendando o arco-íris]; A DevWs Chaplain, p. 74-7.

66 Para algumas reflexões não divergentes de Dawkins, ver Geoffrey Miller, The MatingMind: How Sexual Choice Shaped the Evolution of Human Nature. Londres: Vintage, 2001.

67 The Selfish Gene,?. 109-22.

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O relojoeiro cego

A evolução e a eliminação de Deus?

Darwin marca a divisão dos caminhos. Ele é o colosso que separa dois modos radicalmente diferentes de pensar. Robert Green In-gersoll (1833-99), o jurista que se tornou um dos escritores ateus mais proeminentes dos EUA no século XIX, não hesitou ao predizer o triunfo de Darwin sobre todas as formas de fé religiosa. Escrevendo em 1884, Ingersoll declarou:

Este século será chamado o século de Darwin. [...] A doutri-na da evolução, a doutrina da sobrevivência do mais forre, a doutrina da origem das espécies, removeu de cada mente pensante o último vestígio de cristianismo ortodoxo.

Como se viu, o cristianismo conseguiu sobreviver às fatais profe-cias de Ingersoll. E, quanto ao restante, o darwinismo seria, como Ingersoll e Dawkins insistem, necessariamente ateísta?

Antes de Darwin era possível, segundo Dawkins, ver o mundo como algo planejado por Deus, depois de Darwin só podemos falar da "ilusão de um plano". Um mundo darwinista não tem nenhum propósito e estaremos nos iludindo se pensarmos diferente. Se o universo não pode ser descrito como "bom", ao menos não pode ser tampouco descrito como "mau".

Em um universo de forças físicas cegas e replicação genética, algumas pessoas contrairão moléstias, outras serão mais afor-

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tunadas, e você não encontrará nenhuma explicação lógica para isso, nem qualquer justiça. O universo que observamos teria precisamente as propriedades que deveríamos esperar caso não houvesse, de forma alguma, nenhum plano, nenhum propósi-to, nem o mal, nem o bem, nada mais do que uma impiedosa indiferença cega.1

Mas alguns insistem em que parece de fato haver um "propósi-to" para as coisas e citam o aparente plano dessas coisas em seu apoio. Certamente, argumentam tais críticos, a intrincada estrutu-ra do olho humano assinala algo que não pode ser explicado por forças naturais — isso não exigiria de nós a proposição de um cria-dor divino como possibilidade explicativa? Caso contrário, como poderíamos esclarecer as vastas e complexas estruturas que observa-mos na natureza?2

A resposta de Dawkins foi exposta principalmente em dois trabalhos: O relojoeiro cego e A escalada do monte improvável. O argumento fundamental, comum a ambos, é que as coisas com-plexas evoluem a partir de origens simples, através de longos perío-dos de tempo.

As coisas vivas são tão incríveis e tão elegantemente "planeja-das" que não poderiam existir por acaso. Como, então, vie-ram a existir? A resposta, aquela oferecida por Darwin, é: através de transformações graduais, feitas passo a passo a partir de origens simples, de entidades primordiais suficientemente simples para terem entrado na existência por acaso. Cada mudança bem sucedida no gradual processo evolutivo é bastante simples em relação à sua antecessora, passível, por-tanto, de surgir por acidente. Mas toda a sucessão de passos cumulativos constitui algo mais do que um processo casual.3

O que poderia parecer um desenvolvimento altamente imprová-vel precisa ser visto contra o pano de fundo de extensos períodos de tempo enfrentados pelo processo evolutivo. Dawkins explora esse ponto usando a imagem de um metafórico "monte improvável".

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Visto de certo ângulo, seus "altos e verticais penhascos" parecem impossíveis de escalar. No entanto, visto de outro ângulo, a mon-tanha mostra que possui "prados verdejantes, suavemente inclina-dos, nivelados de forma suave e cômoda até os altiplanos distantes".4

A "ilusão de um plano", argumenta Dawkins, surge porque in-tuitivamente consideramos as estruturas como muito complexas para terem surgido por acaso. Um excelente exemplo é fornecido pelo olho humano, citado por alguns defensores do plano divino e da criação especial e direta do mundo como uma prova infalível da exis-tência de Deus. Em um dos capítulos mais detalhados e argumenta-tivos de A escalada do monte improvável, Dawkins mostra como, considerando-se um tempo bastante longo, até mesmo um órgão complexo poderia ter evoluído a partir de algo muito mais simples.5

Trata-se do darwinismo padrão. O que é novo aqui é a lucidez da apresentação, a ilustração detalhada e a defesa das idéias por estu-dos de casos criteriosamente selecionados e analogias buriladas com esmero. Conforme Dawkins concebe o darwinismo como visão de mundo, em vez de uma teoria biológica, não hesita de forma algu-ma em levar adiante seus argumentos, para além-dos limites pura-mente biológicos. A palavra "Deus" está ausente do índice de O relojoeiro cego precisamente porque ele próprio está ausente do mundo darwinista em que Dawkins habita e o qual glorifica.6 O processo evolucionário não deixa nenhum espaço conceituai para Deus. Tudo aquilo que a geração anterior explicava recorrendo a um criador divino podia agora ser acomodado dentro do sistema darwinista. Não haveria nenhuma necessidade para se acreditar em Deus depois de Darwin.

Mas Dawkins não vai ficar só nisso. Alguns poderiam concluir que o darwinismo encoraja o agnosticismo. Longe disso, para Daw-kins, Darwin nos impele ao ateísmo. A evolução não apenas solapa o poder explicativo de Deus, ela elimina Deus completamente. Em um importante texto de 1996, Dawkins argumenta que só há três modos possíveis de ver o mundo no momento: darwinismo, lamarckismo ou Deus.7 Como os dois últimos não explicam o mundo, a única opção, portanto, é o darwinismo.

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Sou um darwinista porque acredito que as únicas alternativas são o lamarckismo ou Deus, sendo que nenhuma delas funci-ona como princípio explicativo. A vida no universo ou é dar-winista ou outra coisa qualquer ainda não pensada.

Ora, a retórica de sua argumentação implica em que o darwinismo, o lamarckismo e a crença em Deus sejam três concepções mutua-mente excludentes, de forma que o compromisso com uma por necessidade obrigue a rejeição das outras. No entanto, sabe-se muito bem que diversos darwinistas acreditam que haja uma convergên-cia entre o darwinismo e o teísmo. A extensão dessa convergência está certamente aberta à discussão e longe de ser um assunto re-solvido. Entretanto a conclusão de Dawkins depende da aceitação de uma dicotomia absoluta — darwinismo ou Deus —- apesar de que essas teorias não requeiram tais modos absolutos de pensamen-to (embora elas certamente o permitam).

Dawkins sem dúvida demonstrou o que uma descrição pura-mente natural pode oferecer ao que hoje se conhece da história e do presente estado dos organismos vivos. Mas por que isso leva à con-clusão que não há nenhum Deus? Um grande número de suposições não mencionadas nem discutidas está por trás de seu argumento. Neste capítulo, trataremos de uma série de objeções que poderiam ser feitas à conclusão de Dawkins, assim resumidas:

1. No nível mais geral, o método científico é incapaz de decidir sobre a hipótese de Deus, positiva ou negativamente.

2. Os argumentos de Dawkins levam à conclusão de que Deus não precisa ser invocado como agente explicativo no processo evolu tivo. O que é consistente com várias concepções ateístas, agnós ticas e cristãs do mundo, mas sem exigir nenhuma delas.

3. O conceito de Deus como "relojoeiro", o qual Dawkins desper diça muito tempo procurando demolir, ganhou importância no século XVIII, não sendo típico da tradição cristã. Foi desenvolvi do por Robert Boyle (1627-91), que comparou o universo ao Grande Relógio de Estrasburgo. Inicialmente aplicada aos aspec-

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tos físicos do mundo, a analogia foi transferida à esfera biológica no no final do século XVIII. O que Dawkins demonstra é a vulnerabilidade da aplicação à doutrina da criação de uma abor-dagem historicamente contingente, associada às circunstâncias históricas específicas da Inglaterra do século XVIII, que já havia sido rejeitada como inadequada, talvez até não ortodoxa, por muitos dos principais teólogos ingleses da época.

Se tais considerações possuem alguma força cumulativa, elas conduzem a uma conclusão importante: o ateísmo de Dawkins é inadequadamente baseado na evidência biológica. Então somos obrigados a buscar seus fundamentos em outro lugar. A seguir con-sideraremos cada um desses pontos individualmente.

A ciência natural não conduz nem ao ateísmo nem ao cristianismo

O método científico é incapaz de expedir uma sentença decisi-va sobre a questão de Deus. Aqueles que acreditam que a ciência pode provar ou refutar a existência de Deus pressionam o método para além de seus limites legítimos e correm o risco de ultrajá-lo ou desacreditá-lo. Alguns notáveis biólogos (como Francis S. Collins, diretor do Projeto Genoma Humano) defendem que as ciências naturais criam uma positiva presunção de fé.8 Outros (como o biólogo evolucionista Stephen Jay Gould) dizem que elas têm im-plicações negativas para a convicção teísta. Mas, de qualquer modo, as ciências nada provam. Se a questão sobre Deus puder ser solu-cionada, deverá ser em outras bases.

Essa não é uma idéia nova. Na verdade, o reconhecimento dos limites religiosos do método científico era bem compreendido já ao tempo do próprio Darwin. Ninguém menos do que o "Bul-dogue de Darwin", T. H. Huxley, escreveu em 1880:9

Uns vinte anos atrás, ou por aí, inventei a palavra "agnóstico" para designar as pessoas que, como eu, confessavam ser deses-

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peradoramente ignorantes em relação a uma variedade de assun-tos, entre eles os que os metafísicos e teólogos, tanto ortodoxos quanto heterodoxos, dogmatizam com extrema confiança.

Enfadado com teístas e ateus que faziam declarações dogmáticas ao extremo, sem apoio adequado na evidência empírica, Huxley de-clarou que a questão sobre Deus não poderia ser resolvida com base no método científico.

O agnosticismo é da essência da ciência, seja antiga seja moder-na. Ele simplesmente significa que um homem não dirá que sabe algo ou nele acredita se não possuir uma base científica para o declarar saber ou acreditar. [...] Por conseguinte, o ag-nosticismo não só afasta a maior parte da teologia popular, mas também a maior parte da antiteologia.

Lâmina 6. Thomas Henry Huxley (1825-95). Foto AKG-Images.

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Os argumentos de Huxley são tão válidos hoje como eram no final do século XIX, apesar dos protestos de ambos os lados do grande debate a respeito de Deus.

Em uma crítica de 1992 a um trabalho antievolucionista que postulava que o darwinismo era necessariamente ateísta,10 Stephen Jay Gould invocou a memória da sra. Mclnerney, sua professora da terceira série, que tinha o hábito de bater nos nós dos dedos dos jovens, quando seus donos dissessem ou fizessem coisas particular-mente estúpidas:

Preciso dizer isto para todos meus colegas e pela milionésima vez (desde os bate-papos na faculdade até os mais doutos tratados): a ciência simplesmente não pode (através de seus legítimos métodos) decidir a respeito da questão da possível ingerência de Deus sobre a natureza. Nós nem podemos afir-mar nem negar isso: como cientistas, simplesmente não po-demos comentar sobre a matéria. Se alguns de nosso grupo fizerem declarações inapropriadas defendendo que o darwi-nismo contesta Deus, então vou procurar a sra. Mclnerney para que bata nos nós dos dedos desses sujeitos (desde que ela também possa tratar de igual modo os membros de nosso grupo que afirmarem que o darwinismo seria o método de ação de Deus).

Gould insiste com razão em que a ciência só pode trabalhar com explicações naturalistas, não sendo possível a ela nem afirmar nem negar a existência de Deus. O ponto principal para Gould é que o darwinismo na prática não tem nenhuma relevância em relação à existência ou à natureza de Deus. Se os darwinistas decidirem dog-matizar sobre assuntos de religião, estarão se desviando do caminho reto e justo do método científico e vão acabar nos ermos filosóficos. Ou não é possível de forma alguma se chegar a uma conclusão, ou esta será alcançada em outras bases.

Ora, Dawkins sabe perfeitamente bem que "a ciência não pode de nenhuma maneira contestar a existência de um ser supremo".11 O que, segundo ele, não significa que se deva aceitar então que "a

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crença (ou descrença) em um ser supremo seja um assunto de pura inclinação individual". Mas quem falou algo sobre "pura inclinação individual"? De onde veio tal idéia? Dawkins parece insinuar que, onde o método científico não pode ser adequadamente aplicado, só encontramos anarquia epistemológica. Sem o método científi-co, somos reduzidos à pura subjetividade da opinião individual.

Esse comentário equívoco a respeito de um debate sério e legí-timo sobre os limites do método científico permite a Dawkins se esquivar do ponto em questão. Se o método científico não pode provar nem contestar a existência ou a natureza de Deus, então, ou desistimos da pergunta por ser irrespondível (algo que Dawkins certamente não quer fazer), ou procuramos respondê-la em outras bases.

Mas o ponto em debate não pode ser evitado assim desse modo. Se uma resposta deve ser dada, não se trata, portanto, de uma questão de "pura inclinação individual", mas de uma discussão de-batida e apreciada com base em algum critério de juízo aplicado ao debate. Essa não é uma questão arbitrária ou caprichosa, mas um assunto de integridade intelectual em que todos os lados do debate — quer o ateu, quer o teísta, quer o cristão — procuram oferecer as "melhores explicações" para as evidências disponíveis.12 Eis a filosofia básica da ciência, que não vai sumir só porque Dawkins a está ignorando.

O assunto se torna importante por causa do problema da "in-determinação da teoria pela evidência". Às vezes é impossível julgar entre teorias concorrentes porque elas parecem oferecer explicações igualmente boas sobre o observado. Duas teorias bastante diferentes podem se mostrar "empiricamente equivalentes", forçando assim a comunidade científica a suspender o julgamento até que o assunto seja resolvido através das evidências, ou se chegue a uma decisão por outras bases. Um excelente exemplo pode ser fornecido por duas escolas de mecânica quântica rivais: a "escola de Copenhague", baseada na abordagem de Niels Bohr e Werner Heisenberg, e a de David Bohm.13 As duas são empiricamente equivalentes e sem dúvida da mesma forma elegantes e simples.

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Na prática, a abordagem de Copenhague alcançou o predomínio — mas, em grande parte, por causa de contingências históricas, não por superioridade teórica. As duas teorias estão associadas a visões de mundo bem diferentes: a concepção de Copenhague favorece um universo essencialmente indeterminista, enquanto que a bohmiana se aproxima mais de um modelo determinista. Muita coisa depende da escolha teórica a ser feita, embora a escolha não possa ser feita com convicção. Conforme mostra James Cushing, isso não impe-diu que as pessoas fizessem escolhas. No entanto, a legitimidade científica de tais decisões está aberta à discussão. Ou somos inca-pazes de chegar a uma decisão, ou devemos atingi-la em outras bases.

Apesar de o método científico não poder resolver o assunto, isso não significa que todas as respostas devam ser consideradas igual-mente válidas, ou que se deva abandonar a racionalidade ao se tratar delas. Significa apenas que a discussão muda de nível, usando critéri-os diferentes de evidências e argumentação. Por acaso, é exatamente o que Dawkins faz: desenvolve argumentos a favor do ateísmo que são, no final das contas, de caráter não científico. Vamos considerar quão bem sucedidos eles são em seu devido tempo. Mas o ponto chave no momento é simplesmente este: o método científico sozinho não pode enfim determinar a questão sobre Deus, embora ofereça algumas importantes contribuições ao debate.

Sigamos em frente, voltando a atenção para outro aspecto do debate a respeito das implicações teológicas do darwinismo.

Deus como hipótese explicativa

Dawkins discute que Deus é desnecessário como hipótese ex-plicativa. Deus não tem nenhuma "função útil" visível na expli-cação científica. Em defesa dessa idéia, oferece vários argumentos, entre os quais o mais interessante é o seu "programa biomórfico".14

Trata-se de uma analogia que pretende nos ajudar a apreciar que a aparência de planejamento pode surgir a partir de desenvolvimen-

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tos fortuitos. Imagine-se, sugere ele, um macaco (ou algo equiva-lente) com uma máquina de escrever equipada com vinte e seis letras maiúsculas e uma tecla de espaço. Dawkins seleciona uma frase com vinte e oito caracteres retirada de Hamlet de. Shakespeare, conforme abaixo:

PARECE MESMO COM UMA DONINHA

Essa é a "expressão alvo". Ora, um computador gera ao acaso uma expressão de vinte e oito caracteres — o equivalente ao pro-verbial macaco que tenta digitar as obras de Shakespeare. É desnecessário dizer que ele não mantém nenhuma relação com a expressão alvo.

Mas então algo acontece. O computador é ensinado a exami-nar a expressão e selecionar a "que mais se assemelhe, mesmo ligeira-mente, à expressão alvo".15 O processo continua agora. Depois de apenas umas trinta repetições, alguma coisa reconhecível como a expressão alvo aparece:

PARECE MESMO COM UMATONINHA

Somente com uma dúzia ou pouco mais de repetições, e a expressão alvo é alcançada. Dawkins conclui que o processo de evolução é capaz de ocasionar uma aparência de ordem bem mais depressa e de forma efetiva do que se poderia esperar.

Porém, a analogia é deficiente. Na verdade, ela seria um exce-lente exemplo daquilo que Friedrich Waismann definiu como "exor-cismo de problemas filosóficos" através de analogias cuidadosamente controladas e selecionadas.16 O problema mais óbvio é que a analogia pressupõe uma teleologia que Dawkins acredita ausente na natureza. Não havendo portanto nenhuma "expressão alvo" que a evolução devesse fornecer. Dawkins admite esse ponto no mesmo texto, mas não o considera como crítico para sua analogia.17

No entanto, há outro problema para o qual Dawkins não dedi-ca a devida atenção. A idéia de plano ou seleção intencional foi elimi-

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nada somente no nível verbal. Embora a analogia nos permita evitar o vocabulário relativo a "plano", a noção de plano está implícita no programa de computador, que foi construído para controlar o de-senvolvimento de um modo específico. Um antropomorfismo não reconhecido está por trás da analogia e lhe dá a plausibilidade que o leitor visado pelo texto espera. Remova-se o (planejado) programa de computador e a analogia perde muito de sua plausibilidade. O programa deveria ser visto apenas e simplesmente como uma indi-cação de como pequenas mutações fortuitas podem ser acumula-das e produzir mudanças significativas, desde que sejam selecionadas de modo não fortuito.18

Deixando de lado a plausibilidade da analogia, devemos nos concentrar no ponto em que Dawkins quer chegar. Uma "teoria de mutação fortuita mais seleção cumulativa não fortuita" poderia explicar a aparência de planejamento no mundo. Não haveria qualquer necessidade de se postular um Deus como mecanismo explicativo. Supondo que aceitemos esse ponto: quais seriam as suas implicações? Dawkins deduz que, desde que Deus possa ser ignorado como irrelevante, a única atitude significativa é o ateís-mo. Na verdade, ele não faz os movimentos lógicos exigidos para se chegar a tal conclusão, aparentemente assumindo que estes são tão patentes que não necessitam de demonstração. Mas não é bem assim. Para esclarecer esse ponto, devemos examinar a visão de mundo proposta pelo iminente teólogo cristão Tomás de Aquino no século XIII.

Aquino construiu um sistema para compreender a relação de Deus com o inundo, enlaçando os temas fundamentais dos credos cristãos.19 As idéias básicas desenvolvidas por Aquino podem ser expostas de um modo muito simples, como se segue. Deus é a causa de todas as coisas. Entretanto a causalidade divina opera de vários modos. Deus, apesar de ser capaz de fazer certas coisas direta-mente, delega eficácia causai à ordem criada. Para Aquino, a noção de causalidade secundária deve ser considerada como uma extensão da causalidade primária do próprio Deus, e não uma alternativa a ela. Eventos dentro da ordem criada podem existir devido a relações

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causais complexas, sem negar de qualquer forma a sua dependência última de Deus como causa final.

O ponto crítico a se apreciar é que a ordem criada apresenta relações causais que podem assim ser investigadas pelas ciências naturais. As relações causais podem ser investigadas e correlaciona-das — por exemplo, na forma de "leis da natureza" — sem de forma alguma implicar, e menos ainda exigir, uma visão de mundo ateísta. Apresentando de um modo tão simples quanto possível: Deus cria um mundo com ordenação e processos próprios.

A abordagem clássica tem suas forças e fraquezas. A mais óbvia de suas forças é que estabeleceu os fundamentos conceituais para o desenvolvimento das ciências naturais no final da Idade Média, encorajando a investigação de processos e eventos naturais. A propósito, é importante notar que essa visão cristã do mundo per-durou por muito tempo antes de Darwin. Como resultado, a abor-dagem de Aquino não pode de forma alguma ser descrita como uma tentativa post hoc de se defender o cristianismo contra a visível ameaça da nova ciência da biologia evolucionista.

Uma potencial fraqueza da abordagem tomista é que a auto-regulação da ordem natural pode conduzir à marginalização conceituai de Deus em qualquer explicação do mundo. Uma explicação das órbitas dos planetas, por exemplo, poderia ser oferecida sem fazer nenhuma referência a Deus. Conforme Pierre-Simon Laplace (1749-1827) demonstrou em seu volumoso Tratado de Mecânica Celeste, um mecanismo auto-sustentado efetivamente eliminou a necessidade de Deus ou como hipótese explicativa ou como susten-tador ativo na cosmologia. Embora para muitos, esse seja um risco aceitável.

É exatamente essa marginalização conceituai do divino que pode ser vista na explicação de Darwin sobre a seleção natural. O que Darwin ofereceu a seus leitores de A origem das espécies foi uma explicação das origens e da atual distribuição geográfica das espécies biológicas, a qual opera por completo em termos de causalidade secundária. Dawkins interpreta isso como ao menos eliminando, e

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mais provavelmente desacreditando, a existência de Deus. Em seus próprios escritos, oferece uma explicação darwinista mais avançada da diversidade biológica, com ênfase particular incidindo na base molecular do processo evolutivo. Mais uma vez, a conclusão é que Deus é supérfluo: os dados observacionais podem ser explicados sem precisar invocar a agência divina.

Os cientistas naturais cristãos consideram que a hipótese de Deus oferece novas compreensões e adiciona profundidade ao compromisso que têm com a natureza e sua apreciação. Outros preferem explicar o mundo etsi Deus non daretur ("como se Deus não fosse dado"), para usar uma expressão popularizada pelo jurista holandês Hugo Grotius (1583-1645). De qualquer forma, a suposta superfluidade explicativa de Deus claramente não tem nenhuma relevância para a pergunta sobre a sua existência. E consistente com explicações do mundo de cristãos, agnósticos e ateus. Se houver algum argumento que possa ser feito contra a existência de Deus, suas fontes devem ser procuradas em outro lugar.

O caso de William Paley

O relojoeiro cego representa uma importante e altamente bem sucedida crítica ao conceito, cunhado no século XVIII, de Deus como um "relojoeiro". Mas quais são as suas implicações? A con-cepção que Dawkins destrói só se tornou importante no século XVIII e não é típica da tradição cristã como um todo. Trata-se de uma precipitada resposta ao desafio intelectual proposto pela "filoso-fia mecânica", como é normalmente conhecida.20 A princípio apli-cada ao mundo físico, a analogia do "relojoeiro" foi transposta à esfera biológica, no final do século XVIII, com resultados que al-guns acharam confortáveis e outros bastante insatisfatórios.

Dawkins de fato demonstra que uma compreensão muito es-pecífica da doutrina da criação, surgida em resposta às circunstân-cias históricas do século XVIII na Inglaterra, foi completamente prejudicada pela explicação darwinista da evolução. Essa teoria, as-sociada a William Paley (1743-1805), arquidiácono de Carlisle, já

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fora rejeitada como inadequada por muitos teólogos importantes da época — como John Henry Newman (1801-90) — antes de Darwin a arruinar ainda mais. Devido à importância desse ponto, examinaremos a teoria de Paley com algum detalhe.

O contexto para a ênfase de William Paley sobre o aparente "engenho" do mundo biológico é particularmente um assunto in-glês, surgido em virtude da complexa interação entre política e re-ligião na Inglaterra do começo do século XVIII. Tal desenvolvimento é historicamente tão fascinante quanto também importante para a tese do "relojoeiro cego" de Dawkins.21

Ao final do século XVII, uma série de eventos no estado britâni-co e em toda sua sociedade colocou a Igreja da Inglaterra na defen-siva. Um deles é de relevância particular para nossos propósitos: o aparecimento de "deísmo", uma concepção sobre Deus que o re-conhece como criador divino, embora rejeite a continuidade do envolvimento divino com o mundo. O surgimento do deísmo causou alguns problemas para a igreja oficial, especialmente em relação ao modo como a Bíblia e a tradição doutrinária da igreja deveriam ser interpretadas. Impressionados pela demonstração de Isaac Newton sobre a regularidade mecânica do mundo, muitos dentro da igreja começaram a estudar a idéia de que um recurso ao mundo natural poderia ser a base para uma nova defesa das idéias cristãs.22

Ora, um interesse em relação ao mundo natural sempre fez parte da tradição intelectual cristã. Porém, no passado, isso levava geralmente a uma forma de interpretar o mundo de uma perspec-tiva cristã, apelando à maravilha e à beleza do mundo natural como um modo de apreciar a beleza de Deus.23 E bem conhecido que um dos impulsos mais fundamentais para o desenvolvimento das ciências naturais entre os séculos XVI e XVII era a convicção de que o estudo da natureza de perto, permitia uma avaliação mais profun-da da sabedoria de Deus.24 Conforme o grande naturalista John Ray (1628-1705), autor da célebre obra The Wisdom of God Manifested in the Works of Creation [A sabedoria de Deus manifestada nas obras da criação] (1691), propunha em 1660:

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Não há para um homem livre nenhuma ocupação mais valiosa e encantadora do que contemplar os belos trabalhos da na-tureza e honrar a sabedoria e bondade infinitas de Deus.

No entanto, tudo isso mudou no início do século XVIII. Uma nova abordagem para o trabalho teológico foi desenvolvida, que se-ria variavelmente conhecida ou como "teologia natural" ou "teologia física" (da palavra grega physis, "natureza"). A existência e os atributos de Deus, argumentava-se, poderiam ser deduzidos da própria nature-za. A medida que o racionalismo adquiria uma crescente influência sobre a vida intelectual inglesa, a igreja oficial respondia substituindo sua ênfase das fontes tradicionais de autoridade (como a Bíblia) para o mundo natural. A existência e a sabedoria de Deus poderiam ser provadas para um mundo cada vez mais cético através de um apelo à organização da natureza.

Inicialmente, a "teologia natural" recorreu à ordenação do mundo físico — e, acima de tudo, à regularidade da "mecânica celeste" demonstrada por Isaac Newton. De repente, Newton pas-sou a ser visto como havendo traçado uma nova abordagem para a defesa do cristianismo e para a atividade teológica. A "teologia físi-ca" tornou-se a última moda nos inícios dos anos 1700. Entretan-to, aquilo que parecia ser uma promissora aliança entre ciência e religião pouco depois levou a uma crescente e potencialmente ir-reversível separação entre ambas.25 Uma abordagem, então defen-dida pelos principais cientistas da época, fora abraçada por bispos e arquidiáconos bem menos competentes, que em geral repetiam idéias de segunda mão, mal compreendidas, cujas implicações eram pro-pensas ao exagero. O sistema newtoniano se apresentava a muitos como um mecanismo auto-sustentado do mundo, que prescindia por completo do governo ou suporte divino para sua operação contínua.26 Longe da encorajadora crença em Deus, declarava-se que esta se tornara por completo desnecessária.

Ao final do século XVIII, ficara patente que o sistema de New-ton certamente conduzia ao ateísmo ou agnosticismo, em vez de levar à fé. Em 1750, tornava-se óbvio que a síntese de Newton

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entre as ciências físicas e a religião havia falhado. O golpe fatal veio quando Percy Bysshe Shelley fez a famosa advertência: "O newto-niano coerente é necessariamente um ateu".27

Mas, bem antes disso, outros se haviam voltado para o mundo da biologia. Se a física era um beco sem saída, seria possível construir argumentos a favor da existência de Deus recorrendo-se ao mundo vivo da natureza, em lugar das órbitas regulares dos planetas? Tal empreendimento acabou sendo o último recurso de um movimento intelectual que se encontrava em fim de carreira. Foi uma experiência em apologética cristã — disciplina que se interessa em responder às objeções levantadas contra a fé cristã — que dera errado e que, portanto, deveria ser abandonada. Mas Paley foi capaz de ver um modo de injetar uma nova vida a essa abordagem. Ela voltaria para lutar mais uma vez. Por acaso, a abordagem de Paley alcançou um sucesso popular maior do que poderia imaginar. No entanto, isso criou a falsa impressão de que a credibilidade intelectual do cris-tianismo dependia da abordagem que de alguma maneira Paley adotara. Que abordagem? Deus como o relojoeiro.

A obra de Paley, Natural Theology; or Evidences of the Existence and Attributes of the Deity, Collected jrom the Appearances of Na-ture [Teologia natural; ou evidências da existência e atributos da divindade, recolhidas de fenômenos da natureza] (1802), teve uma profunda influência sobre o pensamento religioso popular da Inglaterra, na primeira metade do século XIX, sendo famoso por haver sido lido por Charles Darwin. Paley impressionara-se profundamente com a descoberta de Newton da regularidade da natureza, especialmente em relação à área normalmente conhecida como "mecânica celeste". Estava claro que o universo inteiro poderia ser pensado como um mecanismo complexo, operando de acordo com princípios regulares e compreensíveis.

Para Paley, a analogia de Deus como um relojoeiro precisava ser transferida do domínio físico para o biológico. A natureza seria vista como um "engenho". Essa importante palavra sugere as idéias de plano e construção — as quais Paley assegurou serem evidentes no mundo biológico. Paley argumenta que só um louco poderia

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sugerir que uma complexa tecnologia mecânica existiria por força de um acaso despropositado. Mecanismo pressupõe engenho — ou seja, tanto um senso de propósito quanto uma habilidade para projetar e fabricar, O corpo humano, em particular, e o mundo, em geral, po-dem ser vistos como mecanismos projetados e construídos, perfeita-mente adaptados às suas necessidades e situações específicas.

Lâmina 7. William Paley (1743- 1805).© CORBIS

Os parágrafos de abertura da Natural Theology de Paley apre-sentam a analogia que tornou seu autor famoso e que é o objeto de muitas referências generosas, embora no final das contas críticas, em O relojoeiro cego de Dawkins:

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Vamos supor que, ao atravessar uma campina, eu tropece em uma pedra e me pergunte como a pedra foi parar ali. Possivel-mente responderia que, até onde soubesse, ela sempre es-tivera ali; não sendo muito fácil mostrar o absurdo dessa resposta. Mas suponhamos que eu tenha encontrado um relógio no chão e me questione sobre como o relógio tinha aparecido naquele lugar. Dificilmente deveria pensar na resposta que havia dado antes, que, até onde soubesse, o relógio sempre estivera ali. No entanto, por que essa resposta não serve para o relógio apesar de ter servido para a pedra? Por que não é admissível para o segundo caso como foi para o primeiro?28

Paley então oferece uma descrição detalhada do relógio, obser-vando em particular a sua caixa, sua mola cilíndrica encaracolada, as muitas rodas integradas e o visor de vidro. Havendo conduzido seus leitores por essa minuciosa análise, Paley se prepara para extrair uma conclusão extremamente importante para ele:

Esse mecanismo ao ser observado — o que exigiria com certe-za um exame instrumental e talvez algum conhecimento prévio do assunto para percebê-lo e entendê-lo — mas, sen-do uma vez, como dissemos, observado e compreendido, a conclusão a que se chega é inevitável: o relógio teve um fabri-cante — deve ter existido, em algum momento e em algum outro lugar, um artífice ou artífices que o formaram para o propósito ao qual achamos que ele de fato corresponde, e que compreendiam sua construção e projetaram seu uso.

A analogia, como a maioria do trabalho de Paley, foi empresta-da, e a erudição é decididamente de segunda categoria. Paley, em sua busca por uma nova teologia natural, plagiou sem dó os escri-tos de John Ray. Apesar de ser um pensador não original e antiqua-do, Paley era sem dúvida um excelente comunicador. O que ele com tanta competência comunicou era, no entanto, um modo antiquado de se pensar. A natureza, segundo Paley, apresentava si-nais de "engenho", ou seja, plano e fabricação intencionais. A na-

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tureza dá testemunho de uma série de estruturas biológicas que foram "engenhadas", isto é, construídas com um claro propósito em mente. "Cada indicação de engenho, cada manifestação de plane-jamento que existe no relógio, existe nas obras da natureza". Na verdade, diz Paley, a natureza mostra até um maior grau de planeja-mento que o relógio. O melhor de seu trabalho trata das estruturas imensamente complexas do olho humano e do coração, sendo que cada uma delas pode ser descrita em termos mecânicos. Qualquer um que usa um telescópio, observa o autor, sabe que o instrumen-to foi projetado e construído. Quem, ele deseja saber, ao olhar para o olho humano, não percebe que também teve um projetista?

O próprio Dawkins é eloqüente e generoso em seu relato sobre o empreendimento de Paley, anotando com apreço suas "belas e reve-rentes descrições da dissecada maquinaria da vida".29 Dawkins, sem nunca menosprezar o prodígio dos "relógios mecânicos" que tanto fascinaram e impressionaram Paley, argumenta que essa justificati-va para Deus — feita, no entanto, com "apaixonada sinceridade" e "com base nos melhores conhecimentos biológicos de seu tempo" — é "gloriosa e totalmente errada". O "único relojoeiro na natureza são as forças cegas da física".

Esse é o Dawkins, mas e quanto a Darwin? Embora a pesquisa acadêmica sobre a evolução das idéias de Darwin tenha descoberto novas e potencialmente importantes conexões com abordagens al-ternativas da teologia natural nos anos 1830 e 1840,30 não há ne-nhuma dúvida sobre a prolongada influência de Paley sobre Darwin. Quando era estudante na Universidade de Cambridge, Charles Darwin leu Paley e ficou impressionado com seus argumentos. Naquele momento, Paley era largamente lido em Cambridge.31

A Natural Theology [de Paley] me deu tanto prazer quanto a leitura de Euclides. O cuidadoso estudo dessas obras, sem precisar aprender qualquer trecho mecanicamente, foi algo raro no curso acadêmico, o qual, como eu então sentia e como ainda acredito, teve menos utilidade para mim na educação da minha mente. Naquela época não me inquietei com as

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premissas de Paley e, aceitando-as de boa fé, fui seduzido e convencido por sua linha de argumentação.

No entanto, ele estava atento a alguns problemas no esquema de Paley, mesmo ainda sem o recurso da teoria evolutiva.

O argumento de Paley enfatizava a sabedoria de Deus na cri-ação. Mas, Darwin se perguntava, onde estaria a bondade de Deus? Como a brutalidade, a dor e o completo desperdício da natureza poderiam ser reconciliados com a idéia de um Deus benevolente? Em seu "Esboço de 1842", Darwin ponderava, dentro do esquema de Paley, sobre como se poderiam justificar coisas como "parasitas rastejantes" e outras criaturas que botam seus ovos nos intestinos ou na carne de outros animais. Como a bondade de Deus poderia se conciliar com os aspectos menos agradáveis da ordem criada?

Não pode haver nenhuma dúvida a respeito da influência de Paley sobre Darwin. Até mesmo em seus escritos posteriores, Dar-win se inclinava a usar "os padrões discursivos, as estruturas argu-mentativas e os conceitos básicos de Paley como se fossem seus".32 Entretanto Darwin não tinha nenhuma dúvida de que sua teoria da seleção natural havia descartado a teoria da "teologia física" ou "físico-teologia" de Paley. Imitando deliberadamente o vocabulário de Paley, Darwin defendeu com veemência que os fenômenos considerados com certa razão pela geração anterior de naturalistas como "engenhos" — ou seja, características projetadas de forma proposital — poderiam ser vistos agora como havendo evoluído naturalmente.

Darwin desenvolveu esse ponto por completo em um trabalho publicado em 1862, intitulado On the various contrivances by which British and foreign orchids are fertilised by insects [Sobre os vários engenhos pelos quais as orquídeas britânicas e estrangeiras são fer-tilizadas por insetos]. O uso deliberado da palavra "engenho" deve ser visto aqui como uma crítica direta e explícita a Paley. As orquídeas, explica Darwin, possuem muitos "belos engenhos", que alguns in-terpretam "como o resultado da intervenção direta do Criador". Outros, sugere ele, desejariam agora ver esses mesmos engenhos como "devidos a leis secundárias". Por diversas razões, O relojoeiro cego de Dawkins pode ser entendido como uma expansão do argu-mento desse escrito de 1862 de Darwin, reposto dentro de uma

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estrutura neodarwinista. A ciência pode ter mudado, mas as con-clusões religiosas são as mesmas: processos e leis naturais explicam o plano aparente.

Entretanto outros tinham suas desconfianças sobre Paley em bases teológicas e, logo, as expressaram. Antes da nova teoria de Darwin aparecer, um crescente corpo de opinião teológica informada defen-dia o abandono das idéias de Paley ou mudanças significativas nelas. Em 1852, John Henry Newman fora convidado a dar uma série de conferências em Dublin sobre "a idéia de uma universidade". O tema lhe permitiu explorar a relação entre o cristianismo e as ciên-cias, especialmente a "teologia física" de William Paley. Newman era severo sobre a abordagem de Paley, reprovando-a como "um falso evangelho". Longe de ser um avanço em relação às mais modestas abordagens adotadas pela igreja primitiva, ela representava uma degradação dessas idéias.

Lâmina 8. John HeniyNewman (1801-90). © Hulton-Deutsch Collection/CORBlS

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O núcleo da crítica de Newman pode ser resumido em uma oração: "Ela foi tirada de seu lugar, foi posta de modo muito pro-eminente na frente e, por isso, foi quase usada como um instru-mento contra o cristianismo".33 A "teologia física" de Paley era um embaraço e deveria ser abandonada antes que pudesse desacreditar o cristianismo.

A teologia física não pode, em razão da natureza do proble-ma, nos dizer uma palavra sobre o próprio cristianismo. Ela não pode ser cristã, em um verdadeiro sentido, nada. [...] Não, mais do que isso: não hesito em dizer que, conhecendo os homens como são, essa assim chamada ciência tende, se ocupar as mentes, a se colocar contra o cristianismo.34

Sete anos antes de Darwin contestar em bases científicas a aborda-gem de Paley, Newman — amplamente considerado o teólogo inglês mais importante do século XIX — havia repudiado Paley como uma tendência teológica antiquada.

E interessante notar que não havia nenhuma consciência por parte de Newman de uma nova crise de fé a se precipitar em razão da obra de Darwin. Seu argumento, que antecede A origem das espécies de Darwin, repousa somente em sua convicção de que a abordagem de Paley falha naquilo que pretendeu oferecer e confina a teologia cristã numa apologética, que só pode levar desastrosamente ao erro. Não era a primeira vez que a apologética cristã con-dúzia a um calamitoso erro, e uma imediata correção era, na visão de Newman, muito necessária.

Outros, porém, conceberam a idéia de que a teoria da evolução de Darwin permitiria que Paley fosse desenvolvido em direções mais úteis. Conforme James Moore mostrou em sua extensa e definitiva exposição sobre as respostas cristãs dadas a Darwin, muitos acredi-taram que as óbvias deficiências da explicação de Paley para a vida biológica — em especial a noção de "adaptação perfeita" — haviam sido corrigidas pela noção de seleção natural de Darwin.35 Mais importante ainda, uma série de escritores descartou o interesse de Paley pelas adaptações específicas (para usar um termo darwinista

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desconhecido para ele) e preferiu se concentrar no fato de que a evolução parecia ser governada por certas leis bastante definidas — uma clara aplicação para biologia da abordagem geral desenvolvida na Idade Média por Tomás de Aquino. Um excelente exemplo está em Essays on the Spirit of the Inductive Philosophy [Ensaios sobre o espírito da filosofia indutiva] (1855), de R. S. S. Baden-Powell, livro escrito antes da teoria de Darwin haver obrigado a reconsideração tio assunto por causa de sua nova abordagem sobre o mundo natu-ral.36

Paley deve ser visto em seu contexto histórico. Ele representa o florescimento tardio e final de um movimento surgido como re-sultado da grande revolução newtoniana ao término do século XVII, e que havia se perdido completamente em meados do século XVI-I I . Paley apenas adaptou velhas idéias, sem se aperceber que a já tênue credibilidade delas estava a ponto de expirar. A origem das espécies de Darwin e os escritos posteriores devem ser vistos como a refutação de uma idéia do século XVIII feita pelo século seguinte — uma idéia já rejeitada por escritores cristãos da época. Mas não podem ser considerados como uma refutação do próprio cristianismo — apenas de um passo errado dado pela igreja nacional inglesa.

O cristianismo não é uma entidade estática, mas sim, uma planta em crescimento.37 Embora fundamentada na Bíblia, a tradição teológica cristã sempre esteve atenta à necessidade de interpretar seu texto fundador da forma mais autêntica possível. O que conduziu a debates dentro da igreja sobre como melhor interpretar certas passagens. Nos primeiros quinhentos anos de cristianismo, surgi-ram vários princípios básicos. Um deles determina interpretar a Bíblia de um modo que permita uma interação criativa com a melhor ciência natural do momento.

O teólogo mais influente dessa era foi Agostinho de Hipona (354-430), de especial importância para o estudo da relação entre interpretação bíblica e as ciências. Agostinho enfatizou a importân-cia de se respeitar as conclusões das ciências no tocante à exegese bíblica. Como Agostinho observou em seu comentário ao Gêne-sis, certas passagens estavam genuinamente abertas a diversas inter-

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pretações. Portanto, seria importante permitir que a pesquisa cientí-fica adicional ajude na determinação do modo mais apropriado de interpretação para uma determinada passagem:38

Com relação a assuntos por demais obscuros e muito além de nossa visão, encontramos passagens nas Sagradas Escrituras que podem ser interpretadas de modos muito diferentes sem prejuízo para a fé que recebemos. Em tais casos, não devemos nos precipitar e tomar tão firmemente um dos lados, para que, se um progresso posterior na busca da verdade correta-mente derrubar nossa escolha, não caiamos junto com ela. Não devemos lutar pela nossa própria interpretação, mas pelo ensino das Sagradas Escrituras. Não devemos desejar confor-mar o significado das Sagradas Escrituras a nossa interpre-tação, mas nossa interpretação ao significado delas.

Agostinho advertiu em seguida que a interpretação bíblica deveria levar em conta aquilo que pudesse ser razoavelmente considerado como fato estabelecido. Essa abordagem da interpretação bíblica procurava assegurar que a teologia cristã nunca fosse apanhada em uma visão de mundo pré-científica. Sendo sempre esse o tema domi-nante na interpretação bíblica ocidental. O que, no entanto, não ' impediu a existência de debates sobre qual a melhor abordagem. E tais debates com freqüência envolveram tentativa e erro, determi-nando o melhor modo de interpretar uma passagem bíblica após um extenso período de discussão e pesquisa.

Uma dessas abordagens se deve a William Paley. Não importa que a história a considere um dos momentos menos felizes do aven-tureirismo teológico. Não podemos adotar uma "visão whig da história", que louva as experiências bem sucedidas e condena as que falharam. Para usar a famosa expressão de Arnold Toynbee, todo o empreendimento da teologia cristã, como a própria civilização humana, é "um movimento e não uma condição, uma viagem e não um porto". O mesmo é verdade para o método científico. Pesquisar é essencial.

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A avaliação da abordagem da apologética cristã proposta por Paley começou a ser feita em 1800 e essencialmente completada antes de 1850, antes, portanto da publicação da teoria de Darwin. O veredicto? Foi uma experiência mal sucedida. Era hora de re-descobrir abordagens mais antigas da apologética e desenvolver outras novas, não contaminadas pelos fracassos de Paley. Porém tal foi o impacto de Paley que suas idéias permaneceram por muito tempo na cultura vitoriana—e, com elas, uma compreensão basicamente estática do mundo biológico, assumida de forma imprópria como a visão cristã das coisas. Não é de se estranhar que tantos teólogos quisessem voltar a um modo mais autêntico e primitivo de se fazer teologia, abandonando o aventureirismo de Paley.

A avaliação de Dawkins sobre as implicações teológicas do dar-winismo é por demais dependente da concepção de que as aborda-gens de Paley (ou Paleyesque) em relação à biosfera são típicas ou normativas do cristianismo. Ele também parece assumir que a jus-tificativa intelectual do cristianismo repouse em grande parte, se não totalmente, em um "argumento a favor do plano", conforme fora proposto por Paley. No entanto, a teologia cristã não defende que a crença cristã seja irracional ou careça de um status epistêmico positi-vo sem o tipo de argumentos que Paley desenvolveu. Dawkins elaborou um soberbo juízo para a rejeição de Paley. Infelizmente, parece pensar que isso exige também a rejeição de Deus.

E se nós nos esquecêssemos de Paley e voltássemos à interpre-tação bíblica e aos métodos teológicos da igreja primitiva? Infeliz-mente, essa é uma experiência histórica que não pode ser empreendida. A história, como o processo evolutivo descrito por Darwin e Daw-kins, é irreversível e propensa a contingências que se situam além do controle experimental. O acaso é tão importante na evolução cul-tural como na biológica. Mas o que pode ser dito, e precisa ser dito, é isto: se o debate darwinista tivesse acontecido na igreja de língua grega do século IV, as coisas teriam sido muito diferentes.39 A crítica que desejo fazer é a seguinte: a avaliação fortemente negativa de Dawkins das implicações religiosas do darwinismo depende da descrição de uma contingência histórica local como se fosse uma

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necessidade teológica universal. Mesmo se considerando a importân-cia cultural da Inglaterra no século XIX, não se podem apresentar as condições locais da Inglaterra vitoriana como se fossem determi-nantes da fé cristã em todas as eras.

Até aqui apresentei três objeções à análise de Dawkins sobre as implicações do darwinismo em relação à crença cristã. Neste mo- mento, quero introduzir duas outras considerações. Não se tratam de "argumentos", mas sim de observações históricas que põem em dúvida se Dawkins justifica adequadamente seu ateísmo na leitura do darwinismo. Em seguida refletiremos sobre a própria avaliação de Darwin acerca das implicações religiosas de sua teoria da evolução, sobre os juízos emitidos pelos principais biólogos e teólogos cris-tãos por volta do tempo de Darwin.

As concepções religiosas de Charles Darwin

As implicações religiosas de uma visão de vida darwinista são controversas. Podem ser interpretadas de uma maneira cristã, ag-nóstica e ateísta. Mas e quanto ao próprio Darwin? Que idéias ele tinha a respeito das implicações religiosas de suas concepções? Serviria admiravelmente aos propósitos de Dawkins se fosse possível pro-var que Darwin abandonara qualquer fé em Deus, como conse-qüência de sua teoria da evolução. Entretanto a discussão de Dawkins sobre a complexa e fascinante interação entre as visões científicas e religiosas de Darwin é muito desapontadora e não lida satisfatoriamente com as questões envolvidas.40 Se tudo mudou depois de Darwin, é sem dúvida importante determinar o que o próprio Darwin acreditou ter mudado como resultado de suas idéias novas.

A idéia de que Darwin fosse de fato ateu por causa de sua dou-trina evolucionista foi vigorosamente defendida num panfleto de Edward Aveling, The Religious Views of Charles Darwin [As con-\ cepções religiosas de Charles Darwin] (1883).41 A evidência apre-sentada neste curto trabalho está longe de ser persuasiva, não sendo claro que peso lhe deveria ser concedido. Darwin havia recusado o

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pedido anterior de Aveling de lhe dedicar o seu Student's Darwin [Darwin do estudante]. Aveling era um dos mais dedicados seguidores ingleses de Karl Marx, e considerava que as idéias evolu-cionistas de Darwin reforçavam as idéias básicas do materialismo marxista. Darwin não quis endossar tal associação.42

Existem de fato várias passagens importantes nos textos de Darwin que podem ser interpretadas como significando que Dar-win deixara de acreditar em uma concepção cristã ortodoxa de Deus, por causa de suas idéias sobre a evolução. O problema é que há também outras passagens que diversamente indicam que Darwin manteve uma crença religiosa, ou que perdeu sua fé por razões to-talmente diferentes das preocupações evolucionistas. Porém, uma nota de cautela deve ser empregada: com base nas evidências publicadas e disponíveis, fica claro que o próprio Darwin estava longe de ser consistente em relação a suas concepções religiosas. Seria, portanto pouco inteligente extrair uma conclusão inquestionável sobre o assunto.43

Não pode haver nenhuma dúvida de que Darwin abandonou o que nós poderíamos chamar "crenças cristãs convencionais" em algum ponto dos anos 1840, embora a data se mantenha impre-cisa. No entanto, há uma significativa distância teórica entre "aban-donar a fé cristã ortodoxa" e "se tornar ateu". O cristianismo envolve uma concepção altamente específica de Deus, sendo perfeitamente possível crer em um deus diferente daquele do cristianismo, ou acreditar em Deus e rejeitar certos aspectos da fé cristã. Na verdade, a "crise de fé vitoriana" — em que Darwin foi espectador e partici-pante — pode ser entendida como um distanciamento das particu-laridades do cristianismo em direção a um conceito mais genérico de Deus, em grande parte determinado pelos valores éticos da época.

Como qualquer história razoável do ateísmo deixa claro, as alternativas disponíveis nos séculos XVIII e XIX incluíam muitas formas de crença em Deus, expandindo intensamente a visão cristã de Deus. Voltaire (1694-1778), em geral visto como ateu, era na realidade um deísta — alguém que acreditava em uma divindade racional. Sua Carta para Úranie (1722; publicada em 1732) faz

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uma firme defesa da existência de um ser supremo, que é inadequada e falsamente representado pelas grandes religiões formais do mundo, em especial pela igreja católica francesa e seus principais represen-tantes. Voltaire rejeitou o conceito cristão de Deus, conforme este representava uma distorção da concorrente divindade racional. Há um espectro de possibilidades teístas entre o "cristianismo ortodoxo" e o "ateísmo". O Darwin maduro, até onde se pode saber, se locali-zaria no meio desse espectro, em algum lugar entre os seus extremos.

São conhecidos dois fatores de particular interesse para Darwin com implicações negativas para o cristianismo tradicional. Primeiro, Darwin achava que a existência da dor e do sofrimento no mundo era um insuportável fardo moral e intelectual. C. S. Lewis concor-da em absoluto que essa questão, que denominou de "o problema da dor", seja um dos obstáculos mais importantes para a crença cristã, sendo completamente compreensível que alguém tão sensível quanto Darwin sentisse o peso desse assunto, em particular devido à sua prolongada (e ainda inexplicável) doença.44 A morte da filha Annie, na tenra idade de dez anos, inquestionavelmente aprofun-dou seu sentimento de afronta moral em relação ao assunto.45

Em 1961, Donald Fleming desenvolveu a importante tese de que a experiência do sofrimento de Darwin foi um elemento cru-cial para a perda da sua fé. Fleming argumenta que Darwin passou a acreditar que "o homem moderno deveria preferir o sofrimento absurdo ao sofrimento justificado, compreensível porque enviado do alto".46 A dor e o sofrimento seriam aceitáveis como o resultado ininteligível do processo evolutivo, o que, apesar de desagradável, parece ser preferível à sua alternativa, isto é, que o próprio Deus infligiu o sofrimento ou permitiu que fosse infligido por outros.

A idéia de que a evolução acontece de acordo com certos princí-pios ou leis gerais, com detalhes específicos deixados ao acaso, nun-ca satisfez Darwin por completo: havia muitas questões intelectuais sem explicação e difíceis impasses morais — em particular, a imen-sa perda de vida que ocorre no processo de seleção natural. Porém isso parecia a Darwin menos perturbador do que a sua opção, "um Deus caridoso e onipotente teria deliberadamente criado a Ichneu-

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monidae [família das vespas] com a expressa intenção de que se alimentasse dentro de corpos vivos de lagartas".47 Ao menos isso poderia ser debitado a um acidente da natureza, em vez de a um desígnio divino intencional.

Sobre o segundo fator, Darwin compartilhou da indignação moral do período médio-vitoriano contra alguns aspectos da doutri-na cristã especialmente associados à crescente influência do movi-mento evangélico. Como George Eliot e muitos outros na ocasião,48

Darwin reagiu com repugnância a idéias como a danação perpétua no inferno daqueles que explicitamente não acreditassem no evan-gelho cristão.49 Darwin sentia essa indignação com uma força par-ticular, por causa das convicções religiosas um pouco heterodoxas de seu pai. Conforme escreveu em sua Autobiografia:

Na realidade, quase não consigo entender como alguém pos-sa desejar que o cristianismo seja verdade, pois, nesse caso, a linguagem direta do texto parece mostrar que os homens que não crêem, o que incluiria meu pai, irmão e quase todos os meus amigos, serão punidos pela eternidade. E essa é uma doutrina execrável.

Em outubro de 1882, seis meses depois da morte de Darwin, sua viúva pediu que essa passagem em particular não fosse publicada. Ela escreveu a seguinte observação na margem do manuscrito de seu marido, ao lado daquele trecho:

Não gostaria que a passagem em parênteses fosse publicada. Parece-me crua. Nada que se diga contra a doutrina do casti-go perpétuo para o descrente poderá ser considerado muito duro — no entanto, hoje, pouquíssimos a chamariam de "cris-tianismo".

Podemos ver aqui um pouco do espírito desse notável período da história cultural inglesa, no qual alguns aspectos do cristianismo evangélico foram submetidos a um nível sem precedente de crítica, refletindo uma crescente convicção de que as explicações sobre a

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natureza e os propósitos de Deus eram deficientes e inaceitáveis numa cultura cada vez mais sofisticada.50 Darvvin se exprime aqui com a voz de seu tempo, e nada acrescenta de caráter especifica-mente evolucionista.

Darwin pode ter abandonado uma versão tradicional do cris-tianismo. Isso, porém, não significa nem por um momento que tenha se tornado um ateu. Embora o ateísmo fosse certamente en-contrado ao término da era vitoriana, a resposta mais comum sem dúvida era o agnosticismo — uma embasada recusa em se procurar uma solução para a questão sobre Deus com base em evidências inadequadas.51 Thomas H. Huxley, que inventara o termo, sentia uma profunda irritação por aqueles que dogmatizavam sobre as-suntos de religião, fosse de forma positiva ou negativa. A ciência é, por definição, agnóstica em assuntos de religião. E assim, dizia ele, as coisas deviam ficar.

Há pouca informação nos escritos de Darwin que nos force a uma conclusão alternativa. Em 1879, enquanto trabalhava em sua autobiografia, Darwin fez um comentário sobre sua confusão reli-giosa pessoal: "Meu juízo flutua com freqüência. [...] Nas minhas flutuações mais extremas nunca cheguei a ser um ateu, no sentido de negar Deus. Penso que em geral (e cada vez mais, conforme envelheço), mas nem sempre, um agnóstico seria a descrição mais correta de meu estado de mente".

Eis Darwin. Mas e quanto às pessoas que entraram em contato com as idéias de Darwin no momento de sua publicação? Qual foi a resposta que a nova teoria de Darwin obteve no meio literário e religioso vitoriano? Como essa reação é bastante esclarecedora, de-vemos abordá-la na seção final deste capítulo.

A reação cristã a Darwin

Após trinta anos da publicação de A origem das espécies de Dar-win, muitos na liderança da Igreja da Inglaterra foram influenciados pelas novas idéias e advogaram que eram perfeitamente consistentes

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com a teologia cristã. A nova e positiva atitude dentro da igreja oficial foi percebida pela grande maioria, incluindo Huxley. Em novembro de 1887, publicou um ensaio no jornal Nineteenth Cen-tury, resumindo e avaliando três recentes sermões de importantes bispos da Igreja da Inglaterra. As prédicas foram lidas na catedral de Manchester, no domingo de 4 de setembro de 1887, durante a reunião da Associação Britânica para o Avanço da Ciência, pelos bispos de Carlisle, Bedford e Manchester.52 "Esses excelentes discursos", escreveu Huxley com evidente entusiasmo, "sinalizam um novo começo no curso adotado pela teologia em relação à ciência e indicam a perspectiva de se proporcionar um honroso modus vi-vendi entre as duas".

É impossível ler os discursos dos três prelados sem ficar im-pressionado pelo conhecimento que exibem, e pelo espírito de justiça; eu poderia mesmo dizer de generosidade, para com a ciência que os atravessa. Não há nenhum sinal daquele pressuposto tácito ou aberto de que a rejeição em bases cientí-ficas dos dogmas teológicos se deve à perversidade moral; uma posição que é a nota ordinária nos sermões eclesiásticos sobre o assunto, que os faz parecer extremamente tolos aos homens cujas vidas são gastas na luta com essas questões. Não há ne-nhuma sugestão de que um homem honesto possa manter convicções contraditórias em bolsos separados de seu cére-bro; nenhum questionamento do método de investigação cien-tífica é válido, quaisquer que sejam os resultados aos quais ele conduza; de que a busca pela verdade, e apenas pela verdade, enobrece o pesquisador; não havendo dúvidas também de que sua vida, de qualquer modo, é uma vida digna.

Huxley saudou essa genuína tentativa de buscar uma reconci-liação — não, mais que isso: uma genuína convergência — entre as ciências naturais e a teologia. Certamente seu maior entusiasmo foi reservado para a firme rejeição de qualquer noção que exija com-partimentos intelectuais isolados na mente humana para se lidar com ambas as áreas. Huxley selecionou um comentário do bispo

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de Bedford para um elogio especial, em que o prelado repudiava qualquer idéia de que ciência e religião...

ocupam esferas completamente diferentes, mas não precisam de forma alguma se intrometer uma com a outra. Giram, dessa forma, em planos distintos, sem nunca se encontrarem. Assim podemos nos dedicar a estudos científicos com extrema liberdade e, ao mesmo tempo, prestar a mais reverente estima à teologia, sem o receio de uma colisão, pois não é permitido nenhum ponto de contato.

Por que nos preocupar com semelhantes detalhes históricos? Porque eles deixam claro que é profundamente problemático supor que o darwinismo exija o ateísmo. Como uma questão de fato histórico, o darwinismo não foi percebido como requerendo o ateís-mo pelos juizes mais bem informados da época. A visão pessoal de Huxley era de que a nova teoria conduzia a um agnostícismo de princípios. Porém, seus comentários sobre os sermões indicam que ele não considerava essa postura como uma questão completamente fechada. Apesar de ter existido oposição às idéias de Darwin, em particular por parte de alguns pastores populares, o amplo empreen-dimento intelectual feito para se compreender a reação popular e acadêmica à teoria tem demonstrado um nível muito maior de apoio a Darwin do que se esperaria.53

O apoio a Darwin não se restringia à Igreja da Inglaterra. Um crescente interesse em Darwin é evidente na América do Norte por volta desse período, até mesmo entre grupos religiosos mais conser-vadores, dos quais se poderia esperar oposição. Um bom exemplo da avaliação positiva de Darwin pode ser encontrado em Benjamim B. Warfield (1851-1921), amplamente considerado o teólogo ameri-cano mais importante ao final do século XIX. Embora caracteriza-do por uma perspectiva protestante conservadora, Warfield deixou claro o seu apoio ao conceito da evolução biológica.54 Ali onde Darwin considerava que o processo evolutivo se baseava em vari-ações acidentais, cujo destino subseqüente era determinado por

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princípios gerais, Warfield argumentou ser absolutamente apropri-ado ver o processo evolutivo sendo guiado pela providência divina. Na realidade, a teoria foi amplamente aceita nos primórdios do fundamentalismo norte-americano. O movimento deriva seu nome de uma se'rie de curtas publicações intituladas The Funda-mentals [Os fundamentos], editada no período de 1912-17.55 Num desses escritos fundamentalistas, seu autor, James Orr, avaliou que a evolução "viria a ser reconhecida como apenas um novo nome para a 'criação', só que com o poder criador agora operando de dentro, e não, como na antiga concepção, de uma forma externa e plástica".56 Embora hostil à noção de Darwin de variações fortui-tas, Orr deixava claro que o processo de seleção natural poderia facilmente ser compreendido em termos compatíveis com o teís-mo cristão.

Lâmina 9. Ronald A. Fisher (18904962). © Science Photo Library.

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Precisamos ainda nos deter aqui para apreciar as concepções de Sir Ronald Fisher (1890-1962), um dos biólogos evolucionistas mais importantes do século XX.57 Fisher, cujas muitas realizações teóricas são celebradas por Dawkins, é citado freqüentemente como o pai da síntese neodarwinista. Foi nomeado professor de genética da cátedra Arthur Balfour, na Universidade de Cambridge, em 1943; permanecendo nesse cargo até sua aposentadoria em 1957. Rece-beu o prêmio Darwin Medal da Royal Society em 1948, "em re-conhecimento a suas destacadas contribuições para a teoria da seleção natural, para o conceito de gene complexo e a evolução da dominân-cia". Embora fosse um homem bastante reservado, Fisher se sentia perfeitamente preparado para se envolver em controvérsias toda vez que a verdade científica estivesse, em sua opinião, correndo risco. Em uma entrevista concedida ao BBC Third Programme, em junho de 1947, deixou totalmente claro que não considerava o ateísmo (ou mesmo o agnosticismo) uma exigência do neodarwinismo:

Para o homem tradicionalmente religioso, a novidade essen-cial introduzida pela teoria da evolução da vida orgânica é que a criação não foi concluída há um longo tempo atrás, mas ainda está em desenvolvimento, no meio de sua incrível duração. Na linguagem do Gênesis, estamos vivendo no sex-to dia, provavelmente de manhã bem cedo, e o Divino Artis-ta ainda não se afastou de sua obra, nem declarou que isso era "muito bom". Talvez isso só aconteça quando aquela imagem muito imperfeita de Deus for mais competente para admi-nistrar os negócios do planeta que o próprio Deus controla.58

Fisher se mudou para a Austrália em 1959, e está enterrado em Adelaide Cathedral, no sul da Austrália.

Stephen Jay Gould corretamente observou que muitos dos principais darwinistas se autodefinem como religiosos e não vêem nenhum problema nisso.59 Segundo Gould, qualquer sugestão de que a teoria darwinista da evolução seja necessariamente ateísta ex-trapola a competência das ciências naturais, vagando por um ter-ritório onde o método científico não pode ser aplicado. Se for

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aplicado, será de forma imprópria. Por isso Gould acredita que Charles Darwin era agnóstico (havendo perdido suas convicções religiosas devido à trágica morte da filha predileta), apesar de que o grande botânico americano Asa Gray, que defendia a seleção natu-ral e escreveu um livro intitulado Darwiniana, era um cristão de-voto.

Mais recentemente, continua Gould, Charles D. Walcott, o descobridor dos fósseis Burgess Shale, era um ferrenho darwinista e um cristão igualmente firme, que acreditava que Deus havia ordena-do a seleção natural para construir uma história da vida de acordo com seus planos e propósitos. Mais recentemente ainda, os "dois maiores evolucionistas de nossa geração" expressavam atitudes radi-calmente diferentes em relação à existência de Deus: G. G. Simpson era um agnóstico humanista, enquanto Theodosius Dobzhansky, um crente ortodoxo russo. Como conclui Gould:

Ou metade dos meus colegas é por demais estúpida, ou en-tão a ciência darwinista é completamente compatível com as crenças religiosas convencionais — e, da mesma forma, com-patível com o ateísmo.

E aqui, em resumo, parece ser onde o debate termina. O dar-winismo pode ser considerado compatível com crenças religiosas convencionais, com o agnosticismo e o ateísmo. Tudo dependen-do de como esses termos forem definidos. O próprio debate é fas-cinante e abre muitas perguntas importantes sobre os limites do método científico, sobre a interpretação da Bíblia, a base compro-batória da fé, a passagem das teorias científicas para visões de mundo e a história da biologia. É impossível estudar ou estar envolvido em tal debate sem ser desafiado e estimulado a refletir sobre algumas das grandes questões da vida.

Mas o debate, apesar de muito importante e intelectualmente fascinante, está inconcluso em termos religiosos. Dawkins apresenta o darwinismo como uma pista expressa do intelecto em direção ao ateísmo. Na realidade, a trajetória intelectual traçada por Dawkins

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parece empacar no agnosticismo. E, atolado, fica por ali mesmo. Há uma substancial lacuna lógica entre o darwinismo e o ateísmo, que Dawkins parece preferir atravessar através da retórica, em vez de pela evidência. Se sólidas conclusões podem ser obtidas, devem ser em outras bases. E aqueles que com seriedade propõem o con-trário têm algumas explicações a dar.

O que sem dúvida nos leva a considerar o lugar da evidência na ciência e na religião, um assunto sobre o qual Dawkins tem muito a dizer.

1 RiveroutofEden, p. 133. 2 Um excelente estudo sobre o assunto encontra-se em Michael Ruse, Darwin and Design: Does Evolution Have a Purpose? Cambridge, MA: Harvard University Press, 2003.

3 TheBlindWatchmaker, p. 43. 4 ClimbingMountlmprobable, p. 64 [trad. em port.: A escalada do monte improvável. 5 ClimbingMountImprobable, p. 126-79. 6 O índice certamente não é exaustivo: ver, por exemplo, a breve (e algo confusa) discussão sobre Deus encontrada na p. 141 de O relojoeiro cego; mas a omissão é interessante.

7 Richard Dawkins, "A Survival Machine". In John Brockman (ed.). The Third Culture. Nova York: Simon & Schuster, 1996, p. 75-95-

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" Francis S. Collins, "Faith and the Human Genome". Perspectives on Science and Christian Faith 55 (2003), p. 142-53.

' Ver sua carta de 1883 a Charles A. Watts, editor do Agnostic Annual. Para comentários adicionais, ver Alan Willard Brown, The Metaphysical Society: Victorian Minds in Crisis, 1869-1880. Oxford: Oxford University Press, 1947.

10 Stephen Jay Gould, "Impeaching a Self-Appointed Judge". ScientificAmerican 267, 1 (1992), p. 118-21.

11A Devils Chaplain, p. 149. 12 Sobre tais questões, que se aplicam igualmente bem às ciências naturais e sociais, ver o estudo clássico de Gilbert Harman, "The Inference to the Best Explanation". Philosophical Review 74 (1965), p. 88-95. Para uma discussão mais recente e extensa, ver Ernan McMullin, The Inference ThatMakes Science. Milwaukee, WI: Marquette University Press, 1992.

13 Ver James T. Cushing, Quantum Mechanics: Historical Contingency and the Copenhagen Hegemony. Chicago: University of Chicago Press, 1994.

14 The Blind Watchmaker, p. 46-51. 15 TheBlindWatchmaker, p. 47. 16 Friedrich Waismann, The Principies of Linguistic Philosophy. Londres: Macmillan, 1965, p. 60.

17 The BlindWatchmaker, p. 50. 18 ClimbingMountImprobable, p. 75. 19 Para o desenvolvimento deste tópico, ver Etienne Gilson, The Christian Philosophy of St. ThomasAquinas. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1994.

20 Sobre o contexto, ver Margaret J. Osler, Divine WillandtheMechanical Philosophy: Gassendi and Descartes on Contingency and Necessity in the Created World. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

21 The BlindWatchmaker, p. 4-6. 22 Ver James R. Jacob & Margaret C. Jacob. "The Anglican Origins of Modern Science: The Metaphysical Foundations of the Whig Constitution". Isis 71 (1980), p. 251-67.

23 Ver, por exemplo, Umberto Eco, The Aesthetics ofThomas Aquinas. Londres: Radius, 1988; Patrick Sherry, Spirit and Beauty: Anlntroduction to Theological Aesthetics. Oxford: Clarendon Press, 1992.

24 Para algumas reflexões, ver John Hedley Brooke, Science and Religion: Some Historical Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

25 Ver o cuidadoso estudo de H. H. Odom, "The Estrangement of Celestial Mechanics and Religion". Journal ofthe History ofldeasll (1966), p. 533-58.

26 James E. Force, "The Breakdown of the Newtonian Synthesis of Science and Religion: Hume, Newton and the Royal Society". In R. H. Popkin & J. E. Force

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(eds.). Essays on the Context, Nature and Influence oflsaac Newtons Theology. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1990, p. 143-63.

27 John Gascoigne , "From Bent ley t o the Vic tor ians: The Rise and Fa l i of Bri t i sh Newtonian Natural Theology". Science in Contextl (1988), p. 219-56.

28 William Paley, Works. Londres: Win. Orr, 1849, p. 25. 29 TheBlindWatchmaker, p. 5. 30 Para um exemplo, ver Dov Ospovat, TheDevelopmentofDarwirís Theory: Natural History, Natural Theology, and Natural Selection, 1838-1859. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

31 Sobre o assunto, ver Aileen Fyfe, "The Reception of William Paley's Natural Theology in the University of Cambridge". British Journal for the History of Science 30 (1997), p. 321-35.

32 Ver Edward Manier, The Young Darwin and His Cultural Circle: A Study of Influences Which Helped Shape the Language and Logic of the First Drafis of the Theory of Natural Selection. Dordrecht: Reidel, 1978.

33 John Henry Newman, The Idea of a University. Londres: Longmans, Green, 1907, p. 450-1. Para o contexto, ver Fergal McGrath, The Consecration of Learning: Lectures on Newmans Ideaofa University. Dublin: Gill, 1962.

34 Newman, Idea of a University, p. 454. 35 James R. Moore, The Post-Darwinian Controversies: A Study of the Protestam Struggle to Come to Terms with Darwin in Great Britain and America, 1870- 1900. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

36 R. S. S. Baden-Powell , Essays on the Spirit of the Inductive Philosophy. Londres: Longman, Brown, Green, and Longmans, 1855. Para uma excelente análise desse pensador, ver Pietro Corsi, Science and Religion: Baden Powell and the Anglican Debate. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

37 Ver aqui Aidan Nichols, From Newman to Congar: The Idea of Doctrinal Developmentfrom the Victorians to the Second Vatican Council. Edimburgo: T. & T. Clark, 1990.

38 Sobre o assunto, ver Tarsicius van Bavel, "The Creator and the Integrity of Creation in the Fathers of the Church". Augustinian Studies 21 (1990), p. 1-33.

39 Ver Francês M. Young, "Adam and Anthropos: A Study of the Interaction of Science and the Bible in Two Anthropological Treatises of the Fourth Century". Vigiliae Christianae 37 (1983), p. 110-40.

40 Um relato muito mais satisfatório pode ser encontrado em John Hedley Brooke, "The Relations between Darwin's Science and His Religion". In John Durant (ed.). Darwinism andDivinity. Oxford: Blackwell, 1985, p. 40-75-

41 Edward Aveling, The ReligiousViews of Charles Darwin. Londres: Freethought, 1883.

42 Uma das notáveis lendas relativas a Darwin está associada a Aveling: uma confusão sobre o verdadeiro destinatário da carta em que Darwin recusava o pedido de

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Aveling levou à convicção generalizada de que o próprio Karl Marx havia pedido permissão para dedicar Das Kapital a Darwin. Aveling estava reunindo a correspondência de Marx na ocasião, e a carta de Darwin parece ter sido misturada por engano. Ver Ralph Colp, Lewis Feuer & P. Thomas Carroll, "On the Darwin-Marx Correspondence". Anuais of Science 33 (1976), p. 383-94.

43 Para a excelente análise, ver Frank Burch Brown, The Evolution of Darwins Religious Views. Macon, GA: Mercer University Press, 1986.

44 Para um estudo das causas da doença de Darwin, caracterizada pela intermitência de "excitação, tremores violentos e ataques de vômitos", ver Ralph E. Colp, To be anlnvalid: The Illness of Charles Darwin. Chicago: University of Chicago Press, 1977.

45 O fato foi elegantemente documentado por Randal Keynes, Annies Box: Charles Darwin, His Daughter andHuman Evolution. Londres: Fourth Estate, 2001.

46 Donald Fleming, "Charles Darwin, the Anaesthetic Man". Victorian Studies 4 (1961), p. 219-36.

47 Carta aAsaGray (1860): The Life and Letters of Charles Darwin, 3 v. Londres: John Murray, 1887, v. 2, p. 310-12.

48 Ver U. C. Knoepflmacher, Religious Humanism and the Victorian Novel: George Eliot, WalterPater, and Samuel Butler. PrincetonNJ: Princeton University Press, .1970.

49 Para uma excelente avaliação dessa repugnância moral, ver Geoffrey Rowell, Hell and the Victorians: A Study oftheNineteenth-Century Theological Controversies Concerning EternalPunishment and the Future Life. Oxford: Clarendon Press, 1974.

50 Ver sobre o assunto trabalhos como o de Howard R. Murphy, "The Ethical Revolt against Christian Orthodoxy in Early Victorian England". American HistoricalReview 60 (1955), p. 800-17.

51 Ver Bernard V. Lightman, The OriginsofAgnosticism: Victorian Unbeliefandthe LimitsofKnowledge. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1987.

52 O texto está em Thomas H. Huxley, "An Episcopal Trilogy". In Science and Christian Tradition: Essays, p. 126-59. Londres: Macmillan, 1894.

33 Ver, por exemplo, David N. Livingstone, Darwins Forgotten Defenders: The Encounter between Evangelical Theology andEvolutionary Thought. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1987.

54 Ver dois estudos recentes e importantes: David N. Livingstone, "B. B. Warfield, the Theory of Evolution and Early Fundamentalism". Evangelical Quarterly 58 (1986), p. 69-83; David N. Livingstone & Mark A. Noll. "B. B. Warfield (1851-1921): A Biblical Inerrantist as Evolutionist". Isis 91 (2000), p. 283- 304.

55 Para detalhes, ver George Marsden, Fundamentalism and American Culture: The Shaping ofTwentieth Century Evangelicalism 1870—1925- Nova York: Oxford University Press, 1980.

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56 James Orr, "Science and Christian Faith". In The Fundamentais. 4 v. Los Angeles: Bible Institute of Los Angeles, 1917, v. 1, 334-47.

57 Ver a excelente biografia escrita por sua filha, Joan Fisher Box, R. A. Fisher: The Life of a Scientist. Nova York: Wiley, 1978.

58 R. A. Fisher, "The Renaissance ofDarwinism". TheListeneròl (1947), p. 1009. 59 Gould, "Inipeaching a Self-Appointed Judge".

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Prova de fé

O lugar da evidência na ciência e na religião

Um dos temas centrais da busca humana por conhecimento é a necessidade de distinguir a mera "opinião" do "conhecimento". Como podemos distinguir uma crença que é justificada e rigorosa-mente fundamentada na mera opinião infundada? O debate re-monta a Platão e continua hoje. A questão fundamental — seja nas ciências naturais, filosofia ou teologia — é esta: quais condições devem ser atendidas antes de podermos concluir que uma determi-nada crença é justificada? Para Dawkins, o único conhecimento se-guro que podemos ter do mundo é o científico. Os filósofos, juristas, teólogos e outros podem fazer declarações espúrias para justificar um conhecimento. No final, porém, somente as ciências naturais é que podem oferecer uma verdadeira compreensão do mundo.

Não resta dúvida de que o debate sobre como geramos e justi-ficamos nossas crenças é imensamente importante, e a contribuição de Dawkins para tal debate deve ser saudada e — juntamente com suas concorrentes — tratada com seriedade. Nos últimos anos, tem-se prestado considerável atenção ao modo como as pessoas validam seus sistemas de crença. As evidências são perturbadoras, especialmente para aqueles que continuam acreditando na visão do Ilumi-nismo de total objetividade de julgamento em todas as coisas. Há, porém, um corpo de evidências cada vez maior de que os sistemas de crenças — sejam teístas sejam ateístas — não são gerados nem validados desse modo.

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Pesquisas em psicologia cognitiva demonstraram em diversas ocasiões que as pessoas "tendem a procurar, retomar e interpretar uma evidência de modo a validar suas crenças".1 A interpretação de da-dos, não raro, é bastante influenciada pelas crenças do investigador. Essas crenças implícitas são muitas vezes de tal maneira interiorizadas que afetam o modo como as pessoas processam uma informação e chegam às conclusões. Tanto os sistemas de crenças religiosas quanto anti-religiosas são freqüentemente resistentes a qualquer coisa que ameace minar, desafiar, limitar ou refutá-los. As suposições enraizadas tornam muitas vezes as teorias implícitas "quase imper-meáveis aos dados".2

Alguns escritores cristãos e islâmicos parecem pouco dispostos a examinar suas crenças profundamente enraizadas, talvez por te-merem que esse tipo de coisa seja má notícia para a fé. Bem, talvez seja — para as idéias intelectualmente deficientes e imaturas. Mas não deve ser assim. Existem formas de fé intelectualmente sólidas — o tipo que encontramos em escritores como Agostinho de Hipo-na, Tomás de Aquino e C. S. Lewis. Eles não tiveram medo de refletir sobre sua fé e levantar difíceis questões sobre as bases de evidências, a consistência interna ou a suficiência de suas teorias.

Mas, o problema não se limita àqueles que crêem em Deus. Conforme descobri enquanto pesquisava para o meu livro The Twilight of Atheism [O crepúsculo do ateísmo], uma visão de mundo ateísta pode ser tão desprovida de evidência empírica quanto uma religiosa. Dawkins tem suas próprias perspectivas sobre o que os religiosos acreditam e continua a refutar tais idéias com entusiasmo. Qualquer pessoa que seja teologicamente analfabeta fica, sem dúvida, impressionada com tal performance, e chega à conclusão de que a religião deve ser julgada e relegada ao mais profundo abismo. Bem, ela certamente foi julgada. Mas se tal julgamento se sustenta com base na evidência é uma questão totalmente diferente.

Em poucas palavras, o confronto de Dawkins com a teologia é superficial e inexato, muitas vezes eqüivalendo a pouco mais do que uma disputa barata de pontos. Meu colega em Oxford, Keith Ward, apontou isso em muitas ocasiões, observando em particular

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o sistemático escárnio e demonização que Dawkins faz das visões concorrentes, as quais são sempre apresentadas sob a luz mais in-gênua.3 Sua tendência de falsear as visões de seus oponentes é o aspecto menos atraente de sua obra. Isso simplesmente reforça a percepção de que ele habita um mundo conceituai hermeticamente fechado, impermeável a um legítimo confronto com a religião. Dawkins tende a procurar, retomar e interpretar uma evidência de modo a sustentar suas crenças ateístas. Para ilustrar isso, podemos abrir nossa discussão sobre o lugar das evidências na apreensão da realidade por Dawkins, investigando sua abordagem à idéia de "fé".

Fé como confiança cega?

Fé "significa um confiança cega, na ausência de evidências ou mesmo diante delas".4 Essa visão, expressa pela primeira vez em 1976, é a declaração de uma das "crenças centrais" que determinam a atitude de Dawkins para com a religião. Em 1989, endureceu sua concepção: a fé é agora qualificada "como um tipo de doença men-tal".5 Essa crença central, não aberta à discussões, aparece nova-mente em 1992, quando Dawkins fez uma conferência no Festival de Ciência Internacional de Edimburgo, onde expôs sua visão a respeito da relação fé e evidência. Dawkins foi mordaz sobre a irres-ponsabilidade intelectual da fé:

A fé é o grande pretexto, a grande desculpa para escapar à necessidade de pensar e avaliar a evidência. A fé é uma crença apesar da falta de evidência, talvez até em função desta [...]. Não se permite à fé justificar-se pelo argumento.6

Quatro anos depois, Dawkins foi eleito o "Humanista do Ano". No seu discurso de agradecimento, publicado no ano seguinte no periódico The Humanist [O humanista], Dawkins propôs sua agenda para a erradicação daquilo que considera o maior mal de nossa era:

Está na moda ser apocalíptico sobre a ameaça trazida à hu-manidade pelo vírus da AIDS, a doença da "vaca louca" e

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muitas outras; mas, penso que é preciso levar em conta que a fé é um dos grandes males do mundo, comparável ao vírus da varíola, mas mais difícil de erradicar. A fé, sendo uma crença não baseada em evidências, é o principal vício de qualquer religião.

Isso deve ser comparado com as ciências naturais, que oferecem uma perspectiva baseada em evidência. "Como amante da verdade, suspeito de crenças fortemente defendidas que não sejam validadas pela evidência".7 E com toda a razão. Mas essa suspeita não se es-tenderia às próprias visões ateístas, defendidas por ele de forma tão vigorosa, as quais parecem aos seus críticos surpreendentemente não validadas pela evidência que ele fornece?

Dawkins neste momento abre as portas para toda a questão do lugar das provas, da evidência e da fé na ciência e na religião. É um tópico fascinante e devemos agradecê-lo por isso. Neste capítulo, investigaremos algumas das questões levantadas pela história e filoso-fia da ciência em relação a esse debate, e indagaremos se é realmente tão simples quanto Dawkins sugere. Eu certamente pensava assim durante minha fase ateísta e teria considerado os argumentos de Dawkins decisivos. Mas não agora.

Comecemos analisando sua definição de fé, perguntando de onde ela vem. Fé "significa confiança cega, na ausência de evidên-cias ou mesmo diante delas". Mas por que alguém deveria aceitar essa definição absurda? Em seu "Prayer for my Daughter" [Oração para a minha filha], Dawkins levanta um ponto importante, que é claramente relevante aqui:

Da próxima vez que alguém disser que certa coisa é verdade, por que não lhe perguntar: "Que tipo de evidência existe para isso?". E se a pessoa não puder dar uma boa resposta, espero que você pense muito cuidadosamente antes de acreditar em alguma palavra que foi dita.8

Se for assim, qual é a evidência para que qualquer pessoa — deixan-do de lado os religiosos — defina "fé" dessa maneira absurda?

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A verdade é que Dawkins não oferece justificativa para tal definição, que tem pouca relação com qualquer sentido religioso (ou com qualquer outro) da palavra. Ele não oferece nenhuma evidên-cia de que seja representativa da opinião religiosa. Nenhuma au-toridade é citada em seu apoio. Eu não aceito essa idéia de fé e ainda não conheci nenhum teólogo que a leve a sério. Ela não pode ser defendida a partir de qualquer declaração oficial de fé, de qualquer denominação cristã. Trata-se da definição particular de Dawkins, construída tendo em mente a sua própria agenda e representada como se fosse característica daqueles que ele deseja criticar.

O que de fato preocupa é que Dawkins genuinamente parece acreditar que a fé realmente é uma "confiança cega", apesar de ne-nhum escritor cristão importante adotar tal definição. Essa é uma crença central para Dawkins, que determina mais ou menos cada aspecto de sua atitude em relação à religião e aos religiosos. No entanto, crenças centrais muitas vezes precisam ser desafiadas. Pois, conforme Dawkins uma vez observou, partindo das idéias de Paley sobre o plano, essa crença é "gloriosa e totalmente errada".

A fé, afirma Dawkins, "significa confiança cega, na ausência de evidência ou mesmo diante dela". Isso pode ser o que Dawkins pensa; não o que os cristãos pensam. Apresento uma definição de fé concebida por W. H. Griffith-Thomas (1861-1924), um notável teólogo anglicano que foi um de meus predecessores como diretor do Wycliffe Hall, em Oxford. A definição de fé que oferece é típica de qualquer escritor cristão:

[A fé] afeta toda a natureza do homem. Começa com a con-vicção da mente com base na evidência adequada; continua na confiança do coração ou emoções com base na convicção e é coroada no consentimento da vontade, por meio do qual a convicção e a confiança são expressas em conduta.9

Trata-se de uma definição boa e confiável, sintetizando os elemen-tos centrais da compreensão caracteristicamente cristã da fé. Essa fé "começa com a convicção da mente baseada na evidência adequa-

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da". Não vejo motivo para cansar os leitores com outras citações de escritores cristãos que defenderam esse ponto ao longo dos tem-pos. Em todo caso, é responsabilidade de Dawkins demonstrar, pelo argumento baseado na evidência, que a sua tendenciosa e ab-surda definição de "fé" é característica do cristianismo.

Havendo montado o seu espantalho, Dawkins o nocauteia. Não chega a ser um feito intelectual muito difícil ou trabalhoso. A fé é infantil, nos afirma — tudo bem que encha a cabeça de crian-cinhas impressionáveis, mas ridiculamente imoral e intelectualmente risível no caso de adultos. Somos crescidos agora e precisamos mudar. Por que deveríamos acreditar em coisas que não podem ser provadas de modo científico? A fé em Deus, argumenta Dawkins, é exata-mente como acreditar em papai Noel e na fada do dente. Quando se cresce, esquece-se de tudo isso.

Eis o argumento de um colegial que por acaso conseguiu uma brecha numa discussão adulta. E tão amador quanto pouco con-vincente. Não há qualquer evidência empírica séria de que as pes-soas considerem Deus, papai Noel e a fada do dente como pertencentes à mesma categoria. Deixei de acreditar em papai Noel e na fada do dente quando tinha seis anos mais ou menos. Depois de ser ateu durante alguns anos, descobri Deus quando tinha de-zoito anos, e nunca considerei isso algum tipo de regressão infantil. Como percebi enquanto pesquisava para The Twilight ofAtheism [O crepúsculo do ateísmo], um grande número de pessoas passa a acreditar em Deus na vida adulta — quando estão "crescidas". Ain-da não conheci ninguém que passou a acreditar em papai Noel ou na fada do dente depois na vida adulta.

Se o argumento algo simplista de Dawkins tiver alguma plausi-bilidade, exige que haja uma verdadeira analogia entre Deus e papai Noel — o que claramente não existe. Todos sabem que as pessoas não consideram a crença em Deus como pertencendo à mesma categoria das crenças infantis. Dawkins, é claro, afirma que ambos representam uma crença em entidades não-existentes. Mas isso representa uma confusão muito elementar sobre qual é a conclusão e qual a pressuposição de um argumento.

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Em todo caso, papai Noel e a fada do dente não são conceitos inventados pelas crianças; esses mitos são impostos a elas pelos adul-tos, ainda que muitas vezes as próprias crianças colaborem com eles. Dawkins adota a visão de que a crença em Deus é algo forçado sobre as crianças por adultos tiranos, e, portanto, deve ser rejeitada. No entanto é impossível estudar o desenvolvimento do ateísmo no século XX sem notar como precisamente este padrão de im-posição de idéias foi encontrado na União Soviética e em outros Estados ateus.10

Em julho de 1954, o Partido Comunista da União Soviética ordenou uma grande e explícita campanha pelo ateísmo em suas escolas. A crença em Deus ainda não havia sido eliminada pelo ar-gumento ou pela força. A única opção parecia ser um programa agressivo de doutrinamento de suas crianças. Os livros escolares soviéticos afirmavam reiteradas vezes a malevolência da religião por meio de slogans como "a religião é uma visão fanática e perversa do mundo", ou "a religião tornou-se instrumento para a escravidão espiritual das massas". Alarmado com a persistência da religião, o Partido decretou que "o ensino das disciplinas escolares (história, literatura, ciências naturais, físicas, química etc.) deveria ser satura-do de ateísmo". No fim, tudo o que o programa fez foi estabelecer os fundamentos para o sólido renascimento da crença em Deus após o colapso da União Soviética nos anos noventa.

Desse modo, se o argumento de Dawkins tiver algum peso, devemos concluir que o ateísmo é mau, imoral e ilógico — o tipo de tolice que precisa ser imposto às crianças, pois caso contrário elas nunca acreditariam nele? Não. O abuso institucional de uma idéia não a desacredita, quer estejamos falando sobre ateísmo, teísmo ou democracia. Mas esse é um contra-argumento tão óbvio que fico surpreso que Dawkins não tenha tido a preocupação de observá-lo. Embora eu acredite que seja errado impor crenças às crianças — sejam crenças teístas ou ateístas — isso não as invalida. E somente o ponto de partida para um argumento, não a sua conclusão.

Às vezes, Dawkins parece se deixar levar por sua retórica anti-religiosa, passando com uma facilidade alarmante de "isto não pode

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ser provado" para "isto é falso", aparentemente inconsciente dos lapsos de raciocínio durante esse processo. Por exemplo, considere-mos sua resposta, num debate em 1999 sobre "Whether Science is Killing the Soul" [Se a ciência está matando a alma], a uma pergun-ta do público: a ciência pode oferecer consolo do mesmo modc que a religião — por exemplo, após a morte de um amigo intime ou de um parente?

O fato de a religião poder lhe consolar, naturalmente não a torna verdadeira. E um ponto discutível saber se alguém deseja ser consolado por uma falsidade.11

Dawkins passa sem esforço de "a consolação não torna a religião verdadeira" para "a religião é falsa". Ora, talvez essa seja uma con-clusão completamente natural para o próprio Dawkins, dado seus sentimentos anti-religiosos profundamente arraigados. Mas não é uma conclusão válida em termos lógicos. E com clareza uma con-clusão óbvia para o próprio Dawkins, impregnado de um modo particular de pensar guiado por suas crenças centrais. Mas isso com certeza não segue àquilo: uma vez que A não foi provado, A é falso.

Como a crença central de que a fé é "confiança cega" permeia muitas das críticas que Dawkins faz à religião, ela claramente re-quer um exame cuidadoso. Vamos examinar uma de suas declarações sobre a natureza daje de maneira mais pormenorizada. Na segunda edição de O gene egoísta, Dawkins propõe uma dicotomia absoluta entre "fé cega" e "evidência decisiva, publicamente disponível":

Mas o que, afinal de contas, é a fé? E um estado mental que leva as pessoas a acreditar em alguma coisa — não importa o que —, na total ausência de evidências que a sustentem. Se houvesse uma boa evidência sustentando-a, então a fé seria supérflua, pois a evidência nos forçaria a acreditar naquilo de qualquer maneira.12

Essa, devo enfatizar, é a definição de fé de Dawkins e não guarda nenhuma semelhança com aquilo que os cristãos acreditam. Ela

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corresponderia a dizer que a teoria da evolução é sobre girafas que quiseram chegar aos galhos mais altos das árvores, de forma que, em conseqüência, seu pescoço esticou. E uma caricatura divertida da coisa real.13 Infelizmente, algumas pessoas levam isso a sério e pensam ser a coisa real.

A idiossincrática definição de fé de Dawkins é impraticável e insustentável. Ela propõe uma dicotomia absoluta entre "fé cega" e uma crença fundamentada em "evidência decisiva, publicamente disponível". E uma distinção interessante, mas não guarda qualquer relação com o cristianismo, ou com os métodos de funcionamento e os pressupostos normais das ciências naturais, incluindo a biolo-gia evolutiva. A questão é sobre probabilidade, não certeza. O pon-to em questão é que a evidência baseada na observação nunca pode tornar uma predição ou generalização exata; pode, no entanto, tor-nar uma ou ambas prováveis. A pergunta é: quanto provável?

O modelo altamente simplista proposto por Dawkins parece reconhecer apenas duas opções: 0% de probabilidade (fé cega) e 100% de probabilidade (crença provocada por uma evidência deci-siva). No entanto, a grande maioria das informações científicas pre-cisa ser discutida em termos de possibilidade de conclusões alcançadas com base na evidência disponível. Alguns têm defendido que se avalie a confiabilidade da probabilidade de uma hipótese com base no teorema de Bayes.14 Tais abordagens são extensamente usadas em biologia evolutiva. Por exemplo, Elliott Sober propôs a noção de "modus Darwin" para defender a linhagem darwiniana comum com base nas semelhanças presentes entre as espécies.15 A aborda-gem só pode funcionar com base na probabilidade, levando a jul-gamentos probabilísticos. Mas não há qualquer problema aqui. É uma tentativa de quantificar a confiabilidade das conclusões.

E isso se aplica na mesma medida tanto a Deus quanto a qualquer outra coisa. Dawkins afirma — pois certamente não ar-gumenta — que Deus é uma questão de fé cega. Ele terminou sua conferência de 1992 no Festival de Ciência Internacional de Edirn-burgo com a seguinte refutaçao da hipótese de Deus. A medida que o darwinismo pode explicar a "beleza espetacular e a complexidade

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da vida", não há qualquer necessidade de alternativas ou explicações adicionais:

A hipótese alternativa, de que tudo começou com um criador sobrenatural, não somente é supérflua, também é altamente improvável. Ela conflita com o próprio argumento que foi originalmente lançado em seu favor. É assim, porque qualquer Deus digno do nome deveria ter sido um ser de inteligência colossal, uma supermente, uma entidade de probabilidade extremamente baixa — na verdade um ser muito improvável. Mesmo se a postulação de uma entidade assim explicasse al-guma coisa (e não precisamos disso), ainda não ajudaria, porque em vez de resolver, suscitaria um mistério ainda maior.

Ora, esse não é um argumento razoável. É um parágrafo distorcido, feito às pressas, confundindo várias idéias e sem a continuidade de pensamento que distingue sentenças errantes de linhas de pensamen-to. Mas o mais preocupante é a conversa frouxa, imprecisa e vaga sobre "improbabilidade". Deus, diz ele, é "altamente improvável". Bem, quanto improvável? E com base no quê esse cálculo é deter-minado? Além disso, Deus é "uma entidade de probabilidade ex-tremamente baixa". Quão baixa? E com base em que evidência essa probabilidade é determinada? Como exatamente Dawkins chega a tais cálculos? E desde quando uma probabilidade determina se al-guma coisa de fato existe ou não?

E interessante passar dessa peça de retórica particularmente medíocre para um argumento mais cuidadoso, formulado por Ri-chard Swinburne, professor de filosofia da religião da cátedra Nol-loth da Universidade de Oxford, que utiliza a teoria da probabilidade para estimar a confiabilidade de uma crença em Deus •— ou, mais especificamente, da crença cristã de que Jesus Cristo é Deus encarnado.16 Não espero que Dawkins concorde com a conclusão teísta de Swinburne, ou com sua consideração sobre a altamente provável existência de Deus. Mas de fato espero que mostre a mesma atenção cuidadosa ao detalhe na avaliação das probabilidades relativas de crença e descrença, em vez de seus habituais exageros retóri-

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cos de fanfarrices populistas. Afinal de contas, Dawkins, não Swin-burne, tem a intenção de ser cientista.

Dawkins encerra sua conferência no Festival de Ciência Inter-nacional de Edimburgo, em 1992, com estas palavras: "Não po-demos provar que Deus não existe, mas podemos concluir seguramente que ele é sem dúvida muito, muito improvável". Com base nos argumentos oferecidos, essa é uma conclusão altamente precária, melhor se ignorada como uma peça de retórica não-cientí-fica. Em vez de enfatizar esse não-argumento, passemos a explorar alguns confrontos mais específicos com questões de fé. Vamos fazer uma pergunta difícil, apesar de óbvia. O ateísmo poderia ser uma fé?

O ateísmo em si é uma fé?

A ciência é uma religião? Essa pergunta é freqüentemente feita a Dawkins e tem uma resposta padrão: não. As ciências, argumenta ele, possuem todos os pontos bons da crença religiosa e nenhum de seus pontos ruins. Elas evocam um senso de admiração sobre a realidade oferecendo à humanidade exaltação e inspiração. E estão imunes aos problemas da fé. O ateísmo é a única opção para quem reflete hoje em dia, cujas idéias são fundamentadas no único modo válido de encontro com a realidade — o das ciências naturais. E uma explicação magnificamente simples das coisas.

No entanto, tudo começa a se desvendar muito rapidamente. Já observamos a convicção de Dawkins de que a fé religiosa é "con-fiança cega, na ausência de evidências ou mesmo diante delas".17

Essa definição arbitrária e idiossincrática simplesmente não resiste à investigação séria. Na verdade, é em si mesmo um excelente exem-plo de crença persistentemente sustentada e defendida "na ausência de evidências ou mesmo diante delas". Dawkins se agarra com obsti-nação à sua própria idéia por demais confusa do que é "fé" e supõe que outros partilhem essa confusão. Mas o que se passa com o próprio ateísmo?

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Dawkins apresenta o agnosticismo como uma opção intelec tual mais fraca, oferecendo uma rejeição retórica da noção. Em su; Conferência de Edimburgo, 1992, afirmou que, assim como a fé. o agnosticismo é um pretexto — um argumento que pode ser apli cado a qualquer coisa. "Existe uma infinidade de crenças hipotéti cas que poderíamos afirmar não sermos capazes de positivament< contestar". Ora, há sem dúvida certa verdade nisso. Mas, a verda-deira dificuldade é que os argumentos biológicos de Dawkins — à medida que são argumentos genuínos, e não cegas afirmações dog-máticas — conduzem apenas ao agnosticismo. Ele é obrigado a complementá-las com outros argumentos de uma natureza não-científica para chegar ao pretendido objetivo conceituai. E tais argumentos são muitas vezes de natureza retórica, em vez de analítica. No fim, o ateísmo de Dawkins definitivamente não repousa em sua ciência, mas num emaranhado de dissimulados valores e crenças não-científicos, não especificados e em grande parte não analisados. Como esse ponto é muito importante, voltaremos a ele mais adiante.

O debate entre ateísmo e crença religiosa ocorre há séculos e quase todos os aspectos já foram de tal modo explorados, que até mesmo os filósofos parecem entediados com ele. O resultado é um beco sem saída. Ninguém pode provar a existência de Deus, e nin-guém pode contestá-la. Dawkins, seguindo G. G. Simpson, afir-ma que tudo mudou com a publicação de As origens das espécies, de Darwin, em 1859.18 Assim, qual seria exatamente o impacto de Darwin sobre a crença religiosa? Uma questão que tem sido estuda-da em detalhes.

A conclusão básica, como já vimos, é que o darwinismo nem prova nem contesta a existência de Deus (a menos que, é claro, Deus seja definido por seus críticos precisamente de uma tal ma-neira que a sua existência seja desmentida por alguma pressuposição central da teoria darwinista). Se o grande debate sobre Deus fosse decidido somente em bases darwinistas, o resultado seria o agnosti-cismo — uma escrupulosa e bem embasada insistência de que as evidências são insuficientes para se obter um veredicto seguro.

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Isso de modo algum satisfaz Dawkins. Seus esforços para forçar uma conclusão ateísta em cima de uma descrição darwinista do mundo são os aspectos menos convincentes, para não mencionar menos atraentes, de seus escritos. Como um exemplo, podemos apresentar a refutação de Dawkins do teísmo em A escalada do monte improvável. Ali, argumenta que a própria idéia de um "Deus projetista" é intelectualmente contraproducente:

Qualquer projetista capaz de construir uma disposição fasci-nante de coisas vivas teria que ser inteligente e complicado além da imaginação. "Complicado" é apenas uma outra pala-vra para improvável — e, por conseguinte, exige explicação [...]. Ou seu deus é capaz de projetar mundos e tornar todas as outras coisas como divinas, e nesse caso ele próprio requer uma explicação; ou ele não é capaz, e nesse caso não pode oferecer uma explicação.19

Trata-se apenas de meras asserçÕes: declarações ousadas, impetuo-sas, confiantes, associadas aos padrões de pensamento dicotomistas e absolutos que Dawkins aprecia.

Comecemos com o primeiro ponto, sobre Deus ser uma en-tidade "complicada" e, conseqüentemente, "improvável" se levar-mos em conta a riqueza da biosfera. O que Dawkins quis dizer com a extraordinária declaração de que "qualquer projetista capaz de construir uma disposição fascinante de coisas vivas teria que ser inteligente e complicado além da imaginação"? Trata-se de uma afir-mação temerária, feita sem o habitual processo de um argumento cuidadoso, necessário para se chegar a tal tipo de conclusão, incluin-do ajusta e completa avaliação das propostas alternativas.

O texto está longe de esclarecer que força tem essa avaliação. O próprio Dawkins dedicou grande parte de sua carreira como popu-larizador da ciência para demonstrar que a "disposição fascinante de coisas vivas" poderia ter surgido muito simplesmente, durante longos períodos de tempo, por um processo de evolução neodarwinista. Sua proposição teria algum mérito como crítica ao teísmo — embora a quantidade de mérito ainda pudesse ser discutida — se este tivesse

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proposto uma doutrina da criação especial e individual, semelhante à proposta por William Paley. Mas não há razão alguma para isso. Um teólogo poderia responder que Deus criou um ambiente den-tro do qual entidades inacreditavelmente complexas poderiam se desenvolver de começos bastante simples, através de processos bastante simples. Dawkins parece pensar que a crença em Deus exige da pes-soa uma forma de pensar a criação conforme a do final do século XVIII. Mas como a história da tradição cristã sobre tal ponto deixa claro, simplesmente não é esse o caso.

Dawkins afirma que, sendo Deus "complicado", ele é "imprová-vel". Essas noções não são equivalentes, nem a segunda é implicada pela primeira. Elas são conectadas por um salto de fé kierkegaar-diano, sustentadas por uma retórica agressiva e não por um argumento rigoroso, baseado em evidências. Além disso, é mais uma vez bastante obscuro por que isso teria qualquer relevância. Para reiterar o ponto fundamental levantado na seção anterior: não importa se Deus é improvável (deixando de lado o fato de que Dawkins nem determina o quanto de probabilidade, nem nos oferece em primeiro lugar um método para determinar essa probabilidade): coisas improváveis acontecem. Afinal de contas, esse é o ponto a que chega Dawkins em A escalada do monte improvável. Improbabilidades existem.

De qualquer maneira, por que Deus precisa ser explicado? Em quais das muitas teorias divergentes da explicação científica, Daw-kins fundamenta essa afirmação? O modelo inferencial de Carl Hem-pel? A abordagem causai de Wesley Salmon? Ou um dos muitos outros modelos que tentam esclarecer se uma "explicação" de fato explica alguma coisa?. Existe uma singular falta de clareza conceituai na análise de Dawkins com relação à problemática, ainda que seja extremamente importante essa noção de explicação. Como bem se sabe, a filosofia da ciência considera uma variedade de significativos, embora bastante diferentes, conceitos de explicação científica;20 nenhum dos quais possui o sentido reduzido que Dawkins parece pressupor. Como Paul Kitcher demonstra, a questão mais fundamental é a redução dos fenômenos a uns poucos "princípios" na medida do possível:

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A ciência avança nossa compreensão da natureza nos mostran-do como produzir descrições de muitos fenômenos usando cada vez mais o mesmo padrão de derivação e, ao demonstrar isso, ensina-nos como reduzir o número de fatos aceitáveis como princípios.21

Então, qual é exatamente o problema com Deus? Por que Deus deveria requerer uma explicação? Ele poderia simplesmente ser um "princípio", para usar o termo de Kitcher — uma dessas coisas que devemos aceitar como dadas, sendo, portanto, suscetíveis à descrição, e não à explicação. Dawkins precisa elaborar muito mais o que quis dizer aqui, antes que sua proposição possa ser entendida e submeti-da a um rigoroso escrutínio.

Um das coisas mais notáveis sobre o ateísmo de Dawkins é a confiança com que afirma a sua inevitabilidade. E uma confiança curiosa, que parece curiosamente fora de lugar — talvez até de-feituosa — para quem tem familiaridade com a filosofia da ciência. Conforme Richard Feynman (1918-88), que ganhou o Prêmio Nobel de física em 1965 por seu trabalho com eletrodinâmica quân-tica, apontou muitas vezes, o conhecimento científico é um corpo de declarações de graus variados de certeza — alguns mais incertos, alguns quase certos, mas nenhum absolutamente certo.22 No entanto, Dawkins parece deduzir o ateísmo do "livro da natureza" como se fosse uma pura questão de lógica. O ateísmo é afirmado como se fosse a única conclusão possível para uma série de axiomas.

Muitos intelectuais de inclinação mais filosófica vão querer perguntar neste momento: considerando-se que as ciências naturais procedem da conclusão de dados observacionais, como Dawkins pode estar tão seguro sobre o ateísmo? Às vezes, fala sobre as certe-zas de um mundo não-religioso com a convicção de um crente. E como se o ateísmo fosse o resultado seguro e inevitável de um ar-gumento lógico sem costura. Mas como pode chegar a tal certeza, quando as ciências naturais não são dedutivas em seus métodos?

Essa dificuldade me surpreendeu ao longo da leitura dos tra-balhos de Dawkins. A inferência e, por definição, uma questão in-

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certa, com a qual se deve tomar enorme cuidado para não chegar a conclusões prematuras. Assim, como pode Dawkins estar tão certo sobre isso? Outros têm examinado as mesmas evidências e chegado a conclusões bastante diferentes. Como fica claro pelo que foi dito até aqui, a insistência de Dawkins de que o ateísmo é a única visão de mundo legítima para um cientista natural é um julgamento inse-guro e incerto. Todavia, minha inquietação não se limita ao julga-mento intelectual falho com que Dawkins direciona suas convicções, preocupa-me a ferocidade com que afirma o seu ateísmo. Uma óbvia resposta potencial é que a base do ateísmo de Dawkins se encontra em outro lugar, diferente de sua ciência, de forma que talvez haja um aspecto fortemente emotivo para suas crenças neste momento. Mas, não me deparei com nada que me levasse a semelhante con-clusão. A resposta deve estar em outro lugar.

Comecei a achar uma resposta para a minha pergunta ao fazer uma análise cuidadosa do estilo característico de argumentação que encontramos nos textos de Dawkins. Em um importante estudo comparativo, Timothy Shanahan declarou que a perspectiva de Stephen Jay Gould à questão do progresso evolutivo foi determi-nada por um método indutivo, baseado principalmente em dados empíricos.23 Dawkins, observou, "procedeu pela elaboração da lógica da 'filosofia adaptacionista para o raciocínio darwinista". Sendo esse o caso, as conclusões de Dawkins são determinadas por um conjunto de premissas lógicas que, no final das contas — ainda que indiretamente—são fundamentadas em dados empíricos. "A própria natureza de um argumento dedutivo válido é tal que, dadas certas premissas, segue-se uma dada conclusão de uma necessidade lógica totalmente independente de as premissas usadas serem verdadeiras ou não". Com efeito, Dawkins usa uma abordagem essencialmente indutiva para defender uma visão de mundo darwinista — mas extrai dessa visão um conjunto de premissas por meio das quais se pode chegar a conclusões seguras.

Embora Shanahan limite a sua análise à investigação de como Gould e Dawkins chegaram a conclusões antiteticamente contrárias sobre a questão do progresso evolutivo, sua análise pode claramente

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se estender às visões religiosas de Dawkins. Tendo inferido que o darwinismo é a melhor explicação da observação, Dawkins vai em frente para transformar uma teoria provisória numa certa visão de mundo. O ateísmo é assim apresentado como a conclusão lógica de uma série de premissas axiomáticas, possuindo a certeza de uma crença deduzida, embora sua base elementar seja de fato inferencial.

Não tenho dúvida de que Dawkins está convencido do juízo em favor do ateísmo. Porém, o juízo em questão não é publica-mente convincente. Dawkins é obrigado a dar um "salto de fé" do agnosticismo para o ateísmo, correspondendo àqueles que dão um mesmo salto na direção oposta. A idéia de que o ateísmo é uma forma de fé não é problemática. Ela se resume a pouco mais do que afirmar o que todos sabem ser verdade: as coisas que realmente importam na vida, com freqüência, estão além da prova demonstra-tiva. Ninguém vai poder resolver a questão da existência de Deus com total certeza. Simplesmente ela não está na mesma categoria de saber se a terra é plana, ou se o DNA tem a forma de uma hélice dupla. E mais como a questão de saber se a democracia é melhor que o totalitarismo. Isso não pode ser resolvido por meios científi-cos — o que, porém, não impede as pessoas de chegarem às suas próprias conclusões sobre essa questão. Nem exige que suas de-cisões sobre tais questões sejam irracionais — uma questão que investigaremos um pouco mais na próxima seção.

A fé cristã como irracional?

Como vimos, a análise que Dawkins faz da fé é altamente sim-plista e não leva em conta o modo como as palavras são usadas em contextos religiosos. Ludwig Wittgenstein levantou o ponto incon-testável de que as palavras são usadas com significados diferentes em contextos diferentes. Para Wittgenstein, a Lebensform ("forma de vida") dentro da qual uma palavra é usada possui importância deci-siva para se estabelecer o seu significado. Conforme Wittgenstein mostrou, precisamente a mesma palavra pode ser usada num grande número de contextos, com significados diferentes em cada um.

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Um modo de contornar esse problema poderia ser inventar um vocabulário totalmente novo, no qual o significado de cada palavra fosse definido de modo firme e inequívoco. Mas essa não é uma opção real. As línguas são entidades vivas e não podem ser forçadas a se comportar de um modo artificial.

Uma abordagem perfeitamente aceitável, de acordo com Witt-genstein, é se dar ao trabalho de definir o sentido específico pelo qual uma palavra deveria ser entendida, para se evitar confusão com os seus muitos outros sentidos. Isso envolve um estudo cuidadoso de suas associações e uso na "forma de vida" à qual ela se relaciona.24 Em vez de assumir cega e ingenuamente que uma palavra que significa uma coisa numa dada situação signifique precisamente o mesmo em outra, é universalmente aceito que precisamos tomar muito cuidado ao estabelecer como as palavras são usadas em cada contexto, e os significados que carregam.

Esse tópico deveria ser familiar a qualquer cientista compe-tente, bastante acostumado a usar na vida cotidiana as palavras num certo sentido e, num sentido mais preciso, restrito, dentro de uma cultura de laboratório. Trabalhei durante vários anos, no final da década de 1970, no grupo de pesquisa do professor Sir George Radda, no departamento de bioquímica da Universidade de Ox-ford. Todas as manhãs, às onze horas, reuníamo-nos para um café em torno de um antigo fogão. Quando alguém pedia ao vizinho "passe o açúcar", o que a pessoa pedia de fato era a substância química conhecida como "sacarose' ou, mais precisamente: [2-0-(alpha-D~ glucopyranosyl)-beta-D-fructofuranoside]. Já nas ciências naturais, o termo "açúcar" representa uma classe muito ampla de substâncias químicas, que exclui os açúcares específicos encontrados na cana-de-açúcar (sacarose), leite (lactose) e várias frutas (frutose). Todos variando enormemente em graus de "doçura". Por exemplo, a lactose tem apenas 16% da doçura da sacarose.

O "açúcar" do mundo cotidiano é, portanto, uma forma de fato muito específica da categoria científica mais geral de açúcar — especificamente, um l,2'-glicosídeo. Essa simples diferença de vo-cabulário pode causar imensa confusão, especialmente em relação

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aos problemas de saúde que surgem do consumo de sacarose.25

Poderia até levar alguém a colocar lactose em seu café. Precisaría-mos de uma quantidade seis vezes maior de lactose em nosso café para alcançar o mesmo grau de doçura da sacarose. Mas essa con-fusão simplesmente não ocorreu. Todos que estavam reunidos para o café sabiam que as palavras estavam sendo usadas com significa-dos diferentes em contextos diferentes, e percebiam a distinção en-tre eles.

Ora, não há um problema aqui. A pessoa se acostuma a viver em mundos diferentes e ser sensível às suas sutis diferenças lingüís-ticas. Ela percebe que as palavras significam coisas diferentes dentro de comunidades diferentes. Os que estão de fora podem considerar um problema essas diferenças sutis, e muitas vezes não entender por que as diferentes linguagens de diferentes comunidades existem. Não se trata de nenhuma questão de desonestidade, como se al-guém estivesse tentando enganar as pessoas usando essas formas específicas de linguagem. Elas evoluem naturalmente, em resposta às necessidades profissionais e diferentes tarefas das comunidades envolvidas. E uma questão de simplesmente se tornar bilíngüe, e sensível aos diferentes significados das palavras nos diversos contex-tos. Significa estar preparado para perguntar às pessoas: "O que você quer dizer quando usa esta palavra?" e preparar-se para aceitar que o uso que elas fazem daquela palavra pode não ser idêntico ao uso que você faz da palavra — o que não significa que as pessoas estejam erradas, e você certo. Caso contrário, a comunicação através das fronteiras disciplinares se tornaria impossível. Os cientistas usam a linguagem de um modo que difere do uso comum; assim tam-bém fazem os teólogos. A primeira fase em qualquer tentativa de se engajar numa disciplina é entender o uso que ela faz da linguagem.

Dawkins, de forma correta, fez uma crítica mordaz à filósofa Mary Midgley por ela criticar a sua hipótese do "gene egoísta" sem qualquer consciência de como os cientistas usavam a linguagem. As palavras de Dawkins merecem ser citadas:

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[Midgley] parece não entender o uso que a biologia ou os biólogos fazem da linguagem. Sem dúvida minha ignorância ficaria da mesma maneira óbvia se me lançasse precipitada-mente ao campo em que ela é perita, mas eu então adotaria um tom mais modesto. Como ambos estamos em meu ter-reno, é difícil não considerar isso uma grosseria.26

Mas, esse não é o mesmo Richard Dawkins que, nada sabendo sobre teologia cristã, se lança precipitadamente no campo, e diz aos teólogos o que eles realmente querem dizer ao usarem a sua própria linguagem? Ou que eles de fato querem dizer "confiança cega" quan-do falam de "fé?" Há uma total falha por parte de Dawkins até mesmo para começar a entender, na linguagem da teologia cristã, o que ela significa. Na verdade, é muito difícil considerar com algum grau de seriedade os julgamentos que faz das alegadas falhas na lin-guagem teológica.

Vamos tentar ser mais diretos neste momento. Como um teó-logo histórico profissional, não hesito em afirmar que a tradição cristã clássica sempre valorizou a racionalidade, não defendendo que a fé envolva o completo abandono da razão ou a crença contra a evidência. Na verdade, a tradição cristã é tão consistente nessa questão que é difícil entender de onde Dawkins tirou a idéia da fé come "confiança cega". Até mesmo uma leitura superficial das obras dos grandes filósofos cristãos como Richard Swinburne (Universidade de Oxford), Nicolas Wolterstorff (Universidade de Yale) e Alvin Plantinga (Universidade de Notre Dame) revelaria um fervoroso compromisso com a questão de como alguém poderia fazer declarações "seguras" ou "coerentes" a respeito de Deus.27 Não existe a questão da "confiança cega". A questão é como se poderia fazer um juízo embasado, racional e defensável da questão sobre Deus, quando a evidência é tão ambivalente.

Ora, talvez Dawkins esteja tão ocupado escrevendo livros con-tra a religião que não tenha tempo de ler as obras de religião. Nas raras ocasiões em que cita os teólogos clássicos, tende a fazê-lo de segunda mão, muitas vezes com resultados assustadores. Por exem-

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plo, Dawkins elege o escritor cristão Tertuliano (c. 160 - c. 225) para fazer um comentário particularmente acerbo, por conta de duas citações de seus escritos: "É certo porque é impossível" e "sem dúvida creio porque é absurdo".28 Dawkins tem pouco tempo para tal tipo de tolice. "Esse é o caminho da loucura".

Na visão dele, a abordagem de Tertuliano — como comprova-da por essas duas citações isoladas —- é exatamente como a da Rai-nha Branca em Através do espelho, de Lewis Carroll, que teimava em acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã. Como essa referência desprezível a Tertuliano é uma das poucas ocasiões em que Dawkins emprega representantes sérios da tradição teológica cristã, proponho tomar seus comentários com seriedade e verificar para onde nos levam. Eles poderiam nos dizer algo sobre Tertuliano, até mesmo sobre o cristianismo, ou, então, mais uma vez, sobre o próprio Dawkins.

Tertuliano nunca escreveu as palavras "sem dúvida creio porque é absurdo". Essa citação deturpada é muitas vezes atribuída a ele em textos menores. Mas é uma atribuição indevida e assim tem sido tratada por muitos.29 Portanto, no mínimo podemos pressupor com certa razão que Dawkins não leu diretamente Tertuliano, mas tirou essa citação de uma duvidosa fonte secundária. Isso poderia nos dizer algo sobre quão seguros são seus julgamentos sobre estas questões.

No entanto, Tertuliano escreveu as palavras "é certo porque é impossível". Porém, o contexto deixa claro que, em nenhum mo-mento, está argumentando em defesa de uma "fé cega". Eis a passa-gem completa, primeiro em latim:

Crucifixus est dei filius; non pudet, quia pudendum est. Et mortuus est dei filius; credibile prorsus est, quia ineptum est. Et sepultus resurrexit; certum est, quia impossibile.

O Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho, porque é vergonhoso.

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O Filho de Deus morreu: é absolutamente crível, porque é torpe. Ele foi sepultado, e se levantou novamente: é certo, porque é impossível.30

Nessa passagem, ao contrário do que Dawkins acredita, Tertuliano não está discutindo a relação entre fé e razão, ou a base evidenciai do cristianismo. Lendo a passagem no contexto, imediatamente é eliminada qualquer idéia desse tipo. Sabe-se desde 1916 que, nessa passagem, Tertuliano está lidando com algumas idéias de Aristóte-les. James Moffat, que demonstrou a relação, nota o aparente ab-surdo das palavras de Tertuliano:

Este é um dos paradoxos mais desafiantes em Tertuliano, uma das sentenças vivas, reveladoras, nas quais não hesita em des-truir o sentido das palavras para fazer a sua observação. Ele exagera deliberadamente para chamar a atenção para a ver-dade que quer transmitir. A frase é muitas vezes citada de forma errônea, e muito freqüentemente é considerada como cristalização de um preconceito irracional em sua mente, como se ele desprezasse e desdenhasse a inteligência na religião — uma suposição que não sobreviverá a uma comparação em primeira mão com os escritos do pai africano.31

A questão é que o evangelho cristão é, naquele momento, profun-damente contracultural e contra-intuitivo. Assim, por que alguém iria querer ajustá-lo, quando é tão obviamente improvável, a tais padrões de sabedoria? Tertuliano, então, parodia uma passagem da Retórica de Aristóteles, a qual argumenta que uma afirmação ex-traordinária poderia muito bem ser verdadeira, precisamente pelo fato de ser tão fora do comum. O que com certeza devia ser uma piada retórica para os que conheciam Aristóteles.

Mas esse é apenas um de toda uma série de argumentos que Tertuliano apresenta nesse momento, e é grotescamente inexato determinar toda a sua atitude em relação à racionalidade com base em uma única e isolada frase.32 A atitude de Tertuliano a respeito da razão está definitivamente resumida na seguinte citação:

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Porque a razão é uma propriedade de Deus, visto que não existe nada que Deus, o criador de todas as coisas, não pre-viu, organizou e determinou através da razão. Além disso, não existe nada que Deus não deseje que seja investigado e entendido pela razão.33

No final das contas o que importa é que não existe limite para o que pode ser "investigado e entendido pela razão". O mesmo Deus que criou a humanidade com a capacidade de raciocinar espera que a razão possa ser usada na investigação e representação do mundo. Sendo o que a vasta maioria dos teólogos cristãos faz hoje, como fez no passado. Com certeza há exceções. Mas Dawkins parece preferir tratar as exceções como se fossem a regra, não oferecendo qualquer evidência em defesa dessa conclusão altamente questionável.

As visões de Dawkins sobre a natureza da fé deveriam muito bem ser consideradas como um embaraço a qualquer um envolvi-do com a precisão acadêmica. Algo que não contribui em nada para a sua credibilidade, em especial suas ocasionais declarações em tom de sermão, por exemplo: "Como amante da verdade, suspeito de crenças defendidas com vigor que não sejam sustentadas pela evidên-cia".34 Então, vamos apenas estipular um limite para esse nonsensec passar para algo mais interessante.

O problema da mudança teórica radical em ciência

Quando estava aprendendo física na escola, gradualmente me dei conta de uma estranha contradição naquilo que me ensinavam. De um lado, me garantiam que as teorias da física moderna eram totalmente confiáveis, a forma mais segura de conhecimento com o qual a humanidade jamais sonhou. Mas, de vez em quando, nos aventurávamos numa região estranha, crepuscular, a qual, nos ex-plicavam, em tons sussurrados, conspiratórios, que "os físicos de outrora costumavam acreditar, mas agora não mais". A maior parte disso tinha a ver com a luz — algo que seria razoavelmente simples para alguém de dezesseis anos compreender. Antigamente se ensi-

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nava que a luz exigia um meio para viajar — mas agora, nos ilumi-nados anos sessenta, ninguém mais acredita nisso. Antes se acredi-tava que a luz era composta apenas de ondas — mas hoje sabemos que ela consiste de fótons. A princípio, pensei que tais concepções antiquadas datavam do século XVI. Mas a terrível verdade logo se revelou. A aceitação dessas novas idéias sobre a luz datava mais ou menos de quarenta anos atrás. "Antigamente" passou a significar "muito recentemente".

O problema da "mudança teórica radical" na ciência não pode ser negligenciado em qualquer explicação responsável do escopo do método científico. É impossível pressupor que o conhecimento científico de hoje determinará como as coisas serão vistas no fu-turo, ou que as teorias científicas atuais continuarão a manter a confiança das futuras gerações. Não há dúvida de que essas atitudes confiantes foram defendidas no final do século XIX.35 A estabilidade teórica tem sido considerada um sinal de verdade teórica. No entan-to, isso simplesmente se mostrou complacente.

Muitos cientistas notáveis do século XIX defenderam que tudo o que valia a pena saber já se sabia. Em 1871, James Clerk Maxwell expressou sua irritação com a idéia de que a física havia descoberto tudo quanto poderia ser conhecido, de forma que só restava esta-belecer medidas para a próxima casa decimal.36 Max Planck relata que se encontrava em dúvida sobre que assunto estudar na Univer-sidade de Munique, em 1875. Sua inclinação para o estudo das ciên-cias naturais era desprezada pelo professor de física na universidade, que declarou que nada que valesse a pena restava ser descoberto.37

Robert A. Millikan — cujas investigações do elétron desbravaram novos campos — recorda como a física era amplamente considerada um "assunto morto" nos círculos acadêmicos americanos no início dos anos de 1890.38 Tais visões eram difundidas e podem ser en-contradas em muitos textos científicos do período. O principal astrônomo americano Simon Newcomb teve a coragem de afir-mar em 1888 que quase tudo que tinha importância já havia sido visto e medido: o que faltava era consolidar esse corpo de conheci-mento.39 Com certeza, mais alguns cometas seriam descobertos.

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Mas o "grande quadro" estava estabelecido. Restavam apenas uns poucos detalhes a serem preenchidos.

O mesmo aconteceu no campo da biologia evolutiva. As idéias de Darwin foram aceitas rapidamente como definitivas, e outras pesquisas nesse campo acabaram sendo inibidas. Esse fato curioso foi apontado pelo geneticista William Bateson em 1909:

Com o triunfo da idéia evolucionista, a curiosidade sobre o significado das diferenças específicas foi satisfeita. As Origens foram publicadas em 1859. Durante a década seguinte, en-quanto as novas perspectivas estavam sendo julgadas, os cria-dores experimentais continuaram seus trabalhos, mas, em 1870, o campo fora praticamente abandonado. No que diz respeito às espécies, os próximos trinta anos são marcados pela apatia característica de uma era de fé. A evolução se tor-nara a base de exercícios dos ensaístas. De fato, o número de naturalistas decuplicou, mas suas atividades foram dirigidas para outro lugar. O feito de Darwin até então excedia tudo o que antes seria possível imaginar, o que deveria ter sido sau-dado como um início, há muito tempo esperado, foi tomado como um trabalho acabado. Lembro-me bem de ter recebido de um de meus superiores mais sérios a amigável advertência de que era um desperdício de tempo estudar a variação, pois "Darwin tinha varrido o campo".40

De 1870 a 1900, tal era o grau de estabilidade que pairava nas ciências físicas e biológicas que muitos pressupunham que essa situ-ação de repouso temporário era na realidade o destino final.

Por volta de 1920, ocorreu uma revolução dentro da física. A grande era da "física clássica" terminava, e uma nova raiava, domi-nada pela mecânica quântica, pela teoria da relatividade e pela cos-mologia do "big bang". Não havia sido dada qualquer indicação, nas últimas décadas do século XIX, da grande onda de mudança que varreria as ciências naturais no século XX. Ninguém no século XIX parecia fazer idéia das revoluções que aconteceriam, destruindo muitas das certezas científicas da época. As teorias pareciam re-

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solvidas, seguras e constantes. Porém, um século depois, "novos" pa-radigmas teóricos — para usar um termo popularizado por Thomas Kuhn41 — tinham dominado.

Historiadores e filósofos da ciência produziram extensas listas de teorias científicas, cada uma sendo considerada por uma geração a melhor representação possível da realidade; mas depois eram aban-donadas pelas gerações seguintes, à luz de novas descobertas e de avaliações cada vez mais precisas daquilo que já era conhecido. Al-gumas teorias se provaram notavelmente estáveis, muitas foram radicalmente modificadas e outras abandonadas por completo.42

Conforme observou Michael Polanyi (1891-1976), um notável químico e filósofo da ciência, os cientistas naturais se vêem obriga-dos a acreditar em algumas coisas sabendo que mais tarde se mos-trarão erradas — mas sem ter certeza sobre qual das atuais convicções se revelará errada. Como Dawkins pode estar tão certo de que suas convicções atuais são verdadeiras, quando a história mostra um per-sistente padrão de abandono de teorias científicas quando surgem melhores abordagens? Que historiador da ciência não consegue per-ceber que tantas coisas já foram uma vez consideradas como conhe-cimento seguro e se desmancharam com a passagem do tempo?

A teorização científica é, portanto, provisória. Em outras pala-vras, ela oferece o que se acredita ser a melhor explicação das obser-vações experimentais disponíveis no momento. Uma mudança teórica radical ocorre ou quando se acredita haver uma explicação melhor sobre certo assunto no momento, ou quando surge uma informação nova que nos força a ver aquilo que conhecíamos sob uma nova luz. A menos que saibamos o futuro, é impossível adotar uma posição absoluta sobre se determinada teoria é "correta". O que se pode dizer — e, de fato, deve ser dito — é que essa é a melhor explicação atualmente disponível. A história simplesmente transforma em tolos os que defendem que um aspecto da atual situação teórica é verdadeiro para sempre. O problema é que não sabemos quais das teorias de hoje serão descartadas como interes-santes fracassos pelas gerações futuras.

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Se as teorias estão assim sujeitas à erosão, o que se passa com as visões de mundo que são baseadas nelas? O que acontece a uma visão de mundo quando seus fundamentos teóricos entram em colapso? Mais uma vez, a história nos proporciona amplas advertên-cias do que acontece quando uma teoria que serve de base a uma visão de mundo desmorona. Como uma pirâmide feita de cartas, a visão de mundo tem o mesmo destino.

No caso do darwinismo, há ainda uma outra dificuldade. En-quanto Charles Darwin tentava oferecer uma explicação de como surgiram as atuais formas de vida animal e vegetal, percebeu que algumas partes das evidências de seu argumento eram históricas. Qualquer tentativa de avaliar a teoria darwinista da evolução requer um conhecimento do passado. No entanto, o método científico poderia de fato ser aplicado ao estudo do passado? A questão é que tal método deve usar no presente uma evidência disponível para reconstruir o que aconteceu no passado — mas com que grau de plausibilidade?

Este problema era tão relevante que, em 1976, Karl Popper hesitou em declarar que a teoria darwinista da seleção natural se incluía estritamente no escopo do método científico, portanto ela poderia ser considerada de caráter "científico".43 Hoje essa atitude é vista como uma reação exagerada, mas baseada numa preocupação legítima. Sempre resta um grau significativo de incerteza e tempo-rariedade a quaisquer conclusões que sejam fundamentadas numa análise do passado, precisamente pelo fato de não ser possível se acessar diretamente a história passada da terra. Embora essa consideração não seja suficiente para arruinar a teoria original de Darwin, levanta, de qualquer modo, questões que não podem ser ignoradas e que deveriam levar a um grau de modéstia a respeito de quaisquer conclusões que extraímos de uma análise do passado.

Todas essas questões tomadas em conjunto suscitam uma per-gunta difícil que não pode ser respondida com algum grau de certe-za. A teoria da evolução darwinista em si teria um dia que ser radicalmente modificada, ou até mesmo abandonada, sofrendo o mesmo destino de tantas outras teorias científicas do passado? E o

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que restará então das confiantes declarações sobre o significado da vida feitas com base nela? Dawkins está ciente deste problema e é bastante explícito sobre suas conseqüências:

Darwin pode triunfar no final do século XX, mas devemos reconhecer a possibilidade de que novos fatos possam vir à tona, forçando nossos sucessores do século XXI a abandonar o darwinismo ou modificá-lo até se tornar irreconhecível.44

Exatamente!

Enquanto Dawkins apressa-se em refutar aqueles que sugerem que a fé desempenha um papel na ciência, seus argumentos ao fazê-lo não atingem de fato o ponto da discussão. A questão não é, conforme Dawkins parece acreditar, se as ciências naturais fundamentam suas teorias num instinto cego, em vez de uma avaliação cuidadosa da evidência disponível. Não existe dúvida sobre o papel crítico e fundamental do raciocínio científico baseado na evidência. Antes, a questão diz respeito ao inegável fato histórico de que a "evidência disponível" é determinada pela situação. A evidência disponível às gerações futuras — por exemplo, por meio do avanço tecnológico— pode exigir uma revisão teórica radical.

Não existe, portanto, contradição em declarar que "se acredita que o darwinismo é atualmente a melhor explicação do desenvolvi-mento da vida biológica". Essa declaração afirma que a evidência e os modelos teóricos atualmente disponíveis são aceitos como os mais sólidos e coerentes, embora permitindo futuros desenvolvi-mentos evidenciais e teóricos, os quais podem levar à revisão ou eventual rejeição das perspectivas de hoje.

As implicações disso são perfeitamente claras, como são suas implicações religiosas e metafísicas. Está absolutamente correto dizer que "os biólogos evolucionistas de hoje acreditam que o darwinismo é a melhor explicação teórica das formas de vida na terra". Mas isso não significa que os futuros biólogos evolucionistas compartilharão deste julgamento. Podemos acreditar que o darwinismo está certo, mas não sabemos se é assim. Para isso temos que permanecer numa

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posição hipotética que nos permita ver a evidência do futuro. Com base no que sabemos hoje, podemos defender esta posição teórica, mas a história da ciência deixa claro que novas evidências costu-mam aparecer, provocando uma revisão radical — talvez até o aban-dono —- de muitas teorias há muito defendidas. O darwinismo será uma delas? E o que acontecerá então a qualquer visão de mun-do, ateísta ou teísta que seja fundamentada nesse mesmo darwinis-mo? A única resposta honesta é que não sabemos. O darwinismo, como qualquer outra teoria científica, deve ser visto como um lugar temporário de repouso, não um destino final.

A amplificação retórica do caso em favor do ateísmo

Res ipsa loquitur — "a coisa fala por si mesma". No início de meu caso de amor com as ciências naturais, tive o que agora reconhe-ço serem expectativas totalmente irreais sobre a disciplina. Uma delas era a idéia encantadora e ingênua, que só poderia ser aceita por um adolescente idealista, de que as ciências naturais eram comple-tamente baseadas nas evidências e somente demonstravam suas con-clusões de acordo com tais evidências. Enquanto as outras disciplinas intelectuais, inferiores, faziam uso de manipulações verbais e outros truques da arte da persuasão, isso era completamente desnecessário nas ciências. A evidência, e só a evidência, era o solo determinante da verdade. "A boa pesquisa não precisa de retórica".

Ainda amo as ciências. No entanto, agora está claro para mim que alguns cientistas naturais usam a retórica além dos limites aceitáveis para impor seu ponto de vista — freqüentemente, deve-se dizer, ao se aventurar além do seu campo de competência, ou ao tentar enco-brir um déficit de evidência experimental com uma cortina de fu-maça verbal. Não se admira que os críticos culturais tenham começado a ler as publicações e literaturas científicas com vista a expor algu-mas das prestidigitações argumentativas e persuasivas ocultas nesses textos.45 O nível de retórica é um indicador infalível do caráter polêmico do argumento. Quanto maior o apelo à retórica, mais fraco o argumento.

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Que tipo de técnicas? Uma das técnicas retóricas mais simples é relacionar seus críticos com aqueles que seu pretendido público leitor entenda como párias. No caso da sociobiologia — uma dis-ciplina científica amplamente vista como muito carregada de retórica — isso significa criar a impressão de que uma discordância com ela coloca você junto com os fundamentalistas religiosos ou inimigos da ciência. Os trabalhos de E. O. Wilson são muitas vezes eleitos como exemplo de uso excessivo desse tipo de retórica. Como Daniel Dennett demonstra, Wilson tende a retratar os seus críticos como nada mais que "fanáticos religiosos ou mistificadores cientificamente analfabetos". Qualquer um que for pouco esperto o bastante para discordar de Wilson será por ele ridicularizado como um "enrola-dor ignorante, que teme a ciência".46 Mas isso não é ciência, e todos sabem.

É fascinante ler Dawkins tendo essa questão em mente. Tem-se notado com freqüência o seu modo maravilhoso de tratar com as palavras, e compartilho a admiração geral por sua lucidez de expressão e a ilustração soberba de pontos complexos, particularmente em O gene egoísta e The Extended Phenotype [O fenótipo estendido]. Esse é Dawkins em sua melhor forma — o valioso comunicador científico. No entanto, ao ler suas outras obras — em particular os ensaios efêmeros e, até certo ponto, de pouco valor reunidos em O capelão do Diabo — tem-se uma impressão bastante diferente. Conforme Robert McFarlane demonstrou ao criticar essa obra no Spectator, Dawkins em geral "se encontra entre os leões-de-chácara da ciência: aqueles brutamontes mal-humorados com um taco de beisebol". Nesses ensaios, não raro encontramos um argumento surpreendentemente raso, sustentado por uma correspondente prosa agressiva.

Depois de ler a produção significativa de Dawkins, percebi que uma análise retórica de suas obras facilmente as poderia dividir em duas categorias.

1. A primeira consiste na maior parte de seus livros publicados, com as significativas exceções de O capelão do Diabo e Desven-

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dando o arco-íris. Tal categoria também inclui alguns de seus tra-balhos acadêmicos mais curtos, em particular os primeiros textos que tratam de questões etológicas. Nesses trabalhos encontramos um modo de argumentação fortemente baseado na evidência, com pontos de vista alternativos apresentados de forma cuidadosa e reflexiva e avaliados à luz dos dados. Embora Dawkins use instru-mentos retóricos tradicionais nesses trabalhos, são tratados com rédea curta. Mesmo que o leitor discorde da interpretação que Dawkins fez das evidências, ainda assim se mantém a prioridade do compromisso específico com os resultados experimentais, como pressuposto compartilhado pelo autor e leitor.

2. O segundo consiste principalmente em trabalhos mais curtos, lidando com coisas que Dawkins não gosta muito — acima de tudo, a religião. Aqui a anedota substitui a evidência, e as alter-nativas em geral são recusadas. O tom dos escritos é agressivo e desprezível, e demonstra pouca, quando há alguma, tentativa de levar as alternativas a sério. Eles são caracterizados muitas vezes por um modo fortemente dicotômico de argumento: "é ou A ou B, e B é totalmente estúpido, logo, deve ser o A". A pro-porção retórica dessas partes é notavelmente alta — tão alta, na realidade, que às vezes é difícil acreditar que seu autor seja o mes-mo defensor das evidências de O gene egoísta. Tanto Desvendan-do o arco-íris quanto a coleção de ensaios agrupada em O capelão do Diabo desdobram um número extraordinariamente grande de dispositivos retóricos, muitas vezes no lugar de uma argu-mentação mais rigorosa. Como um jornalista comentou de for-ma perspicaz: "As obsessões geminadas formam virtualmente cada parte [de O capelão do Diabo] — a evolução darwinista (viva!) e a religião (arre!)".47

Comecemos com um dos mais consistentes trabalhos científi-cos de Dawkins, que é rigorosamente guiado pela evidência. Li pela primeira vez a tese de doutorado de Dawkins numa fria tarde de inverno na Radcliffe Science Library, na Universidade de Oxford.48 É uma fascinante obra de pesquisa, baseada na observação meticu-

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losa do comportamento de pintinhos domésticos quando confron-tados com vários tipos de estímulos. Dawkins abordou sua pes-quisa com uma gama de possíveis modelos sobre tomada de decisão. A cada ponto, a soberania do empírico era afirmada. Cada modelo proposto para explicar como os pintinhos decidem bicar e o que bicar, foi avaliado de forma rigorosa, com base em experiências cuidadosamente planejadas e controladas. O comportamento de um grande número de pintinhos foi examinado de maneira cuida-dosa e comparado criticamente com outros estudos publicados no campo (como os famosos estudos de Impekhoven de filhotes de gaivota da cabeça preta). A tese é um modelo de pesquisa científica objetiva, distanciada e fundamentada nas evidências.

Quando passa a lidar com o comportamento dos religiosos, Dawkins parece abandonar rigorosamente sua abordagem empíri-ca. A linguagem esmerada, a pesquisa meticulosa e os padrões in-transigentes de justificação do laboratório são trocados pelo palavrório dos comícios. Em contraste com os seus estudos etológi-cos dos pintinhos, Dawkins oferece uma "etologia das pessoas religiosas" desprovida de qualquer análise empírica detalhada. Onde se poderia esperar encontrar referência a uma observação sistemática extensa do impacto do comportamento religioso nas pessoas — há um vasto corpo de dados — encontram-se, ao contrário, anedotas notoriamente parciais e generalizações desesperadamente sem substância. A retórica substitui a observação e a análise cuidadosa.

Há uma grande e crescente literatura que trata do impacto da religião — seja considerada de forma genérica, ou como uma for-ma específica de fé — sobre indivíduos e comunidades.49 Embora já tenha sido moda sugerir que a religião seja algum tipo de patolo-gia,50 tal visão está hoje em retração devido à quantidade de evidência empírica que sugere (mas não conclusivamente) que muitas formas de religião poderiam ser na verdade benéficas.51 Com toda a certeza, algumas formas de religião podem ser patológicas e destrutivas. Outras, porém, parecem ser bastante boas para você.

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Uma pesquisa feita em 2001 a respeito de cem estudos que examinaram sistemática e empiricamente a relação entre religião e bem-estar humano revelou o seguinte:

• 79 informaram pelo menos uma correlação positiva entre en volvimento religioso e bem-estar.

•13 não encontraram nenhuma associação significativa entre re-ligião e bem-estar.

• 7 encontraram associações mistas ou complexas entre religião e bem-estar.

• 1 encontrou uma associação negativa entre religião e bem-estar.52

Toda a visão de mundo de Dawkins depende precisamente desta associação negativa entre religião e bem-estar humano que apenas 1 % dos resultados experimentais parece inequivocamente afirmar, e 79%, da mesma forma inequívoca, rejeitar. Os resultados deixam pelo menos uma coisa bem clara: precisamos enfocar esse assunto à luz de evidência científica, não do preconceito pessoal.

Para Dawkins, o caso é simples: a questão é "se você valoriza a saúde ou a verdade".53 Como a religião é falsa — uma das inexpug-náveis crenças centrais recorrentes ao longo de seus textos — seria imoral crer, independentemente dos benefícios que ela possa trazer. Mas, os argumentos de Dawkins de que a crença em Deus é falsa simplesmente não têm sentido. Talvez seja por essa razão que ele os complementa com o argumento adicional de que a religião é ruim para você. O corpo de evidências cada vez maior de que a religião promove o bem-estar humano de fato é muito problemático para ele aqui. Isso não apenas subverte um argumento funcional em prol do ateísmo; começa a suscitar algumas das mesmas questões problemáticas a respeito de sua verdade.

Embora o próprio Dawkins seja por demais crítico da "sedução superficial das histórias individuais que parecem — mas só pare-cem — mostrar um padrão",54 ele, no entanto, parece confiar de forma excessiva em padrões revelados por esse mesmo tipo de

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histórias individuais em seu rotineiro desprezo das pessoas e idéias religiosas. Seu ensaio "O vírus da mente", de onde se extraiu essa citação, é um excelente exemplo do uso seletivo deste dispositi- vo.55

Um dos argumentos centrais do ensaio é que os religiosos fazem coisas muito ruins. Em seu modo alegremente fanfarrão, Dawkins reúne anedotas para nos dizer o quão terríveis são os religiosos. Eles crêem em coisas totalmente estúpidas, pedantes e insensatas (como a doutrina da Trindade), ou exagera sobre as trivialidades (critican-do a precisão das leis da comida kosher). Pessoas inteligentes — como o filósofo Anthony Kenny — afastaram-se da religião. Em vez de tolerar "as contradições óbvias dentro da crença católica", tornou-se "um estudioso altamente respeitado". E, como se não bastasse, a religião encoraja o assassinato de seus oponentes e outros comportamentos ultrajantes.

Bem, alguns religiosos realmente se comportam de maneiras inaceitáveis. Sejamos honestos sobre isso. Mas quantos? Dawkins é um pouco modesto sobre as estatísticas e análises detalhadas das evidências disponíveis. Já vimos como ele também se afasta dos enfoques probabilísticos para avaliação da crença. Em alguns pon-tos de suas obras, Dawkins parece se deixar levar por sua retórica, insinuando que os religiosos são totalmente enganados e engana-dores. Mas esse apelo altamente seletivo à evidência e recusa fácil de alternativas não é científico. Nem mesmo é uma falácia científica. É apenas falácia.

Vamos voltar a Freeman Dyson para esclarecer este ponto. Dyson -— professor de física do Instituto para Estudos Avançados de Princeton — talvez seja um dos físicos mais respeitados do sécu-lo XX. Resume a situação com o que parece ser uma justiça ad-mirável. Alguns religiosos fazem coisas terríveis, outros fazem coisas maravilhosas:

Todos nós sabemos que a religião tem sido historicamente, e ainda é nos dias de hoje, uma causa de grande mal bem como de grande bem nas questões humanas. Vimos guerras e per-

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seguições terríveis cometidas em nome da religião. Também vimos um grande número de pessoas inspiradas pela religião para vidas de virtude heróica, levando educação e cuidado médico aos pobres, ajudando a abolir a escravidão e difundin-do a paz entre as nações.56

Não é tão burilado quanto o pastiche polêmico de Dawkins, mas tem o mérito de fazer alguma justiça aos fatos.

Todos concordariam que alguns religiosos fazem coisas muito perturbadoras. Mas a introdução dessa pequena palavra, "alguns", ao argumento de Dawkins dilui imediatamente seu impacto. Pois isso obriga a uma série de questões críticas. Quantos? Em que cir-cunstâncias? Com que freqüência? Também obriga uma questão comparativa: quantas pessoas com visões anti-religiosas também fazem as mesmas coisas perturbadoras? Uma vez que comecemos a fazer tais perguntas, afastamo-nos da armadilha fácil e de mau gos-to de nossos oponentes intelectuais, e temos que nos confrontar com alguns aspectos obscuros e inquietantes da natureza humana. Vamos explorar isso.

já fui um anti-religioso. Em minha adolescência, fui totalmente convencido de que a religião era inimiga da humanidade, por razões bem parecidas àquelas que Dawkins estabelece em seus conhecidos textos. Mas já não sou. E uma das razões deve-se à minha terrível descoberta do lado obscuro do ateísmo. Permitam-me explicar. Em minha inocência, supunha que o ateísmo difundia a genialidade absoluta de suas idéias, a natureza convincente de seus argumentos, a sua libertação da opressão da religião e o brilho deslumbrante do mundo que recomendava. Quem precisava ser coagido por tais crenças, quando se estava tão obviamente certo?

Agora as coisas parecem muito diferentes. O ateísmo não foi "provado" em nenhum sentido por qualquer ciência, incluindo a ciência evolucionista. Dawkins pensa que pode ser provado, mas oferece argumentos que estão longe de convencer. E, sim, o ateís-mo libertou as pessoas da opressão religiosa, especialmente na França dos anos 1780. Mas quando o ateísmo deixou de ser uma questão

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privada e se tornou uma ideologia estatal, as coisas ficaram de re-pente bastante diferentes. O libertador virou o opressor. Para a sur-presa de alguns, a religião se tornou o novo libertador da opressão ateísta. De modo pouco surpreendente, tais evoluções tendem a ficar de fora da leitura bastante seletiva que Dawkins faz da história. Mas elas precisam ser consideradas com muita seriedade, caso se deseje contar toda a história.

A abertura final dos arquivos soviéticos nos anos noventa levou a revelações que acabaram com qualquer noção de que o ateísmo era uma visão de mundo totalmente boa, gentil e generosa; como alguns de seus partidários mais idealistas acreditavam. O livro negro do comunismo, baseado nesses arquivos,57 gerou sensação quando foi lançado na França em 1997, não menos porque insinuava que o comunismo francês — ainda uma importante força na vida nacio-nal — estava irredutivelmente manchado com os crimes e excessos de Lênin e Stalin. Muitos leitores irados se perguntaram: onde es-tão os "tribunais de Nuremberg para o comunismo?". O comunis-mo foi uma "tragédia de dimensões planetárias" com uma grande quantidade de vítimas estimada, de modo variável, pelos colabora-dores a um volume entre 85 e 100 milhões — superando em muito os excessos cometidos sob o Nazismo.

Ora, é preciso ter cautela com tais estatísticas, ser igualmente cauteloso sobre conclusões apressadas e fáceis com base nelas. No entanto, o ponto básico não pode, de fato, ser negligenciado. Uma das maiores ironias do século XX é que muitos dos atos mais de-ploráveis de assassinato, intolerância e repressão foram levados a cabo por aqueles que pensavam que a religião era assassina, intole-rante e repressiva — e assim procuraram removê-la da face do plane-ta como um ato humanitário. Até mesmo seus leitores mais críticos não podem deixar de perguntar por que Dawkins curiosamente não menciona, sem falar em se posicionar, os rastros de sangue do ateísmo no século XX— uma das razões que, diga-se de passagem, levaram-me a concluir que não poderia mais ser ateu.

Ora, eu poderia chegar à conclusão, com base em algumas histórias selecionadas — como a dos maiores charlatões do século

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XX, Madalyn Murray O'Hair, fundador da American Atheists Inc. [Cia. dos Ateus Americanos]58 — e numa leitura altamente seletiva da história, que todos os ateus são por completo corruptos, violen-tos e depravados. Mas não posso e não o farei, simplesmente porque os fatos não me permitem. A verdade, evidente a qualquer pes-quisador de campo, é que alguns ateus de fato são pessoas muito estranhas — mas que a maioria é gente bem comum, querendo apenas seguir com sua vida, não desejando oprimir, coagir ou assas-sinar ninguém. A religião e a anti-religião são capazes de inspirar grandes atos de bondade por parte de alguns e atos de violência por parte de outros.

A verdadeira questão — conforme apontou Friedrich Nietzsche um século atrás — é que parece existir algo sobre a natureza huma-na que torna nossos sistemas de crença capazes de inspirar tanto grandes atos de bondade quanto grandes atos de depravação. Para ilustrar esse ponto, podemos nos valer de uma anedota pouco conhecida sobre a ciência, que mostra como ela, assim como todas as outras áreas da atividade humana, pode ser usada para o bem ou para mal.

Quando estudava química orgânica em Oxford no início dos anos setenta, fiz uso extensivo de uma obra volumosa intitulada Advanced Organic Chemistry [Química orgânica avançada].59 Ela fora escrita por um casal, marido e esposa, e invariavelmente era chamada "Fieser & Fieser". Foi minha companheira por muitas longas noites na biblioteca da faculdade, quando tentava dar senti-do a algumas das experiências em que estava trabalhando na ocasião. Louis e Mary Fieser eram da Universidade de Harvard, onde abriram caminho para algumas inovações sintéticas muito importantes. Es-tas incluíam a vitamina K-l, o agente coagulante do sangue no corpo humano (uma descoberta fundamental para a hemofilia) e a cortisona (importante agente antiinflamatório). Em reconhecimento a este e outros sucessos, Harvard deu o nome deles a um novo laboratório: o Louis and Mary Fieser Laboratory for Undergraduate Organic Chemistry [Laboratório Louis e Mary Fieser para Estudantes de Química Orgânica] inaugurado em 1996. Adequadamente, a própria Mary Fieser se dedicou ao novo prédio, até sua morte em

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1997. Em todos os sentidos, os Fieser fizeram contribuições im-portantes para a química e o avanço do tratamento clínico humano. Sem dúvida, os novos caminhos sintéticos por eles abertos salva-ram milhares de vidas.

Louis Fieser também foi o pioneiro em outro desenvolvimen-to em Harvard, não mencionado por aqueles com visões positivas e acríticas das ciências. O napalm foi uma das armas mais impor-tantes do exército dos Estados Unidos nas guerras da Coréia e do Vietnã. Fabricada pela Dow Chemical Co., o napalm era um modo rápido e efetivo de neutralizar as tropas escondidas em buracos ou sob a cobertura da selva. Agia queimando os soldados vivos ou privando-os de oxigênio ao incendiar o meio-ambiente. Por volta de 1942, o exército dos Estados Unidos havia percebido a ineficácia no uso da gasolina como um dispositivo incendiário para esse propósi-to. Ela queimava muito depressa. O que na verdade se precisava era que a gasolina fosse modificada para queimar mais lentamente, em temperaturas mais elevadas. Assim grudaria nas pessoas e elas não poderiam interromper a queima do material. Dissolver borracha na gasolina foi uma opção. Mas a borracha era escassa e, portanto, se fazia necessária uma alternativa química.

Um contrato de pesquisa foi lançado para desenvolver gasolina em gel. A Du Pont e a Standar Oil investiram pesadamente tentan-do chegar lá primeiro. Mas a corrida foi vencida por uma pequena equipe sediada em Harvard, encabeçada por ninguém menos que Louis Fieser. (De forma interessante, Mary não parece ter se en-volvido nesse projeto desumano). Embora inicialmente Fieser e sua equipe tivessem esperança de que o divinylacetylene criasse um gel que fosse suficientemente viscoso para aderir à carne humana, essa linha de pesquisa se provou improdutiva. Em vez disso, descobriram que a gasolina poderia ser gelificada se fosse acrescida em aproxima-damente um décimo de seu peso de um pó de napthenate de alumínio (feito de resíduos de óleo cru) e palmitato de alumínio (feito de óleo de coco). As fontes dos materiais deram à substância seu acrônimo — napalm. O uso tanto de pó preto quanto fósforo na espoleta da bomba garantia que o material inflamável e explosi-

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vo não pudesse ser apagado. No momento em que entrasse em contato com o ar, acenderia. Cerca de 35 milhões de quilos da fórmula de Fieser foram produzidos durante a Segunda Guerra Mundial. E a maior parte foi usada contra os japoneses.

Durante a noite de 9 para 10 de março de 1945, 279 bombar-deiros US B-29 Superfortress, de baixa altitude, jogaram 1.667 tonela-das de napalm sobre Tóquio. A conseqüente tempestade de fogo devastou uma ampla área composta principalmente de construções de madeira. Ainda não se sabe precisamente quantos foram quei-mados vivos, quantos feridos e quantos desabrigados. Um número que pode ter chegado a 100.000 seria a contagem de mortos naquela noite. Mas quaisquer que sejam as estatísticas, foi sem sombra de dúvida um dos atos mais destrutivos da Segunda Guerra Mundial, excedendo o dano inicial e o morticínio posteriormente causado pela primeira bomba atômica.

Fieser declarou que não era responsável pelo modo como sua invenção era usada por outras pessoas. Chegou mesmo a encontrar um uso para o produto que não fosse para queimar pessoas ou edifí-cios —livrar-se de um tipo de erva daninha muito comum no jardim (a Digitaria ischaemum), queimando suas sementes e deixando a grama boa intata. De qualquer modo, ficou demonstrado que o napalm foi projetado para incinerar pessoas e edifícios. Uma "versão melhorada" do napalm foi desenvolvida depois da guerra por Dow, consistindo de 46% de poliestireno, 33% de gasolina e 21% de ben-zeno. A fórmula original de Fieser só tem agora interesse puramente histórico. Mas sua invenção havia queimado homens, mulheres e crianças vivos, numa escala assustadora.

Ora, o que devemos concluir dessa anedota? Que todos os cien-tistas são necessariamente maus? Ou que a ciência em si é malévola? Sem dúvida há alguns que desejariam extrair essa conclusão, em especial os alarmados com o papel da ciência e dos cientistas no desenvolvimento de armas — algo que, a propósito, Dawkins en-cobre bastante — usando esta, bem como outras histórias, numa tentativa de destruir a reputação pública da ciência e dos cientistas. O que seria tão inválido quanto as igualmente fracassadas tentati-

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vas de difamar o ateísmo ou a religião por causa dos atos de alguns de seus seguidores. Se tais atos fossem, de modo demonstrável, típicos ou característicos, seria diferente. A verdadeira questão aqui se refere ao que é um comportamento normal e ao que é aberrante. Pode ser útil aos seus propósitos polêmicos tratar o patológico como característico, ou o aberrante como normal. Mas goste Dawkins ou não, a maioria dos ateus, cristãos e cientistas são pessoas co-muns, nem muito virtuosas nem muito más.

A crença religiosa às vezes conduz ao mal, direta ou indireta-mente. Mas a religião não tem o monopólio disso, como se fosse a única área da vida e do pensamento humano que levasse à ruína dessa maneira. A própria ciência pode ser mal usada, conforme al-gumas das experiências médicas mais sinistras da Alemanha nazista não deixam dúvida. No entanto, Dawkins com certeza diria que se trata de um mau uso da ciência, totalmente atípico em relação a seus valores e perspectivas normais. Eu concordaria. Mas, se essa estratégia defensiva pode ser permitida à ciência, por que não tam-bém à religião? Por que não reconhecer que o mau uso da religião é patológico e destrutivo, como a maioria já sabe? A religião, como todas as outras áreas da atividade e pensamento humano, precisa ser reformada, revista e corrigida — mas não abolida.

Há aqui uma questão muito séria que precisa ser discutida, de forma aberta e franca, do mesmo modo por ateus, cristãos e cien-tistas: como alguns daqueles que são inspirados e edificados por uma grande visão da realidade acabam fazendo coisas tão terríveis? Essa é uma verdade sobre a natureza humana em si. Se realmente quisermos ter uma "sociedade aberta", é preciso haver uma discussão cuidadosa e informada de como devemos evitar a violência e a agressão. Fingir que a religião é o único problema no mundo, ou a base de toda dor.e sofrimento, não é uma opção válida para quem pensa. É apenas retórica, um mascaramento de um problema difícil que todos precisamos discutir — isto é, como os seres humanos podem coexistir e controlar suas paixões.

Então, a religião é uma "fé cega", que se nega à evidência? Difi-cilmente. Essa definição é por si só uma peça de retórica, inventada

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para satisfazer as necessidades do projeto de Dawkins. Quando dis-cuto essas questões em público, sempre me perguntam por que os cristãos crêem cegamente em Deus, na ausência de qualquer ampa-ro na evidência. Peço que tenham a gentileza de me dizer onde adquiriram uma idéia tão absurda e, para justificá-la, que citem um escritor cristão importante. Em geral sou contemplado com um silêncio embaraçado. Em algumas ocasiões recebi a resposta: "Bem, é isso o que Richard Dawkins diz". O público em geral ri, enten-dendo tudo.

Ainda em sua bastante condescendente "Oração para a minha filha", Dawkins diz a ela que uma "razão errada para se acreditar em alguma coisa" é "que alguém importante lhe disse para acreditar".60

Assim por que alguém deveria acreditar em Dawldns quando ele nos diz o que os cristãos acreditam que seja a fé? Tal definição idiossin-crática é de sua própria lavra, criada ao que tudo indica para fins puramente polêmicos. Seria muito importante uma análise com base nas evidências para esclarecer a questão, de forma que a dis-cussão se fundamentasse no que os cristãos de fato acreditam, não no que Dawkins pensa que acreditam. Então poderíamos chegar a algum lugar numa discussão sobre a relação entre ciência e religião.

1 Richard E. Nisbett & Lee D. Ross, Human Inference: Strategies andShortcomings ofSocialJudgment. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1980, p. 192.

2 Nisbett & Ross, Human Inference, p. 169. 3Keith Ward, God, Chance andNecessity. Oxford: One World 1996, p. 99-100. 4 The Selfish Gene, p. 198. 5 The Selfish Gene, p. 330 (essa passagem foi acrescentada à segunda edição). 6 A conferência não teve um título definido e foi publicada sob o título "Lions 10, Christians Nil" no volume 1, número 8 (dezembro de 1994) de um periódico eletrônico intitulado "The Nullafidian", que se descreve como "The E-Zine of Atheistic Secular Humanism and Free thought", antigamente conhecida como "Lucifers Echo". Não há paginação. O periódico parece ter interrompido a publicação em março de 1996.

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7 A DevWs Chaplain, p. 117 *A

Devils Chaplain, p. 248.

'WH, Griffith.-Th.omas, The Principies of Theology. Londres: Longmans, Green, 1930, p. xviii. A fé inclui, portanto, "a certeza da evidência" e a "certeza de coerência"; "não é cega, mas sim inteligente" (p. xviii-xix).

10 Ver, por exemplo, DimitryV. ¥osç'ie\ovsky,AHistoryofMarxist-LeninistAtbeism andSovietAnti-Religious Policies. Nova York: St. Martins Press, 1987.

11 Debate entre Richard Dawkins & Steve Pinker na Westminster Central Hall, Londres, em 19 de fevereiro de 1999, presidido por Tim Radford, correspondente de ciência do The Guardian.

12 The Selfish Gene, p. 330. 13 Dawkins compara uma série de "caricaturas" do darwinismo com a coisa real em The Blind Watchmaker, p. 308-11. Seria instrutivo fazer o mesmo para as caricaturas da crença religiosa, no que, eu temo, Dawkins poderia figurar de forma bastante proeminente, e então compará-las com as declarações autênticas dos principais teólogos e declarações de fé, como a carta-encíclica "Fé e Razão", do papa João Paulo II (setembro de 1998).

14Ver David Corfield & Jon Williamson, Foundations ofBayesianism. Dordrecht: Kluwer Academic, 2001; Eric D. Green & PeterTillers, Probability andTnference in theLawofEvidence: The UsesandLimitsofBayesianism. Dordrecht: Kluwer Academic, 1988.

15 Elliott R Sober, "Modus Darwin." Biology andPhilosophy 14 (1999), p. 253- 78.

16 Richard Swinburne, The Resurrection ofGodlncarnate. Oxford: Clarendon Press, 2003.

n The Selfish Gene, p. 19%. 18 The Selfish Gene, p. 1. 19 ClimbingMountlmprobable, p. 68. 20 Ver, por exemplo, Wesley C. Salmon, Scientific Explanation and the Causai Structure of the World. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1984.

21 Paul Kitcher, "Explanatory Unification and the Causai Structure of die World". In Scientific Explanation, editado por P. Kitcher & W Salmon, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989, p. 410-505.

22 Ver especialmente Richard P. Feynman, WhatDo You Care What Other People Think? Londres: UnwinHyman, 1989; Richard P. Feynman, TheMeaningoflt Ali. Londres: Penguin Books, 1999.

23 Timothy Shanahan, "Methodological and Contextual Factors in the Dawkins/ Gould Dispute over Evolutionary Progress". Studies in History and Philosophy of Science 31 (2001), p. 127-51.

24 Ludwig Wit tgenst e in , Lec tu res and Conversa t i on s on Aes the t i cs , Psychology and Religious Belief . Oxford: Blackwell , 1966. "Se eu tivesse que dizer qual o principal

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erro cometido pelos filósofos, [...] eu diria que, quando a linguagem é considerada, o que é considerado é uma forma de palavras e não o uso feito da forma de palavras".

25 Madeleine Sigman-Grant & Jaime Morita, "Defining and Interpreting Intakes ofSugars"'. American Journal of^ClinicaiNutrition 78 (2003), p. 815S-826S.

26 Richard Dawkins, "In Defence of Selfish Genes." Philosophy 56 (1981), p. 556- 73. Para um artigo original de Midgley, ver Mary Midgley, "Gene-Juggling". Philosophy 54 (1979), p. 439-58. Para sua resposta às críticas de Dawkins,,ver Mary Midgley, "Selfish Genes and Social Darwinism". Philosophy 58 (1983), p. 365-77.

27 Tenho em mente obras como Richard Swinburne, The Coherence of Theism. Oxford: Clarendon Press, 1977; Nicholas Wolterstorff, Reason within theBounds ofReligion. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1984; Alvin Plantinga, Warranted Christian Belief. Oxford: Oxford University Press, 2000.

2SADevil's Chaplain, p. 139. 29Para detalhes, verRobert D. Sider,"'Credo QuiaAbsurdumY'. ClassicalWorld73

(1978), p. 417-19. 30 Tertuliano, depaenitentia v, 4. 31 James Moffat, "TertullianandAristotle". Journalof ^Theological Studies 17 (1916), p. 170-1.

32 Ver especialmente Robert D. Sider, Ancient Rhetoric and the Art ofTertullian. Oxford: Oxford University Press, 1971, p. 56-9.

33 Tertuliano, de paenitentia i, 2. "Quippe res dei ratio quia deus omnium conditor nihil non ratione providit disposuit ordinavit, nihil enim non ratione tractari intellegique voluit".

34 A DeviVs Chaplain, p. 1Í7. 35 Ver o excelente estudo de Lawrence Badash, "The Completeness of Nineteenth- Century Science". Isis 63 (1973), p. 48-58.

36 W D. Niven (ed.), TheScientificPapers of James ClerkMaxwell, 2 v. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, v. 2, p. 244.

i7 lSÁax.V\anái, A Scientific Autobiography. Nova York: Philosophical Library, 1949, p.8.

38 Robert A. Millikan, The Autobiography of Robert A. Millikan. Nova York: Houghton, Mifflin, 1950, p. 23-4. Sobre Millikan, ver Robert Hugh Pargon, The Rise of Robert Millikan: Portrait of a Life in American Science. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1982.

39 Simon Newcomb, "The Place of Astronomy among the Sciences". The Sidereal Messenger7 (1888), p. 69-70.

40 William Bateson, MendeVs Principies of Heredity. Cambridge: Cambridge University Press, 1909, p. 2-3. Para o trabalho do próprio Bateson sobre as ervilhas-de-cheiro, ver William Bateson, E. R. Saunders & R. C. Punnett,

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"Further Experiments on Inheritance in Sweet Peas and Stocks: Preliminary Account". In Scientific Papers ofWilliam Bateson, editado por R. C. Punnett, p. 139-41. Cambridge: Cambridge University Press, 1905.

41 Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 2a. ed. Chicago: University of Chicago Press, 1970.

42 A respeito das ciências biológicas, ver os pontos levantados por Sylvia Culp & Philip Kitcher, "Theory Structure and Theory Change in. Contemporary Molecular Biology". British Journal for the Philosophy of Science 40 (1989), p. 459-83.

43KarlR. Popper. Autobiografia intelectual. 2a. ed. São Paulo: Cultrix, 1986. Ele mudou de idéia durante os anos seguintes: ver Karl R. Popper, carta para o New Scientist 87, p. 611, 21 de agosto de 1980. Para um estudo sobre tais questões, ver David N. Stamos, "Popper, Falsifiability, and Evolutionary Biology". Biology and Philosophy 11 (1996), p. 161-91.

44 A Devils Chaplain, p. 81. Dawkins sugere ser possível isolar um "núcleo darwinista" que seria relativamente resistente a esse tipo de erosão histórica.

45 Em geral se considera que a obra que incitou isso foi a de Alan G. Gross, The Rhetoric of Science. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1990; segunda edição, 1996. Para algumas reflexões sobre as implicações desse ponto, ver Gillian Beer, Darwins Plots: Evolutionary Narrative in Darwin, George Eliot, and Nineteenth-Century Fiction, 2a ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

46 Daniel C. Dennett, Darwins Dangerous Idea: Evolution andtheMeaningofLife. Nova York: Simon & Schuster, 1995, p. 471.

47 Simon Hattenstone. "Darwins Child". Guardian, 10 de fevereiro de 2003. 48 Richard Dawkins, "Selective Pecking in the Domestic Chick". Tese de doutorado, Oxford University, 1966.

49 Ver W. R. Miller & C. E. Thoreson, "Spirituality, Religion and Health: An Emerging Research Field". American Psychologist58 (2003), p. 24-35.

50 A visão da "religião como patologia" tem origem em grande parte dos estudos pseudocientíficos de Sigmund Freud: ver Frederick Crews (ed.), Unauthorized Freud: Doubters Confronta Legend. Nova York: Penguin Books, 1998. Sobre o crescente reconhecimento do positivo impacto pessoal e social da fé, ver Rodney Stark, For the GloryofGod-.HowMonotheismLedtoReformations, Science, Witch- Hunts, andtheEndof Slavery. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2003.

51 Por exemplo, ver Harold G. Koenig & Harvey J. Cohen, The Link between Religion and Health: Psychoneuroimmunology andthe Faith Factor. Oxford: Oxford University Press, 2001; A. J. Weaver, L. T. Flannelly, J. Garbarino, C. R. Figley & K. J. Flannelly, "A Systematic Review of Research on Religion and Spirituality in the Journal ofTraumatic Stress, 1990-99". Mental Health, Religion andCulture 6 (2003), p. 215-28.

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^2 Koenig & Cohen. The Link between Reiigion and Health, p. 101. 53 Citado em Kim A. McDonald. "Oxford U. Professor Preaches Darwinian

Evolution to Skeptics". ChronicleofHigherEducation, 29 de novembro de 1996. HA Devils Chaplain, p. 185. 55 A DeviVs Chaplain, p. 128-45. 56 Discurso de agradecimento ao ser premiado com oTempleton Prize for Progress in Religion, de 2000; republicado em The Tablet (20 de maio de 2000), p. 234.

57StéphaneCourtois, The Black Book of Communism: Crimes, Terror, Repression. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999.

58 Para detalhes, ver Alister McGrath, The TwilightofAtheism: The Rise and Fali of Disbeliefin the Modem World. Nova York: Doubleday, 2004.

59 Louis Frederick Fieser & Mary Fieser, Advanced Organic Chemistry. Londres: Chapman & Hall, 1968.

60 A Devils Chaplain, p. 243-5.

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Darwinismo cultural?

A curiosa "ciência" da memética

O darwinismo é uma teoria demasiado grande para ser limitada ao campo da biologia. Por que restringir o darwinismo ao mundo do gene, quando está carregado de significado para cada aspecto da vida e pensamento humano? Em O gene egoísta (1976), Dawkins explica que por muito tempo esteve interessado na analogia entre informação cultural e genética. A teoria darwinista não poderia ser aplicada à cultura humana, tanto quanto ao mundo da biologia? Esse movimento intelectual dá a base para converter o darwinismo de uma teoria científica para uma visão de mundo, uma metanarra-tiva, uma visão abrangente da realidade.

A proposição, no entanto, exige um equivalente cultural ao gene — um "replicador cultural", que garanta a transmissão da informação no tempo e no espaço. Se o conceito de um replicador cultural pudesse ser estabelecido numa base científica sólida, o darwinismo seria trans-formado num método universal, indo além do domínio específico da evolução biológica para incluir o mundo da cultura.1

Dawkins faz parte de uma longa tradição dos que tentam apli-car a teoria da evolução à cultura humana, inclusive Herbert Spen-cer no século XIX e E. O. Wilson no XX. O psicólogo evolucionista Donald T. Campbell (1916-96) desenvolveu a idéia de um "replicador cultural" já em 1960,2 e introduziu o termo "mnemone".3 A idéia relacionada da "culturgen" encontrou particular aceitação na sociobiologia norte-americana.4

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Embora a noção de um replicador cultural estivesse longe de ser novidade, Dawkins fez o máximo para popularizar o conceito e torná-lo acessível a um público mais amplo por meio de sua termi-nologia e exemplos simples. Sobretudo, introduziu o termo que passou a dominar a discussão pública do assunto — o "meme". Em parte, o grande sucesso desse termo se deve à terminologia mais elegante e memorável que Dawkins desenvolveu. Mas, outro fator foi o grande alcance popular de seus textos, que possibilitou a um amplo público leitor conscientizar-se do potencial das analogias essencialmente biológicas para o desenvolvimento cultural. Como resultado, a obra de Dawkins gerou uma considerável discussão popular.5

Neste capítulo, analisaremos a contribuição central de Dawkins para uma explicação darwinista da evolução da cultura humana —-uma concepção específica do replicador cultural que ele chamou de "meme". Desde o início, Dawkins associou sua idéia de "meme" às questões de crença religiosa, referindo-se às religiões como "principais exemplos de memes".6 Por isso, é evidentemente importante explorar o conceito neste livro, situando-o dentro do amplo espectro das recentes críticas ateístas às crenças religiosas.

Uma série de escritores — inclusive Karl Marx (1818-83) e Sig-mund Freud (1856-1939) — argumentaram que, visto não existir nenhum Deus em quem acreditar, a crença religiosa humana é em essência uma invenção destinada a proporcionar um "conforto metafísico" (Nietzsche) para uma humanidade existencialmente sitiada.7 Dawkins desenvolve essa perspectiva em uma nova direção, afirmando que as religiões são basicamente "vírus da mente". A crença em Deus deve ser vista como uma "informação auto-repli-cada" que "pula, de maneira infecciosa, de cérebro em cérebro". É uma idéia que Dawkins considera tanto academicamente atraente quanto humanamente repulsiva,8 e que passou a descrever de forma proeminente em recentes textos ateístas polêmicos bem conhecidos. Mas isso está correto?

A seguir, explorarei as origens do conceito do "meme" por Dawkins, expondo quatro objeçÕes essenciais que confrontam essa

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idéia específica; antes de passarmos a considerar a idéia seguinte de Dawkins de que Deus é um parasitário "vírus da mente". Essas ob-jeções podem ser resumidas da seguinte forma:

• Não existe razão para supor que a evolução cultural seja darwinista, ou que de fato a biologia evolutiva tenha algum valor particular na explicação do desenvolvimento das idéias.

• Não existe prova direta para a existência dos próprios "menies".

• A justificativa para a existência do "meme" encontra-se na suposição questionável de uma analogia direta com o gene, que se mostra incapaz de sustentar o peso teórico que é colocado sobre ele.

• Não existe razão necessária para propor a existência de um "meme" como uma idéia explicativa. Os dados observacionais podem perfeitamente ser explicados por outros modelos e mecanismos.

Voltaremos a considerar isso mais demoradamente depois de anali-sarmos como surgiu a noção de "meme".

As origens do meme

Em um artigo importante de 1968, expandido em 1975, o antropólogo F. T. Cloak propôs que a cultura evoluía por um mecanismo essencialmente darwinista, e estabeleceu como os méto-dos etológicos poderiam ser aplicados ao comportamento de uma cultura específica.9 A questão se é possível identificar e estudar os replicadores culturais, diretamente em analogia com os genes, tinha sido, portanto, levantada antes que Dawkins publicasse O gene egoís-ta.

Evidentemente, o modelo de Cloak foi importante para Daw-kins quando escreveu O gene egoísta. Cloak fez uma distinção entre "i-cultura" (o conjunto de informações culturais contidas no siste-ma nervoso) e "m-cultura" (as relações nas estruturas materiais que são mantidas por tais informações, ou mudanças nas estruturas materiais que ocorrem como resultado dessas informações).

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Dawkins recorda, como queria um termo para "replicador cul-tural" que soasse como "gene" — enfatizando, assim, a analogia entre transmissão cultural e genética — e, portanto, propôs "meme"10 — uma abreviação do termo "mimeme" derivado do grego mimesis ("imitação"). O meme foi proposto como um repli-cador hipotético — "uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação"11 — para explicar o processo do desenvolvi-mento da cultura dentro de uma estrutura darwinista:

Da mesma maneira que os genes se propagam no conjunto de genes saltando de corpo em corpo via esperma ou óvulos, também os memes se propagam no conjunto de memes saltan-do de cérebro em cérebro por um processo que, no sentido amplo do termo, pode ser chamado de imitação.

Como exemplos do que tem em mente, Dawkins aponta coisas como melodias, idéias, frases captadas, costumes, aspectos de ar-quitetura, músicas — e Deus.

No entanto, existe um problema com esta definição de meme. Na explicação que Dawkins faz da síntese neodarwinista, o gene é que constitui a unidade de seleção, embora seja o fenótipo que está, de fato, sujeito ao processo de seleção. O gene é o replicador, ou o conjunto de informações; o fenótipo é a manifestação física do organismo, as características ou comportamentos visíveis que são o resultado daquele conjunto de informações. Entretanto, todos os exemplos de "memes" que Dawkins oferece em O gene egoísta são o resultado de tais informações, não das informações em si.12 Embora Dawkins tenha proposto uma analogia entre meme e gene, na ver-dade exemplificou isso recorrendo ao equivalente cultural de fenóti-pos, não de genes. A sugestão de Dawkins de um paralelo entre a propagação de genes no conjunto de genes e memes em um (hipotético) conjunto de memes não foi, deste modo, totalmente justificada.

Dawkins reconheceu esse problema e modificou tais idéias em sua obra seguinte, mais popular — The Extended Phenotype [O

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fenótipo estendido] (1982). A sua proposta original do meme, admitiu ele, era falha; exigia correção.

Eu estava insuficientemente esclarecido sobre a diferença en-tre o meme em si, como replicador e, por outro lado, de seus "efeitos fenotípicos" ou "produtos do meme". Um meme de-veria ser considerado como uma unidade de informação que reside num cérebro (a "i-cultura de Cloak). Ele possui uma estrutura definida, percebida dentro de qualquer meio que o cérebro usa para armazenar informação (...) Assim ocorre para distingui-lo dos efeitos fenotípicos, que são suas conseqüên-cias no mundo exterior (a "m-cultura de Cloak).13

Esse esclarecimento subtraiu um problema fundamental com o conceito de meme. Em qualquer explicação neodarwinista padrão, os genes dão origem a fenótipos. Não há possibilidade de causa fenotípica de propriedades genéticas. Em poucas palavras: os genes são selecionados, não ordenados}'1 Dawkins, que vigorosamente defende este "dogma central" da ortodoxia darwinista, colocou-se numa posição potencialmente indefensável, com isso ele parecia sugerir que os fenótipos é que eram herdados.

A nova definição de meme o identifica como a unidade funda-mental de informação ou instrução que dá origem aos artefatos e idéias culturais. É o conjunto de informações, o projeto, não o produto. O que Dawkins originalmente definiu como memes — coisas como "melodias contagiosas" — agora serão consideradas "produtos do meme". No plano popular, porém, o conceito de meme de Dawkins continua sendo discutido em termos de sua definição de 1976, estabelecido em O gene egoísta; em vez de sua revisão de 1982, conforme apresentado no, um pouco menos lido, The Extended Phenotype [O fenótipo estendido].

Então, qual é a relevância disso para Deus? Dawkins é um ateu e incorretamente acredita que a fé religiosa é uma "confiança cega", que recusa levar em conta a evidência. Logo, por que as pessoas acreditam em Deus, quando não existe Deus para acreditar? A res-posta proposta por Dawkins repousa na possibilidade de um "meme-

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Deus" de se reproduzir na mente humana. O "meme-Deus" opera particularmente bem porque tem "grande valor de sobrevivência, ou poder de contaminação, no ambiente proporcionado pela cul-tura humana".15 As pessoas não crêem em Deus porque lhes foi possível uma longa e cuidadosa reflexão sobre o assunto, elas o fazem porque foram infectadas por um meme poderoso. (Essa idéia seria desenvolvida posteriormente em termos da imagem de Deus como um vírus). Em ambos os casos, a intenção e resultado é uma subversão da legitimidade intelectual da crença em Deus. O meme-Deus ou vírus-Deus serve apenas para infectar as pessoas.

O mesmo, naturalmente, seria do mesmo modo válido para um meme-"ateu". Dawkins não aborda, com base em sua perspec-tiva memética, o modo como o ateísmo se difunde, presumivel-mente devido à sua crença central de que o ateísmo é cientificamente correto. Na verdade, ele é em si uma crença, que requer explicação. O modelo de Dawkins na realidade exige que tanto o ateísmo quanto a crença em Deus sejam vistos como conseqüências meméticas. Elas são, portanto, igualmente válidas — ou igualmente inválidas, nesse sentido.

O problema de tal perspectiva fica imediatamente óbvio. Se to-das as idéias são memes, ou conseqüências dos memes,16 Dawkins fica, decididamente, na incômoda posição de ter que admitir que suas próprias idéias também precisam ser reconhecidas como con-seqüências dos memes. As idéias científicas se tornariam, deste modo, mais um exemplo de memes se reproduzindo dentro da mente humana. Isso não se ajustaria absolutamente aos propósitos de Dawkins e ele exclui a noção de uma maneira intrigante:

As idéias científicas, como todos os memes, estão sujeitas a um tipo de seleção natural, e, nisso, poderiam se assemelhar, à primeira vista, a um vírus. Mas as forças seletivas que exami-nam a fundo as idéias científicas não são arbitrárias ou capri-chosas. São regras exatas, bem afiadas, não estando a serviço de comportamento egoísta e sem sentido.17

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Isso representa um exemplo de falácia, na qual Dawkins faz uma tentativa malsucedida de fugir da armadilha de fazer referência a si mesmo. Qualquer um que tenha familiaridade com a história in-telectual, reconhece imediatamente o padrão. O dogma de todos está errado, exceto o meu. Minhas idéias são isentas dos padrões gerais que identifico em outras idéias, as quais me permitem ex-plicá-las de outro modo, renunciando a mim mesmo para domi-nar o campo.

Mas por que afinal, estar em conformidade com critérios cientí-ficos permitiria determinar se um meme é "bom" ou "útil"? Em qualquer leitura convencional das coisas, um "meme bom" ou "útil" seria aquele que pudesse promover harmonia, que desse a alguém um sentimento de pertencimento, ou que aumentasse a expectati-va de vida. Esses pareceriam critérios mais naturais e óbvios para os memes "bons". Mas numa reflexão posterior, a verdade vem à tona. Não existem, de maneira alguma, "critérios naturais" envolvidos. Decidimos se gostamos deles ou não, e então rotulamos os memes, respectivamente. Se você gostar de religião, é um "meme bom"; se não, é "ruim". No fim, tudo o que Dawkins faz aqui é construir um argumento completamente circular, refletindo o seu próprio sistema subjetivo de valores.

Voltaremos a isso, ainda neste capítulo, para analisar a idéia de "Deus como um vírus". Mas primeiro, devemos mostrar as quatro objeções, já mencionadas, que levaram muitos a abandonar o "meme" como uma ferramenta séria de pesquisa científica. Con-forme demonstrado por Simon Conway Morris, os memes não têm lugar na reflexão científica séria:

Os memes são triviais, podendo ser banidos por simples exer-cícios mentais. Em qualquer contexto mais amplo, são abso-lutamente, se não risivelmente, simplistas. Invocar os memes revela não somente uma estranha imprecisão de pensamento, mas, como observou Anthony O'Hear; se os memes realmente existissem, no final das contas, negariam a realidade do pen-samento refletivo.18

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O desenvolvimento cultural é darwinista?

Meu próprio interesse na história intelectual se desenvolveu mais ou menos ao mesmo tempo em que Dawkins pela primeira vez estabeleceu a teoria do "meme". Quando me deparei com a idéia do "meme" pela primeira vez em 1977, achei-a imensamente instigante. Ali estava algo potencialmente aberto a uma investigação rigorosa com base na evidência, oferecendo novas possibilidades para o estudo do desenvolvimento intelectual e cultural. Por que fiquei tão otimista com a idéia? Eu estava em vias de dar início ao que viria a ser uma de minhas preocupações por toda a vida: a história das idéias. Meu interesse particular estava em como as idéias reli-giosas se desenvolvem com o passar do tempo, e os fatores que levam ao seu desenvolvimento, modificação, aceitação ou rejeição e — pelo menos em alguns casos — à sua lenta caída no esqueci-mento.

Conforme eu pensava na época, o "meme" me permitiria criar e validar modelos sólidos e seguros para o desenvolvimento in-telectual e cultural, firmemente fundamentados na evidência ob-servacional. Mas, quando iniciei minha pesquisa, fui me deparando com sérios obstáculos em praticamente cada área da atividade intelectual que investigava.

O mais importante deles foi minha crescente percepção de que o próprio darwinismo parecia muito inadequado para responder pelo desenvolvimento da cultura, ou a forma global da história intelectual. Quando pesquisei o aumento do ateísmo durante sua "Idade de Ouro" (1789-1989), fiquei impressionado com a inten-cionalidade da recuperação contemporânea dos mais antigos ateís-mos de escritores como Xenofanes ou Lucrécio. Essas idéias eram deliberadamente reapropriadas. Sua revivificação não aconteceu simplesmente; fez-se com que acontecesse para se alcançar um objetivo específico. O processo era fortemente teleológico, guiado precisamente pelo propósito e intencionalidade que a ortodoxia darwinista excluía do processo evolutivo.

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O mesmo ponto pode ser visto no advento do Renascimento, amplamente considerado um dos desenvolvimentos mais notáveis na história da cultura ocidental. Suas origens encontram-se na Itália do século XIII, embora seu florescimento pleno tenha acontecido nos dois séculos seguintes.19 O movimento se expandiu da Itália para o norte da Europa, causando relevantes mudanças onde quer que fosse estabelecido. O impacto cultural do movimento foi imen-so — por exemplo, o estilo gótico de sua arquitetura abriu caminho ao estilo clássico, causando um impacto significativo nas paisagens urbanas européias ocidentais.20

Mas por qual motivo isto aconteceu? Que explicação pode ser dada para este radical e altamente criativo redirecionamento da cul-tura européia naquele momento? Uma vez que as origens e o de-senvolvimento do movimento são tão bem conhecidos, ele representa um exemplo ideal — na verdade, até mesmo crítico — para o apelo da teoria do meme.

Desde a obra pioneira de P. O. Kristeller tem-se aceito ampla-mente que a base fundamental do Renascimento é a reapropriação crítica da cultura da Roma antiga (e, em menor extensão, de Ate-nas).21 Talvez estimulado pela presença de resquícios da civilização clássica na Itália, os teóricos do Renascimento defenderam a recu-peração do rico patrimônio cultural do passado — o latim elegante de Cícero; a eloqüência da retórica clássica; o esplendor da arquitetura clássica; as filosofias de Platão e Aristóteles; os ideais políticos republicanos que inspiraram a constituição romana.22 Os escritores do Renascimento estabeleceram de forma deliberada e sistemática a adoção desses princípios e os aplicaram à própria condição.

É um quadro fascinante e complexo que continua deleitando uma nova geração de estudiosos. Mas, de fato, traz à tona algumas sérias dificuldades para teoria de Dawkins. As origens, o desenvolvi-mento e a transmissão do humanismo renascentista — embora sujeitos ao acaso inevitável da história — era deliberado, intencional e planejado. Se o darwinismo fala sobre copiar as instruções (genóti-po), o lamarckismo fala sobre copiar o produto (fenótipo). Parece-

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ria então que Lamarck, em vez de Darwin, oferece a melhor expli-cação da evolução cultural.

Os padrões de desenvolvimento que encontrei na história do Renascimento — e, devo acrescentar, na maior parte dos outros fenômenos intelectuais e culturais que estudei — são o da mistura de memes, e um padrão claro de causalidade intelectual que nos forçam a usar uma interpretação lamarckiana do processo evoluti-vo, em vez de neodarwinista, — supondo, naturalmente que, a biologia evolutiva tem alguma relevância para o desenvolvimento da cultura, ou para a história das idéias. O uso de termos como "dar-winismo" e "lamarckianismo" para descrever o desenvolvimento cultural pode simplesmente ser um completo equívoco, sugerindo uma analogia fundamental onde nada — a não ser a passagem do tempo e a observação da mudança — existe de fato.

Dawkins parece estar ciente de problemas desse tipo. Considere estes comentários de advertência de 1982:

Os memes podem se misturar parcialmente entre si de um modo que os genes não podem. Novas "mutações" podem ser "controladas" em vez do aleatório em relação às propriedades evolutivas. O equivalente do weismannismo é menos rígido para os memes do que para os genes; pode haver cursores lamarckianos causais no sentido do fenótipo para o replica-dor, bem como no sentido oposto. Essas diferenças podem se provar suficientes para tornar a analogia com a seleção genética inútil, ou positivamente equivocada.23

Penso que este é um julgamento justo. Se a evidência observacional nos obrigasse a concluir que a evolução cultural ou o desenvolvi-mento de idéias aconteceu de uma maneira darwinista, então seria o fim do debate. Mas o modelo é singularmente desobrigatório, talvez porque seja especialmente impróprio. A evolução biológica e cultural pode ter os seus pontos de semelhança; no entanto, pare-cem proceder de mecanismos bastante diferentes.

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Os memes realmente existem?

A segunda dificuldade com a idéia de meme é que ela é inade-quadamente fundamentada na evidência. Em seu prefácio para The Meme Machine (A máquina de meme) de Susan Blackmore (1999), Dawkins mostra os problemas que o "meme" enfrenta para ser le-vado com seriedade dentro da comunidade científica:

Outra objeção é que ainda não sabemos do que os memes são feitos, ou onde residem. Os memes ainda não encontraram os seus Watson e Crick; falta-lhes até mesmo o seu Mendel. Enquanto os genes são encontrados em locais exatos nos cro-mossomos, os memes presumivelmente existem no cérebro, e temos ainda menos chance de ver um meme do que, um gene (embora o neurobiólogo Juan Delius tenha levantado hipóteses sobre qual seria a aparência de um meme).24

Ao falar sobre os memes Dawkins é como os crentes que falam sobre Deus — um postulado invisível, inverificável que ajuda a explicar algumas coisas sobre a experiência, mas no final das contas encontra-se além da investigação empírica.

E o que devemos fazer exatamente quanto ao fato de o neuro-biólogo Juan Delius ter descrito a sua hipótese do que um meme poderia parecer? Eu já vi incontáveis descrições de Deus em muitas visitas às galerias de arte. E isso confirma o conceito? Ou o torna cientificamente plausível? A proposta de Delius de que um meme teria uma estrutura única localizável e observável como "uma conste-lação de sinapses neuronais ativadas" é puramente conjetural, e ain-da precisa passar pelo escrutínio de uma investigação empírica.25 É uma coisa para especular sobre o que algo poderia parecer; a verda-deira questão é se isso existe de algum modo.

Em 1993 Dawkins estabeleceu a essência do que constituía uma perspectiva "científica": "possibilidade de exame, suporte na evidência, precisão, quantificação, consistência, intersubjetividade, repetitividade, universalidade, progressividade, independência de

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ambiente cultural, e assim por diante".26 Então, onde está o suporte na evidência para os memes? Na análise quantitativa? Na formu-lação de critérios pelo qual o meme pode ser confirmado ou eliminado enquanto uma idéia útil? Aguardamos esclarecimentos.

O evidente contraste com o gene é óbvio. Os genes podem ser "vistos" e seus padrões de transmissão estudados sob condições empíricas rigorosas. O que começou como idéias hipotéticas dedu-zidas da experiência e observação sistemáticas, acabou sendo ele próprio observado. O gene era visto inicialmente como uma necessidade teórica, visto que nenhum outro mecanismo poderia explicar as observações correspondentes, antes de ser aceito como uma entidade real por conta do claro peso da evidência. Mas e os memes? A questão pura e simples é que eles são, em primeiro lugar, idéias hipotéticas, deduzidas a partir da observação em vez de observados em si mes-mos; em segundo lugar, inobserváveis; e em terceiro lugar, são mais ou menos ineficazes no plano explicativo. Isso torna a sua investi-gação rigorosa intensamente problemática, e o proveito de sua apli-cação um pouco improvável.

Um gene é uma entidade observável bem definida nos planos biológico, químico e físico. Biologicamente, o gene é uma porção distinta de um cromossomo; quimicamente, consiste em DNA; fisicamente, consiste numa dupla-hélice, com uma sucessão de nú-cleotídeos representando um "código genético", que pode ser lido e interpretado. Ainda que os genes nunca fossem observados, con-tinuariam a ser considerados uma excelente explicação teórica do que pode ser observado.

A situação com os memes é bastante diferente. O que são memes? Onde eles se localizam? Como podem ser descritos em termos biológicos, químicos e físicos? Se não fossem propostos, nossa compreensão do desenvolvimento cultural e da história das idéias não seria prejudicada. O meme é simplesmente um figurante opcional, um complemento desnecessário para a gama de mecanis-mos teóricos propostos para explicar o desenvolvimento da cultu-ra. Ele pode ser abandonado sem problema pelos teóricos da cultura.

E o que dizer do mecanismo pelo qual os memes são suposta-mente transmitidos? Uma das implicações mais importantes da

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descoberta da estrutura do DNA foi que ele abriu caminho para uma compreensão do mecanismo da replicação. Então, qual mecanismo físico é proposto no caso do meme? Como um meme causa um efeito memético? Ou, colocando a questão de uma forma mais contundente: por onde deveríamos começar se fossemos fazer ex-periências para identificar e estabelecer a estrutura dos memes, sem dizer explorar a sua relação com os alegados efeitos meméticos?

Ora, se a memética fosse uma legítima ciência baseada na evi-dência, comparável à genética, não haveria qualquer dificuldade es-pecífica. Poderia ser argumentado que o pesquisador memeticista da evolução cultural estaria numa situação semelhante à de Darwin nos anos de 1850 — observando padrões que parecem exigir al-gum tipo de transmissão de características herdadas, embora ele não tivesse nenhuma explicação para tal mecanismo. No entanto, não vejo qualquer razão para sugerir que a memética oferece sequer uma descrição plausível, para não dizer uma explicação, da evolução da cultura humana. Enquanto Darwin acumulou uma grande quan-tidade de evidência observacional era favor de suas teorias, a meméti-ca ainda precisa fazer muitos avanços significativos nessa frente. Sem nenhuma surpresa, a sua plausibilidade está em decadência.

Uma vez que o meme não é autorizado cientificamente, deve-mos concluir que existe um meme para a fé nos próprios memes.27 O conceito de meme morre a morte lenta da auto-referencialidade; nisso, se levado a sério, a idéia explica a si mesma tanto quanto a qualquer outra coisa. E enquanto as qualificações aumentam, o conceito perde sua plausibilidade. E como acrescentar mais e mais epiciclos ao modelo ptolemaico do sistema solar. O que certa vez foi uma idéia brilhante, clara, torna-se imensamente incômoda, seu brilho inicial vai enfraquecendo cada vez que se adiciona um argu-mento qualificativo em sua defesa.

A analogia deficiente entre gene e meme

O argumento de Dawkins para a existência e função do meme se baseia numa analogia proposta entre a evolução biológica e cul-

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tural. A sua suposição implícita parece ser que, como a transmissão da cultura e a transmissão dos genes são processos análogos, os con-ceitos e métodos bem-desenvolvidos do neodarwinismo podem responder por ambas. O argumento pode ser dividido como segue:

A evolução biológica exige um replicador, agora sabido existir de fato, ou seja, o gene. Assim, por analogia:

Evolução cultural também exige um replicador, que hipoteti-camente seria o meme.

É um movimento corajoso e ousado. Mas está correto? Essa analo-gia realmente funciona? Qual é a evidência sólida, observacional para os memes, que nos levaria a aceitar este conceito hipotético como um meio necessário e efetivo para explicar o desenvolvimen-to cultural?

Como se demonstra com freqüência, a argumentação por ana-logia é um elemento essencial do raciocínio científico.28 A per-cepção de uma analogia entre A e B é freqüentemente o ponto de partida para novas linhas de investigação, abrindo fronteiras novas e estimulantes. Mas, essa mesma percepção muitas vezes leva a be-cos científicos sem saída, inclusive as idéias há muito abandonadas do "calorífico" e "flogístico". Conforme Mario Bunge demonstra, as analogias têm uma tendência marcante a ser enganosa nas ciên-cias.29 Então, seria a analogia postulada entre gene e meme verda-deira, em primeiro lugar, e em segundo efetiva?.

Vamos começar analisando se a analogia tem algum funda-mento na realidade. A análise e o teste dos limites das analogias científicas são um aspecto importante e legítimo do método cientí-fico. Em O relojoeiro cego, Dawkins faz uma discussão eloqüente sobre como a ciência muitas vezes avança investigando se uma pos-sível analogia pode apontar para algo mais profundo:

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Alguns dos maiores avanços na ciência ocorreram porque al-guém inteligente descobriu uma analogia entre um assunto que já era compreendido e outro assunto ainda misterioso. O truque é encontrar um equilíbrio entre o analogismo indis-criminado, por um lado, e uma cegueira estéril para as analo-gias efetivas, por outro.30

As analogias nem sempre são enganadoras. O problema é saber quais são efetivas e quais são becos sem saída. Ao propor o meme, Dawkins estava explorando uma analogia potencialmente relevante entre evolução biológica e cultural, propondo um processo ou mecanis-mo analógico para responder por isso. Ele não foi o primeiro a fazê-lo, mas o comunicou com particular habilidade.

Exatamente o mesmo processo de explorar analogias pode ser visto em As origens das espécies de Darwin. Darwin percebeu o que parecia ser uma analogia entre o modo como os animais eram cria-dos para melhorar certas características desejáveis, e o modo como a natureza parecia provocar mudanças. Ele propôs a idéia da "seleção natural" como um mecanismo dentro da ordem natural, análogo à "seleção artificial" da indústria de criação animal.31 Essa analogia se mostrou altamente eficiente, mas como a história da ciência demons-tra, há limites significativos para uma argumentação analógica deste tipo.

Lembra-se do éter? Para muitos físicos do século XIX som e luz pareciam análogos. Pareciam se comportar de modo muito se-melhante. Ambos eram conhecidos como formas de ondas, cuja velocidade e comprimento podiam ser determinados com alto grau de precisão. E como a propagação do som exigia um meio — como ar ou água — então o mesmo tinha que ser igualmente verdade para a luz. O termo "éter" foi usado para designar este meio miste-rioso pelo qual a luz e outra radiação eletromagnética viajavam.

O experimento Michelson-Morley, de 1887, propôs explorar as propriedades do "éter luminífero" — ou seja, o meio pelo qual se acreditava que a luz viajava. Como resultado da experiência, Michelson e Morley chegaram à notável conclusão que "o éter per-

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manece em repouso em relação à superfície da terra".32 Este resultado enigmático teve várias implicações possíveis. Uma delas era que não havia "éter luminífero", em primeiro lugar. A analogia com som, simplesmente, fora forçada demais.

Por volta dos anos vinte, o mundo científico tinha finalmente chegado à conclusão que a luz não era igual ao som. Havia seme-lhanças, paralelos e convergências inquestionáveis — mas tinham sido superinterpretados, e permitiram criar a impressão de que duas entidades diferentes eram análogas. Ainda que luz e som de fato se comportassem de maneiras bem parecidas em muitos contextos, tratavam-se de coisas completamente diferentes. A luz não precisa-va de nenhum meio; poderia viajar num vácuo.

É uma história bem conhecida, e sua moral é perfeitamente clara: as analogias podem ser perigosamente enganadoras. O argumento a partir da analogia se mostrou equivocado ali — como tinha sido equivocado em tantos outros casos. A teoria do quantum é um exce-lente exemplo de uma matéria científica complicada por problemas surgidos do mau uso de analogias.33 Quando passamos do mundo relativamente bem definido da física para o caos da cultura humana, as analogias não raro adquirem vida própria, fora do controle das rígidas exigências de argumentação baseada na evidência.

O primeiro caso de certo fator físico para a transmissão de informação hereditária — hoje conhecido como "gene" — foi baseado na demonstração mendeliana da precisão de tal transmis-são, e o fato patente de que não havia outro meio pelo qual essas informações pudessem ser armazenadas, transmitidas e recupera-das. O caso da evolução cultural é completamente diferente. Todas as culturas humanas possuem meios pelos quais é possível trans-mitir informações dentro das populações existentes e para as futu-ras gerações — como livros, rituais, instituições e tradições orais.34 A noção de um "meme" é funcionalmente desnecessária, forçando seus defensores a criar um exemplo por analogia com o gene — contudo, para subestimar os parâmetros biológicos, químicos e físi-cos empiricamente determinados do gene, que são agora um aspec-

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to essencial da genética molecular. A plausibilidade do meme é as-sim fundamentada num argumento analógico questionável, não na evidência e observação contundentes.

Precisamos claramente do equivalente memético do experimen-to Michelson-Morley — algo que determinará, através da investi-gação empírica, em vez de uma argumentação analógica questionável, se os memes existem. O estágio atual da pesquisa sugere categorica-mente que os memes são o novo éter — uma hipótese desnecessária que simplesmente aguarda para ser eliminada.35 O "meme pelos memes" pode ter uma grande capacidade de sobrevivência e trans-missão — mas nada significa no mundo real. Na realidade, em ambos os casos, ele parece ser inconvenientemente semelhante ao meme-Deus de Dawkins.

A redundância do meme

Talvez a crítica mais relevante do conceito de "meme" seja que o estudo do desenvolvimento cultural e intelectual segue perfeita-mente bem sem ele. Os modelos econômicos e físicos — especial-mente transferência de informações — provaram seu valor nesse contexto. O contraste entre meme e gene é, mais uma vez, penosa-mente óbvio: o gene teve que ser postulado, quando simplesmente não havia outro modo de explicar a evidência observacional relativa aos padrões de transmissão das características herdadas. O meme é explicativamente redundante.

Os modelos econômicos que trabalham com idéias como "in-formação em cascatas" ou produtos duradouros são muito mais persuasivos e úteis do que o duvidoso conceito de meme.36 Estes modelos incorporam os temas da "competição" e "extinção" da teo-ria de Darwin, sem necessariamente endossar suas teorias sobre as origens das inovações. Por exemplo, uma teoria econômica "de novidades" é consideravelmente mais convincente como explicação de adoção e dispersão de padrões de pensamento, do que o meme de Dawkins.37 A evolução cultural e o desenvolvimento intelectual

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podem muitas vezes ser mais bem entendidos em termos de um análogo físico, em vez de biológico — como a transmissão de in-formação em redes fortuitas.38 No entanto, Dawkins desconsidera essas importantes alternativas teóricas ao avaliar a sua hipótese de meme.

O meme ainda não está completamente morto. As declarações meméticas canônicas de Dawkins têm sido apoiadas em duas re-centes importantes publicações — O Darwins Dangerous Idea (A idéia perigosa de Darwin) (1995), de Daniel Dennett, e a The Meme Machine (A máquina de meme) (1999), de Susan Blackmore. Ape-sar disso, o conceito do meme permanece tão vago e tão empirica-mente indeterminado que não existe meio pelo qual possa ser verificado ou refutado. Em todo caso, o que ele propõe "explicar" pode ser exposto por outros modelos. Exatamente quais outros fenômenos misteriosos são explicados através dos memes? Dawkins é modesto sobre especificidades aqui, expondo ainda mais o contraste evidente entre isso e a sua brilhante defesa baseada na evidência do seu conceito do "gene egoísta".

Apesar de que até hoje, um quarto de século mais tarde, a "ciên-cia" memética ainda não conseguiu gerar um programa de pesquisa produtivo na ciência cognitiva, sociologia ou história intelectual cor-rentes. Com base na evidência disponível, só posso concordar com a demolidora crítica da noção, feita por Martin Gardner, publicada no Los Angeles Times:

Um meme é tão amplamente definido por seus proponentes como um conceito inútil, que cria mais confusão do que ilu-mina. Predigo que o conceito logo será esquecido como uma curiosa excentricidade lingüística sem valor. Para os críticos, que no momento muito excedem em número os verdadeiros crentes, a memética não passa de uma terminologia incômoda para dizer o que todos já sabem e que pode ser dito de manei-ra mais proveitosa na tediosa terminologia da transferência de informação.39

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Sem nenhuma surpresa, o próprio Dawkins tem progredido, se distanciando de qualquer sugestão que tenha oferecido do con-ceito de meme em geral como uma explicação da cultura humana.40

Conforme Daniel Dennett expõe, nos últimos tempos Dawkins "sua-vizou um pouco".41 Ele recuou em seu otimismo inicial e deu a entender que a hipótese do meme era simplesmente uma útil analo-gia. Dennett sugere que Dawkins foi forçado a retroagir aqui porque foi visto como tendo se tornado um sociobiólogo.42 Acredito que isso se deva mais a uma crescente percepção da forte subdetermi-naçao de evidências da tese. O conceito de meme era redundante ou errado — e muito possivelmente ambos.

Deus como um vírus?

Persistente, Dawkins desenvolveu o seu conceito de meme em outra direção — um vírus da mente. Os "memes", Dawkins nos diz, podem ser transmitidos "como um vírus numa epidemia".43

Embora a conexão entre um "meme" e um "vírus da mente" não seja explicada com a precisão que poderíamos esperar, está claro que, para Dawkins, o tema fundamental em cada caso é replicação. Pois um vírus para ser eficaz, tem que possuir duas qualidades: a capacidade de reproduzir informação com precisão, e obedecer a instruções que são codificadas na informação assim reproduzidas.44

Entretanto, também há uma prestidigitação verbal em ação aqui, um dispositivo retórico que é apresentado aparentemente como se fosse ciência boa. Como todos sabem, vírus são coisas ruins; são contagiosos, entidades parasitárias que exploram seus hospedeiros. O "argumento" retoricamente carregado de que Deus é um vírus resume-se a pouco mais que uma insinuação velada, em vez de um rigoroso raciocínio com base na evidência. A crença em Deus é pro-posta como uma infecção maligna que contamina as mentes puras. Entretanto, toda a idéia sucumbe diante da ausência de evidência experimental, da subjetividade dos juízos de valores pessoais de Dawkins, comprometido com a avaliação do que é "bom" e do que é "ruim", e da circularidade da auto-referencialidade.

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Então qual é exatamente a evidência experimental de que Deus é ruim para você? Dawkins supõe que é publicamente aceito dentro da comunidade científica que a religião debilita as pessoas, reduzin-do o seu potencial de sobrevivência e saúde. Mas, recentes pesqui-sas empíricas apontam para uma interação em geral positiva entre religião e saúde. E bem sabido que existem tipos patológicos de crença e comportamento religioso; contudo, isso de modo algum invalida a avaliação em geral positiva do impacto da religião na saúde mental que surgem de estudos baseados em evidência.

Dawkins parece supor que seus leitores irão, de preferência de modo acrítico, compartilhar seus próprios pontos de vista subjeti-vos sobre a malignidade da religião, e assim aceitar suas conclusões espetaculares sem objeção. Mas eles não são fundamentados na aná-lise rigorosamente baseada na evidência, na observação objetiva do impacto da religião sobre os indivíduos, que é típico do espírito científico que tanto Dawkins quanto eu admiramos. Quando, pode-se perguntar, a ciência popular se encontrará com a pesquisa de ponta nessa questão?

As implicações desse consenso emergente da hipótese de "Deus como vírus" são inequívocas. Uma já frágil analogia se torna com-pletamente insustentável. Se a religião é descrita como tendo um impacto positivo no bem-estar humano por 79% dos últimos estu-dos nesse campo,45 como se pode conceber que seja considerada análoga a um vírus? Os vírus significam um mal para você. Então exatamente quantos vírus têm um impacto positivo nos seus hos-pedeiros? Longe de ser algo que reduz a estimativa de sobrevivência de seu hospedeiro, a crença em Deus é um recurso a mais que au-menta a sobrevivência psíquica.46 Não tenho dúvida de que dentro da visão de mundo baseada na fé que forma a explicação de Dawkins da realidade — o ateísmo — Deus deve ter esse tipo de impacto negativo, prejudicial sobre o bem-estar humano. Mas Deus não é isso. A evidência simplesmente não se ajusta à teoria.

Além disso, qual é a verdadeira evidência experimental para este hipotético "vírus da mente?" No mundo real, os vírus não são

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conhecidos somente pelos sintomas que causam; eles podem ser descobertos, sujeitados à rigorosa investigação empírica, e sua es-trutura genética pode ser descrita minuciosamente. Em comparação, o "vírus da mente" é hipotético; postulado por um argumento analógico questionável, não é diretamente observável; e é totalmente injustificado, em termos conceituais, com base no comportamen-to que Dawkins propõe para ele. Podemos observar estes vírus? Qual é a sua estrutura? O seu "código genético"? A sua localização dentro do corpo humano? E, o mais importante, dado o interesse de Dawkins na sua expansão, qual é o seu modo de transmissão?

Não existe evidência experimental de que as idéias são vírus. As idéias podem parecer se comportar "em alguns aspectos" como se fossem vírus. Mas há uma distância muito grande entre analogia e identidade — e, como a história da ciência ilustra de forma extrema-mente árdua, a maioria dos falsos caminhos da ciência diz respeito a analogias que foram assumidas de forma equivocada como iden-tidades. O slogan "Deus como vírus", se tivesse alguma validade cientí-fica, poderia ser resumido a algo como "os padrões de difusão de idéias religiosas parecem análogos àqueles da disseminação de certas doenças".

Infelizmente, Dawkins não apresenta, com relação a isso, nenhum argumento com base em evidência, preferindo conjeturar sobre o impacto de tal vírus hipotético na mente humana. A ciência sim-plesmente não existe. Em todo caso, cada e todo argumento que Dawkins apresenta em favor de sua idéia de "Deus como vírus da mente" pode ser contrariado pela proposição da sua contraparte: o "ateísmo como um vírus da mente". Ambas as idéias são do mes-mo modo não confirmadas e sem sentido.

A metáfora do "contágio do pensamento" foi desenvolvida completamente por Aaron Lynch,47 que faz a crucialmente impor-tante observação que o modo pelo qual as idéias se espalham não tem nenhuma relação necessária com sua validade ou "bondade". Como Lynch esclarece:

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O termo "contágio do pensamento" é neutro com relação à verdade ou falsidade, bem como bom ou mau. As falsas crenças podem se espalhar como contágios de pensamento, mas assim também o podem as verdadeiras crenças. De modo similar, as idéias prejudiciais podem se espalhar como contá-gios de pensamento, mas também o podem as idéias benéfi-cas... A análise do contágio do pensamento remonta a si mes-ma, principalmente com o mecanismo pelo qual as idéias se espalham numa população. Qualquer que seja essa idéia: ver-dadeira, falsa, útil ou danosa, ela é considerada principal-mente pelo efeito que tem na transmissão de valores.48

Nem os conceitos de Dawkins do "meme" ou do "vírus da mente" —qualquer que seja a sua relação — ajudam-nos de fato a validar ou negar idéias, a compreender ou explicar padrões de de-senvolvimento cultural. Como a maioria dos trabalhos no campo do desenvolvimento cultural concluiu, é perfeitamente possível pos-tular e estudar uma evolução cultural embora permanecendo agnós-tico a seu mecanismo. "Tudo o que precisamos fazer é reconhecer que a herança cultural existe, e que seus caminhos são diferentes dos caminhos genéticos".49

E o que isso tem a ver com a idéia de Deus? Bem, não muito, na verdade. Esse enfoque geral à difusão de idéias pode levar a algu-mas descobertas sobre como as crenças se espalham dentro de uma cultura. Mas não pode nos dizer nada sobre se essa crença é em si mesma certa ou errada, boa ou ruim. Isto não impedirá as pessoas de chegar a tais conclusões —- mas essas não são conclusões válidas. E, certamente, não são conclusões científicas.

1 Joseph Poulshock. "Universal Darwinism and the Potential of Memetics". Quarterly Review ofBiology 77 (2002), p. 174-5.

2 DonaldT. Campbell, "Blind Variation and Selective Retention in Creative Thought as in Other Knowledge Processes". PsychologicalReview 67 (1960), p. 380-400.

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3 DonaldT. Campbell. "A General 'SelectionTheory as Implemented in Biological Evolution and in Social Belief-Transmission-with-Modification in Science". Biology andPhilosophy 3 (1988), p. 413-63.0 termo foi apresentado pela primeira vez por Campbell, em 1974; esse artigo marca uma exposição posterior da noção.

4 Charles J. Lumsden & Edward O. Wilson. Genes, Mind, and Culture: The Coevolutionary Process. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1981.

5 Ver, por exemplo, Susan J. Blackmore, The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press, 1999.

6A Devils Chaplain, p. 117. 7 William Lloyd Newell. The Secular Magi: Marx, Freud, and Nietzsche on Religion. New York: Pilgrim Press, 1986.

sADevil's Chaplain, p. 117. 9 F. T. Cloak. "Is a Cultural Ethology Possible?" Human Ecology 3 (1975), p. 161- 81. Uma versão anterior desse artigo apareceu em Research Previews 15(1968),p. 37-47. Para uma outra perspectiva ver L. L. Cavalli-Sforza, "Cultural Evolution". American Zoologist 26 (1986), p. 845-55.

10 The Selfish Gene, p. 192. De modo semelhante, foi cunhada a palavra "memética", eqüivalendo à "genética"; mais uma vez, a intenção era destacar que tanto a evolução biológica quanto a cultural poderiam responder pelas "unidades de replicação" ou "unidades de transmissão".

11 The Selfish Gene, p. 192. 12 Todos eles são exemplos do que Cloak chamou de "m-cultura" — em outras palavras, coisas que surgem pelo impacto de idéias no ambiente — onde se esperaria que fosse "i-cultura" (mais uma vez, nos termos de Cloak).

13 TheExtendedPhenotype, p. 109- 14 Para uma excelente apresentação deste ponto, ver Gary Cziko, WithoutMiracles:

Universal Selection Theory and the Second Darwinian Revolution. Cambridge, MA: MIT Press, 1995. ^ The Selfish Gene, p. 193. 16 A esse respeito, ver John

A. Bali, "Memes as Replicators." Ethology andSociology 5 (1984), p. 145-61.

17A Devils Chaplain, p. 145. 18 Simon Conway Morris. Lifes Solution: Inevitable Humans in a Lonely Universe. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 324.

19 Existe uma ampla literatura. Para um proveitoso estudo introdutório, ver Charles G. Nauert, Humanism and the Culture of Renaissance Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

20 Ver, por exemplo, Norbert Huse, Wolfgang Wòlters & Edmund Jephcott. The Art of Renaissance Venice: Architecture, Sculpture, and Painting, 1460 -1590. Chicago: University of Chicago Press, 1990; James S. Ackerman, Distance Points:

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Essays in Theory and Renaissance Art and Architecture. Cambridge, MA: MIT Press, 1991.

21 Ver, por exemplo, Paul Oskar Kristeller, Renaissance Thought: The Classic, Scholastic, and Humanistic Strains. Nova York: Harper & Row, 1961.

22 Sobre o assunto geral, ver Ronald G. Witt. In the Footsteps oftheAncients: The Origins ofHumanismfrom Lovato to BrunL Leiden: Brill, 2000.

23 The ExtendedPhenotype , p. 112. 1 4 ADev iVs Chap lain , p . 124 . 25 Juan D. Delius. "The Nature of Culture". In The Tinbergen Legacy, editado por M. S. Dawkins, T. R. Halliday & R. Dawkins, p. 75-99. Londres: Chapman & Hall,1991.

26 ADevWs Chaplain, p. 145. 27 Alan Costall. "The 'Meme' Meme". Cultural Dynamics 4 (1991), p. 321-35. 28 Daniel Rothbart. "The Semantics of Metaphor and the Structure of Science".

Phi losophy of Sc i ence 5 \ (1984) , p . 595-615. 29 Mario Bunge. Method, Model, andMatter. Dordrecht: D. Reidel, 1973, p. 125- 6.

30 TheBlindWatchmaker, p. 195. 31 Ver Robert M. Young. "Darwins Metaphor and the Philosophy of Science", Science as Culture 16 (1993), p. 375-403.

32 A. A. Michelson & E. W. Morley. "On the Relative Motion of the Earth and Luminiferous Ether". American JournalofScience 34 (1887), p. 333-45.

33 Mario Bunge. "Analogy in Quantum Theory: From Insight to Nonsense". British Journal for the Philosophy of Science 18 (1967), p. 265-86.

34 Há uma ampla literatura, obras como Niklas Luhmann. Love as Passion: The Codification oflntimacy. Stanford, CA: Stanford University Press, 1998; Vera Schwarcz, Bridge across Broken Time: Chinese andjewish Cultural Memory. New Haven, CT: Yale University Press, 1998; John Lowney, The American Avant- Garde Tradition: William Carlos Williams, Postmodern Poetry, and the Politics of Cultural Memory. Lewisburg, PA: BucknellUniversity Press, 1997.

35 Há algumas propostas alternativas muito interessantes para a interação entre genes e cultura estabelecidas em William H. Durham. Coevolution: Genes, Culture, and Human Diversity. Stanford, CA: Stanford University Press, 1991.

36 Ver, por exemplo, S. Bikhchandani, D. Hirshleifer & I. Welch. "Learning from the Behavior ofOthers: Conformity, Fads, and Informational Cascades".Journal ofEconomic Perspectives 12 (1998), p. 151-70.

37 S. Bikhchandani, D. Hirshleifer & I. Welch. "ATheory of Fads, Fashion, Custom, and Cultural Change as Informational Cascades". Journal of PoliticalEconomy 100 (1992), p. 992-1026. Dawkins não explora este tema em sua explicação

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das "loucuras", que ele analisa usando de forma muito superficial um modelo epidemiológico: A Devils Chaplain, p. 136-7.

38 Ver, por exemplo, D. J. Watts. "A Simple Model of Information Cascades on Random Networks". Proceedings ofthe National Academy of Sciences 99 (2002), p. 5766-71. As implicações disso como uma analogia para a transmissão de idéias num sistema cultural ficarão óbvias.

39 Martin Gardner. "Kilroy Was Here." Los Angeles Times, 5 de março de 2000. 40 A Devils Chaplain, p. 127. 41 Daniel C. Dennett, Evolution and the Meaning of Life. New York: Simon & Schuster, 1995, p. 361. Vale notar que a hipótese do meme ainda seja defendida em Unweaving the Rainbow, p. 304-10.

42 Dennett, Darwins Dangerous Idea, p. 361-2. 43 A Devils Chaplain, p. 121. Para uma resposta religiosa sobre essa sugestão, ver John W. Bowker, Is Goda Virus?: Genes, Culture, and Religion. Londres: SPCK, 1995.

44 A Devils Chaplain, p. 135. 45 Harold G. Koenig & Harvey J. Cohen. The Link between Religion and Health: Psychoneuroimmunology and the Faith Factor. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 101.

4SKennethl. Pargament, The Psychology of Religion and Coping: Theory, Research, Practice . Nova York: Gui lford Press, 1997.

47 Aaron Lynch . Though t Contagion: How Be l ie f Spreads Through Socie ty . Nova York: Basic Boob, 1996.

48 Aaron Lynch. "An Introduction to the Evolutionary Epidemiology of Ideas". BiologicalPhysicist 3, no. 2 (2003), p. 7-14.

49 Stephen Shennan. Genes, Memes andHuman History: Darwinian Archaeology and Cultural Evolution. Londres: Thames & Hudson, 2002, p. 63. Shennan cita em seu apoio a obra de Luca Cavalli-Sforza & Marcus Feldman: Cultural Transmission and Evolution: A Quantitative Approach. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1981.

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Ciência e religião

Diálogo ou conciliação intelectual?

Há um amplo consenso de que nos últimos anos tem havido um crescente interesse no estudo da relação entre ciência e religião. Muitos falam abertamente sobre "uma nova convergência" nas dis-ciplinas, abrindo caminho para novas descobertas e interpretações.1

Dawkins tem uma resposta admiravelmente consistente para isso: "Para um juiz honesto" ele escreve — talvez tendo modestamente ele próprio em mente? — "a alegada convergência entre religião e ciência é uma impostura rasa, vazia, uma manobra de manipulação".2

E um ponto de vista interessante, mas pertence a outro século. Nos últimos anos, a interpretação científica da relação histórica entre ciência e religião passou por uma revolução intelectual não inferior à ocasionada por As origens das espécies, de Darwin. Uma intensiva pesquisa acadêmica histórica tem demonstrado que a noção popu-lar de uma prolongada guerra entre a igreja e a ciência, que continua até nossos dias; é um resquício da propaganda vitoriana, completa-mente em divergência com os fatos.3 Seguramente, havia conflitos individuais, muitas vezes refletindo políticas institucionais e agen-das pessoais — como o caso de Galileu — ou simplesmente mal-entendidos sobre um ou ambos os lados do debate. Mas estes conflitos não são nem típicos nem explicados.

Dawkins adota uma visão fortemente positivista da ciência, e associa isso com a idéia de que ciência e religião estão necessaria-mente em guerra uma com a outra. Falar de uma aproximação ou

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convergência entre elas é para ele, então, nada menos do que uma "conciliação intelectual" pura e simples.4 É, portanto, importante observar que essa crença está firmemente situada no mundo social da Inglaterra do século XIX e que ambos se tornaram severamente, até mesmo fatalmente, corroídos e desacreditados com o passar do tempo. E compreensível que eles ainda persistam em algumas obras científicas populares — afinal de contas, a pesquisa acadêmica históri-ca leva muito tempo para se depurar. No entanto, uma análise séria do mito popular da "guerra entre ciência e religião", tão vigorosa-mente defendido por Dawkins, mostrará que isso foi, há muito tempo, superado. Sua ciência popular tem muito a fazer para se atualizar.

Para começar nossa análise de tais questões, podemos considerar o mito da "guerra permanente" entre ciência e religião em detalhe.

A "guerra" entre ciência e religião

A história da ciência deixa claro neste ponto que, não raro, as ciências naturais estão em conflito com o autoritarismo de algum tipo. Como Freeman Dyson aponta em seu importante ensaio "The Scientist as Rebel" ["O cientista como rebelde"], a ciência se encon-tra muitas vezes em "rebelião contra as restrições impostas pela cul-tura local prevalecente".5 A ciência é, assim, quase por definição, uma atividade subversiva. Para o matemático e astrônomo árabe Omar Khayyam, a ciência era uma rebelião contra as restrições in-telectuais do Islã; para os cientistas japoneses do século XIX, a ciên-cia era uma rebelião contra o persistente feudalismo de sua cultura. Visto que o ocidente foi dominado pelo cristianismo, não sur-preende, portanto, que uma tensão geral entre ciência e cultura oci-dental pudesse ser vista especificamente como um confronto entre ciência e cristianismo.

Já a maioria dos historiadores considera a religião como tendo tido uma relação geralmente benigna e construtiva com as ciências naturais no ocidente. As tensões e conflitos, como a controvérsia

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de Galileu, muitas vezes se mostraram, num exame mais atento, ter mais a ver com políticas papais, lutas pelo poder eclesiástico e idiossincrasias; do que com qualquer tensão fundamental entre fé e ciência.6 Os principais historiadores da ciência regularmente afir-mam que a interação da ciência e religião é determinada principal-mente pelas especificidades das circunstâncias históricas e só secundariamente por seus respectivos temas. Não existe um para-digma universal para a relação entre ciência e religião, seja teórica ou historicamente. O caso das atitudes cristãs em relação à teoria evolutiva no final do século XIX torna essa observação particular-mente clara. De acordo com o esclarecimento do geógrafo e historia-dor intelectual irlandês David Livingstone, num estudo revolucionário da recepção do darwinismo em dois contextos bastante diferentes — Belfast e Princeton — questões locais e idiossincrasias foram mui-tas vezes de importância crucial na determinação de resultados.7

No século XVIII, desenvolveu-se uma sinergia notável entre a religião e as ciências na Inglaterra. A "mecânica celeste" de Newton foi amplamente considerada como, na pior das hipóteses, consis-tente com a visão cristã de Deus como criador de um universo harmonioso e, na melhor das hipóteses, sua gloriosa confirmação. Muitos membros da Royal Society of London — fundada para o avanço do conhecimento e pesquisa científica — era fortemente religiosa em sua visão de mundo, e via isso como aprimoramento de seu compromisso para o avanço científico.

Mas tudo isso mudou na segunda metade do século XIX. O tom geral do encontro entre religião (especialmente o cristianismo) e as ciências naturais, no final do século XIX, foi estabelecido por duas obras: History of the Conflict between Religion and Science [A história do conflito entre religião e ciência], de William Draper (1874) e The Warfare of Science with Theology in Christendom [A guerra da ciência com a teologia na cristandade], de Andrew Dick-son (1896). A cristalização da metáfora da "guerra" na mente popular foi sem dúvida alguma catalisada de forma vigorosa por esses tipos de textos polêmicos.

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Conforme uma geração de historiadores tem agora demons-trado, a noção de um conflito endêmico entre ciência e religião, tão agressivamente defendido por White e Draper, é em si mesma social-mente determinada, criada nas prolongadas sombras de hostilidade em relação ao indivíduo do clero e às instituições da igreja. A inte-ração entre ciência e religião é influenciada mais por circunstâncias sociais do que por idéias específicas, de ambos os lados.8 O próprio período vitoriano deu origem às pressões e tensões sociais que gera-ram o mito da guerra permanente entre ciência e religião.

Uma relevante mudança social pode ser percebida por trás do surgimento deste modelo de "conflito". De uma perspectiva so-ciológica, o conhecimento científico foi defendido por grupos so-ciais particulares para levar adiante seus próprios objetivos e interesses.. Havia uma crescente competição entre dois grupos es-pecíficos dentro da sociedade inglesa no século XIX: o clero e os profissionais da ciência. O clero era considerado em grande parte uma elite no começo do século, sendo o "clérigo-cientista" um es-tereótipo social bem definido. Com o surgimento do cientista profissional, no entanto, teve início uma luta pela supremacia, com o objetivo de determinar quem ficaria com o predomínio cultural dentro da cultura britânica na segunda metade do século XIX. O modelo de "conflito" tem suas origens nas condições específicas da era vitoriana na qual um grupo intelectual profissional emergente procurava destituir um grupo que até então ocupava o lugar de honra.

O modelo de "conflito" entre ciência e religião ganhou relevância quando os cientistas profissionais desejaram se distanciar de seus colegas amadores, e quando os padrões variáveis na cultura acadêmi-ca necessitavam demonstrar sua independência da igreja e de outros bastiões da elite dominante. A liberdade acadêmica exigia uma rup-tura com a igreja; daí foi só um passo para descrever a igreja como inimiga do saber e do avanço científico no final do século XIX e as ciências naturais como seus mais fortes defensores.

Hoje, o estereótipo da "guerra entre ciência e religião" persiste nos limites da cultura Ocidental. No entanto, a idéia de que as

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ciências naturais e a religião sempre estiveram em guerra uma com a outra já não é mais tratada com seriedade por nenhum historia-dor da ciência. Em geral se aceita que o modelo de "guerra" foi desenvolvido por indivíduos religiosamente alienados no século XIX para ajudar o grupo profissional de cientistas naturais a se livrar do controle eclesiástico — uma questão importante na vida in-telectual da Inglaterra vitoriana.9

Um exame histórico detalhado das origens do modelo de "guer-ra" demonstra que ele é historicamente localizado. Não reflete as na-turezas ou temas fundamentais, seja das ciências naturais ou da teologia cristã; ele está relacionado especificamente com a situação social da ciência e da religião na Inglaterra vitoriana. Com o transcurso daquele conjunto específico de circunstâncias, tal conflito retrocedeu.

É certamente verdade que alguns adotam a visão de que a relação entre ciência e teologia cristã está permanentemente definida, pelo menos em seus aspectos fundamentais, pela natureza essencial das duas disciplinas — e, na leitura insatisfatória de Dawkins da história e da filosofia da ciência, que elas estão, portanto, encerradas em combate mortal, do qual a ciência tem que emergir como o vencedor derradeiro. Subjacente a esses relatos "essencialistas" da interação entre ciência e religião está a suposição pouco refletida de que cada um desses termos designa algo dado, permanente e essencial, de forma que sua relação mútua é determinada por alguma questão fundamental a cada uma das disciplinas; não sendo afetada pelas especificidadés de tempo, lugar ou cultura. Mas de modo algum é assim. A relação entre ciência e religião é condicionada historicamente, circunscrita às condições sociais e intelectuais da época.10 O que vemos no momento é um interesse cada vez maior, de ambos os lados da linha divisória, em perceber como as duas disciplinas podem iluminar e até mesmo auxiliar nos esforços uma da outra.

O século XX testemunhou uma grande revisão das concepções simplistas do século XIX, sobre a natureza e limites do método científico e a relação entre fé e ciência. O amplo processo acadêmi-co de sujeitar as concepções tradicionais a um exame minucioso forjou uma nova consciência de possibilidades para o diálogo e com-

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prornisso positivo, além de construtivo, num momento em que a história da cultura ocidental tem demonstrado um interesse reno-vado pela espiritualidade em todos os níveis.

Realmente eu gostaria que Dawkins participasse deste diálogo, em vez de atirar a esmo, ser freneticamente retórico e satirizar os que discordam dele. Por quê? Uma das características definidoras da cultura ocidental é a percepção de um crescimento — talvez acelerado — da alienação entre as ciências humanas e as ciências naturais, além de um crescente desconforto cultural sobre o fato de para onde a ciência está nos levando. De volta a 1959, C. P. Snow observou que o fosso entre as artes e as ciências tinha se tornado tão pronunciado que era necessário falar de duas culturas distintas e não-interativas na sociedade ocidental:

A vida intelectual de toda a sociedade ocidental está sendo cada vez mais dividida em dois grupos polarizados [...] In-telectuais literatos de um lado [...] e cientistas, do outro, e como o mais representativo, os físicos. Entre os dois um fosso de incompreensão mútua.11

As coisas podem até mesmo ter piorado desde então. O que antes eram discordâncias relativamente civilizadas entre as ciências naturais e as ciências humanas parecem ter dado espaço a alguma coisa que beira uma guerra pungente. Obras recentes que lidam com o im-pacto cultural da ciência mostram uma crescente polarização entre as disciplinas. A possibilidade de reconciliação — ou até mesmo de um diálogo construtivo — parece diminuir ano a ano. E Dawkins é um dos que alguns acusam de tornar as coisas piores.12 Não pre-cisa ser assim.

A investigação ponderada e cuidadosa das questões tem sido substituída pelo megafone da diplomacia das ideologias. Por um lado, há os que insistem que a ciência é totalmente objetiva e neu-tra em seus métodos e finalidades, criticando aqueles que demons-tram preocupação com esses métodos ou finalidades, chamando-os "anticientíficos" ou "corruptores da ciência".13 Por outro lado, há os que argumentam que as ciências falham ao avaliar a esfera de

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ação para a qual são constituídas pelas forças sociais e culturais, e condenam o que vêem como uma reivindicação pretensiosa de privi-légio — como a afirmação de que as ciências oferecem a melhor explicação das coisas.14

Desvendando o arco-íris marca uma mudança significativa no estilo de escrita de Dawkins. Em vez de apresentar uma exposição popular da teoria da evolução de Darwin, junto com uma especu-lação sobre suas implicações metafísicas e religiosas, vemos um embate sistemático com uma agenda cultural. Parte do conteúdo do livro — sem mencionar o seu título — deriva da palestra sobre C. P. Snow que Dawkins fez em 1997 em Cambridge, na qual analisou a hostilidade do poeta romântico inglês John Keats (1795-1821) com relação à filosofia mecânica de Isaac Newton.15 Essa suspeita profunda em relação à análise científica é vista de melhor forma no poema "Lamia", de Keats, de 1820, no qual ele protesta contra reduzir os fenômenos belos e sublimes da natureza aos fundamentos da teoria científica; deste modo, esvaziando supostamente a natureza de sua beleza e mistério, reduzindo-a a algo frio e clínico:

Todos os encantos não se esvaem

Ao mero toque da fria filosofia? Havia um formidável arco-íris no céu de outrora: Vimos a sua trama, textura; ele agora Consta do catálogo das coisas vulgares. Filosofia, a asa de um anjo vais cortar.

Desvendando o arco-íris é um manifesto triunfalista à inde-pendência cultural das ciências. É uma defesa consistente dos va-lores do Iluminismo, imperturbada pelos aspectos menos atraentes do empreendimento científico — como as ligações entre pesquisa científica e aplicações militares — o que para Dawkins são explosões de irracionalidade na cultura ocidental. Dawkins também não se incomoda em observar o lado mais sombrio do Iluminismo que tanto incomodou a muitos pensadores do final do século XX — como sua necessidade de coerção à uniformidade e sua intolerância quanto à divergência daquilo que considerava "racional".

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Desvendando o arco-íris também é uma obra de não menos importância para o presente livro, o qual focaliza as visões religiosas de Dawkins. Dois assuntos se destacam como de fundamental im-portância:

1. Dawkins afirma que as ciências conduzem a um modelo do universo que "não é paroquial, supersticioso, mesquinho; com espíritos e duendes, astrologia e magia, brilhando com falsos potes de ouro no fim do arco-íris".16 Em comparação, a visão religiosa da natureza é apresentada como de tal modo horrível que não pode levar ninguém a conclusões esteticamente agradáveis. A re ligião é considerada esteticamente deficiente, levando ao empo brecimento da natureza, à diminuição do natural sentimento humano de deslumbramento e mistério evocado pelo universo e sua investigação científica.

2. Dawkins elimina qualquer dimensão transcendente à natureza como esteticamente desnecessária e intelectualmente insustentá vel. A ciência é tida como livre de noções sem sentido como "desígnio", "Deus" e por aí afora. Nada se perde pela eliminação dessas noções, exceto o desvio que mantém os físicos, os astrólo- gos e outros desonestos charlatães em ação.

A primeira destas críticas da religião é a mais importante, e passa-mos imediatamente a analisá-la com mais detalhes.

O pequeníssimo universo medieval da religião

Uma das persistentes reclamações de Dawkins sobre a religião é que ela é esteticamente falha. Sua visão do universo é limitada, empobrecida e desmerecedora da realidade maravilhosa conhecida pelas ciências:

O universo é genuinamente misterioso, grandioso, belo e ins-pirador de temor. Os tipos de visões do universo que os reli-

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giosos tradicionalmente abraçam são fracas, patéticas e des-prezíveis quando comparadas com a forma como o universo realmente é. O universo apresentado pelas religiões organiza-das é um pequeníssimo universo medieval, extremamente limi-tado.17

A lógica dessa afirmação impertinente é bastante difícil de seguir, e sua base efetiva incrivelmente frágil. A "visão medieval" do universo pode de fato ter sido mais limitada e restrita do que as concepções modernas. Entretanto, isso não tem nada a ver com a religião, seja como causa ou efeito. Ela refletia a ciência da época, amplamente baseada no tratado de caelo ("no céu"), de Aristóteles. Se o universo dos religiosos na Idade Média realmente fosse "pequeníssimo", as-sim ocorria porque eles confiavam nos melhores cosmólogos da época para lhes dizer como o universo era. Estavam seguros de que isso era uma verdade científica e a aceitavam. Eles a tomavam como verdade. Eram ingênuos o bastante para supor que os livros-texto de ciência tinham razão em tudo quanto lhes diziam. E precisa-mente essa confiança na ciência e nos cientistas que Dawkins re-comenda, de forma tão pouco crítica, que o levou a fundamentar sua teologia em torno da visão de universo de outrem. Eles não sabiam a respeito de coisas como "a mudança radical de teoria na ciência", que leva as pessoas do século XXI a serem cautelosas sobre investir muito pesadamente nas mais recentes teorias científicas, e muito mais críticas sobre aqueles que lhes propõem uma visão de mundo.

As concepções medievais do universo eram em grande parte baseadas num modelo ptolemaico do sistema planetário, que situ-ava a terra no centro de um vasto, ordenado mecanismo cósmi-co.18 Isso está descrito vividamente na Nuremberg Chronicle [Crônica de Nuremberg] (1493), de Hartmann Schedel, um dos livros im-pressos mais populares e tecnologicamente avançados do final da Idade Média. Nesta grande visão do universo, a terra estava no cen-tro de uma série de esferas concêntricas, cada qual girando em tor-no da terra de acordo com seus próprios ritmos predeterminados.

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Além deles encontra-se o "empíreo" — um vasto, eterno, infinito e informe vazio. Os teólogos cristãos supunham que era onde o paraí-so estava localizado, freqüentemente com base em argumentos tradi-cionais questionáveis.19 As representações populares desta visão do universo, como a Nuremberg Chronicle [Crônica de Nuremberg], descrevem Deus e os santos como habitando nesta região. Não é o modelo de hoje do sistema solar e está errado em quase todos os pontos. É certamente "medieval", mas dificilmente é um "pe-queníssimo universo". A maioria dos escritores medievais que já li, e que tratam desse tema, considerava a idéia da imensidão cósmica de fato bastante aterradora — mesmo num modelo ptolemaico dos céus.

Lâmina 10: Uma visão medieval tardia do universo. A Nuremberg Chronicle [Crônica de Nuremberg] (1493) de Hartmann Schedel descreve a terra como situada numa posição fixa no centro do universo, cercada por uma série de esferas que definem as órbitas da Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. O "empíreo" se encontra além das estrelas fixas. Foto AKB-Images.

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A implicação da crítica infundada de Dawkins é que uma visão religiosa da realidade é deficiente e empobrecida em comparação com a sua própria. Não resta dúvida de que essa consideração é um fator importante na geração e manutenção de seu ateísmo. Já a análise dessa questão é decepcionantemente fraca e pouco persuasi-va. Um dos temas comuns de muitos escritos religiosos em língua inglesa de aproximadamente 1550al850é que a investigação científica do esplendor e glória da natureza leva a uma avaliação elevada da glória de Deus.20 Embora eu não veja qualquer razão para atribuir um tema básico a esses escritores, era de interesse deles exagerar a beleza e as maravilhas da ordem criada, de forma que pudesse haver uma correspondente visão central de Deus. A evidência histórica bastante frágil que Dawkins apresenta em defesa de sua extravagante crítica pungente das visões religiosas da realidade, seja em Desvendando o arco-íris seja em outro lugar, eqüivale a pouco mais de uma observação sobre o aumento da nossa compreensão da imensidão e complexidade do universo nos últimos anos.

Uma abordagem cristã à natureza identifica três modos pelos quais um sentimento de temor ocorre com relação ao que observa-mos.

1. Um sentimento imediato de maravilhamento frente à beleza da natureza. Isso é evocado imediatamente. Um "sobressalto do coração" que William Wordsworth descreveu como ocorrendo quando se vê um arco-íris no céu; isso se dá antes de qualquer reflexão teórica consciente sobre o que ele poderia significar. Para usar categorias psicológicas, isso está ligado à percepção, não à cog- nição. Não consigo ver uma boa razão para sugerir que crer em Deus diminui de alguma forma este sentimento de maravilha mento. O argumento de Dawkins nesta questão está tão longe de ser determinado pela evidência e é tão completamente im provável, que temo tê-lo entendido mal.

2. Um sentimento derivado de maravilhamento frente à represen tação matemática ou teórica da realidade que surge dela. Dawkins também conhece e aprova esta segunda fonte de "maravilhamen-

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to apavorante", mas parece sugerir que os "religiosos sentem prazer no mistério e sentem-se enganados quando ele é explicado".21

Nada disso; um sentimento novo de maravilhamento emerge, o qual explicarei num instante.

3. Outro sentimento derivado de maravilhamento para o qual o mundo natural aponta. Um dos temas centrais da teologia cristã é que a criação dá testemunho de seu criador: "Os céus declaram a glória de Deus!" (SI 19.1). Para os cristãos, experimentar a beleza da criação é um sinal ou indicação da glória de Deus, e por isso deve ser particularmente apreciado. Dawkins exclui qualquer refe-rência transcendente de dentro do mundo natural.

Dawkins sugere que um enfoque religioso ao mundo carece de alguma coisa.22 Tendo lido Desvendando o arco-íris, ainda não con-clui o que seria isso. Uma leitura cristã do mundo não nega nada do que as ciências naturais nos dizem, exceto o dogma naturalista de que a realidade é limitada ao que pode ser conhecido pelas ciências naturais. Seja como for, um compromisso cristão com o mundo natural acrescenta uma riqueza que considero um tanto ausente da explicação que Dawkins faz das coisas, oferecendo uma nova moti-vação para o estudo da natureza. Afinal de contas, João Calvino (1509-64) explicou como ele invejava aqueles que estudavam fisi-ologia e astronomia, o que lhes permitiam ter um comprometimento direto com as maravilhas da criação de Deus. O Deus invisível e intangível, mostrou ele, poderia ser apreciado pelo estudo das maravilhas da natureza. Talvez a maior diferença entre ciência e religião não esteja, portanto, em como começam, nem mesmo em como continuam, mas em como terminam.

Em breve, daremos uma idéia para a leitura cristã da natureza. Mas antes, precisamos fazer uma pausa, para explorar esse senti-mento de "pavor" que tantas pessoas experimentam num encontro com as maravilhas da natureza.

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O conceito de temor

Nos últimos anos, tem surgido um novo interesse sobre o con-ceito de "temor". Uma idéia caracterizada de forma proeminente na teologia, sociologia e filosofia. Por exemplo, Rudolf Otto falou do "numinous" — um mysterium tremendum et fascinam que inspira-va temor por parte daqueles que o experimentavam.23 Essa experiên-cia pode ser tanto profundamente positiva quanto terrivelmente negativa, muitas vezes reduzindo o sujeito a um estado de silêncio ou confusão. Mais recentemente, o conceito começou a chamar a atenção dos psicólogos,24 ao observarem que uma gama de estímu-los leva a uma experiência de temor, incluindo "encontros religio-sos, líderes políticos carismáticos, objetos naturais e até mesmo padrões de luz".

Em um recente estudo pioneiro, Dacher Keltner e Jonathan Haidt desenvolveram um protótipo de abordagem à experiência de temor, que traz em seu núcleo duas características distintivas: imen-sidão e acomodação.25 Imensidão, afirmam, refere-se a "qualquer coisa que seja experimentada como sendo muito maior que o eu, ou o nível comum de experiência, ou quadro de referência do eu". Pode se referir simplesmente ao tamanho físico, ou a marcadores mais sutis de dimensão, como os sinais sociais, ou marcadores sim-bólicos. A acomodação se refere ao processo identificado por Jean Piaget (1896-1980), professor de psicologia genética e experimen-tal na Universidade de Genebra de 1940-71. Piaget a definiu como o processo pelo qual as estruturas mentais humanas passam por um ajuste diante do desafio imposto por novas experiências. Assim, seria possível experimentar um sentimento de temor diante da percepção da "amplitude e extensão de uma teoria importante" — como a própria teoria da evolução.

Propomos que o temor prototípico envolve um desafio para as estruturas mentais ou a negação delas quando falham em encontrar o sentido de uma experiência de algo grandioso. Essas experiências podem ser desorientadoras e até mesmo

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aterrorizantes [...]. Elas também envolvem freqüentemente sentimentos de iluminação e até mesmo de renascimento, quando as estruturas mentais se expandem para acomodar verdades nunca antes conhecidas. Enfatizamos que o temor envolve uma necessidade de acomodação que pode ou não ser satisfeita. O sucesso da tentativa de acomodação pode expli-car, em parte, por que o temor pode ser ao mesmo tempo aterrorizante (quando a pessoa não compreende) e ilumina-dor (quando a pessoa é bem sucedida).26

Com base nesta abordagem, o sentimento humano de temor diante da imensidão do universo, ou da beleza dramática de uma paisagem ou quadro (como um arco-íris), poderia ser aumentado captando os fundamentos ou implicações teóricas do que estava sendo observado. Isso faz ressonância com a crença de Dawkins — que também é minha — de que as representações teóricas da rea-lidade são em si mesmas belas e capazes de evocar temor devido à sua complexidade ou capacidade de invocar a visão de um "grande quadro" das coisas. Este é sem dúvida o caso das teorias que propõem uma visão maior das coisas — uma lista de teorias que inclui o darwinismo, o marxismo e a teologia cristã, mas não se limita a eles.

A mente de Deus

A teologia cristã de modo algum menospreza uma apreciação natural da beleza e da maravilha do mundo; ao contrário, se junta a ela. Conforme já demonstrei, existem três níveis nos quais o cris-tianismo afirma um sentimento de maravilhamento sobre a na-tureza: (1) pelo encontro imediato com sua vasta beleza; (2) pela explicação teórica e representação da natureza; e (3) pela capacidade da natureza em apontar Deus como o seu criador. Suponho que o primeiro deles não é tema de controvérsia, e discutiremos os dois restantes na seqüência.

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A alegação infundada de que a teologia cristã sustenta que a "explicação" de fenômenos naturais tira-lhes o significado divino é uma completa tolice. O fato de podermos desenvolver essas teorias em primeiro lugar, junto com a beleza matemática das teorias re-sultantes, é solidamente fundamentado numa visão de mundo cris-tã. O físico teórico John Polkinghorne explora as implicações deste ponto, a saber:

Estamos tão familiarizados com o fato de que podemos com-preender o mundo que na maioria das vezes temos isso por certo. É o que torna a ciência possível. Mas, poderia ter sido de outro modo. O universo poderia ter sido um caos desordena-do em vez de um cosmo ordenado. Ou poderia ter tido uma racionalidade que nos fosse inacessível [...]. Há uma congru-ência entre nossas mentes e o universo, entre a racionalidade experimentada dentro e a racionalidade observada fora.27

Não resta dúvida de que os seres humanos tiveram um notável êxito em investigar e captar algo da estrutura e funcionamento do mundo. Precisamente por que a racionalidade do mundo deveria ser tão acessível ao seres humanos permanece certamente muito enigmático. Polkinghorne é bastante claro sobre como o cristianis-mo poderia oferecer uma explicação dessa observação:

Se a profunda congruência da racionalidade presente em nossa mente com a racionalidade presente no mundo deve encon-trar uma verdadeira explicação, seguramente ela deve estar numa razão mais profunda, que é a base de ambas. Essa razão seria provida pela Racionalidade do Criador.28

Ao desenvolver este ponto, Polkinghorne se apóia em fontes profundas na tradição cristã, as quais enfatizam que Deus dotou a humanidade de inteligência e razão; ambas para investigar o mun-do e descobrir Deus. Precisamente a mesma observação foi feita pelo astrônomo Johann Kepler, na aurora da Revolução Científica. Uma vez que a geometria tinha suas origens na mente de Deus, só

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se poderia esperar que a ordem criada se conformasse aos seus padrões:

Com isso a geometria é parte da mente divina desde as origens do tempo, até mesmo antes das origens do tempo, (pois o que existe em Deus que também não é de Deus?) supriu Deus com os padrões para a criação do mundo, e foi transferida para a humanidade com a imagem de Deus.29

Nesta leitura de coisas, que é típica da tradição cristã, a represen-tação teórica da realidade pode ela mesma ser vista, como olhando dentro da mente de Deus. Dawkins, não duvido, vai querer se opor a essa interpretação da teoria. No entanto, sua sugestão de que o cristianismo, necessária ou caracteristicamente, estabelece uma proi-bição total sobre a representação teórica do mundo é simplesmente insustentável, infundada pela evidência.

Mais digno de consideração, o cristianismo defende que a na-tureza deve ser vista como uma "imagem das coisas divinas" — algo que de alguma maneira aponta para o próprio Deus, nos per-mitindo ver a natureza numa nova luz. Embora sem negar nada do que Dawkins afirma sobre a beleza do mundo, essa perspectiva sim-plesmente se junta a ela, vendo a natureza como um indicador na direção da beleza maior de Deus. A maravilha do criador pode ser conhecida pela ordem criada. Esta observação foi feita pelo teólogo Boaventura, por volta do século XIII, um grande admirador de Francisco de Assis e do seu amor por cada aspecto da natureza:

As criaturas do mundo guiam as almas do sábio e contempla-tivo até o Deus eterno, visto que elas são as sombras, ecos e retratos; são os vestígios, imagens e imagens visíveis do mais poderoso, sábio e melhor primeiro princípio daquela origem eterna, luz e plenitude; daquela arte produtiva, exemplar e indutora da ordem. Elas são colocadas diante de nós para que possamos conhecer Deus. Recebemos sinais de Deus, [...] toda criatura é por sua própria natureza e espécie represen-tação e semelhança daquela sabedoria eterna.30

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Esta idéia de que a natureza produz o louvor e o conhecimento de Deus está na base do Romantismo, que procurava restabelecer uma conexão entre a natureza e o transcendental. O Romantismo via o desenvolvimento do modelo mecanicista do universo, que ele as-sociava a Newton, com grande angústia.31 Alguma coisa havia se perdido — um sentido de mistério. Como Dawkins levanta essa questão em Desvendando o arco-íris, podemos explorar isso com mais detalhes.

Mistério, loucura e nonsense

Dawkins é um esplêndido representante do não-nonsense, "uma racionalidade do tipo ajusta todas", na perspectiva do Iluminismo. Talvez isso seja mais óbvio em sua discussão do "mistério" — uma categoria que ele alegremente, mesmo que de forma um pouco pre-matura, reduz para "simples loucura ou nonsense surrealista".32 Po-demos descobrir o sentido das coisas — ou, se não pudermos descobrir o sentido das coisas neste momento, cedo ou tarde o avanço inexo-rável da ciência tornará isso possível. No tempo certo, qualquer coisa pode acontecer. Os religiosos que falam sobre o "mistério" são apenas místicos irracionais, preguiçosos ou amedrontados de-mais para usar sua mente de maneira correta.

É uma caricatura reconhecível da idéia de "mistério". Mas ain-da é uma caricatura. Eis o que um teólogo quer dizer quando usa a palavra "mistério": algo que é verdadeiro e possui sua própria racio-nalidade — ainda que a mente humana ache impossível apreendê-lo completamente. Alguns anos atrás, eu comecei a aprender japonês. Não fui muito longe. O idioma usava dois silabários, tinha um vocabulário que guardava pouca relação com quaisquer dos idiomas que eu conhecia, e uma sintaxe que parecia completamente ilógica a meu modo ocidental de pensar. Em resumo: para mim aquilo não fazia sentido. Mas meu fracasso para aprender o idioma japonês representa um fracasso de minha parte. Aqueles que sabem o idioma me asseguram que é racional e inteligível; o fato é que não pude compreender.

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Não há como o conceito de "mistério" significar "uma irraciona-lidade", a não ser no sentido em que ele venha a ser contra-intuitivo. Ele pode estar além da atual capacidade de compreensão da raciona-lidade humana; o que não significa, conforme enfatizou Tomás de Aquino, que seja contrário à razão. A mente humana é simplesmente limitada demais para compreender a plenitude de tal realidade, e de-vemos, portanto, fazer o que for possível, mesmo reconhecendo nossos limites. Não somos Deus e, conseqüentemente, achamos difícil arcar com aquilo que John Donne chamou de "o imenso peso da glória divina". Não é somente uma questão no campo da teologia. Qualquer tentativa de lidar com a imensidão da natureza — como a aparentemente extensa escala temporal da evolução darwinista — depara-se com os mesmos problemas, tornando o uso tanto da pala-vra quanto da idéia de "mistério" completamente apropriado às ciên-cias naturais. O próprio Dawkins sabe disso, como está claro em seu comentário derrisório sobre os críticos pós-modernos das ciências:

A física moderna nos ensina que existem mais verdades do que os olhos podem ver; ou o que pode ver a limitadíssima mente humana, desenvolvida para lidar com objetos de tama-nho médio que se movem a uma velocidade média por distân-cias médias na África. Diante desses mistérios profundos e su-blimes, o intelectual de baixo nível, carregado de afetações pseudofilosóficas não parece merecedor de atenção adulta.33

É esse precisamente o meu ponto.

A mecânica quântica é um excelente exemplo de uma área da ciência onde a categoria de "mistério" parece totalmente apropria-da. É algo que acreditamos ser verdade, e que traz em si uma profun-da racionalidade — mas que, muitas vezes, parece impossível compreender. Certamente eu achava meu conhecimento de matemáti-ca limitado ao me especializar nessa disciplina em Oxford nos anos de 1972-3. Dawkins contribui, apontando em particular como suas conclusões "podem ser terrivelmente contra-intuitivas".34

A questão aqui é que tanto a comunidade científica quanto a religiosa pode ser pensada como tentando lutar com as ambigüidades

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da experiência, oferecendo o que se aceita como as "melhores expli-cações possíveis" para o que é observado, aceitando as dificuldades intelectuais exigidas pela evidência que pede que pensemos dessa maneira. A análise da experiência pode levar à geração de conceitos que são muitas vezes bastante complexos e ocasionalmente bastante . contra-intuitivos. Muito mais imponderados, os cientistas naturais hostis à religião ridicularizam a complexidade de seus conceitos. A ciência, afirmam eles, lida com idéias simples, e evita aventuras ex-travagantes em tais campos. Outros, no entanto, que se debruçaram mais cuidadosamente sobre a questão, não têm tanta certeza.

O filósofo da ciência, de Princeton, Bas van Fraassen duvida profundamente daqueles que sugerem que a ciência é justificada-mente simples enquanto a religião é injustificadamente complexa; mais uma vez, a teoria quântica é citada como exemplo:

Os conceitos de Trindade, alma, essência, universalidade, substância primeira e potencialidade confundem você? Eles parecem sem importância ao lado da alteridade inimaginável do espaço-tempo fechado, horizontes de eventos, correlações EPR e modelos bootstrapP

Fraassen claramente considera que as demandas conceituais e imagi-nativas de algumas áreas da física moderna excedem aquelas tradicio-nalmente associadas até mesmo com os mais labirínticos sistemas teológicos e filosóficos da Idade Média. O ponto levantado por ele, é que um compromisso empírico com o mundo da experiência e de fenômenos lança conceitos teóricos que estão longe de ser sim-ples, mas que parecem inevitáveis para a preservação dos fenômenos.

Para um teólogo cristão ortodoxo, a doutrina da Trindade é o resultado inevitável do compromisso intelectual com a experiência cristã de Deus; conceitos abstratos e desconcertantes surgem do mesmo modo para o físico na luta com o mundo dos fenômenos quânticos. Mas ambos estão dispostos a sustentar um compromis-so intelectual com tais fenômenos, para produzir e desenvolver teo-rias ou doutrinas que lhes façam justiça, preservando-os em vez de reduzi-los.

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A declaração mais ponderada de Dawkins sobre o "mistério" se encontra em Desvendando o arco-íris, que explora o lugar da ma-ravilha numa compreensão das ciências. Embora mantendo sua hostilidade central de Dawkins à religião, a obra reconhece a im-portância de um sentimento de temor e maravilhamento na moti-vação daqueles que desejam compreender a realidade. Dawkins escolhe o poeta William Blake como um místico obscurantista que exemplifica porque os enfoques religiosos ao mistério são insensa-tos e improdutivos. Dawkins situa muitos defeitos de Blake num compreensível — mas desviante — desejo de se enlevar num mis-tério:

Os impulsos ao temor, reverência e maravilha que levaram Blake ao misticismo [...] são precisamente aqueles que levam outros de nós à ciência. Nossa interpretação é diferente, mas o que nos fascina é o mesmo. O místico se alegra em mostrar a maravilha e revelar em um mistério aquilo que não "tínha-mos a intenção" de entender. O cientista sente a mesma ma-ravilha, mas é impaciente, sem conteúdo; reconhece o mistério como profundo, então acrescenta: "Mas estamos trabalhando nisto".36

Desse modo, não existe exatamente um problema com a palavra ou a categoria de "mistério". A questão é se resolvemos lutar com ela, ou adotar a visão preguiçosa e complacente de que isso está convenientemente fora de questão.

Agora concordemos que William Blake era uma personagem um pouco pitoresca, com idéias decididamente estranhas. Dificil-mente pode ser tomado como representante do cristianismo de linha. Blake foi considerado por muitos de seus familiares e amigos como sintomático de uma loucura incipiente, no mínimo por causa de suas "visões". Quem poderia ler seu poema "Milton" — que inclui, por acaso, o famoso hino "Jerusalém" — sem ser perturba-do pela descrição gráfica de Blake de como o espírito do poeta John Milton caiu verticalmente do céu, antes de entrar nele pela planta de seu pé esquerdo? Mas Blake não é um representante da

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teologia crista—uma disciplina a qual ele se opôs por várias razões, a propósito, no mínimo por sua tendência ao racionalismo.

Tradicionalmente, a teologia cristã tem estado bem ciente de seus limites e evitado afirmações excessivamente confiantes diante do mistério. Contudo, ao mesmo tempo, a teologia cristã jamais se viu como totalmente reduzida ao silêncio diante dos mistérios divinos. Tampouco proibiu o debate intelectual com os "mistérios" como destrutivo ou prejudicial à fé. Como o teólogo anglicano do século XIX Charles Gore insistia, com razão:

A linguagem humana jamais pode expressar de forma ade-quada as realidades divinas. Uma tendência constante a se desculpar pela fala humana, um grande elemento do agnos-ticismo, um terrível sentimento de profundo desconhecimento, além do pouco que é tornado público; isso tudo está sempre presente à mente dos teólogos que sabem o que eles são, ao conceber ou expressar Deus. "Nós vemos", diz São Paulo, "num espelho, em termos de um enigma", "nós sabemos em parte". "Nós somos compelidos", lamenta São Hilário, "a tentar o que é inacessível, escalar onde não podemos alcançar, falar o que não podemos proferir; em vez da mera adoração da fé, somos compelidos a confiar as coisas profundas da religião aos perigos da expressão humana.37

Uma definição perfeitamente boa da teologia cristã é "considerar um problema racional acima de um mistério" — reconhecendo que pode haver limites ao que pode ser alcançado, mas acreditando que este debate intelectual é válido e necessário. Significa justamente ser confrontado com algo tão grandioso que não podemos com-preender completamente, e assim devemos fazer o melhor que po-demos com as ferramentas analíticas e descritivas à nossa disposição.

Pense nisso, é o que as ciências naturais pretendem fazer tam-bém. Talvez não seja de se estranhar que haja um crescente interesse no diálogo entre ciência e religião.

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Conclusão

Este livro é apenas um modesto esforço de abordar uma série de questões fascinantes levantadas pelos textos de Richard Dawkins. Algumas delas são diretamente de natureza religiosa, outras indire-tamente. Estou consciente de que não tratei de nenhuma dessas questões com o detalhamento que, com justiça, exigiria. Propus algumas novas questões para mais discussão, sem chegar a qualquer conclusão — a não ser que os assuntos tratados neste livro são im-portantes e interessantes e que mais discussão a respeito desses tópi-cos é necessária. Dawkins faz de fato perguntas pertinentes e oferece algumas respostas interessantes. Estas não são respostas em particu-lar e reconhecidamente confiáveis, a menos que você acredite que os religiosos são pessoas tolas, que odeiam a ciência, guiadas de maneira geral, por uma "fé cega" e outras coisas impronunciáveis.

Este livro propõe mudar a discussão e estipular um limite para a explicação muitas vezes incerta da relação entre ciência e religião apresentada por Dawkins. Uma abordagem a essa questão, baseada em evidências, é muito mais complexa e muito mais interessante do que "o caminho da simplicidade e do pensamento convencional de Dawkins". Existem, como Dawkins corretamente aponta, áreas de tensão que devem ser reconhecidas e confrontadas; contudo, ao lado delas, há um imenso potencial para a sinergia intelectual e a descoberta de novas perspectivas da realidade.

Estou certo de que temos muito a aprender debatendo com elegância e precisão. A questão da existência de Deus e de como ele seria não terminou com Darwin — apesar da confiança exagerada nas predições darwinistas — permanecendo de fundamental im-portância pessoal e intelectual. Algumas mentes em ambos os lados da discussão podem estar fechadas, porém a evidência e o debate não estão. Cientistas e teólogos têm muito a aprender uns com os outros. Se eles se ouvissem mutuamente, poderíamos ouvir o can-to das galáxias.38 Ou até mesmo os céus proclamando a glória de Deus (SI 19.1).

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1 Ver, por exemplo, Michael Ruse. Can a Darwinian Be a Christian? The Relationship Between Science andReligion. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

2 A DeviVs Chaplain, p. 151. 3 Duas publicações foram especialmente importantes na efetivação dessa análise radical do ponto de vista popular: David C. Lindberg and Ronald L. Numbers, God and Nature: Histórica! Essays on the Encounter Between Christianity and Science. Berkeley: University of Califórnia Press, 1986; Edward Grant, The Foundations of Modem Science in the Middle Ages: Their Religious, Institutional, andlntellectualContexts. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

AADevil's Chaplain, p. 149. 5 Freeman Dyson. "The Scientist as Rebel". In Natures Imagination: TheFrontiers of Scientific Vision, editado por John Cornwell, p. 1-11. Oxford: Oxford University Press, 1995.

6MarioBiagioli. Galileo, Courtier: The Practice of Science in the Culture ofAbsolutism. Chicago: University of Chicago Press, 1993.

7 David N. Livingstone. "Darwinism and Calvinism: The Belfast-Princeton Connection." Ms 83 (1992), p. 408-28.

8 Colin A. Russell. "The Conflict Metaphor and Its Social Origins." Science and Christian Faith 1 (1989), p. 3-26.

9 Frank M. Turner, "The Victòrian Conflict Between Science and Religion: A Professional Dimension." Isis 69 (1978), p. 356-76.

10 Para uma crítica aceita desta posição, ricamente exemplificada com estudos de caso históricos, ver John Brooke and Geoffrey Cantor, ReconsíructingNature: The Engagement of Science and Religion. Edinburgh:T. &T. Clarke, 1998.

11C. E Snow, The Two Cultures andthe Scientific Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 1959, p.3. A análise de Snow é aberta ao desafio pontual, especialmente o modo como ele compara Goethe e Newton: ver Hannelore Schwedes, "Goethe contra Newton". Westermanns pãdagogische Beitrãge 27 (1975), p. 63-73.

l2VerHughAldersley-Wilhiams. "The Misappliance of Science". New Statesman, 13 de setembro de 1999.

13 Ver, por exemplo, Paul R. Gross & Norman Levitt. Higher Superstition: The Academic Left andlts Quarrels with Science. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1998.

14 Ver as questões levantadas por Brian Martin. "Social Construction of an Attack on Science'". SocialStudies ofScience26 (1999), p. 1610-73.

15 Unweavíng the Rainbow, p. xv. 1S Unweaving the Rainbow, p. 312. 17 Richard Dawkins. "ASurvival Machine", In The Third Culture, editado por John

Brockman, p. 75-95. Nova York: Simon & Schuster, 1996.

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18 Até agora o melhor estudo é de Edward Grant. Planets, Stars and Orbs: The Medieval Cosmos, 1200-1687. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

19 Grant, Planets, Stars and Orbs, p. 169-85, 371-89. 20 Sendo um excelente exemplo os primeiros trabalhos de John Ruskin; ver Michael Wheeler. Ruskins God. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

21 Unweavingthe Rainbow, p. xiii. Ver também sua discussão mais ampla, variando desde as religiões tradicionais até os movimentos New Age, p. 114-79.

22 Unweaving the Rainbow, p. xii. 23 Rudolf Otto. The Idea of the Holy: An Inquiry ínto the Non-RationalFactor in the Idea oftheDivineandItsRelation to theRational, 2a ed. Oxford: Oxford University Press, 1978.

24 Richard S. Lazarus. Emotion and Adaptation. Nova York: Oxford University Press, 1991; Paul Ekman. "An Argument for Basic Emotions". Cognition and Emotion 6 (1992), p. 169-200.

25 Dacher Keltner & Jonathan Haidt. "Approaching Awe, a Moral, Spiritual and Aesthetic Emotion". Cognition and Emotion 17 (2003), p- 297-314.

26 Dacher Keltner & Jonathan Haidt, "Approaching Awe, a Moral, Spiritual and Aesthetic Emotion." Cognition and Emotion 17 (2003), p. 297-314. A citação pode ser encontrada na p. 304.

27 John Polkinghorne. Science and Creation: The Searchfor Understanding. Londres: SPCK, 1988, p. 20-1.

28 Polkinghorne. Science and Creation, p. 22. 29Johann Kepler. GesammelteWerke, ed. MaxCaspar. Munich: C. H. Beck, 1937-

83, v. 6, p. 233. i0 Bonaventure, Itinerarium

Mantis in Deum, p. 2. 31 Sobre isso ver, R. H. Stephenson, Goethes Conception ofKnowledge and Science. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1995.

32 A DevWs Chaplain, p. 139. 53 A DevWs Chaplain, p. 19. i4/4 DevWs Chaplain, p. 18-19. Ele cita em seu apoio o excelente estudo de Lewis Wolpert: The UnnaturalNature of Science. Londres: Faber & Faber, 1992.

w Bas van Fraassen. "Empiricism in the Philosophy of Science". In Images of Science: Essays on Realism and Empiricism, editado por P. Churchland & C. Hooker, p. 245-308. Chicago: University of Chicago Press, 1985. A citação pode ser encontrada na p. 258.

16 Unweaving the Rainbow, p. 17. 17 Charles Gore. The Incarnation oftheSon of God. Londres: John Murray, 1922, p. 105-6.

!í! Unweaving the Rainbow, p. 313.

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Agradecimentos

Este trabalho foi desenvolvido durante muitos anos e deve muito a muitas pessoas. Tenho uma dívida particular com colegas da aca-demia que o leram ainda no rascunho e foram generosos em seus comentários: Denis Alexander, R. J. Berry, Francis Collins, Simon Conway Morris, David C. Livingstone, Alvin Plantinga, Michael Ruse e, especialmente, Joanna McGrath. Sou o único responsável por qualquer erro factual ou interpretativo que tenha sido mantido. A Universidade de Oxford gentilmente forneceu esclarecimentos so-bre alguns pontos específicos. A JohnTempleton Foundation apoiou a pesquisa em ciência e religião por vários anos e—junto com muitos outros trabalhos nesse campo — sou lhe grato pelo auxílio e encora-jamento. Embora este trabalho tenha sido sugerido em primeiro lugar, nos idos de 1978, por um editor da Oxford University Press, decidi enfim confiá-lo a Blackwell Publishers, com cujos editores tenho trabalhado de forma feliz há muitos anos. A Blackwell tem sido tudo o que uma boa editora deveria ser, e agradeço especial-mente a Rebecca Harkin por seu encorajamento e orientação ao longo deste projeto.